Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

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    I

     

    A

    POETI L sSI

    Aristóteles. Horácio e Longino

    A des pei to do s mu itos séc ulos de co rridos des de a é poca em que

    for am or igi na ri ame nt e escritos , be m como da ci rc un st ân ci a de repre -:

    sentarem a teor ia ou pre ce ptlst ic a de u ma p rá ti ca l iterária m uito d ife-

    ren te da nossa, os tr ês texto s reunid os nes te volum e ainda têm pl en a

    at ualidade. Isso porq ue tanto a Poética, d e A r is tó te les, qu ant o a Arte

    Poética, de Ho ràcio , e o Tratado do .Sublime, de Longino, que lhe re-

    co lhe ram e am pl iar am as lições , represe ntam uma visão de conjunto

    extremamente lúc ida da ess ên cia e. d a f in a li da d e d a l it er at ur a com o arte .

    Do seu va lo r h is tôrico e da su a p e rma nente atualidade dá testemunho.

    qu an do mais nã o fosse,

    o

    fa to de, em n osso século , prim eiram ent e a

    Nova Cr ítica america na, depois o Estrutu ra li sm o f ra ncês, e, ma is re -

    centeme nte, a Hermenêutica o u E st étic a da R ecepção alemã, terem a

    eles voltado em busc a de nov os pontos de partida para a sua teo rizaç ào

    ac erc a da pr áx is li te rár ia. Daí o ex cep ci ona l in te ress e, pa ra professores

    e es tudantes de Let ra s, ass im como para outros leitores qu e ten ham a

    at enção vo ltada para tal ca mpo de estud os, deste volume onde se coli-

    ge m , para maior c om od id ade de leitura, co nsu lta e co tejo, os três

    textos fund am entai s da Poét ica cláss ica. Fo ram eles traduzidos direta-

    me nte do greg o e do latim ,  e anotados, pelo Pro]. Ja ime Bruna, do

    De pa rt am en to d e Let ras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filo-

    sof ia, Letras e Ciên cias Humanas da Unive rsidade de São Pau lo . e a

    se u respeito esc reveu o Prof . Ro berto de Ol iveira Brandão, do mesmo

    Departamento , o estudo introdutório também aqui reco lhido.

    EDITOR ULTRIX

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    CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte

    Câmara Brasi le ira do Livro , SP

    Aristóteles, 384-322A.C.

    A 75p Apoética clássica/ Aristóteles, Horácio, Longino; introdução

    7. Ed. por Roberto de Oliveira Brandão; tradução direta do grego e do

    latim por Jaime Bruna. - 12, Ed. :-:::-São Paulo: Cultrix: 2005.

    1.Po ética I, Horácio, 65-8A  C.11.Longino, 2137-273. III

    Brandão, Roberto de a li veira,: 1.~34- N.Bruna, Jaime, 1910-

    V.TItulo.

    81-0649

    CDD-808.1

    Índices para catálogo sistemático:

    1.Arte poética: Retórica: Literatura 808.1

    2. Poética: Retórica: Literatura 808.1

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    ARISTOTELES, HORÁCIO, LONGINO

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    A PO ÉT IC A

    C L ÁS S IC A

    Introdução

    ROBERTO DE OLIVEIRA BRANDÃO

    (Professor-assistente doutor de Literatura Brasileira

    .da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

    Humanas da Univer sidade de São Paulo)

    Tradução direta do grego e do latim

    JA IM E BRU NA

    (Professor-assistente doutor de Latim da Faculdade

    de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

    da Universidade de São Paulo)

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    EDITORA CULTRIX

    São Paulo

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    Copyright

    ©

    Edito ra Cult rix.

    Todos os di reitos rese rva dos. N enhu ma parte dest e liv ro pode ser repr od uzi da ou

    usa da d e qual quer fo rma ou por qualqu er m eio, elet rônico ou mec ân ico , in c lusive

    fo tocóp ias , gravações ou siste m a de arm az enarn en to em banco de dado s, sem

    perm iss ão p or e scrito, exceto nos c a s os de trec hos curto s c it ados em rese nhas c rítica s

    ou artigos de r evista s.

    o primeiro número à e squerda indica a edi ção , ou reed ição , de sta obra. A primeira

    dezena à direi ta indica ° ano em que esta edição, ou ree dição foi publicada .

    Edição

    ] 6-] 7-] 8-] 9-20-2 ]- 22

    11 -]2 -13- 14-15- 16-] 7

    Direitos rese rva dos

    EDITORA) 'ENSAMENTO-CULTR lX LT DA.

    Rua Dr .M á rio V ice rue, 368 - 042 70- 000 - São Paulo, SP

    Fo ne : 2 06 6-9000 - Fax : 2066-9008

    E-mail : pensamento@ cult rix.c om.br

    http:// ww w.pensam ento-cultrix.com.br

    Foi feito o d epós ito lega l.

    An o

    SUMÁRIO

    TRÊs MO MEN TO S

    DA RETÓRICA ANTIGA tRo berto de Ol ive ira

    Br andã o)

    Aristótel es

    ARTE POETICA

    19

    Horácio

    ARTE POETTC A

    55

    Lo ngino ou Di on isi o

    DO SUBLIME

    7

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    TREs MOMENTOS D POÉTI NTIG

    1. A P.O~TICA DE AR ISTOTELES: DA REFLEXÃO A LEI

    1.1. C om o r eflexão so bre às problemas da arte em geral e em

    especial so br e a lite ratura, a

    Poética

    aristotélica ocupa hoje um lugar

    re levante. A trajetória de sua im portância com eça efetivamente no

    sécu lo XV I, pois mal conhecida durante a Idade Média, a través d e

    compilaçõ es siríacas e árabes, só em

    1498

    sai a públ ico a prim eira

    edição latina feita s ob re o or ig in al g rego cuia im press ão apàrece ape-

    nas em 150 3. A pa rtir desse momento sua influência e seu poder

    estimulante serão cada vez m aiores . .

    N as inú meras leit ura s - traduções , comen tár ios, estudos - qu e

    até os nossos dias já se fize ram de seu' texto ou po r s ua i ns pi ra ç ão ,

    os

    conceitos ali em itidos ora são vistos glob almente como problemas

    a serem resolvidos e esclarecidos, da í

    o

    perm an en te tra balho ex e gé -

    tico a que tem s id o s ub me tid o, com que se procura che ga r a o s en tid o

     exat o  de suas palavras, ora tais conceitos são encarados isolada-

    L

    mente e apr ofundados como form ulações deiinidoras do esp ecífico .,

    literário enq uan to postura teórica preocup ada em explicar

    o

    funcio-

    namento da lite ratura, ind ependente do contexto a ristotélic o o rig in al,

    ora são considerados, no extrem o o po sto, como soluçõ es p rá ticas que

    devem or ien tar tanto a criação quanto a crítica de obr as c on cr et as.

    Es tas três tend ências na verdade n ão s ão e sta nq ue s, m as inter-

    penetram- se freqüentement e. Aquilo que em A ristóteles correspondia

    certament e a um trabalho de reflex ão a partir de um a realida de histó-

    rico-artística-cu ltural pode dar lugar, e isso de f at o a con te ce u, ou a um

    critério estratijicaâo qu e s e a plic av a às f orm as a rt ís ticas, ou, no m elhor

    ca so, a um estímulo para reproduzir

    os

    atos de observação e de refle-

    xã o -capaze s de en contrar no novo a dinâ m ica interna que perm anece.

    1. Ver do Autor A Tradição Sempre Nova. São Paulo, Atica, 1976.

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    1 .2. Apesar diss o, podemos dizer que a primeira tendência tem

    sua forma exem plar nos comentários real izados pelo s h um an is tas ita -

    lianos do Renascim ento . Foram eles que praticamente estabeleceram

    a d outrina aristotélica da literatur a que se difundiu nos países oci-

    dentais, traduzindo, co mentando , interpretando, e, em muitos casos,

    rec riand o a Poética. De 1527, data em que G irolam o V id a p ub li co u

    su a

    De arte poetica,

    at é 157 0, quando sai uma das mais importantes

    obras do renascimento ita lian o, a Poetica d'Aristotile vulgarizzata e

    sposta de C astelvetro , a visão renascentista da teoria arist oté lica da

    lite ra tu ra já ap resenta seus contornos defin itiv os. Foram seus artí-

    fices, entre outros, V id a (1527), Ro borte llo (1548), Segni (15 49 ),

    M aggi (1550), Vettori (15 60), G iraldi Cint hi o (1554), Mint urno

    (15 59 ), Scaliger (1561), Trissino (1563), Castelve tro (15 70). O papel

    deste últim o foi decisivo no sentido de  recriar  a

    Poética

    aristotélica .

    René Bray diz qu e ele não se contenta em expl icar se u tex to, como

    haviam feito os

    Vettori

    e Ro bortell o, ele de du z, ac rescen ta , modific a

    mesm o, e constró i as sim sob re as bases fragmentá ri as da

    Poética

    toda

    u ma poé tic a p essoal  . 2

    Independentement e do maior ou menor sign ificado de cada um

    daque les estudios os renascentisi as , o qu e importa notar é a hom o-

    geneidade de suas pre ocup ações: conhecer, ex pl icar , difundir as for-

    mu lações aris to té lica s. Nem destoam desse quadro as divergências ,

    com o a de G irald i C int hio que nos Discorsi (1554), procura legiti -

    ma r uma forma po ét ica para a qual Aristót eles nã o havia leg islad o, o

    romanzo, espécie heróica criada por Ar ios to e Boi ardo. Na mesma

    linha, Mintu rno e m 1563 es creve uma Arte poetica em que coloc a o

    romanzo

    ao lado da epop éia, a lém de buscar os exemplos não mais

    na s lite raturas grega e latina, mas na ita lian a de se u tempo. Fat os

    co mo esses, al iás , mos tram qu e os .ieáricos renascen tis tas nem sempre

    obedeciam cegamente ao pensam ento dos Antigo s, mas, pelo contrá-

    ri o, e stav am ate ntos ao que se passa va na p rodu ção viva de sua época .

    1.3. A segun da te ndê ncia po r m im referida, a de encar ar is o-

    ladamente ce rtos co nce ito s ari stotélic os como fonte estimu lante para

    n ov as o bs er vações e novas refle xõ es sobre o fen ômeno artístico, pode

    se r local izada em nosso s dias. Tomemos o conceito de

    verossimilhan-

    ça, que pe rtencia tanto JjO arsenal p oético quanto ao retórico. A ma-

    n eira co mo o e nu nc io u A ri st ót eles na Poética, por sua concisão e

    contundência , teve certamente papel decisivo na longa e rica traietô-

    2. Forma/íon de Ia doctr ine classique. Paris, Nizet, 1963, p. 39.

    2

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    I

    ria d esse c onc eito. N o ca pítu lo IX , quando o filó~ofo discute a dis-

    tinção en tre história e poesia , o problema central é e x emp la rm ent e

    co locado:

     Ê claro, também, pelo que atrás ficou dito, que a obra do poeta

    não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais

    podiam acontecer, possíveis no ponto de v ista da verossimilhança

    ou da necessidade.

    Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o

    poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria

    menos uma história com o metro do que sem ele; a diferença

    está em que um narra acontecimentos e o outro, fato s quais

    podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerr a mais filosofia e

    elevação do que a História; aquela enuncia verdades gerais;

    esta relata fatos particulares.  Poét., IX)

    Ob se rva -se que, embo ra im por tante, a verossimilhança é apen as

    um dos comp onentes da poes ia , imp ortante po rqu e, ao situá-Ia na

    esfera do possível, apr oxim a-a da filo so fia

    (o

    que não adm itia Pl atã o)

    sem afas tá-I a da ex peri ên cia comum de todo ser humano (n o capítulo

    IV da Poética ele dir á qu e o   imi tar é natural ao homem  ).

    Em out ro lug ar, ao tra tar dos probl emas críticos, el e relac iona o

    at o experimental que deve orient ar a cr iação da obra com a atitude

    d o r ec ep tor :

     Quando plausível, o impossível se deve preferir a um possível

    que não convença lbid., XXIV).

    Pormuidçõe s s ug es ti va s c om o e ss as, que colocam não apenas

    o

    pr oblema da relação da li te ra tu ra c om a realidade, mas também o pro-

    blem a da convencional idade do rea l artístico, isto é, que sugerem um

    c om p ro mi ss o e nt re

    o

    processo de rep resent ação como fator co nstruti-

    vo e a naturez a da r ea lidad e repres en ta da c om o efeito de se ntido , nã o

    é de admirar que te nham sido objeto de longas e aca lo rada s d iscu s sões

    durante o Renascim ento ita liano e o Neoclassic ismo franc ês. M as se

    nes ses moment os históricos

    o

    problema da

    verossimilhança

    [o i.semp re

    abordado dentro do conte xto da poética como um todo, no s nosso s

    dia s o conceito é retomado iso ladamente como problema autô nom o

    qu e tanto se aplica ao d is cu rso literário co mo ao cinem a, à pub lic i-

    dad e,

    à

    psican áli se , ele. Tal é o sen tido dos estudos real iza dos pela

    3

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    ri- _ ••.••- '*~. ~-'.. r1 bê ..e_IIioIooIo4.~~_

    revista Communication 11 onde vár ios au tores estudam o conceito de

    verossimilhança dentro do campo de s ua s e specialidade s e interesses.

    3

    1 .4.

    Finalm ente, a tendência para ve r na

    Poética

    (e na

    Retórica)

    um preceitu ário de soluções práticas que devi am orienta r a c ria ção

    e

    a a va lj ação

    d as o br as con cretas foi repres entada pelos m anuais de-

    Ret óric a e P oé tica publicado s du ran te o séc ulo XIX.

    Trib utá rio s n ão aoenas de Aristót eles , mas tam bém de outros

    teó rico s antigos, Ho râcio , Cícero , Longino, Ou intíliano , esses manuais

    sint et izam um momento do longo e lento processo de

    enrijecimento

    das pr im itiv as rejl exôes sobre a literatur a. A crença na possibil idade

    de di sciplina r a força criativa inter ior , isto é,

    o talento

    ou

    o engenho,

    através da habi lidade téc nica

    jornecida

    pela arte

     conceitolatino que

    - tradu z a palav ra grega

    techne)

    es tav a na origem dos manuais e re pre-

    sentava, em princípio, um esforço da razão por encontrar explicaçõe s

    para a

    natureza e o

    fun cionamento da obra literária. Do ato de refle-

    xã o, qu e cria um con he cim ento, à t ra nsm is sã o d es te em forma de pre-

    ceito ou de regr a foi um passo qu e a es co la s e e nc ar regou de da r. In-

    teg rados no proce sso escolar, aqueles m anuais passar am por um traba-

    lho de sim pl ifi ca çã o e d e d ilu iç ão d os a nt ig os c on ce ito s,

    transjorman-

    do-os em lei s ríg id as e perm anentes. 4

    Paul Valéry desc rev e a pa ssag em

    do

    ato de ref lexão inicial , cal-

    cado na ob se rva ção dos p ro ce dimentos artístico s, para o estabeleci-

    mento' da lei e da regra que devem ser obede cidas cegamente:

    criado ra dos Ant igos se enco ntra petri fica da na

    ideotogia paralisante

    dos valores etern os, como se ob se rva nes tas palav ras de um manual

    usado no Colégio Pe dra II do Rio de Janeiro :

     Os antigos e primeiros ordenadores

    das,

    regras e preceitos tiveram

    a intuição da verdade; estudaram muito acuradamente as leis

    eternas e imutáveis da inteligência humana e por isso irá sempre

    muito seguro aquele que lhes for ao encalço.  S

    Mas é necessário lembrar, m ais uma vez, que esse estágio não

    sur giu já acabado. Nem sempre os nossos aut or es ia m d ir eta men te às

    fontes antigas. Entre estas e aq ueles se interpuseram outros autores

    que, a seu modo, já v in ha m rea liza nd o o mesmo processo de dilui -

    ção, principalmente durante o século XV III, ent re eles: Lamy, 6 Gi-

    bert ,

    7

    Blair

    8

    e,

    no século XIX, os p or tu gu eses Freire de C arva-

    lho

    9

    e Borges de Figueiredo ,

    10

    pa ra c itar apenas dois.

    Para nós, hoje, e ssas diferentes tendências de leitura e interpre-

    ta ção da Poética ari stot élica, bem como de outras obr as a nt ig as, assu-

    mem um sig nif ic ad o d idático muito importante, pois mostram que, se

    po r um lado, aque le texto goza de um grande poder sug estivo, po r

    ou tro, reve la que cada época vê' e compreende

    o

    passado de acordo

    C Om suas próprias maneiras de pensar, e o sign ificado histórico do

    texto resulta, em última instância, da int eração das div ersas form as

    de le it ur a o co rr id as. E, po is, nesse quadro que se insere a n ec es si da de ,

    semp re re no va da, d e

    voltarmos,

    diretamente , ao texto da

    Poética

    pa ra

    qu e a constelação de soluções já crista lizada s não impeça o exercício

    .Mas, pouco a

    pouco,

    e em nome da autoridade de grandes

    homens, a idéia de uma espécie de legalidade foi íntroduzida e

    substituiu as recomendações iniciais de origem empírica. Racio-

    cinou-se e o 'rigor da regra se fez. Ela exprimiu-se em fórmulas

    precisas; a c'rítica armou-se; e então seguiu-se esta conseqüência

    paradoxal: uma disciplina das artes, que opunha aos impulsos

    do poeta dif iculdades racionais , conheceu um grande e durável

    prestígio devido à extrema facilidade que ela dava para julgar

    e classificar as obras, a partir da simples referência a um

    código ou a um cânon bem definido. 

    5.

    Silva, Dr. José Maria Velho da. Lições de Retóric a. Rio, Serafim

    José

    Alves,

    editor,

    s/d. (1882).

    6. Larny, Bernard. La Rh étorique ou l'Art de pa rler.

    ôê

    éd., La Haye,

    [737

    (I.' ed.

    1699).

    7. Gibert,

    Pe.

    Balthasar.

    Retórica ou Reg ras da eloqüênc ia. Traduzida

    do francês. Porto, na oficina de Antônio Alvarez Ribeiro,

    1789.

    2

    v.

    8. Blair, Hughes. Cours de Rhétor ique et de Be/les Letlres . Genêve,

    1808

    (J.' ed. inglesa em

    1782).

    9.

    Carvalho, Francisco Freire de. Li ções element ares de Eloq üência

    Na cional.

    6.'

    ed., Lisboa, Tip. Rolandiana,

    186[ (I.'

    ed.

    1834).

    -- -, Li çõ es elementares de poética nacional.

    3.'

    ed. Lisboa, Tip.

    Rolan-

    diana, 1860 (I.' ed. 1840).

    10. Figueiredo, A. Cardoso Borges de. Instituiçõe s El ementares de Retórica.

    J2.' ed. Coirnbra, livraria Central de f. Diogo Pires, 1883 (I.' ed. 1851

    em latim).

    Tal fenôm eno pode ser co ns tatado nos numerosos ma nu ais ut ili-

    za dos nas esc olas brasileiras do século passado , on de a observação

    3. Communicction li Recherches Sém iolog iques _ Le Vraisemblable.

    Paris, Seuíl,

    1968.

    . 4. Valéry, Paul.  Prerniêre Leçon du Cours de Poétique . I n

    Oeuvres I,

    Pari s, Gal lirnard,

    1957,

    págs. 1341-1342.

    4

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    da ref le xã o p es so al ,

    o

    qu e co ns ti tui, c er ta me nt e, a m aior l iç ão d e ix a da

    pe lo estagirita.

    2. A ARTE PO~TICA DE HORACIO: O TRABALHO E A DISCIPLINA

    COMO FATORES CRIATIVOS

    2.1. A

    Epistola ad Pisones,

    mai s conhecid a pela designação de

    Ars Poetica

    com o lh e chamou Ou in tili an o (Inst. Or., V III ,

    3),

    expres-

    sa o pensament o lite rár io maduro de Horâcio e his to ri ca me nt e e xe rc eu

    importan te papel n a c on stitu içã o daquilo que se costuma e nte nde r pela

    ex pressão   teoria clás sica da lite rat ura  . El a foi e sc rita nos últim os

    an os da vi da do poeta, provave lme nte entre 14-13 a.C .

    Antes da

    Arte Poética,

    Horáci o havia com posto seis poemas ond e

    tratava de probl emas li te rários, três sát iras (I, 4; I, 10 ; Il, 1) e três

    epístolas (I, 19; II , 1; Il, 2). Algumas das p os iç õe s a í a ss umi das serão

    de po is r et om ad as e ap rojundadas na Arte Poética, ma s é de se notar

    qu e rev elam já certas direções bá sic as d e s eu p en sa me nto: a p ro cu ra

    de perfeição , a bus ca do eq uilíbrio expressivo, a valorização da poe-

    sia contemporâ nea , a limitação da audiên cia como critério do go sto,

    et c. De um modo ge ral tai s as pectos inser em- se no sentido pragmático

    que foi sendo fo rjad o pelo pensamen to roma no e se cristalizarão nas

    frases e ex pressões de certa m aneira em bl emáticas contidas na

    Arte

    Poética. Muito da rigidez que marcará os manuais de Poética de ex-

    tração cláss ica poster iores es tá c e rt am ent e pre iigurada nas forma s lapi-

    dares com que a

    Arte Poética

    coloc a

    os

    prob lemas literários.

    Mas é necessário obse rv ar q ue n aq uelas obras não atingira ainda

    H

    orâcio

    a prec isã o e a síntese que

    o

    caracterizariam na

    Arte Poética.

    Pe lo co nt rá rio, nota- se lá uma procura perm anente da expressão exata ,

    pr ocura que se traduz na reiteração de certos temas e no tom polê-

    m ico com

    que

    os aborda, como se o crít ico não tivesse encontrado

    ainda sua formu lação ideal. A liás , es sa at itude mostra um aspecto

    partic ular do pensamento horaciano: a busca de perfeição pelo traba-

    lho con sta nte c ombin a-se com a re cu sa à s formas já cristalizada s. Nes se

    sentido seu cla ssi ci sm o, a o a ce nt uar o fa to r

    trabalho,

    opõe -se a certas

    tend ências poste riores de ver no clas sicismo não a busca de perfeiçã o,

    ma s a reprodu ção das fq~'mas de perfeição já at ingidas .

    Obs erva- se, portanto , nessas pr imeiras obras , um

    Horácio

    anti-

    dogmático, recus and o os va lores preestab elecidos 11 e preocupado em

    1 1 . Epístolas 11.

    79-85.

    6

    ; l,: ...--..,..t:~;::Of; -

    cen tral' o mérito da obra em qualid ades qu e lhe parecem inerentes, a

    econom ia, que im põe eliminar o sup érflu o q ue c an sa o ouvido, 12 o

    eq ui líbrio, que leva a condenar tudo aquilo que vai além da justa

    ex pr es são do pensamento , 13 e a harmonia , que não a dm it e t ra nsig ir

    com a un idade do poema. 14

    2. 2 . Tais preocupações antecipam um do s pontos cen trai s do

    cla ssicismo ho raciano desenvolvido na

    Arte Poética:

    a ob ra é reg ida

    po r le is qu e po dem se r apreendidas e fo rmu ladas.

    O

    que certamen te

    não suspeitava Horâcio é que a racion al id ad e a nt ev is ta n a org anização

    da obra como qualida de o bje tiv a e stava em verdade comprome tida

    com o projeto da arte representativa e com os valores de sua épo ca.

    E sintomática a r ejeição com que o crítico inicia a Arte Poética, rela-

    tivam en te a um sup osto quadro sem unidade, que ele julga absu rdo:

      Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça

    humana um pescoço de cavalo, ajuntar membr-os de toda prece-

    dência e cobri-Ias de penas variegadas, de sorte que a figura, de

    mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto;

    entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o

    riso? Creiam-me, Pisões, bem parecido com um quadro assim seria

    um livro onde se fantasiassem formas sem consistência, quais

    sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se

    combinassem num ser uno.  Art e Poé tica, 1·9)

    Embora recuse aceita r e ss e q ua dro   fan tástico ,

    Horâcio

    tem

    con sciência de que há sempre uma lógica in terna que com anda a

    composição da obra, e qu e a unidade nasce da ordem dos com ponen-

    te s, o que implica. em última instância, na seleção dos aspectos a

    serem reunidos em função do efeito tot alizan te fin al, como ele mo stra

    em out ro lugar:

     A força e a graça da ordenação, se não me engano, está em

    dizer logo o autor do poema anunciado o que se deve dizer logo,

    diferir muita coisa, silenciada por ora, dar preferência a isto,

    menosprezo aquilo. 

    lbid.

    42-45; ver também 151-152).

    Essa p er ce pção do carát er

    construtivo

    da obra de arte estava bem

    l iva ent re os artista s e os pen sad ores an tigos e co nstituí um dos fato -

    res de sua perm anente atualidade. Mas . se neles as estruturas assumi -

    '~

     

    12. Sátiras 1, 10, 9-10.

    n lbid.

    1.

    10. 67·70.

    J4 Fpisrol as 1 1 . 1. 73-75.

    7

    ••. ••~.~. : ' .   : . -: 0; ' ~ .~ •••••• .. • • • • .. _ ' - ~.-

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    9/62

    ra m seu modo particular de ve r e se ntir o mundo, iss o decorr eu do

    compromisso histórico entr e form a e conteúdo, fato qu e não perce-

    beram  

    repetidores

    e diluidores da poética clássica, que tomaram

    o

    acidental ( as s oluções d ad as ) p elo e ss en cia l (a busca de s ol uç õe s a de-

    qu adas a novas ne cessidades). ,_

    '

    2.3.

    Se a

    ordem

    e a

    unidade

    co ns tituem os fatores

    estrutur an-

    tes relativos

    à

    ob ra a ca bad a, a

    razão, o trabalho

    e a

    disciplina

    são os

    meios com que

    o

    poeta rea liza seu objet ivo . Embora para

    Hor ácio

    o

    pr incípio da

    mediania,

    a

    aurea mediocritas,15

    seja

    o

    ideal com o

    pro -

    jeto de vida e possa ser ac eitável co mo qu alificação profissional,

    ao

    poeta tal atributo é absolutamen te i na dm is s ív el, como ele declara: '

    .  Recolha na memória isto que lhe digo: é d;'justiça, em deter-

    minadas matérias, consentir com o mediano e o tolerável; o

    jurisconsulto e o causídico medíocres estão longe do talento do

    eloqüente Messala e não sabem tanto quanto Aulo Ca ssélio ,

    têm, não obstante, o seu valor. Aos poetas, nem os homens, nem

    os deuses, nem as colunas das livrarias perdoam a mediocridade, 

    (Ar te Poética, 367-373)

    E

    O

    poeta só atin girá a perfe ição se tiver pl eno do m ínio do ma-

    teri al cr iativo, o que não será possí ve l se não através da razão, do

    trab alho e da di sciplina , instâncias dif erent es de uma mesma ati vi -

    da de de bu sc a d e p er fe iç ão a rtí st ic a. E ssas três instâncias estão impl í-

    citas no conceito de

    arte.

    Ne ss e s en tido, a ra zã o re presenta

    o

    cí rcu lo

    mais am plo enquanto c on sc iê ncia das necessidades fac e aos meios

    à

    dispo siç ão d o poeta ou a s erem criados. E ela que o ac ons elha a medir

    as próp rias forças: .

     Vocês , que esc revem, tomem um tema adequado a suas forças;

    ponderem longamente o que seus ombros se recusem < 1 carregar,

    o que agüentemo A quem domina o assunto escolhido não faltará

    eloqüência, nem lúcida ordenação. lbid., 38-41)

    N a realidade, o artista clás sico

    é

    inimigo da improvisação . A ob ra

    ob tid a e st á sem pre c on dic ionada ao trab alho posto em açã o, d es de o

    plan o e sb o çado no p en same nt o até a execução conc re ta f in al. Mas Ho-

    râcio tom a cuidado em m ostrar que o papel da arte é insepará vel

    da  natureza , como fo nte a utô no ma d a in sp ir aç ão, mas que, no se u

    es tado bruto, é inform e , c aó ti ca .

    Arte

    e

    engenho

    se co mpletam como

    i ns tâ n ci as e s pecífic as , m as m utu ament e compromissadas:

    15 ,

    Odes,

    li, 10, 5-8. Ver também

    Epístolas,

    r, 18, 9.

    8

     

    Já se perguntou se o que faz digno de louvor um poema

    é

    a

    natureza ou a arte. Eu por mim não vejo o que adianta, sem

    uma veia rica; o esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim, um

    pede ajuda ao outro, numa conspiração amistosa. Muito suporta

    e faz desde a infância, suando, sofrendo o fr io , abstendo-se do

    amor e do vinho, quem almeja alcançar na pista a desejada meta;

    o flautista que toca no concurso pítico estudou antes e temeu

    o mestre.  lbid., 408-415)

    Obse rva-se q ue p ar a

    Hor ácio

    o trabalho do poeta não se res trin -

    ge ao momento singular da criação, m as represe nta o

    acúmulo

    da

    ex pe riência cri at iv a en te nd id a e sta co mo d is cip lina interio r e como

    dom ínio dos atos criativos. E essa atividade vai além , não term ina

    com a obra acabada, pois com preende ainda a necessidade de refazer

    o qu e já fo i feito , to da vez que a consciên cia artística ju lgar con-

    ve niente:

     se você compuser versos, nunca o enganarão os sentimentos

    ocul tos sob a pele da raposa. Quando se recitava alguma coisa

    a Quintílio, ele dizia:  Por favor, corrige isto e também isto ;

    quando você, após duas ou três tentativas frustradas, se dizia

    incapaz de fazer melhor, ele mandava desfazer os versos mal

    torneados e repô-Ios na bigorna. Se, a modificar a falha, você

    preferia defendê-Ia, não. diz ia mai s uma única palavra, nem se

    dava ao trabalho inútil de evitar que você amasse, sem rivais,

    a si mesmo e à sua obra. 

    lbid.,

    436-444).

    Esta última objeção - o fato de

    o

    poeta ficar restr ito

    à

    su a pr ó-

    pria subj etividade por n ão a ceita r crítica s - mostra um dos aspectos

    ma is im po rta ntes da concepção horaciana sobre a poes ia : a a tit ud e

    'crítica está im plíci ta no ato criativo. P or o utr o la do , e sta a uto co ns-

    ciênc ia da poesia como capacidade de refleti r so bre

    si

    mesma re pre-

    senta um a resposta dada pelo Cla ss ic is mo d ia nte d a tr ip lic e c on de na -

    ção platônica :

    à

    in cons ciência do po eta, ao ilus ion ismo da poesia e

    ao po de r encan ta tó rio d a medide, do ritmo e d a harmon ia enquanto

    componentes do poema.

    2.4. V ê- se , p ois, que a atitude do poeta prejigura

    o

    pa pel da

    audiênc ia como fat or implícito no poema. O de stinatário de certa

    maneira passa a funcionar com o co-produtor da obra no sentido em

    qu e su a ex pecta tiva determina as ex igê ncias es truturais qu e o po eta

    dev e atende r se qu ise r ob ter a aprovação do p úbl ico:

     Ouça você o que desejo eu e comigo o povo, se quer que a

    platéia aplauda e espere, sentada, a descida do pano, até o

    ator pedir  aplaudi  . tIbid., 153-155).

    9

    \

    < ;

      4 1

    I

    11  :1

    j~1

    ~

     

    .

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    10/62

    o

    fa tor de

    adesão

    nasce, portanto, do relac ionam ento que o pú -

    b li co e st abelece entre a lógica interna da obra e

    o

    que ocorre na sua

    exp eriên cia cotidiana onde ele a prendeu a ver um com prom isso rela-

    tivament e es tá ve l e ntre as formas do

    ser

    e do

    parecer

    como processo

    d e s ig n if ic ação do mundo natural.

    O

    ris o ou o choro, como manifes-

    tações do

    parecer,

    p or e xe mp lo, rev elam a aleg ri a ou a tristeza, que

    constituem espéc ies de

    ser.

    Este caso de

    conveniência (decorum)

    di z

    respeito à relaçã o a tor-e spectador:

     O rosto da gente, como ri com quem ri, assim se condói de

    quem chora; se me queres ver chorar, tens de sentir a dor

    primeiro tu; só então, meu Télefo, ou Peleu, me afligirão os

    teus infortúnios; se declamares mal o teu papel, ou dormirei,

    ou desandarei a rir.  lbid., 101-105)

    Mas há outras modalida des de conveniências igua lmente neces-

    sárias: entre as pala vras de uma personagem e sua pos tura [ac ial ou

    sua situação, entre seu ca ráte r e sua idade ou seu comportamento,

    en tre

    o

    es tilo da obra e seu gên er o, en tre a natureza de certas ações

    e seu modo de apresentação: r ep re se nta da s d iretam ente no palco ou

    relatadas po r u ma testemunh a. A representa çã o atra vés d e p erso na -

    gens em ação cria o efeito de pr esentij icação , po is

    o

    ca ráter vi-

    su al  dos fatos confer e maior ve ro ssim ilh an ça porqu e os situa mais

    próx imos da realid ad e, e xi gindo assim do espectador uma participação

    ma is efetiva ; em resu mo, a vista com prom ete m ais com

    o

    p re se nte d o

    que

    o

    ouvido:

     Quando recebidas pelos ouvidos, causam emoção mais fraca do

    que quando, apresentadas à fidelidade dos olhos, o espectador

    mesmo as testemunha. lbid., 180-181)

    A função pers uasiva, contida na enc ena ção ,

    deve ser substi-

    tuída pela narração quando algum imperativo maior o determinar,

    como a econom ia da obra, a suscetibilidade do espectador e, princi-

    palmente , a inverossimi lhança que aco ntecim en to s es tra nho s o u ch o-

    can te s p ro vo ca m:

     Não vá Medéia trucidar os filhos à vista do público; nem o

    abominável Atreu cozer vísceras humanas, nem se transmudará

    Procne em ave otr Cadrno em serpente diante de todos. Descreio

    e abomino tudo que for mostrado assim.  lbid., 343-344)

    Mas se é fato que a au diên cia co ndic ion a

    o

    mod o de com posiçã o

    da obra, não o

    é

    apenas por ex igê nc ia da neces sidade retórica de

    10

    ad esão. Esta , em ú ltim a instância, n ão p assa de m eio para se atingirem

    fins mais im portantes, que Platão, em bora negasse à arte, entendia

    como a utilid ad e m oral inscrita no con hecim en to d a verd ad e,

    Aristô-

    teles descrevia co mo uma forma de prazer es pecífico ,

    o

    autor do

    Tratado do Sublime

    apontari a como a manifesta ção da elev ação da

    alm a h um an a, e

    Ho rác io,

    na

    Arte Poética,

    resu me na fó rm ula viscera l-

    mente rom ana do

    utile dulci. (Ibid. , 343-344)

    3. O

    TRATADO

    DO

    SUBLIME: ENTRE

    O

    CAOS E A ORDEM

    3. 1. Tanto a autoria do

    Tratado do Sublime

    q ua nto a épo ca em

    que teria sido com posto foram du rante muito tem po objeto de co n-

    jeturas e controv érs ias. Hoj e apenas a data da comp os iç ão p ar ec e

    de fin itiva men te ass en tad a: a primeira metade do século 1 da era

    cristã. 16

    C onform e se pode verifica r na leitura do te xto , a o br a fo i e sc rita

    em resposta a um tratado anterior de Cec ilio (d e Calá cte) qu e o An ô'

    nimo iulg ava ins ufic ie nte me nte d es en vo lv id o e e rr on ea men te orienta-

    do, pois, segundo su as palav ras ,  não tocava nos ponto s essenciais .

    Ceci lio , segundo os e stu dio so s, era um dos mais influentes re to res gre-

    gos do tempo de Augusto e fazia parte de uma tendência que se ca-

    racte rizava pela de fesa intran sig en te d o a tic is mo , isto

    é,

    co lo ca va a

    c o rr eç ão g rama tica l e a pureza d a lin gua gem co mo qu alida des sup re-

    m as do discurso. A ticis ta s era m ta mbém Dionisio de Halicarnasso,

    am igo de C ecilio, e Apolodoro de

    P é rg am o ,

    preceptor de Augusto e a

    cujo nom e costum a ser liga da essa ten dência de volta às fo rm as tr a-

    dicionais da língua grega.

    Tendênc ia oposta repr e se nt av a T eo do ro de Gádara para quem a

    genialidade, o entusiasm o e a paixão, mesmo com pequenos defeitos ,

    su peravam a pura correçã o e a m ed iocrid ad e. Idéia sem elha nte ex-

    pr ess a

    Horácio

    q ua nd o r ec on hece que até H om ero às vezes dormita

    (A.P.,

    v.

    359).

    3.2. O Anônim o esposa as teorias de Teodoro, e

    o

    verificamos

    em vá rio s m omentos de sua obra. Po r exemp lo, quando refere-se à

    --------- ,----

     

    16. Sobre o problema ver a introdução que. para a edição bilíngüe,

    escreveu Henri Lebêcgue: Du Sublime. Paris, Societé d'Editions  Les Bell es

    Lettres , 1952;

    e PLEBE, Armando. Breve História da Retórica Amiga.

    Tradução e Notas de Gilda Macíel de Barros, São Paulo, Ed. Pedagógica -

    Ed. da USP., 1978.

    11

    .~

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    11/62

    op in ião de Cec íl ia , para qu em Lis ias, orad or aicniense cujo discurso

    se caracter iza va pela cla rez a e eleg ância , era superior a Platão que,

    co m sua lin gu agem , cheia de figur as ou sadas, [r eqiient emen te se en-

    c on tr av a c omo que sob a ação de um transporte báqu ico qu e p ro -

    ,du zia nele aleg ori as bom bás ticas (c . XXXII, 7). Esta ,po sição é

    'atacad a pe lo Anônim o que, ironicam ent e, acusa C ecílio de se d eix ar

    guia r po r  do is se ntimentos pr ejudiciais à crítica ; ... amando

    Lí sias ma is qu e a si mes mo , aind a assim vota mais 6dio a PIa tão do

    qu e amor a Lisi as (c.

    XXX II,

    8) .

    N o capítul o se gu int e o Anô nimo formula esse problem a fazendo

    uma pergunta:

     Sus, tomemos um escritor deveras límpido e irrepreensível. Não

    vale a pena submeter a um exame geral exatamente este ponto:

    se, em poesia e prosa, devemos preferir uma grandeza com

    alguns defeitos, ou uma mediocridade correta, em tudo sã e

    impecável?  (c. XXXIII, 1)

    Em se guid a ele faz outra pe rgunta , retomando e

    rejormulando

    a

    an terior, mas deix an do su gerida a resposta de que

    o

    va lo r do estilo

    é

    um prob lema quali tativo e não quantita tivo :

     E também, por Zeus  se a preeminência na literatura cabe,

    por justiça, às vir tudes mais numerosas, ou às maiores. (c.

    XXXIII, 1)

    E ,

    co mo se não basta ssem essas opiniões indiretamente formula-

    das,

    o

    Anônimo as sum e

    o

    lugar de sujeito de su as afirmaçõe s, mos-

    t ra nd o q ue ele não critic a a correç ão por amor ao erro, mas porqu e,

    ao se p re o cu par demasiadamente em não erra r, o e sc ri to r d esviará sua

    ate nç ão d aq ui lo qu e re almente dev e se r s ua p reo cu paç ão, a expressão

    da grand eza e d o s ub lim e:

     Eu cá, no entanto, sei que as naturezas demasiado grandes

    são as menos estremes; a precisão em tudo acarreta o risco

    da mediania e nos grandes gênios, assim como na excessiva

    riqueza, alguma coisa se há de negligenciar . (c. XXXIII, 2)

    3.3 . Mas ele sa be muito bem que a liberdade absolut a em rela-

    çã o à ene rgia que dá or igem ao su blime negaria a próp ria finalidade

    de sua obra, que é encontr ar os meios capazes de criar a elevação do

    estilo . A liás , a fa lta de ssa orien ta ção metodol6gica é um dos pontos

    importa ntes dos motivos de crític a ao tr atado de Cec ília:

    12

      ~... ) mas de que maneira poderíamos encaminhar nossa

    própria natureza a determinada elevação, isso, não sei por

    que, ele negligenciou, como desnecessário. (c. I, 1)

    De fat o, como liv ro didático que era, e int eg rad o no espírito

    pra gmát ico imp lícito na

    techné retá rica

    e po ética ant iga ,

    o

    Anônim o

    es tá so bre tudo preocupad o em verifi ca r se

    o sublime

    enquanto fenô -

    me no pod e ser sistematiza do no nível da razã o e, co nse qüent em ent e,

    se os procedim en tos ca paz es de rep rod uzi- lo podem se r ensinados.

    Desse mod o, ele de dica toda a parte que nos restou do segundo capí-

    tulo a di scutir se ex iste uma

    arte do sublime.

    Lembra que havia

    pessoas qu e afirmavam ser

    o sublime

    um dom inato e que não poderia

    se r objet o de es tudo sistema tizado. Mas ele nã o partilha , e vi de nte -

    mente, des sa opin ião. Pelo contrário, sustenta que o sublime tem em

    si suas próprias leis. Se a n aturez a é sua fonte, cabe ao método mos-

    trar os limites ad equados:

      ( ... ) ela constitui a causa. primeira e princípio modelar de toda

    produção; quanto, porém, a dimensões e oportunidade de cada

    obra e, bem assim, quanto à mais segura prática e uso; compete

    ao

    métod o

    estabelecer âmbito e conveniência . (c. 11, 2)

    3.4. Antes de dar início ao estudo das fontes do sublime , julga

    co nve niente o Anônimo levantar duas preliminares. A primeira diz

    res peito a certos procedimentos - o estilo afet ado , o estilo frio, o

    pa tét ic o in op or tu no - qu e em bora não sejam defeit os p ro priamente

    ditos, na da mais são do que qualida de s frustradas ou por irem além

    ou por ficarem aqu ém do sublime, fato que revela a precariedade de

    se us l im ites:

    .'É

    que as nossas virtudes e os nossos VIClOS de certo modo

    costumam ter a mesma origem. Por isso, se os ernbelezamentos

    do estilo, os termos elevados e, somados a esses recursos, os do

    deleitamento concorrem para o bom resultado literário, esses

    mesmos requintes vêm a ser fonte e fundamento tanto do êxito

    quanto do malogro . (c. V)

    3.5. Se essa con diçã o pr elim ina r al erta pa ra um risco ine ren te

    ao es trato lingüís tica que ap reende o mo men to sublime, a segunda ,

    pa ra a qu al chama a ate nç ão

    o

    An ônim o, diz res peito ao amparo ideo-

    ló gic o, i sto é, à concepção que se deve ter da na tu rez a do su blime .

    Es te é um trab alho dif ícil , rec onhece ele, porque

     o

    ju lgamento do

    es ti lo é o re su ltado fin al de um a longa ex periência (c. VI .

    ~

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  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    12/62

    ~-_~ -ôr:--

     

    Em resumo, -considera belas e verdadeiramente sublimes as pas-

    sagens que agradam sempre e a todos. Quando. po is, mau grado

    da diversidade das ocupações, do teor de vida, dos gostos, da

    idade, do idioma, todos ao mesmo tempo pensam unânimes o

    mesmo a respeito duma mesma coisa, então essa, digamos assim,

    sentença concorde de juízes discordes outorga ao objeto da admi-

    ração uma garantia .sólida e incontestável.  (c. VII, 4)

    e u todos sã o termos e ng lo ba nt es i nerentes ao conceito de razão .

    M as é preciso não esquecer que a poética clá ss ica ; pr es sion ad a p ela

    crít ica p la tô nica , pr ocuro u d es en vo lv er um processo capaz de racio-

    na liza r a na tu reza com o. m eio d e c on se gu ir sua l eg i timidade ar tistica.

    Al ém disso ela tem um carát er tautológíco e um a fu nç ão fo rmadora,

    mod elar. As grandes ob ras clássica s fornecem ao m esm o tem po

    os

    princípios construtivos e de avaliação, estab elecendo-se assim uma

    cadeia ininterrupia em que a produção e

    o

    julgam en to são m ed ido s

    por um único parâmetro. .

    O

    grande in ter esse dess e último trecho do

    Tratado do Sublime

    é que ele formula, talvez pe la prim eira vez,

    o

    ca rát er c ir cular da teo-

    ria clássica da li te ratu ra. E tal [ormu la çã o vai ser repetida ainda no

    sé cu lo XIX- Freire de Carvalho em 18 40, p ro curando uma regra

    fixa  p ar a a determ in ação do gosto, di rá:

      [ .. . } aquilo que

    os

    h om en s con co rd em en te ad mirare m, iss o

    deverá ser tido

    por

    belo, e

    o

    Go sto verda deiro e exato será aquele que

    mais se conformar com o sentir universal do s homens. 

    17

    E; n o B ra sil d o século XIX, Lopes Gam a, autor de um m anual

    d e e lo q üê n cia, faz eco àquelas palav ras :

      Devemos, po is, reconhece r que no homem há s en sibilidade fís i-

    ca e ra zã o; que umas vez es a s en sib ilidade físi ca obra só, e então não

    tem lugar

    o

    er ro, nem a d is pu ta; que outras vezes tam bém a raz ão

    obra por si só, e neste caso ela é a expressão de algum a causa de

    ob jetivo , e p or conseguinte de unive rsa l. Sé se reúnem a sen saç ão e

    o

    juizo, então existem um elem ento individual, e um elemento univer-

    sa l: nó s sentimos co mo ind ivíduos e julgam os com o hum anidade; por

    outra,

    o

    ju ízo tem uma alçada que se est end e fora da esfera pessoal. 18

    .3 . 7. Finalmente, estabelecida s a quelas duas advertência s, u ma

    sobre os cuidados com a form a da lingua gem que apreende e revela

    o

    su bl ime, ou tra sobre

    o

    c on ce ito q ue

    o

    de fine e

    o

    to rna possível,

    es tá

    o

    Anônim o em condições de abordar as fontes da elevação do

    estilo.

    Sã o c in co a s fo ntes do subl im e literá rio. A s d uas p rim eira s d iz em

    respeito aos pensam ento s e aos sentimentos, ist o é, a faculda de de

    Quanto a este aspecto id eoló gico,

    o

    Anônim o indica duas solu -

    ções, uma, pouco desenvolvida no texto, que ap resenta o sublim e

    co mo u ma esp écie d e gr an deza de alma aue levá

    o

    h om em a d es pr ez ar

    os bens materia is. E e le a lin ha

    os

    seguintes: riquez a, honrarias , fama,

    realeza, tudo mais que apres en ta uma e xt er ioridade teatral (c. VI I, 1) .

    Mas é necess ár io o bs er var qu e

    o

    desprendimento não pode apli-

    ca r-se a quem nada possua nem a quem possua bens, mas não possa

    di spor deles . O desprend imento de alm a que caracteriza

    o

    su blime

    é

    o

    d e qu em , podendo possuir bens, os despr eza:

      ( ... ) mais admiração do que os possuidores deles desperta

    quem, podendo possuí-los, por grandeza de alma os menoscaba. 

    (c. VII, 1)

    3. 6 . A essa concepção elitista d o s ub lime como matéri a da re-

    presenta ção co rres po nde o utr a equ ivalente aplicada ao receptor da

    mensagem.

    O

    modelo do ouvin te id eal

    é

    caracterizado po r certas

    qualificações reco rrent es :   sensato  , com grandeza de alma (c. VII ,

    1 ),  um hom em sensato (c. VII , 3), e po r uma resp osta es pecífica

    que representa uma pr ojeção do subli me cri ado na obr a:

     É da natureza de nossa alma deixar-se de certo modo empo lgar

    pelo verdadeiro sublime, ascender a uma altura soberba, encher-se

    de alegria e exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que

    ouviu. (c. VII, 3)

    Des se m odo,

    o

    Anônimo chega a um a fórm ula de a valia çã o d a

    o br a a pa re ntemente paradoxal. Se há pouco ele considera como pro-

    dutor do sublime apenas aquele que  podendo possuí-tos [ta is b en s],

    p or g ra nd eza de alm a, o s m en os ca ba , ago ra ele alarga ao in finito

    o

    círculo dos ouvintes potencialm ente capaz es de apreciar

    o

    sublime:

    Essa pos tura , e nt re ta nt o, deve ser com pre end ida dentro da situa-

    çã o da poética cláss ica onde

    o

    caráter un ive rsa liza nte da razão de -

    te rm ina a natureza da ap rec iação indi vidu al. A s expr es sões  sempr e 

    17.-

    .Carvalho, Francisco Freire de. Breve Ensaio sobre a crítica literária

    ou Metajisica das Belas-Letras; para servir de continuação às Lições Elemen-

    taresde Eloqüênc ia e de Poética Nacional, pp. 2617. Em Lições elementares de

    Poética Nac ional, 6.  ed., Lisboa, Tip. Rolandiana, 1860 (1.' ed. 1840).

    18. Gama, Miguel do Sacramento Lopes.

    Lições de Eloqüência Nacional.

    2 vols. Rio, Tip. Imparcial de F. de Paula Brito, 1846. 2.° vol., p. 3.

    1 4

    15

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    13/62

    atear-se a p en samen to s sub lim ados e a emo ção veemente e ins pi-

    rad a  . São o s fa tores psíquico s, di sposiç õe s inatas , qu e cons ti tuem o

    objeto da rep rese ntação . As três úl timas fontes, as figur as  ,  a no -

    breza da exp ressão e o ri tm o , sã o de na tur eza lingü ís tica, e, po r-

    =;

    tanto, produtos da arte . ,-

    Ob se rve-se que tal divisão rep roduz o duplo modelo proposto

    pela retó rica antiga: a relaçã o  natura] ars  qu e comanda a ati viclade

    cria tiv a e correlata

    à

    relaç ão  r esf v erba   q ue c on st itui a matéria da

    criação, o discur so.

    Por tanto, apesar das diferen ça s,

    os

    dois grupos de fontes se com-

    plementam . Aliás o Anônimo declar a qu e I ... ] no discurso ( ... )

    O

    pensamento e a linguagem se implicam mutuam en te e q ue a beleza

    da s palavras é lu z p ró pr ia d o p en sa mento . (c. XXX, 1)

    Mas há outro fator que une as duas ordens de fon tes: se a

    ele -

    vaç ão

    ine rente ao su blime repr esenta um momento excepciona l ao

    níve l ps íquico , como sugere o A nô nimo,   não

    é

    a persuasão que

    o

    subl ime co nd uz

    o

    ouv inte,  ma s a arrebatamento (c.

    I, 4)

    e

     o

    su -

    blim e

    é

    o rebôo da grandeza de alma (c.

    IX, 2),

    as três ú lti mas fon tes

    repres entam u ma e sp écie de a nom alia a o n ív el lingüístico. A este res-

    pe ito de ve -se lembrar qu e a retórica antiga definia as figuras  por se

    afas tarem do modo simples e comum de falar . 19

    Co mpreende-se , de sse m od o, qu e para

    o

    Anônim o a estrutura da

    linguagem nã o era apenas o meio , mas a condição, o fator criat ivo

    que instaur a

    o

    sub lim e:

      ( ... ) o hipérbato, figura pela qual a ordenação das palavras

    e pensamentos

    é

    tirada da seqüência regular; é , por assim dizer,

    o mais verdadeiro cunho de uma emoção violenta.  ·(c. XXII, 1)

    Em última instância, a complement ar idade exis tente en tre senti-

    mento e ex pressão reflete um dos fundamentos da re alid a de a rt ís ti ca,

    ist o

    é

    a ín tima fusão entre a natureza e a a rte:

      ( ... ) a arte é acabada quando com esta [a natureza] se

    parece e, por sua vez, a natureza é bem sucedida quando dissimula

    a arte em seu seio.  (c. XXI[, 1)

    ROBERTO DE OLIVEIRA BRANDÁO

    19. Ouint., op. cit., 9, 3, 3.

    16

    ·~~-·'~~:  i · --- ••• ...-r~...,~_ - ,~-,

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    ARTSTÓTELES

    POÉTICA

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    : I

    Bibliografia:

    Poética, de Aristóteles, nas seguintes ed ições:

     Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis, recognovit 1. Bywater.

    Clarendon, editio altera, 1953.  

    The Loeb Classical Library, with an English translation by W. Hamilton

    Fyfe, London, 1960.

    Soe. d'Edition

     Les

    Belles

    Letrres ,

    texte établi et traduit par T .

    Hardy.

    Paris. 1952.

    ..o..-~, .•

    I

    Falemos da natureza e espécies da poesia, do condão de cada

    uma, de como se hão de compor as fábulas para o bom êxito do poe-

    ma; depois, do número e natureza das partes e bem assim da demais

    matéria dessa pesquisa, começando, como manda a natureza, pelas

    noções mais elementares. .

    A epopéia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo

    1

    e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo, todas vêm

    a ser, de modo geral, imitações. Diferem entre' si em três pontos:

    imitam ou por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou de maneira

    diferente e não a mesma.

    Assim como alguns imitam muitas coisas figurando-as por meio

    de cores e traços (uns graças

    à

    arte; outros,

    à

    prát ica )e outros o fazem

    por meio da voz, assim também ocorre naquelas mencionadas artes ;

    todas elas efetuam a imitação pelo ritmo, pe la pa lavra e pela melod ia,

    quer separados, quer combinados. Valem-se, por exemplo, apenas da

    melodia e ritmo a arte de tocar flauta

    e

    da cítara, mais outras que

    porventura tenham a mesma propriedade, tal como a das fístulas;

    2

    já a arte da dança recorre apenas ao ritmo, sem a melodia; sim, por-

    que os bailarinos, por meio de gestos ritmados, imitam caraçteres,

    emoções, ações.

    A arte que se util iza apenas de palavras, sem ritmo ou metrifi-

    cadas, estas seja com variedade de metros combinados, seja usando

    uma só espécie de metro, até hoje não recebeu uni nome.

    3

    Não dis-

    pomos de nome que dar aos mimos 4 de Sófron e Xenarcó ao mesmo

    tempo que aos diálogos socráticos e às obras de quem realiza a imi-

    1. Hino coral em louvor de Díoniso '(Baco).

    2. Flauta de pastor. '

    3. Diz-se hoje Literatura, muito se discutindo sobre o conceito.

    4. Pequena farsa em prosa, de assunto ordinariamente familiar.

    19

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    tação

    por meio de trímetros,

    disticos

    elegíacos ou versos semelhantes.

    Nada impede que pessoas, ligando à metrif icação a poesia, dêem a uns

    poetas o nome de elegíacos, a outros o de épicos, denominando-os,

    não segundo a imitação que fazem, mas indiscriminadamente confor-

    me ometro que usam. ,_

    Costuma-se dar esse nome mesmo a quem publica matéria mé-

    dica ou científica em versos, mas, além da métrica, nada há de comum

    entre Homero e Empédocles; por isso, o certo seria chamar poeta ao

    primeiro e, ao segundo, antes naturalista do que poeta. Semelhante-

    mente, quem realizasse a imitação combinando todos os metros, como

    Querêmon na rapsódia

    Centauro,

    mesclada de todos os metros, tam-

    bém devia ser chamado poeta.

    Quanto a este ponto, bastam as distinções feitas. 

    Artes há que se utilizam de todos os meios citados, quero dizer,

    do ritmo, da melodia, do metro, como a poesia ditirâmbica, a dos

    nomos,

    5

    a tragédia e a comédia; diferem por usarem umas de todos

    a um tempo, outras ora de uns, ora de outros. A essas diferenças das

    artes me refiro quando falo em meios de imitação.

    II

    Como aqueles que imitam imitam pessoas em ação, estas são ne-

    cessariamente ou boas ou más (pois os caracteres quase sempre se re-

    duzem apenas a esses, baseando-se no vício ou na virtude a distinção

    do caráter), is to é, ou melhores do que somos, ou piores, ou então tais

    e quais, como fazem os pintores; Polignoto, por exemplo, melhorava

    os originais; Pausão os piorava; Dionísio pintava-os como eram. Evi-

    dentemente, cada uma das ditas imitações admitirá essas distinções

    e diferirão entre si por imitarem assim objetos diferentes.

    Essas diversidades podem ocorrer igualmente na arte da dança,

    na da flauta ou da cítara; bem assim no que tange à prosa e na

    poesia não musicada. Homero, por exemplo, imitava pessoas superio-

    res; Cleofonte, iguais; Hegêmon de Tasos, o primeiro a compor pa-

    ródias, e Nicócares, o autor da

    Dilíada , 6

    inferiores; o mesmo se diga

    quanto aos ditirambos e nomos; podem-se criar caracteres como· os

    ciclopes de Timóteo e de Filóxeno.

    5. Cântico ao som de harpa, em louvor de Apoio.

    6. Dilíada lembra Ilíada,· mas celebra poltrões em vez de heróis, ao

    que sugere o nome. O poema, aliás, é desconhecido.

     

    Nessa mesma diferença divergem a tragédia e a comédia; esta os

    quer imitar inferiores e aquela superiores aos da atualidade.

    III

     -

    Uma terceira diferença nessas artes reside em como representam

    cada um desses objetos. Com efeito, podem-se às vezes representar

    pelos mesmos meios os mesmos objetos, seja narrando, quer pela boca

    duma personagem, como fez Homero, quer na primeira pessoa, sem

    mudá-Ia, seja deixando as personagens imitadas tudo fazer, agindo.

    Essas, pois, as três diferenças que distinguem a representação,

    como dissemos de início: meios, objetos e maneira.

    Assim, dum modo

    Sófoclês

    7 é imitador no mesmo sentido que

    Homero - pois ambos representam seres superiores - de outro, no

    mesmo sentido que Aristófanes, 8 pois ambos representam pessoas

    fazendo, agindo.

    Essa, segundo alguns, a razão do nome

    drama,

    o representá-Ias

    em aç ão.

    Por isso também reivindicam os dórios para si tanto a tra-

    gédia, quanto a comédia; a comédia, os megarenses 9 daqui, como

    criada no tempo de sua democracia, e os da Sicíl ia , por ser dali Epi-

    carmo, poeta muito anterior a Quiônides e Magnes; a tragédia, alguns

    do Peloponeso. Alegam como prova a denominação, porquanto eles,

    dizem, dão o nome de

    com as

    aos arrabaldes; os atenienses, o de

    demo s.

    Os comediantes tirariam o nome, não do verbo komâzein, 10 .

    mas do fato de vaguearem pelos arrabaldes, tocados, com desprezo,

    para fora da cidade; ademais,

    ag ir,

    no seu dialeto, é

    dran,

    ao passo

    que os atenienses dizem

    prâttein.

    Quanto, pois, às diferenças de representação, seu número e na-

    tureza, basta o que dissemos.

    I V

    Parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas, am-

    bas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância - e nisso

    7. Autor de tragédias.

    8. Autor de comédias.

    9. Duas cidades se chamavam Mégara: uma, p róx ima do Istmo de

    Corinto; a outra, na Sicília.

    10. Percorrer. as ruas em co rtejo, cantando e dançando.

    21

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    difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir

    os primeiros conhecimentos por meio da imitação :- e todos têm

    prazer em imitar. '

    Prova disso é o que acontece na realidade: das coisas cuja visão

    é penosa temos prazer em contemplar a imagem quanto mais per-

    feita; por exemplo, as formas dos bichos mais desprezíveis e dos

    cadáveres.

    Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos

    filósofos,mas igualmente aos demais homens, com a diferença de

    que a estes em parte pequenina. Se a vista das imagens proporciona

    prazer é porque acontece a quem as contempla aprender e identificar

    cada original; por exemplo, esse é Fulano ; aliás, se; por acaso, a

    gente não o viu antes, não será como representação que dará prazer,

    senão pela execução, ou pelo colorido, ou por alguma outra causa

    semelhante.

    Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melo-

    dia e o ritmo - que os metros são parte dos ritmos é fato evidente -

    primitivamente, os mais bem dotados para eles, progredindo a pouco

    e pouco, fizeram nascer de suas improvisações a poesia.

    A poesia diversificou-se conforme o gênio dos autores; uns, mais

    graves, representavam as ações nobres e as de pessoas nobres; outros,

    mais vulgares, as do vulgo, compondo inicialmente vitupérios, como

    os outros compunham hinos e encômios.

    De nenhum autor anterior a Homero podemos citar uma obra

    desse gênero, embora seja provável que tenha havido muitos; pode-

    mos, a partir de Homero, mencionar, por exemplo o seu

    Margites

    e

    outros semelhantes, nos quais, em harmonia com o gênero, veio tam-

    bém, o metro jâmbico 11 - ainda .hoje se denomina poesia jâmbica

    esse gênero - porque nesse metro se trocavam doestos. Houve, pois,

    entre os antigos, autores tanto de versos heróicos, 12 quanto de [ârn-

    bicos.

    Homero, assim como foi autor de poemas nobres - pois s6 ele

    compôs obras, que, sobre serem' excelentes, são representação de

    ações - assim também foi o primeiro a mostrar o esboço da comédia,

    I

    I

    I

    I

    ; 1

    I,

    I

      l

    ,

     

    11. O jambo é um pé de duas sílabas, a primeira, breve e a segunda,

    longa. Usava-se nas invectivas.

    12. Hexâmetro, verso teoricamente composto de sei s dáctilos, pés formados

    de uma sílaba longa seguida de duas breves.

     

    .,

    ~

    . .. . •• • ;~

    í

    dramatizando, não o vitupério, mas o cômico, pois o

    Margites

    está

    para as comédias como a

    Ilíada

    e a

    Od issé ia

    para as tragédias.

    Surgi das a tragédia e a comédia, os autores, segundo a inclinação

    natural, pendiam para esta ou aquela; uns tornaram-se, em lugar' de

    jâmbicos, comediógrafos; outros, em lugar de épicos, trágicos, por

    serem estes gêneros superiores àqueles e mais estimados.

    Examinar se a tragédia em suas variedades alcançou ou não

    pleno desenvolvimento, julgada em si mesma e nos espetáculos,

    é

    outra questão.

    Nasc ida , pois, de improvisações a princípio - tanto ela quanto

    a comédia, uma por obra dos que regiam o ditirambo, a outra por

    obra dos que regiam os cantos fál icos , costume ainda hoje conservado

    em muitas cidades - a pouco e pouco a tragédia cresceu desenvol-

    vendo os elementos que se revelavam próprios dela e, após muitas

    mudanças, estabilizou-se quando atingiu a natureza própria.

    Foi Ésquilo quem teve a iniciativa de elevar de um para dois o

    número de atores; ele diminuiu o papel do coro e atribuiu ao diálogo

    a primazia; o número de três atores e o cenário devem-se a Sófocles.

    Adquirindo extensão com o abandono de fábulas curtas e da Iingua-

    gem cômica, que trazia de sua origem satírica, a tragédia só tardia-

    mente adquiriu majestade. O seu metro, de tetrâmetro trocaico.J

    passou a jâmbico; a p rinc ípio usavam o tet râmet ro t rocaico porque o

    poema era satírico

    14

    e mais chegado à dança, mas, tornando-se diá-

    logo, achou naturalmente o metro próprio, pois o

    jâmbico

    é o metro

    mais coloquial. Demonstra-o o fato de proferirmos na conversação

    muitos trímetros jâmbicos e raramentehexâmetros, e estes, quando

    saímos do tom de conversa,

    O número de episódios e ornamentos em geral com que se diz

    te rem sido -ordenadas as partes, demo-los por estudados, po is daria

    longo trabalho discorrer sobre cada um.

    v

    A comédia, como dissemos, é imitação de pessoas in feriores; não,

    porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma

      :,

    13. Tetrâmerro, verso formado de quatro metros, cada um de dois pés.

    O troqueu, ou coreu, compõe-se de uma sílaba longa seguida duma breve.

    14. Interlúdio curto e jocoso, interpretado por atores vestidos como

    sátiras. O nome nada tem com o de sátira, que

    é

    latino.

    23

    c• •  •

    -

    . ;

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    17/62

    espécie do feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiúra

    sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica , feia

    e contorcida, mas sem expressão de dor.

    As transformações por que passou a tragédia, bem como os seus

    autores. são conhecidos; os da comédia, porém, são desconhecidos

    por não te r ela gozado de estima desde o começo. Com efeito, s ã tar-

    diamente o arconte

    15

    forneceu o coro de comediantes; antes, eram

    voluntários. Ela já 'tinha adquirido certa forma, quando se passou a

    lembrar o nome dos chamados poetas cômicos.

    Não se sabe quem introduziu máscaras, prólogos, número de

    atores e semelhantes particularidades; o compor fábulas é de Epi-

    carmo e Fórmis. O começo foi na Sicíli a ; em Atenas, foi Crates o

    primeiro a abandonar a forma jâmbica e compor diálogos e enredos

    de assunto genérico.

    A poesia épica emparelha-se com a tragédia em serem ambas

    imitação metrificada de seres superiores; a diferença está em que

    aquela se compõe num metro uniforme e é narrativa. Também na

    extensão; a tragédia, com efeito, empenha-se, quanto possível, em

    não passar duma revolução do solou superá-Ia de pouco; a epopéia

    não tem duração delimitada e nisso difere. Não obstante, primitiva-

    mente, procediam assim tanto nas tragédias como nas epopéias ..

    Das partes componentes, umas são as mesmas; outras, peculia-

    res à tragédia. Por isso, quem sabe discernir entre a boa tragédia e a

    ruim sabe-o também quanto à epopéia, pois o que a epopéia tem está

    presente na tragédia, mas nem tudo que esta possui se encontra

    naquela.

    VI

    Da arte de imitar em hexâmetros e da comédia trataremos adian-

    te. Falemos da t ragédia , tomando sua def inição' em decorrência do

    que dissemos. E a tragédia a representação duma ação grave, de

    alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com

    o seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual,

    inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções.

    Chamo linguagem exornada a que tem ritmo, melodia e canto; e atavio

    adequado, o serem umas partes executadas com simples metrificação

    e as outras, cantadas.

    15, Magistrado 'executivo em Atenas.

    24

    I

    I

    1

    I

    Como a imitação é feita por personagens em ação, necessaria-

    mente seria uma parte da tragédia em primeiro lugar o bom arranjo

    do espetáculo; em segundo, o canto e as falas, pois é com esses ele-

    mentos que se realiza a imitação.

    Por falas entendo o simples conjunto dos versos; por canto, coisa

    que tem um sentido inteiramente claro. ,_

    Como se trata da imitação duma ação, efetuada por pessoas

    agindo, as quais necessariamente se distinguem pelo caráter e idéias

    (pois essas diferenças empregamos na qualificação das ações), existem

    duas causas naturais das ações: idéias e caráter, e todas as pessoas

    são bem ou mal sucedidas conforme essas causas.

    Está na fábula a imitação da ação. Chamo fábula a reunião das

    ações; caráter, aquilo segundo o quê dizemos terem tais ou tais qua-

    lidades as figuras em ação; idéias, os termos que empregam para

    argumentar ou para manifestar o que pensam.

    Toda tragédia, pois, comporta necessariamente seis elementos,

    dos quais depende a sua qualidade, a saber: fábula, caracteres, falas,

    idéias, espetáculo e canto. Com efeito, dois elementos são os meios

    da imitação; um, a maneira; três, o objeto; além desses não há outro.

    Deles, por assim dizer, todos os poetas se valem, pois todo drama

    envolve igualmente, espetáculo, caráter, fábula, falas, canto e idéias.

    A mais importante dessas partes é a disposição das ações; a tra-

    gédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da feli-

    cidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a

    finalidade é uma ação, não uma qualidade. Segundo o caráter, as

    pessoas são tais ou tais, mas é segundo as ações que são felizes ou o

    contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracte-

    res, mas adquirem os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a

    fábula constituem a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade

    é o que mais importa.

    Ademais, sem ação não poderia haver tragédia; sem caracteres,

    sim. As tragédias da maioria dos autores modernos carecem de ca-

    racteres; a muitos poetas sucede, de modo geral, o mesmo que a

    Zêuxis entre os pintores, em confronto com Polignoto; este, com

    efeito, é um excelente pintor de caracteres, enquanto nenhum estudo

    de caráter há na pintura de Zêuxis.

    Outrossim, mesmo quando se alinhem falas reveladoras de cará-

    ter, bem construídas em matéria de linguagem e idéias, não se realiza-

    rá obra própria de tragédia; muito mais se obterá com uma tragédia

    deficiente nessas partes, mas provida duma fábula e do arranjo das

     5

    ~

    1: 1

    ,

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    18/62

    ações. Além disso, os mais importantes meios de fascinação das tragé-

    dias são partes da fábula, isto é, as peripécias e os reconhecimentos.

    Mais uma prova é que os que empreendem poetar logram exa-

    tidão na fala e nos caracteres antes de a conseguirem no arranjo das

    ações, como quase todos os autores primitivos.

    A fábula é, pois, o princípio, a alma, por assim dizer, da tragé-

    dia, vindo em segundo lugar os caracteres.

    É

    mais ou menos como

    na pintura; se alguém lambusasse uma tela com as mais belas tintas

    em confusão, não agradaria como quem esboçasse uma figura em

    branco e preto. A tragédia é imitação duma ação e sobretudo em

    vista dela é que imita as pessoas agindo.

    Vêm em terceiro lugar as idéias, isto é, a capacidade de expri-

    mir o que, contido na ação, com ela se harmoniza; tarefa, nos dis-

    cursos, da política e da retórica. Os antigos faziam as personagens

    falar como cidadãos; os modernos, como mestres de retórica.

    Caráter é aquilo que mostra a escolha numa situação dúbia: acei-

    tação ou recusa - por isso, carecem de caráter as palavras quando

    nelas não há absolutamente nada que o intérprete aceite ou recuse.

    Há idéias quando os intérpretes dizem que algo é ou não é, ou ex-

    pressam alguma coisa em termos genéricos.

    O quarto componente literário é a fala; entendo, como ficou

    dito, que fala é a interpretação por meio de palavras, o que tanto

    vale para versos como para prosa.

    Dos restantes componentes é o canto o maior dos ornamentos.

    O espetáculo, embora fascinante, é o menos artístico e mais alheio à

    poética; dum lado, o efeito da tragédia subsiste ainda sem represen-

    tação nem atores; doutro, na encenação, tem mais importância a arte

    do contra-regra do que a dos poetas.

    'I

    I,

    \

    I

    I,

    VlI

    Definidos os componentes, passemos ao problema do arranjo das

    ações, pois esse é fator primeiro e mais importante da tragédia.

    Assentamos que a tragédia é a imitação duma ação acabada e

    inteira, de alguma extensão, pois pode uma coisa ser inteira sem ter

    extensão. Inteiro é cque tem começo, meio e fim. Começo é aquilo

    que, de per si, não se segue necessariamente a outra coisa, mas após

    o quê, por natureza, existe ou se produz outra coisa; f im, pelo con-

    trário, é aquilo que, de per si e por natureza, vem após outra coisa,

     6

    ,\

    quer necessana, quer ordinariamente, mas após o quê não há nada

    mais; meio o que de si vem após outra coisa e após o quê outra

    coisa vem.

    As fábulas bem constituídas não devem começar num ponto ao

    acaso, nem acabar num ponto ao acaso, mas utilizar-se das fórmulas

    referidas.

    Outrossim, a beleza, quer num animal, quer em qualquer coisa

    composta de partes, sobre ter ordenadas estas, precisa ter determinada

    extensão, não uma qualquer; o belo reside na extensão e na ordem,

    razão por que não poderia ser belo um animal de extrema pequenez

    (pois se confunde a visão reduzida a um momento quase impercep-

    tível), nem de extrema grandeza (pois a vista não pode abarcar o

    todo, mas escapa à visão dos espectadores a unidade e o todo, como,

    por exemplo, se houvesse um animal de milhares de estádios). Assim

    como as coisas compostas e os animais precisam ter um tamanho tal

    que possibilite aos olhos abrangê-Ias inteiros, assim também é mister

    que as fábulas tenham uma extensão que a memória possa abranger

    inteira.

    O limite de extensão com respeito aos concursos e à percepção

    da platéia não é matéria da arte; se houvessem de concorrer cem

    tragédias,

    fá -le -iam

    sob a clepsidra, como, dizem, já mais duma vez

    aconteceu. Quanto ao limite conforme a natureza mesma da ação,

    sempre quanto mais longa a fábula até onde o consinta a clareza do

    todo, tanto mais bela graças à amplidão: contudo, para dar uma de-

    finição simples, a duração deve permitir aos fatos suceder-se, dentro

    da verossimilhança ou da necessidade, passando do infortúnio à ven-

    tura, ou da ventura ao infortúnio; esse o limite de extensão con-

    veniente.

    VIII

    Não consiste a unidade da fábula, como crêem alguns, em ter

    um só herói, pois a um mesmo homem acontecem fatos sem conta,

    sem deles resultar nenhuma unidade. Assim também uma pessoa pra-

    tica muitas ações, que não compõem nenhuma ação única. Daí pa-

    rece terem errado todos os autores de Heracleida s e Teseidas

    16

    e poe-

    m1),~congêneres, supondo que, por ser Heracles um só, a fábula ga-

    nharia também unidade.

    16. Poemas sobre Heracles (Hércules) e Teseu, heróis de múltiplas

    façanhas independentes umas das outras.

    27

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    19/62

    Homero, assim como é superior em tudo mais, parece ter visto

    muito bem também isso, seja pelo conhecimento da arte, seja pelo

    seu gênio; escrevendo a Odissé ia , não narrou tudo quanto aconteceu

    ao herói, por exemplo, o Ierimento no Parnaso.V a simulação de

    loucura quando se arregimentava a tropa, 18 fatos dos quais a ocor-

    \'ência de um não acarretava a necessidade ou probabilidade do outro,

    mas compôs a

    Odi ss éia

    em torno duma ação única, como a entende-

    mos, e assim também a

    Ilíada.

    Portanto, assim como, nas outras espécies de representação, a

    imitação única decorre da unidade do objeto, é preciso que a fábula,

    visto ser imitação duma ação, o seja duma única e inteira, e que suas

    partes estejam arranjadas de tal modo que, deslocando-se ou supri-

    mindo-se alguma, a unidade seja aluída e transtornada; com efeito,

    aquilo cuja presença ou ausência não traz alteração sensível não faz

    parte nenhuma do todo.

    IX

    É

    claro, também, pelo que atrás ficou dito, que a obra do poeta

    não consis te em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam

    acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da

    necessidade

    Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poe-

    ta; a obra de Heródoto podia ser metrificada: não seria menos uma

    história com o metro do que sem: ele; a diferença está em que um

    narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por

    isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História;

    aque la enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares. Enun-

    ciar verdades gerais é dizer que espéc ie de coisas um indivíduo de

    natureza ta l vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a

    isso visa a Poesia, ainda quando nomeia personagens. Relatar fatos

    particulares é contar o que Alcibíades

    19

    fez ou o que fizeram a ele.

    17. Mordido por um javali, na adolescência, numa caçada com o avô.

    Ao exemplar da Odisséia de que dispunha Aristóteles faltava provavelmente

    a descrição que se lê no canto XIX a partir do verso 395.

    18. Em Aulís, a fim de não embarcar para a guerra, Odisseu fingiu ter

    enlouquecido, mas Palamedes o desmascarou.

    19. Alcibíades é aqui como se dissesse Fulano.

     8

    No que concerne à comédia, isso a esta altura já se tornou evi-

    dente, pois a fábula

    é

    composta segundo as verossimilhanças e depois

    é que se dão nomes quaisquer às personagens, não como os poetas

    [ârnbicos, que escrevem visando a pessoas determinadas.

    Já nas tragédias, os autores se apóiam em nomes de pessoas que

    existiram;

    20

    a razão é que o possível é crível; ora, o que não aconte-

    ceu não cremos de imediato que seja possível, mas o que aconteceu

    o é evidentemente; se impossível, não teria acontecido.

    Não obstante, nalgumas tragédias são familiares uma ou duas per-

    sonagens; as demais, fictícias; noutras, nenhuma, como no

    Anteu

    de

    Agatão: nesta, tanto a ação como as personagens são imaginárias;

    nem por isso agrada menos.

    Assim, não é imperioso procurar ater-se a todo custo às fábulas

    tradicionais, em torno das quais tem girado a tragédia.

    É

    esse um

    empenho risível, dado que as fábulas conhecidas o são de poucos e,

    não obstante, agradam a todos.

    Isso evidencia que o poeta há de ser criador mais das fábulas

    que dos versos, visto .que é poeta por imitar e imita ações. Ainda

    quando porventura seu tema sejam fatos reais, nem por isso é menos

    criador; nada impede que alguns fatos reais sejam verossímeis e pos-

    síveis e é em virtude disso que ele é seu criador .

    Das fábulas e ações simples, as episódicas são as mais fracas.

    Chamo episódica aquela em que a sucessão dos episódios não de-

    corre nem da verossimilhança nem da necessidade. Dessas fazem os

    poetas medíocres por serem o que são, e também os bons por aten-

    ção aos atores; compondo para concursos e dilatando a fábula além

    do que ela suporta, são amiúde forçados a contrafazer a seqüência

    natural.

    O objeto da imitação, porém, não é apenas uma ação completa,

    mas casos de inspirar temor e pena, e estas emoções são tanto mais

    fortes quando, decorrendo uns dos outros, são, não obstante, fatos

    inesperados, pois assim terão mais aspecto de maravilha do que se

    brotassem do acaso e da sorte; com efeito, mesmo dentre os fortuitos,

    despertam a maior admiração os que aparentam ocorrer, por assim

    dizer, de propósito; por exemplo, a estátua de Mítis em Argos matou

    o culpado da morte de Mítis, tombando sobre ele, quando assistia a

    um festejo; ocorrências semelhantes não se afiguram casuais; segue-se

    necessariamente que as fábulas dessa natureza são mais belas.

    20. Segundo a tradição.

     9

    ~l

    ~I

      I

    '1

    h

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    x

    Umas fábulas são simples, outras complexas; é que as ações

    imitadas por elas são obviamente tais. Chamo simples a ação quando,

    ocorrendo ela, como ficou definido, de maneira coerente e una, se dá

    mudança de fortuna sem se verificarem peripécias e reconhecimen-

    tos; complexa, quando dela resulta mudança de fortuna, seja com

    reconhecimento, seja com peripécia, seja com ambas as coisas.

    Essas ocorrênc ias devem nascer da própria const ituição da fábula,

    decorrendo por necessidade ou verossimilhança de eventos anterio-

    res; muita diferença vai entre acontecer isto, dum lado, por causa

    daquilo e, doutro, após aquilo.

    X I

    Peripécia é uma viravolta das ações em sentido contrário, como

    ficou dito; e isso, repetimos, segundo a verossimilhança ou necessi-

    dade; como, no Edipo, quem veio com o propósito de dar alegria a

    Edipo e

    libertá-Io

    do temor com relação à mãe,

    21

    ao revelar quem

    ele era, fez o contrário; igualmente, no Linceu; este é levado para

    morrer e Dânao vai empós para o matar, mas, em conseqüência dos

    fatos, acabou morrendo Dânao e salvando-se Linceu.

    O reconhecimento, como a palavra mesma indica, é a mudança

    do desconhecimento ao conhecimento, ou à amizade, ou ao ódio, das

    pessoas marcadas para a ventura ou desdita. O mais belo reconheci-

    mento é o que se dá ao mesmo tempo que uma peripécia , como acon-

    teceu no B â i p o • •  

    Existem outras formas de reconhecimento, pois, com respeito a

    coisas inanimadas e triviais, sucede por vezes o que acabamos de

    dizer e se pode reconhecer se alguém praticou ou não uma ação.

    Porém o mais próprio da fábula e mais próprio da ação é o que foi

    exposto acima. Com efeito, um reconhecimento dessa espécie, com

    peripécia, acarre ta rá pena ou temor; de ações com tais efeitos é que

    se entende ser a-tragédia uma imitação. Outrossim, a má ou boa

    sorte dependerá de semelhantes ações.

    I

    i

    I

    I

    i  

    21'. Mérope, suposta mãe; o que Édipo temia estava acontecendo com

    a verdadeira,

    J

    ocasta.

    30

    Como o reconhecimento se dá entre pessoas, às vezes é apenas

    uma personagem que reconhece outra, quando não há dúvida sobre

    a identidade de uma delas; às vezes ambas devem reconhecer; por

    exemplo,

    Ifi gê nia

    foi reconhecida por Orestes

    22

    pelo envio da carta,

    mas para ele ser reconhecido por ela era preciso outro reconhecimento.

    Nesse passo se verificam duas partes da fábula, a peripécia e o

    reconhecimento; mas há uma terceira, o patético. Das três já estuda-

    mos a peripécia e o reconhecimento; o patético consiste numa ação

    que produz destruição ou sofrimento, como mortes em cena, dores

    cruciantes, ferimentos e ocorrências desse gênero.

    XI I

    Dos elementos constitutivos da tragédia que -cumpre uti li zar tra -

    tamos atrás; quanto à extensão e divisão em secções distintas, estas

    são as partes:

    prólogo,

    episódio, êxodo, canto coral , dist inguindo-se

    neste último o párodo e o estásimo; estas partes são comuns a todas

    as tragédias; os cantos dos atores e os

    comos

    são peculiares a algumas.

    Prólogo é toda a parte da tragédia que antecede a entrada do

    coro; episódio, toda uma parte da tragédia situada ent re dois cantos

    corais completos; êxodo, toda a parte da tragédia após a qual não

    vêm canto do coro. Do canto coral, o párodo é todo o primeiro pro-

    nunciamento do coro; estásimo, o canto coral sem anapestos e tro-

    queus; 23 como, um lamento conjunto do coro e dos atores.

    Dos elementos constitutivos da tragédia que cumpre utilizar tra-

    tamos atrás; quanto

    à

    extensão e

    à

    divisão em secções d istintas, são

    essas as partes.

    x m

    O que é preciso visar, o que importa evitar na composição das

    fábulas, por que meios lograr o efeito próprio da

    tragédia,

    eis o que

    cumpre expor em continuação ao que ora foi di to.

    Como a estrutura da tragédia mais bela tem de ser complexa e

    não simples e ela deve consistir na imitação de fatos inspiradores de

    temor e pena - característica própria de tal imitação - em primeiro

    22. Em Eurípides, ljigênia em Táuride.

    23. Anapestos são pés formados de duas sílabas breves seguidas duma

    longa. Estásirno é canto coral que separa dois episódios.

    31

  • 8/9/2019 Aristóteles, Horácio, Longino - A Poética Clássica(1)

    21/62

    'I

    n

    lugar é claro que não cabe mostrar homens honestos passando de

    felizes a infortunados (isso não inspira temor nem pena, senão indig-

    nação); nem os refeces, do infortúnio à felicidade (isso é o que há de

    menos

    trágico:

    falta-lhe todo o necessário, pois não inspira nem sim-

    patia humana, nem pena, nem temor); tampouco o indivíduo per-

      verso em extremo tombando da felicidade no infortúnio;' semelhante

    composição, embora pudesse despertar simpatia humana, não inspira-

    ria pena, nem temor; de tais sentimentos, um experimentamos com

    relação ao infortúnio não merecido; o outro, com relação a alguém

    semelhante a nós; a pena, com relação a quem não merece o seu

    infortúnio; o temor, com relação ao nosso semelhante; assim, o resul-

    tado não será nem pena, nem temor.

    Resta o herói em situação intermediária; é aquele que nem

    sobreleva pela virtude e justiça, nem cai no infortúnio em conseqüên-

    cia de vício e maldade, senão de algum erro, figurando entre aqueles

    que desfrutam grande prestígio e prosperidade; por exemplo, Edipo,

    Tiestes e homens famosos de famílias como essas.

    Necessariamente, pois, deve a fábula bem sucedida ser singela

    e não, como pretendem alguns, desdobrada; passar, não do infortú-

    nio à felicidade, mas, ao contrário, da felicidade a infortúnio que

    resulte, não de maldade, mas dum grave erro de herói como os men-

    cionados, ou dum melhor antes que dum pior.

    Di-Io a prática; a princípio, os poetas narravam as fábulas sem

    escolha; hoje, as mais belas tragédias se compõem em torno dumas

    poucas casas, por exemplo, as de Alcmeão, Edipo, Orestes, Meléagro,

    Tiestes e Télefo, e quantos outros vieram a sofrer ou causar desgra-

    ças tremendas.

    A mais bela tragédia, portanto, à luz dos preceitos da arte, tem

    essa estrutura.

    Portanto, nisso precisamente