Arlindo Machado - Uma Experiencia Radical de Videoarte

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Uma Experiência Radical de Videoarte Arlindo Machado https://videarte.wordpress.com/texto-de-arlindo-machado/ A primeira geração de artistas brasileiros que se dedicou sistemática ou esporadicamente ao vídeo despontou nos anos 70. Parece que o primeiro brasileiro a mostrar publicamente obras de videoarte foi Antônio Dias, mas isso aconteceu no contexto italiano, onde ele vivia. Entre os críticos, há um consenso de que o vídeo, encarado como um meio para a expressão estética, surge oficialmente no Brasil em 1975, a partir de duas grandes mostras de videoteipes brasileiros, uma em São Paulo e outra na Philadelphia (EUA), com trabalhos de artistas paulistas e cariocas. Essa primeira onda de realizadores ficou conhecida como a geração dos pioneiros. Como se sabe, a partir de meados da década de 60, muitos artistas tentaram romper com os esquemas estéticos e mercadológicos da pintura de cavalete, buscando materiais mais dinâmicos para dar forma às suas idéias plásticas. Entre as várias alternativas propostas, uma delas consistiu em buscar materiais para experiências estéticas inovadoras nas tecnologias geradoras de imagens industriais, como é o caso da fotografia, do cinema (Super-8, 16 mm) e do vídeo. Este último foi particularmente privilegiado em decorrência do seu baixo custo de produção, de sua absoluta independência em relação a laboratórios de revelação ou de sonorização (que funcionavam como centros de vigilância da produção na época da ditadura militar) e sobretudo pelas características lábeis e anamórficas da imagem eletrônica, mais adequadas a um tratamento plástico. Esse privilegiar do meio eletrônico no movimento de busca de alternativas para as idéias criativas vai favorecer o surgimento do fenômeno estético da videoarte no contexto brasileiro. No Brasil, toda a primeira geração de criadores de vídeo era constituída de nomes em geral já consagrados no universo das artes plásticas ou em processo de consagração, como foram os casos de Antônio Dias, Anna Bella Geiger, José Roberto Aguilar, lvens Machado, Letícia Parente, Sônia Andrade, Regina Silveira, Julio Plaza, Paulo Herkenhoff, Regina Vater, Fernando Cocchiarale, Mary Dritschel, Paulo Bruscky e tantos outros. O vídeo nasceu, portanto, integrado ao projeto de expansão das artes plásticas, como um meio entre outros, mas no processo criativo do artista ele nunca chegou a ser encarado com exclusividade. Às vezes, era mesmo difícil compreender os trabalhos de videoarte fora do conjunto da obra do autor. Não se buscava ainda explorar possibilidades de linguagem

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Uma Experincia Radical de VideoarteArlindo Machado

https://videarte.wordpress.com/texto-de-arlindo-machado/

A primeira gerao de artistas brasileiros que se dedicou sistemtica ou esporadicamente ao vdeo despontou nos anos 70. Parece que o primeiro brasileiro a mostrar publicamente obras de videoarte foi Antnio Dias, mas isso aconteceu no contexto italiano, onde ele vivia. Entre os crticos, h um consenso de que o vdeo, encarado como um meio para a expresso esttica, surge oficialmente no Brasil em 1975, a partir de duas grandes mostras de videoteipes brasileiros, uma em So Paulo e outra na Philadelphia (EUA), com trabalhos de artistas paulistas e cariocas. Essa primeira onda de realizadores ficou conhecida como a gerao dos pioneiros. Como se sabe, a partir de meados da dcada de 60, muitos artistas tentaram romper com os esquemas estticos e mercadolgicos da pintura de cavalete, buscando materiais mais dinmicos para dar forma s suas idias plsticas. Entre as vrias alternativas propostas, uma delas consistiu em buscar materiais para experincias estticas inovadoras nas tecnologias geradoras de imagens industriais, como o caso da fotografia, do cinema (Super-8, 16 mm) e do vdeo. Este ltimo foi particularmente privilegiado em decorrncia do seu baixo custo de produo, de sua absoluta independncia em relao a laboratrios de revelao ou de sonorizao (que funcionavam como centros de vigilncia da produo na poca da ditadura militar) e sobretudo pelas caractersticas lbeis e anamrficas da imagem eletrnica, mais adequadas a um tratamento plstico. Esse privilegiar do meio eletrnico no movimento de busca de alternativas para as idias criativas vai favorecer o surgimento do fenmeno esttico da videoarte no contexto brasileiro.

No Brasil, toda a primeira gerao de criadores de vdeo era constituda de nomes em geral j consagrados no universo das artes plsticas ou em processo de consagrao, como foram os casos de Antnio Dias, Anna Bella Geiger, Jos Roberto Aguilar, lvens Machado, Letcia Parente, Snia Andrade, Regina Silveira, Julio Plaza, Paulo Herkenhoff, Regina Vater, Fernando Cocchiarale, Mary Dritschel, Paulo Bruscky e tantos outros. O vdeo nasceu, portanto, integrado ao projeto de expanso das artes plsticas, como um meio entre outros, mas no processo criativo do artista ele nunca chegou a ser encarado com exclusividade. s vezes, era mesmo difcil compreender os trabalhos de videoarte fora do conjunto da obra do autor. No se buscava ainda explorar possibilidades de linguagem prprias do vdeo, a no ser em um ou outro caso isolado, s vezes at de forma acidental. Essa situao s seria modificada um pouco mais tarde, quando uma nova gerao, mais comprometida com a explorao dos recursos retricos da imagem eletrnica, entrasse finalmente em cena. Essa ser a gerao de Rafael Frana.

Frana ocupa, entretanto, uma posio intermediria dentro da histria da videoarte brasileira, ou melhor dito: uma posio de passagem. De um lado, ele um artista deslocado em relao ao movimento brasileiro da videoarte, pois surge fora do eixo Rio-So Paulo (ele gacho de Porto Alegre), onde se concentravam as produes, e realiza boa parte de sua obra videogrfica em Chicago, para onde foi inicialmente estudar e depois lecionar. Ademais, ele contemporneo da segunda gerao do vdeo brasileiro, conhecida mais genericamente como a gerao do vdeo independente. Essa gerao tem como horizonte no mais o circuito sofisticado dos museus e galeriais de arte, mas o universo massivo da televiso e a tentativa de conquistar um pblico mais amplo, no necessariamente de iniciados ou especialistas. Muito sintomaticamente, essa outra vaga de realizadores se ope videoarte dos pioneiros pela tendncia ao documentrio e temtica social. Frana, entretanto, nunca se deixou subordinar passivamente gerao dos independentes. Ele se manteve firme com sua viso crtica da televiso e achava, como toda a gerao dos pioneiros, que o vdeo era outra coisa, algo assim como uma operao de radicalidade e densidade significante, que jamais poderia penetrar sem concesses na tela domstica. Frana desconfiava tambm do principal circuito de difuso constitudo pelos independentes, o dos festivais de vdeo, que lhe parecia pouco srio, pouco preocupado com conceitos estticos e mais voltado para a revelao de talentos para o mercado.

Nesse sentido, embora surgindo num perodo posterior ao da gerao dos pioneiros (que logo desistiu do vdeo e partiu para outras experincias plsticas), Frana foi um dos poucos que se manteve fiel aos seus princpios bsicos e que deu continuidade sua tradio ao longo da dcada de 80. De fato, a maioria dos trabalhos produzidos pela primeira gerao consistia fundamentalmente no registro do gesto performtico do artista. O dispositivo bsico do primeiro vdeo brasileiro consistia quase que exclusivamente no confronto da cmera com o artista. A ttulo de exemplo, num dos trabalhos mais perturbadores dos anos 70, a artista Letcia Parente bordou as palavras Made in Brazil sobre a prpria planta dos ps, apontada para a cmera num big close up. Num certo sentido, a experincia dos pioneiros brasileiros fazia eco com uma certa ala do vdeo norte-americano do mesmo perodo, representada por gente como Vito Acconci, Joan Jonas e Peter Campus, cuja obra consistia como observou na poca Rosalind Krauss em colocar o corpo do artista entre duas mquinas (a cmera e o monitor), de modo a produzir uma imagem instantnea, como a de um Narciso mirando-se no espelho.

Ningum melhor do que Rafael Frana deu continuidade ao projeto esttico dos pioneiros (simplicidade formal, uso moderado de tecnologia, insero narcsica do prprio realizador na imagem, auto-exposio pblica). Como acontecia em quase toda a obra da primeira gerao, o personagem principal dos vdeos de Frana quase sempre ele mesmo, seja figurando pessoalmente como protagonista, seja se fazendo projetar num outro. Frana encontrou no vdeo um meio adequado para meditar e especular sobre seus prprios conflitos interiores, sobretudo sobre sua obsesso maior: a fatalidade da morte. Sua obra, de cunho bastante pessoal, esteve tambm centrada numa indagao dramtica sobre a questo da homossexualidade. Talvez seja possvel dizer que Without Fear of Vertigo (Sem Medo da Vertigem) ocupe um lugar estratgico em sua obra. Nesse vdeo, o prprio Frana e vrios amigos brasileiros e norte-americanos discutem as experincias do suicdio e do enfrentamento da morte, exatamente num momento (1987) em que a AIDS comea vagarosamente a aparecer como um flagelo, mas um flagelo restrito (at aquele momento) comunidade dos homossexuais. No final do mesmo trabalho, o artista mostra uma suposta acareao policial de Peter Whitehall, condenado a cinco anos de priso nos E.U.A. por ter colaborado no suicdio de seu companheiro Yann Bondy.

Frana morreu em 1991, vtima da AIDS, depois de ter nos presenteado com um dos testemunhos mais autnticos de fidelidade a si prprio. Seu ltimo vdeo, Preldio de uma Morte Anunciada (1991), terminado alguns dias antes de sua morte, uma verdadeira celebrao dos valores que nortearam sua vida e dos quais ele jamais abriu mo, nem mesmo nos momentos de maior agonia de sua doena. No vdeo, o prprio Frana troca carcias com seu companheiro Geraldo Rivello, enquanto aparecem na tela os nomes de todos os amigos brasileiros e norte-americanos que foram vitimados pela AIDS e a trilha sonora deixa correr uma dilacerante interpretao de La Traviata pela soprano brasileira Bidu Saio, gravada em 1943. A ltima coisa que aparece no vdeo o texto: Above all they had no fear of vertigo (Apesar de tudo, eles no tiveram nenhum medo da vertigem), que claramente interliga Without a Preldio.

Se, de um lado, Frana dar continuidade, nos anos 80, ao projeto esttico dos pioneiros, em termos de postura existencial, radicalidade da empreitada e recusa de subordinao aos valores do mercado, por outro lado, ele ser tambm um dos primeiros a romper com esse projeto no que ele tem de indiferena semitica, averso a questes relativas retrica do meio e uma certa concepo meramente instrumental do vdeo (o vdeo como simples dispositivo de registro). De fato, Frana ser um dos primeiros videastas brasileiros a se dedicar seriamente pesquisa dos meios expressivos do vdeo e a apontar caminhos criativos para a organizao das idias plsticas e acsticas em termos de adequao ao meio. Essa preocupao jamais foi marginal em sua obra, malgrado o fato dos aspectos semnticos, to fortes e impositivos, muitas vezes saltarem ao primeiro plano com maior nfase, obscurecendo as inovaes no plano sinttico. No podemos nos esquecer de que, alm de realizador, Frana foi tambm um pesquisador da mdia eletrnica: ele lecionava, escrevia para jornais e revistas de arte, fazia curadoria de mostras de videoarte e impossvel imaginar que toda essa atividade metalingstica no tivesse repercusses em seu rabalho. Pelo contrrio, as idias de Frana sobre o potencial expressivo do vdeo contaminaram no apenas o seu prprio trabalho, como tambm o de muitos de seus contemporneos da gerao do vdeo independente. Pode-se mesmo dizer que vrias geraes de vdeo-artistas brasileiros se desenvolveram graas s idias e aos caminhos apontados por ele. Ainda hoje, os vdeos de Frana constituem um dos melhores repertrios de idias criativas j constitudos no Brasil e poderiam estar servindo de fonte de inspirao s novas geraes, se tudo o que bom no ficasse imediatamente underground em nossa pobre cuItura colonizada.

Vejamos um exemplo eloqente. Desde as origens da videoarte, na dcada de 60, uma das discusses mais complicadas e ainda hoje no inteiramente resolvida diz respeito ao problema da fico no meio eletrnico. J houve mesmo quem defendesse a idia de que o vdeo no um meio adequado a propostas narrativas, afirmao essa que, malgrado contestvel no plano terico, corroborada pela prtica efetiva do meio. De fato, nos seus pouco menos de 40 anos de histria, a arte do vdeo acumulou poucas experincias narrativas realmente dignas de ateno, enquanto a televiso demonstrava, por outro lado, que as formas narrativas (sries, novelas) propostas para a tela pequena nunca passaram de estilizaes ou diluies de modelos dados pelo cinema. Um dos aspectos mais ricos da obra de Rafael Frana justamente a experimentao de alternativas criativas para a fico videogrfica. Pode-se mesmo dizer que, excetuando-se justamente os dois trabalhosacima citados Preldio e Without, raros exemplos de registros documentais na obra de Frana os demais trabalhos so sempre experincias de inveno de novas formas narrativas para o vdeo, sem perder, todavia, o seu aspecto confessional ou auto-testemunhal mais bsico.

No se espere, todavia, encontrar nos vdeos de Frana narrativas clssicas, maneira de uma certa literatura ou de um certo cinema, que nos habituaram com alguns modelos cannicos de fico. As narrativas de Frana so totalmente experimentais, absolutamente elpticas e descontnuas, explorando coisas como o contraste dinmico entre cortes muito rpidos e muito lentos, seqncias inteiras apresentadas quadro-a-quadro (como se fosse uma projeo de slides), faux raccords com planos seccionados em plena durao de uma frase, imagens fora de foco, ausncia de sincronia entre som e imagem, dilogos apresentados de trs para a frente, uso de diferentes texturas de cores ou preto e branco e assim por diante. O Silncio Profundo das Coisas Mortas (1988), por exemplo, uma histria de amor e traio entre dois amantes homossexuais, onde presente e passado, realidade e memria, experincia e desejo so misturados de forma intrincada e contaminados ainda pela intromisso do social, do urbano (a cidade, o trnsito, o carnaval) na intimidade dos amantes. Reencontro (1984) parece uma interpretao moderna (ambientada nos duros tempos da ditadura militar, com referncias explcitas a mtodos de tortura) da parbola de William Wilson, clebre narrativa de Poe sobre um personagem perseguido pelo seu alter ego e que termina se matando para fugir de si mesmo. Getting Out (Fugindo, 1985) uma narrativa tensa e claustrofbica sobre uma mulher que simula a situao de estar trancada em casa num edifcio que se incendeia, Combat in Vain (Combate Intil, 1984) e Fighting the Invisible Enemy (Lutando contra o Inimigo Invisvel, 1983), por sua vez, trabalham com uma absoro criativa do efeito zapping (colagem catica de imagens e sons, semelhante varredura rpida dos canais de televiso), de modo a sugerir narrativas estilhaadas, a um passo da completa dissoluo.

A esse esforo de repensar a fico no meio eletrnico, deve-se somar outro, igualmente sistemtico, de reinterpretar os recursos tcnicos do vdeo numa perspectiva autoral e inventiva. Ao contrrio de boa parte de seus companheiros da gerao do vdeo independente, Frana no se deixava seduzir pelas mquinas de efeitos, cada vez mais freqentes nos meios eletrnicos, mas tambm no as rejeitava simplesmente. Ele foi, ao contrrio, um dos poucos criadores que se empenharam seriamente em pesquisar a funcionalidade expressiva de cada um desses efeitos, em termos de rentabilidade dramtica. Em Insnia (1989), por exemplo, uma adaptao livre de um texto de Graciliano Ramos, novamente ambientada no mundo homossexual, pode-se ver uma utilizao bastante contida e quase minimalista de certos efeitos digitais utilizados na televiso, como a compresso da imagem ou a multiplicao de telas dentro do quadro videogrfico. Frana chegou a fazer verso desse vdeo para videowall, um dispositivo caracterizado pela apresentao excessiva e espetacular, utilizado quase que exclusivamente na esfera publicitria. Nessa verso, ele consegue o que at ento parecia impossvel: uma utilizao intimista, concentrada e reflexiva do videowall, logrando, dessa forma, coloc-lo a servio da narrao e no da ostenteo tecnolgica. Para uma gerao que cresceu luz das imagens excessivas da MTV, a interveno de Frana funcionou como contraponto iluminador e necessrio.