Aromas

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Contos

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Aromas

Um conto de

Immortales por Roxane Norris

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Este conto é uma obra de ficção, em nada nomes, fatos e

datas podem servir como embasamento histórico.

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Dedicatórias

A Ludmila Fukunaga, minha amiga, minha admiradora, minha linda.

A Juliana Skwara, amiga, ativista de letras e sobrinha amada. A Julliana Monteiro por emprestar à minha caçadora, seus

dons de ver a vida. Ao Jonathan Rhys Meyers por ter emprestado seu rosto e

sua atuação em Drácula, para me fazer sonhar. E, por fim, a Abraham Bram Stoker pelo personagem criado

com tanto esmero e que, até hoje, é um clássico e uma inspiração.

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Eu luto. Luto contra mim mesmo e a provação de minha essência.

Luto contra o desejo que corre em minhas veias e escorrega por meus lábios cada vez que elas pulsam... Próximas aos meus lábios. Saudáveis, convidativas... Lascivas e saborosas em outro corpo.

Inebriantes. Tentadoras... Quentes. Eu fecho meus castanhos e inalo o doce bouquet férreo,

com variações diversas. Tênues iguarias para aquilo que me tornei: caçador de mim.

Algo que não devia existir... Contra qual sempre lutei. Mas, inesperadamente, onde a minha luta me levou.

Eu me tornei parte da lenda que rasga a noite, por trás de sonhos e sombras, e afugenta as dores e as incertezas de corações perdidos. Que se aproveita da inocência...

Posso lhe trazer a paz, ou apenas um suspiro de ilusão, feliz. Quase indolor...

Eu parei de me importar com o que sentem, ou com o que lhes dou, quando a ausência de Elise se tornou minha maior fraqueza diante de meu inimigo. Achei que seria forte, mas sozinho não sou nada.

Virei refém dos meus sentimentos, e passei a andar a margem do que sempre norteou meus atos. Apenas anseio me sentir vivo por alguns dias a mais, na espera de que minha luta a mantenha a salvo, quando a lembrança dela já não me mantém são como antes e consome a minha existência fútil. Condena minhas horas, minutos; entrega-me ao desejo de minha sede, me transforma nesse promíscuo dependente vil

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de corpos embebidos em notas de bergamota, anis, calêndula, jasmim ou rosas.

Eu não me reconheço mais... E, ainda que pareça inútil, me esforço cada vez que minhas presas penetram a carne tenra, para dar o meu melhor. Para que um sopro de felicidade minimize a dor da partida.

Tão frágil é a existência humana, para que seja consumida pela tristeza num único e diminuto momento em que a plenitude é só minha.

Invejo-os como Lise sempre o fez. Respeito-os e tento me impor o lamento por cada morte

que deixo, a cada passo meu nessa cidade. Mas a ausência dela é, talvez, a minha luta maior.

Estou longe de casa, mas não das minhas leis. Não das regras que jurei seguir. Elas podem me punir a

qualquer momento. Em cada beco que piso, ou rua mal iluminada. Eu não descanso mais, não consigo mais fechar os olhos e

não ver Lise. Vejo-a nas ruas, vielas... Praças. Em louras, morenas e ruivas. E eu imploro que não me

abandone. Desde que a deixei, já fiz coisas que me desabonariam

como um Ernöyi. E, Londres não será melhor que Paris ou Bélgica. O medo de que Napoleão marche sobre Londres, tem mantido uma constante tensão e receio na cidade, e se cria um cenário propício para minha ação.

Eu os observo, estudo... e mato. Embora minha ação possa lhe parecer absurda diante do

imortal que conheceu, asseguro-lhe que tudo o que vi em

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Namur me fez crer que o mal ainda pode ser mais cruel do que eu... E não mata por alimento, mas por prazer.

Quando deixei Lise, pensei que ela estava segura, porém quando olhei aqueles verdes eu soube que não... E, que, enquanto minhas mãos estivessem sujas de sangue, eu não poderia voltar.

Estou postado à entrada de uma construção de tijolos, cuja

higiene tem um cunho duvidoso. As paredes escuras respiram umidade, e transbordam pelos aposentos, alugados a bons xelins* ao mês, certo descaso e impaciência de sua administradora, a sra. Owen.

Uma mulher de meia idade, baixa e roliça, que afasta seus interlocutores com o olhar severo e um avental amarelado. Cheira a peixe, na maioria das vezes, e não há vontade alguma em mudar isso. Então eu a vejo, com seu velho vestido verde, roto e amarfanhado. Seus lindos cachos louros não perdem o brilho, apesar da constante falta de alimento em sua mesa.

O mesmo sorriso é dispensado ao leiteiro, ao padeiro e ao jovem que lhe cede uma rosa. Ela não percebe, mas ele a fita com interesse. Ele poderia fazê-la feliz, mas ela desce a rua com seus sapatos gastos, quase furados, em direção aos bairros abastados de Londres.

Uma limpadora de chaminés. Não é um emprego que envolva sua reputação, ou que

possa envergonhá-la, além da cobertura fina e cinza do pó diário. E que, em nada, afasta sua beleza. Eu poderia mencionar que é quase uma pintura. Sua pele tem a cor e a consistência de pêssegos. Seus lábios são vivos como cerejas,

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e há algo em seus olhos azuis, que nos fazem temer sua profundidade.

De todas as raparigas, com quem já travei conhecimento em Londres, essa foi a mais intrigante. E a que estranhamente tenho mantido longe de meu apetite. Devo dizer que travei um conhecimento mais próximo dela quando

apostador em cavalos, trouxe-a até minha residência uma bela mansão na Picadilly um jovem franzino, que em minha opinião, não possuía mais que treze anos. Ao tentar arrebatar-lhe a carteira, Allan o interceptou e o trouxe consigo, na esperança de lhe dar um corretivo, coisa que o álcool e o láudano impediram, e que me fizeram ter a oportunidade de conhecer a moça dentro da veste de menino, a bela srta. Ludmila Sonieur, ou Milla, como pediu para ser chamada após cinco minutos de conversa.

Seu olhar era de uma sinceridade crua e serena, como se a vida já a houvesse maltratado tanto, que expor suas angústias, era apenas mais um lado escuro da tristeza que a consumia. Não posso negar que minha primeira intenção, ao mantê-la em minha sala e revelar a farsa de seu sexo, fora tão somente a de sorvê-la até a última gota de sangue e fazer George meu valete e grande entusiasta se livrar do corpo.

Todavia, ela me fascinou. De alguma forma diferente de Lise, de uma maneira humana e doce. Eu, que estava tão perdido e incerto sobre qual seria meu futuro, tinha diante de mim alguém com o coração mais frágil que o meu. Não saberia qualificar até que ponto a tristeza se instalara nele, porque a vida para Milla não era feita de esperança... Eram momentos que ela aproveitava. Simples momentos.

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Se a mim, que possuo a eternidade, a esperança me inspira; o que dizer de um humano destituído dela? Milla me intrigava. Era como uma gema rara, que poucos conhecem o valor. Mesmo sem esperança seus olhos sorriam, havia cor em cada gesto seu... Seria isso, viver na miséria?

Observava-a com renovado interesse quando o mordomo trouxe-lhe comida. O olhar dela, para cada iguaria a sua frente, fez-me, ainda que minimamente, sorrir. Como os humanos

Cruzei os dedos sobre a boca e Milla respirou fundo,

mordendo o lábio inferior, sem me dar a mínima atenção. O que será que pensava? Eu, certamente, não comeria nada. Exceto, talvez, frutas.

Por onde quer começar? indaguei, não irei mentir, levemente divertido.

Ahn... Bateu o indicador contra os lábios. Por onde começaria? Ela me pegou desprevenido, tanto que demorei a responder e, rapidamente, emendou: Tudo parece tão apetitoso! Fechou os olhos e aspirou o aroma que, a ela, deveria ser algo ímpar, como o cheiro de um sangue raro.

A sopa disse após breves segundos. É geralmente o prato de abertura. Esse é um creme de aspargos.

Ela enviesou o nariz. A sopa é tudo que sempre conseguimos... Entreabriu

os lábios em dúvida do que alegara. Não poderia comer a ave?

Perdizes corrigi, admirado com sua simplicidade cada vez mais. Era tão fácil ser o que quisesse na sua frente, sem falsos maneirismos. Sirva-a, por favor, Lyod dirigi-me ao mordomo.

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Em silêncio, Lyod cumpriu seu papel e, com um mínimo gesto, nos deixou. Milla quase não respirava entre uma garfada e outra enquanto eu passeava o indicador pelos lábios sem ser visto analisando-a.

Quer mais um? indaguei ainda divertido pela avidez dela. Não, que não conhecesse a pobreza de Whitechapel, por várias vezes havia frequentado o lugar, mas nada havia prendido minha atenção como a jovem.

Por que está fazendo isso? cortou-me sincera. Os olhos ansiosos pela comida, mas o brilho, no fundo dos azuis, denotando receio.

Bem... Medi-a com interesse. Foi trazida a minha casa, e não costumo ser um péssimo anfitrião. Não seria a coisa certa a se fazer. Se está aqui, é porque é minha convidada, e será tratada como tal. Depositei meus lábios suavemente na taça de vinho. Sim, era vinho, não estava querendo impressionar ninguém.

Ela correu os olhos pela sala, apreciando cada detalhe da mobília e da decoração.

Nunca estive num lugar assim... Mudou sua postura. Eu estaria ganhando terreno? Sua esposa deve ser uma mulher de bom gosto, como o senhor.

As imagens de Elise e Sophie vieram a minha mente, uma realidade distante da que eu possuía naquele momento.

Receio que não possa transmitir-lhe seus elogios, ainda que devessem ter um destino mais digno. Todavia, não há uma senhora nesse solar.

Não? Ela me fitou séria, como se considerasse minha afirmação algum tipo de bravata.

Isso a surpreende?

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Em parte... Serviu-se de uma farta garfada. Não é um homem a ser ignorado, sir.

Eu sorri. Minimamente, mas sorri. Então, eu presumo que deveria ter a casa repleta de

filhos, correndo por entre as cadeiras... Não Milla retrucou enfática. Por segundos corou até

obter o controle sobre suas emoções. Eu podia sentir. Não foi isso que quis dizer, sir...

Tenho certeza que não. Admirei os azuis. Foi apenas uma brincadeira... Perdoe-me. Fitei-a sério. Não há nenhuma senhora, nem herdeiros dos Fendrich... Por pura falta de habilidade de minha parte.

Ela sorriu. Um sorriso claro como sua pele. Deixe-me adivinhar algo sobre você, já que se permitiu

me conhecer um pouco... Francesa de nascença? Por parte de pai, somente. Uhn... Mademoiselle Sonieur... prossegui com

aguçado interesse: Acredito que possa ajudá-la. A mim? estranhou. Achei que seu amigo apenas

quisesse me punir pelo furto da carteira. Não é algo que costume fazer, sir... Mas há dias não comia.

Talvez tenha, de fato, sido esse o intuito de meu amigo. Não nego. Ergui-me da cadeira, sabendo-me observado. Não obstante que um olhar seja pouco para me intimidar, passeei calmamente atrás de onde ela encontrava-se sentada. Contudo, minha estadia em Londres requer descrição.

Oh... Achei que vivesse a vida toda aqui. Sorri. Ah, como era doce, a inocência.

Estou aqui apenas há alguns meses. Minha família é originária da Hungria.

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O senhor está bem longe de casa. Talvez, algumas milhas mais distante que a senhorita.

A distância muitas vezes é uma questão de ponto de vista. Milla calou-se de pronto e eu podia sentir o sangue subir-

lhe à face diante de minha audácia em confrontá-la com sua posição. De fato, era necessário antes de meu pedido:

Como deve ter imaginado, em algum momento... Devo? interrompeu-me e eu a admirei por isso, mas

nada disse, apenas prossegui como se nada houvesse acontecido:

Tenho inúmeros convites sociais a serem cumpridos, e há muita curiosidade em relação ao Conde de Várad, principalmente sobre a ausência de uma senhora Fendrich. Não quero ter que responder a isso constantemente, então, pensei numa ajuda mútua. Você será minha companhia enquanto eu estiver em Londres, e eu a tiro de Whitechapel para sempre e a devolvo à França, de forma que poderá se manter decentemente por toda sua vida.

Esperei-a degustar não só uma grande colherada de purê de maçã quanto o que lhe dissera.

Não é uma proposta feita para ser recusada. Vejo que ponderou, até mesmo, como ficaria minha reputação. Algo que muitos não fariam diante da posição em que me encontro determinou. Mas porque, me escolheu? Tenho certeza de que não é por falta de opção, em meio a tantas mulheres que devem estar suscetíveis ao seu charme, sir.

Meu charme? ponderei instantaneamente sob um sorriso.

Uhum assentiu, provando mais purê.

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Tem razão concordei com sua linha de raciocínio. Não tinha a menor intenção de negar o que ele afirmava, pois estava certa. Se eu quisesse alguém de minha posição, eu a teria com facilidade. Contudo, há algo que não levou em consideração... A sobrancelha dela enviesou em alerta. Ter qualquer uma delas significaria problemas amorosos.

Não quer se apaixonar... a ponderação refletia uma pergunta implícita.

Aqueles grandes olhos azuis estavam em mim. De certa forma, sim. Ainda não tinha ideia de quanto tempo demoraria para voltar a ver Lise e, certamente, um relacionamento não era algo adequado à posição em que me encontrava: afastado de minha família e caçado por um humano. Não era propriamente a posição mais cômoda que eu poderia estar. Entretanto, admito que tenho gostado da distração que Van Helsing me proporciona.

humanos criaram diante dos parcos conhecimentos de minha raça são de certa forma interessantes. Não, obviamente, pela racionalidade do pensamento, já que não sou de todo uma besta sanguinária, e porque no fundo, também os caço. Posso dizer que já matei muitos renegados utilizando-me do caçador como isca, mas não é algo que goste. Apenas me proporciona certa diversão, vê-lo falhar em determinar que sou um deles.

Talvez seja este um dos motivos que me leva a não querer me misturar aos humanos, como Lise faria tão facilmente. Observo-os de longe enquanto o tempo passa tedioso, pela minha janela. Tempo, para alguém como eu, não significa nada.

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Digamos que seja conveniente não me envolver. Então existe alguém que ama ela ponderou uma

vez mais. Sim optei, novamente, por não mentir. Era certo

que voltaria para Lise... Era uma questão de Luas e Sóis que se deitariam sob o céu.

Os talheres foram deixados de lado e ela se pôs de pé. Um movimento que avaliei como péssima posição ao que eu dissera.

Deveria chamá-la, sir disse firme, encarando-me numa altivez inesperada. Como mulher, não gostaria de outra assumindo meu papel.

Madmoiselle Sonieur garanto-lhe que não há a menor possibilidade dela aceitar estar ao meu lado, nesse ou em qualquer outro momento próximo.

Os azuis se estreitaram sobre mim curiosos. Você a ama em segredo? É uma mulher casada?

Precisei de toda minha habilidade e concentração para não rir do espanto que fez sua pele empalidecer.

Devo dizer que possui uma mente brilhante Madmoiselle Sonieur, e por isso mesmo gostaria de contar com sua discrição. Pois, o primeiro certamente é consequência do segundo, e isso me faz retomar minha oferta... Vai me ajudar?

Seus azuis escureceram e ela baixou-os ao chão. Eu podia sentir seu batimento acelerar.

Ela respirou fundo. Tenho a impressão que seu convite foi uma grande

cortesia, se comparado ao que seu amigo tinha em mente determinou e um arrepio frio passou por sua espinha.

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Desta forma, um não de minha parte também nunca foi cogitado.

Vou pedir que lhe arrumem um quarto. Mas eu não trouxe nada além do que está comigo... Não vai precisar de nada do que possuía, eu lhe

asseguro. Puxei a campainha próxima ao aparador. Tudo que for necessário para sua estadia aqui, será providenciado amanhã. Lyod entrou pela porta e eu determinei Precisamos de um quarto. Ele assentiu prontamente e me voltei a Milla, tomando-lhe a mão entre a minha e beijando seu dorso. Tenha uma boa noite, mademoiselle.

Observei-a deixar a sala, seguindo Lyod, com suas roupas de menino, mas profundamente intrigado em como seu corpo assentaria num vestido que lhe fizesse jus às formas.

Fazer compras em Londres não é algo que se mantenha

em segredo, principalmente quando se é a sensação da temporada e quase todas as mulheres cogitam e cochicham a seu respeito. Sendo assim, ha

atelier de Mrs. Du pont, incendiou a cidade mais do que um rastro de pólvora o faria. Embora a dona do atelier nada dissesse, apenas tomava as medidas de Milla, anotava os tecidos e os trajes que deveriam ser confeccionados... Os de dia e os de noite. E, certamente, não lhe escapou o detalhe de colher o nome de sua cliente: Ludmila Sonieur, minha sobrinha.

Em nada Milla me contradisse, sorria e andava ao meu lado coquete. Mesmo assim, eu possuía a exata noção do que isso lhe custava. Havia olhares e bocas maliciosas em todo nosso percurso, e me era essencial que assim fosse. Eu

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a salvara da prisão e sabe-se lá o que mais, promover-lhe-ia o futuro, mas ainda assim o presente lhe reservava infortúnios... Como a reprovação silenciosa de uma sociedade hipócrita.

Ela não parecia se importar, contudo, por mais que isso não devesse me atingir e eu o encarasse como parte de um serviço adquirido, revoltava-me a natureza escusa dos humanos. Diletos ditadores dos eufemismos sociais. Os homens tão poucos escapavam dessa premissa, já que de tão distintos que eram, cumprimentavam-me, passeando olhos em suas curvas, dentro do vestuário de cetim róseo recém-adquirido em Mrs. Du Pont. Enojava-me a forma como a cobiçavam, era praticamente como se a exibisse desnuda, mas a falta de respeito jamais partiria de seus lábios enquanto ela estivesse comigo. Uma vez mais, hipócritas.

Milla sustentava o olhar de cada um deles, fosse às ruas, ou no café em que paramos para evidenciar ainda mais nosso relacionamento. Todavia, ao por os pés no solar, eu a perdi.

Perdi-a para as paredes de seu quarto, as colchas e os travesseiros. Observando-a subir em passos apressados, eu sabia que seu coração estava a um passo de fluir por seus olhos. E eu me calei, ciente de minha culpa e de que nenhuma palavra minha desfaria suas angústias.

No silêncio, eu jantei; e, em minha constante solidão entre aquelas paredes, pedi que lhe fosse servida uma ceia. Eu precisava dela, e ela também precisava de mim, agora mais do que nunca.

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A lua ia alta, iluminando fracamente as ruas de Londres. E, admiravelmente, lá estava eu, promovendo acrobacias nos telhados londrinos, procurando sorrateiro, a próxima vítima minha e de Van Helsing. Ele não era mais velho do que eu aparentava. Um pouco mais alto, talvez, e mais encorpado. Seus olhos eram verdes e os cabelos castanhos claros, ao contrário dos meus sempre curtos, oscilavam à altura de seus ombros.

Devo admitir que ambos éramos almas da noite e nos escondíamos nas sombras, e da sociedade. A família de Abraham era originária dos Países Baixos, e seu pai se tornara uma celebridade médica na sociedade londrina em pouco tempo, demonstrando habilidade única em cirurgias de drenagens pericárdicas. O jovem Van Helsing seguia distintamente os passos do pai, e sua perícia com uma espada era quase tão aguçada como a com um bisturi. Apreciá-lo em combate era, em muitas vezes, melhor que intervir. Todavia, Isabella, sua irmã, não possuía tanto afinco em manter a salvo o bom nome da família.

Desde a Revolução Francesa, muitos renegados foram para Londres, e anos depois, a cidade cheirava a eles. Minha atração por ela, foi justamente aproveitar essa eclosão para inocular qualquer ação de maior porte e deixar que ela se tornasse um problema para nossa sociedade. Infelizmente ou não, Abraham havia nos descoberto. Não era de Órion, nem um Protettori, mas era alguém a quem eu devia respeito.

Nesse momento, ele interpelava o mesmo jovem que eu

lâmina de Van Helsing refletia a luz e disparava em direção à garganta do renegado. Os olhos do jovem se tornaram

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rubros e num único movimento, ele interrompeu o avanço da lâmina no ar enquanto erguia o corpo à calha do telhado e disparava em minha direção.

Eu estava atrás das muitas chaminés que cobriam os telhados e não foi difícil cruzar sua rota de fuga, estirpando-lhe a cabeça. Bastou apenas alguns momentos, em que eu limpava a lâmina de minha espada no sobretudo, para que Abraham estivesse em minha frente.

Está longe de casa, Edmund... Pensei que me agradeceria ponderei, guardando a

espada. Ele me fitou sob a aba do chapéu de couro que usava.

Já lhe avisei uma vez, está no meu caminho. E você no meu conclui.

Os dentes dele cerraram e ele se aproximou rápido. Não sei como consegue andar de dia, mas eu sei que

vai se trair mais cedo ou mais tarde. Encarou-me sério, com brilho nos verdes. Eu sei quem você realmente é... Sempre terei meus olhos sobre seus atos e quando você errar, eu vou estar lá. Rangeu os dentes e deu-me às costas. Eu apenas sorri. A propósito... deixou no ar quando desceu do telhado, habilmente. Aquela jovem é bela demais para alguém como você.

Meu sorriso aumentou. Tem razão, talvez deva visitar Isabella...

Ele era bom, eu tinha que admitir. Pois com a mesma destreza que demonstrara antes, estava com a espada contra minhas costas, sem que eu o houvesse percebido.

Retire o que disse. Retirar o quê? sugeri irônico.

Abraham se aproximou e deixou contra meu ouvido:

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Se tocar em Isabella, eu juro que o mato sem precisar de qualquer alento para minha alma.

A brisa da noite soprou e eu me vi sozinho no telhado. Eu não tencionava tocar em Isabella, mas não pelo pedido dele, ou porque ela não o quisesse. Era simplesmente porque eu não a queria.

Vir para a Inglaterra me habilitou em outra arte de luta

além de espadas, sabres e katanas. Meu estilo de luta corporal nunca foi bem trabalhado, unicamente pela minha falta de comprometimento com ele. Porém, estar em Londres significava adquirir hábitos de vida um tanto diferentes, como a famosa chávena à tarde, o que limitava bastante o horário de visitas apropriadas a um período de tempo não muito condizente com minhas atividades.

Nós, imortais, ainda que possamos sair à luz do dia, a evitamos por motivos óbvios: queremos anonimato. Quanto menos vistos, menos conhecidos; embora, isso já não se aplique aos hábitos desenvolvidos pelos renegados, que o utilizam para caça de alimento. Facilitando, dessa forma, as versões fantasiosas e deturpadas dos humanos em relação a nós.

O vampiro é uma degeneração de nossa raça. Seu metabolismo não possui uma maneira de sobreviver dentro de um corpo mal adaptado a ele. Viverá menos, se não houver um imortal que lhe ceda sangue e mantenha seu coração ativo. O sangue humano é um mero paliativo, a imortalidade está em nós, não em vocês. Ainda que um dia, fossem como nós... E Londres estava infestada deles, depois da morte de Carl e Victor não havia líderes, apenas caçadores. Tanto de nosso lado, quando dos humanos.

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O boxe é uma arma fatal se bem doutrinada e utilizada. Com Abraham em meu encalce, eu raramente podia sair com a espada, e muitas vezes, a caçada envolvia uma proximidade cuja lâmina me colocava em desvantagem. Assim, passo boa parte do dia dedicando-me a aperfeiçoá-lo para o que necessito, já que o termo visitas não se aplica essencialmente a minha rotina.

Contudo, a curiosidade é algo nato dos seres humanos e, creio, as refeições que passamos a dividir nos últimos dias não era o suficiente para aplacar a curiosidade de Milla. E, aquele dia em especial, Allan havia me trazido um convite para um baile... Um baile que eu não ousaria recusar. Um baile na residência dos Van Helsing.

Eu me encontrava no porão, alternando minhas técnicas ao mesmo tempo em que direcionava meu pensamento para determinar o que Abraham tinha em mente... Ou seria mera coincidência? Eu não me atreveria a contar com isso depois de nosso último encontro.

Estava desfechando um gancho de esquerda no saco de areia enquanto minha perna direita acertava o sobressalente atrás de mim quando a voz de Milla surgiu sobre meus ombros:

Você me surpreende... eu poderia ponderar.

Desfiz minha posição e me afastei dela, buscando uma toalha para me secar. O porão era espaçoso e limpo, possuía uma mesa com cadeiras ao canto, rústicas aonde eu me encontrava naquele instante ; várias armas dispostas nas paredes de pedra, desde machados às sais, que tanto Elise gostava; e havia também a área de treinamento, um ringue improvisado. Não era um lugar em que eu trouxesse visitas,

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era um refúgio da vida lá fora. Na verdade, ela estava mais para uma intrusa do que uma convidada, naquele momento.

Apesar de acreditar ser uma pergunta desnecessária, gostaria de saber como me achou.

Eu estava sem sono e... Aproveitou que os empregados dormiam para

bisbilhotar cortei-a irritado. Ela chegara no momento errado e me privara de discernir o que Abraham queria, não deveria esperar por flores.

Na verdade, eu percebi que não estava bem no jantar ela disse com cuidado. Seus olhos azuis presos às minhas costas, analisando cada

pedaço de meu dorso nu. Há tempos eu não tinha aquela sensação quente sobre minha pele; a deliciosa sensação de ser admirado por uma mulher como algo além de uma diversão momentânea e fugaz. Cerrei meus castanhos e, uma vez mais, controlei a onda de frenesi que me atingiu. Uma tortura.

Tecnicamente, essa foi apenas a desculpa que a fez me procurar. Ainda de olhos fechados, enxuguei as gotas de suor que rolavam por meu tórax; em minha mente a atmosfera estava tão quente que era quase sufocante... Amassei a toalha entre os dedos. Ela simplesmente não devia estar ali. Não me disse como me encontrou. Loyd não a traria aqui.

Voltei-me para ela e, com os rubros sob controle, encarei-a sério sob um olhar castanho profundo.

Confesso que andei bisbilhotando. Desviou os azuis de mim e as maçãs de seu rosto ficaram rubras, como as que haviam sido trazidas por Loyd horas antes e

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repousavam sobre a mesa numa travessa de prata. O silêncio nos envolveu e eu cruzei os braços sobre o peito, esperando por algo que nem mesmo eu sabia o que era. Então aquelas orbes azuis brilharam sobre mim determinadas: Confesso que, deliberadamente, observei as atividades de seu mordomo antes dele ir se deitar. Segui-o pelos corredores e...

Milla respirou fundo, incerta se deveria revelar tudo. E? Ela estava com sorte por eu não rosnar a

pergunta, diante do estado em que me encontrava: possesso.

E descobri a entrada do porão pausou, observando-me curiosa. Esperei até que todos dormissem e notei que você não estava em seu quarto, pois a porta costuma estar trancada... Ela agora me parecia febril. Toda sua pele emanava um aroma peculiar da caça. Deliciosa. Foi apenas juntar dois mais dois. Baixou rapidamente seu olhar ao chão.

Diga-me... comecei a me aproximar dela devagar. As notas de jasmim se misturavam ao receio no ar e me seduziam, assim como o borbulhar do sangue em minhas veias me cegava. Em que momento passou a ter curiosidade sobre mim?

Eu estava quase sobre seu corpo, ela recuara até próximo do saco de areia e me fitou em azuis aturdidos.

Eu lhe fiz uma pergunta Madmoiselle... insisti. A veia em seu pescoço palpitava nervosismo e não havia

para onde ela fugir. Desde que... engoliu em seco. Quase não come,

quase não dorme... Quase não tem amigos. Que tipo de ser humano vive assim?

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Eu sorri sobre seus lábios partidos em busca de ar. Você não iria gostar de saber como sou de verdade.

Avancei o dorso de minha mão sobre suas bochechas. Em momento nenhum eu o julguei, sir ela

balbuciou, não sei se por medo ou por pura apreensão, mas eu gostei de senti-la acuada.

Não... afirmei convicto. Eu sei que não. E é justamente a sua falta de defesa contra mim que me faz conservá-la na ignorância da verdade. Corri meus olhos ávidos em cada linha de seu rosto, decorando-as. Deve conhecer apenas o homem que irá ajudá-la... É o bastante para nós dois.

Ela respirou sob mim, pesadamente, cerrando os azuis. Só então percebi que a tinha nos braços e que, na cegueira de minha ira, não notara suas roupas íntimas. O decote do robe me permitia apreciar o arfar leve de seus seios contra o tecido fino da camisola, e sobre esta o robe de flanela. Os cabelos caíam levemente ondulados pelo pescoço e eu os afastei, delicadamente, até que meus lábios quase repousassem na linha de seu ombro... Sensual, sedutora, e que trouxe os rubros aos meus castanhos. Meu ser inteiro clamava por sangue.

Ela arrepiou e eu a soltei, colocando alguns passos entre nós e fechando meus olhos. Eu não era uma besta, nunca seria. Milla me fitava sem jeito enquanto tentava fazer a cena parecer natural. Ajeitou seu robe e contrapôs:

E não há como eu ajudá-lo? Eu o vi lutando deve haver um motivo para fazê-lo. Havia mais que habilidade em sua técnica.

Ponderei meros minutos e encarei as maçãs, distantes, intocadas.

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Você irá me ajudar amanhã, ao ir comigo à casa dos Van Helsing.

Sim... sugeriu calma. Isso faz parte de nosso acordo. Mas e quanto ao que o aflige?

Já lhe disse que basta conhecer apenas um lado da verdade.

Você poderia ao menos fingir que sou sua amiga... Entre um homem e uma mulher raramente há traços

de amizade. E o que poderia haver entre nós, além de um contrato?

Foi a minha vez de respirar fundo e com uma das mãos tomar-lhe o pulso entre os dedos, colando-a mim. Meus dedos entre os cabelos soltos; o pulsar de seu coração descompassado, surpreso; o tecido flanelado e o delicioso cheiro de jasmim. Tudo era corruptível.

Se quer tanto saber mais sobre mim... inclinei-a para trás propositalmente, permitindo-me acesso ao seu colo. Era alvo e cremoso, e ostentava uma mínima cruz de madeira. Sorri, pois muitos humanos achavam que tal artefato me manteria longe, mas ele só indicava com seu lado maior o lugar onde minha boca gostaria de repousar. Pura ironia. Deve saber se proteger como eu deixei contra seu ouvido enquanto voltava-a à posição inicial. Vou ensiná-la e, então, poderá saber mais.

Ainda com sua mão atada a minha, depositei, suave, um beijo em seu dorso.

Tenha uma boa noite, Madmoiselle. Milla... Edmund contrapus numa linha fina de sorriso. Obrigada e boa noite Edmund.

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Ela novamente ajeitou o robe e me deixou sozinho no porão... Entre o doce perfume de jasmim eu me perguntei onde estava com a cabeça para querer ensiná-la a lutar. E a resposta era óbvia: o certo era fazer qualquer coisa para mantê-la longe de minha fome.

Ela respirou fundo ao meu lado, no coche. Levando as

mãos à borda do corpete. Tenho certeza de que não cabe mais nada aqui dentro

murmurou para si mesma. O vestido de veludo verde lhe assentava muito bem, e eu

apreciava a visão que tinha do decote, realçando as formas avantajadas dos seios, que se comprimiam contra o tecido, febrilmente.

Lembre-se determinei o foco. Eu respondo as perguntas sobre nós.

Sim... A mão trêmula deslizou pela pele clara e alcançou o colar de rubis e diamantes que eu havia depositado ali. Apalpou-o e completou: Acha mesmo seguro?

Seguro e lindo, deixe-o em paz. Tomei sua mão na minha, roçando levemente sua pele. Eu estarei ao seu lado o tempo todo.

Sorri-lhe de canto no exato momento em que o coche parou.

Parece que estamos entregues... Pronta? Apesar do olhar curioso que me dirigiu, ela assentiu e foi

questão de minutos para estarmos sendo introduzidos ao salão e a Sra. Van Helsing.

Lorena Van Helsing não era uma mulher a ser ignorada, e certamente não admitiria isso em nenhuma hipótese.

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Quando estávamos de frente para ela e Thomas, o pai de Abraham, seu olhar correu por Milla, avaliativo.

Disse sua prima, milorde? fez questão de repetir. Ah, sim assenti, fazendo-me também de tolo. A

sociedade, inglesa ou não, tem uma séria queda à hipocrisia e eu gosto de manter essa estranha arma ao meu alcance.

Francesa completei, tornando o sorriso dela uma linha levemente dissonante.

É um prazer recebê-los, de qualquer forma acudiu Thomas, sempre simpático. Eu tinha certeza de que Abraham puxara a mãe.

Com uma leve curvatura tomei a mão de Milla na minha e adentramos definitivamente o salão. Não sei explicar como sobrevivemos aos primeiros dez minutos dentro daquela atmosfera. Eu tinha plena consciência de que estava expondo-nos a uma prova de fogo, e se ainda coubesse em minha razão, a prova estava lá, nos inúmeros murmúrios que correram o salão.

Estão falando sobre nós... Milla sussurrou ao meu ouvido.

Impressão sua sugeri-lhe ao pé do ouvido, fazendo uma onda de olhares reprovadores correr sobre nós.

Ela sorriu de volta. Um sorriso tão limpo, que me fez esquecer onde estávamos. Apenas voltando à realidade ao ouvir:

Se importaria de me ceder a próxima dança? Abraham estava diante de nós, encarando Milla. Os olhos

azuis dela voltaram-se, preocupados, para mim. Eu deveria ensiná-la a não se expressar tão francamente. Embora, eu houvesse demorado um pouco a compreender o estranho brilho no olhar dos verdes.

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Com um meio sorriso e um suave beijo no dorso de sua mão, deixei Milla aos cuidados de Abraham e busquei a varanda da casa. A noite estava quente e os olhares abrasivos me impeliam a manter uma distância considerável do salão, ainda que não a perdesse de vista.

Não gostaria de uma bebida, monsieur le conté... A voz doce de Isabella ganhou o ar a minha volta com a

leveza do aroma de camélias que seu corpo emanava, dentro de um vestido carmim de corpo justo e decote baixo, realçando as curvas perfeitas que ameaçavam escapulir dele, a qualquer instante. Seus cachos castanhos estavam presos ao alto da cabeça, evidenciando ainda mais as linhas sensuais de seu colo.

Com um sorriso, ela me passou um dos dois copos de whisky que trazia consigo.

Um brinde! disse em seguida enquanto eu a observava e um sorriso torto escapulia de meus lábios. Ao solteiro mais cobiçado de Londres! E molhou intensamente os lábios, fazendo seus olhos castanhos luzirem nos meus, maliciosos.

Certamente fala de seu irmão, em breve será tão famoso quanto seu pai sugeri, vendo a expressão dela se tornar séria conforme se aproximava de mim e espalmava a mão livre, e enluvada, contra meu peito. Inclinando-se até alcançar minha orelha, contrapôs:

Se me referisse a meu irmão, como diz, eu jamais poderia fazer isso...

E, às palavras, uniu um movimento provocativo de seus lábios sobre a linha de meu maxilar até tomar minha boca na sua e mordê-la sensualmente. Correndo a língua contra

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meus lábios e fazendo-me perder o controle de meu corpo. Sou homem, não uma pedra.

Meu movimento não foi tão sútil quanto o dela. Ainda que não tivesse interesse em Isabella, ela era uma mulher bonita e desejável, e sabia usar isso a seu favor quando queria, mesmo que arriscasse a reputação de seu pai. A mim isso não importava, não tenho escrúpulos em admitir. Ela era macia, como a pele de um pêssego, e o cerne, entre suas coxas, transbordava todo ímpeto da mulher que era.

Colei nossos corpos à parede externa da casa, sob uma frondosa sombra da varanda superior. Ela não mais falava, apenas sentia minhas mãos erguerem as saias enquanto deslizava minha língua ávida, e nenhum pouco delicada, contra seu pescoço e colo, buscando-lhe a borda do decote.

Arranquei-lhe a liga com a mesma intensidade da explosão das imagens em minha cabeça: a de Milla em meus braços. Retirei um dos seios para fora, molhei-o vagarosamente, fazendo-a gemer e aceitar meus dedos dentro dela, massageando-a... Golpeando-a, punindo-a em olhos cerrados enquanto arranhava minhas presas no bico de seu seio.

Meu sexo pinicava contra minhas calças, mas eu não poderia consumar nada ali, então, ela gemeu uma nota mais alta, se liquefazendo sob meu carinho. Agarrada aos meus cabelos, a boca arfando contra minha razão, que me fez abrir os castanhos num ímpeto e ter a visão mais aterradora que poderia provar: Milla nos observando.

Pude sentir seu coração comprimido. Pude ver o bolo em sua garganta enquanto tentava absorver nós dois ali. Os lábios se separaram, parecendo que deixariam algo o ar. O

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cenho franziu e os olhos azuis me tornaram uma aberração de fato.

Eu não ousaria falar, e antes que Isabella pudesse se dar conta de sua presença, seus passos tornaram-se ecos na direção do salão.

O que houve? a Van Helsing indagou conforme eu cerrava os punhos e me odiava.

Vá para o salão rosnei. Mas... Apenas vá cortei-a severo, e ela ajeitou o vestido,

deixando-me sozinho. Meu controle perdido. Os olhos em rubros, o sexo

pulsando e nada além do vazio aniquilador que era minha vida. Ela jamais entenderia que eu a desejava ao ponto de corromper outra alma, para deixar a dela intacta.

O jantar ainda seria servido, todavia, eu havia usufruído mais do que desejara, ao pôr meus pés ali, da hospitalidade dos Van Helsing. Até mesmo para meu senso de ironia. Dirigi-me discretamente à porta e pedi meu sobretudo ao mordomo, e estava para sair quando uma mão pesada se fechou sobre meu ombro direito, me detendo:

Eu não sei o que fez a ela, Edmund... Mas irei descobrir. O olhar de Abraham era intenso, e também um aviso. Por

segundos fiquei atônito, percebendo exatamente a mensagem oculta em seu brilho. O brilho que tanto me chamara atenção antes. Com um puxão no sobretudo, não voltei a olhá-lo e desci as escadarias num passo contido.

Eu não daria a ele o gostinho de perceber minha emoção. Entrei no coche e bati com minha bengala no teto, avisando-o para partir. E, conforme ele se pôs em movimento, eu interrompi os pensamentos dela:

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Aquilo era algo que você não deveria ter visto. O silêncio nos envolveu.

Eu não deveria ter pensado obter mais respeito do que a mulher a quem ama...

E o som dos cascos dos cavalos se misturou ao do meu coração, encobrindo-o por completo.

Todos nós já ouvimos, alguma vez em nossa vida, a

são o início de tudo, a fonte da e, acredite em quem já viveu muito mais que

você, elas o são. O corpo de uma mulher é de uma harmonia ímpar. Curvas e retas desenhadas à mão livre, que se mesclam ora para o prazer, sua sensualidade explícita em cada pequeno movimento; ora para simplesmente mostrar sua essência, o poder e consciência ainda que oculta de ser única.

Tocar uma mulher e compreendê-la, a cada sinal que envia sem sentir; a cada pedido feito por um olhar impensado; a cada murmúrio que não ousa deixar seus lábios, deveria fazer do homem que a observa, um companheiro apaixonado. A mulher é um ser feito de sentimentos e entrelinhas, e desvendá-los é o maior enigma imposto aos homens que se colocam em seu caminho.

Por isso nos surpreendem. Por isso eu estou aqui, parado à entrada de meu porão, observando-a curioso, não o nego golpear freneticamente o saco de areia à sua frente. Passeio a mão pelo meu queixo tendo a exata noção de que era eu, o destino de cada um deles. E eles me acertam de formas diversas, sem que ela saiba, pois uma das piores armas que o homem possui é o cinismo.

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Eu me aproximo silencioso e, quando me sinto seguro, até mesmo de meus sentimentos, eu a confronto:

É alguma tática de defesa inovadora? Ela não me olha, ignora. E eu saboreio, entre o prazer e a

desolação, o fato de eu estar certo diante da resposta silenciosa dela. Rodeio-a mais um pouco; ela se exaspera. Estamos quase lá... E paro em frente aos seus olhos azuis.

Ele já foi judiado demais, conseguiu sua revanche... Retiro minha camisa branca. Sei que ela me observa e o calor do olhar dela, em minha pele, fecha as feridas que a ira dela despertou em mim. Encaro-a firme, aproximo-me lentamente, é necessário impor controle. Ela está linda na roupa de montaria, que não me parece confortável para um esporte. E também está atônita com minha proximidade, toco seu braço e ela arrepia. É um bálsamo saber que não está tão chateada ao ponto de refutar meu toque; é bom saber que ainda possuo poder sobre ela. Não é mesmo assim? Vamos ajustar esse uniforme e começar o treino.

Em silêncio dessa vez sufocante eu roço sua pele, consciente de meu efeito sobre ela, dobrando-lhe as mangas da camisa até o cotovelo. Ela está sem ar, suas veias palpitam frenéticas e me chamam, imploram por mais. Que tipo de homem eu sou?

Aquele que lhe dá mais... Então eu a viro de frente para mim, sem resistência, e a alicio. Toco-lhe o pescoço, deslizo os dedos pela clavícula, num martírio, até alcançar-lhe os primeiros botões da blusa, e abri-los. Ela fechou os azuis... Eu escorreguei meu indicador pela fenda entre os seios. O coração bombeia frenético, enlouquecedor, e eu me impeço de seguir, parto meus lábios e desejo tomar os dela

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nos meus. Respiro, suspiro... Decoro traços. Afasto-me e o ar gelado me faz retesar.

Assim está bom. Cerro os punhos, sei que me olha, e quer me socar de novo. Voilá... Eu soco primeiro o saco. Precisava daquilo. Um soco certeiro em meu queixo, cretino. Tem que ser debaixo para cima, ou não faz efeito

sentencio. A manhã chegou como todas do outono, com um sol

inexpressivo espreitando por entre as cortinas. E, tão logo se encerrou o dejejum, o convite para um chá, ainda aquele dia, foi deixado sobre a salva de prata à frente de Milla.

Eu não me incomodaria que ela comparecesse a nenhum deles, e era certo que muitos viriam diante de nossa aparição em sociedade, mas começar justamente por um vindo dos Van Helsing, e em especial, de Isabella, não contribuía em quase nada para que a encorajasse a ir. Embora, claro, tivesse a noção exata de que uma recusa estava longe de poder ser nossa resposta.

O olhar azul dela, escureceu, e posou sobre mim sem reservas, ainda que eu estivesse absorto pelas notícias do jornal.

Então... Ela estava postada atrás de mim e, sem reservas, colocou a missiva entre meus castanhos e o impresso. O que quer que eu faça?

Sem fitá-la, restitui-lhe o convite. Deve fazer o que acha certo ponderei. Não

pretendo dispor de suas vontades, como está sugerindo. Ela sorriu, eu não precisava vê-la, para sabê-la esplêndida

sob um sorriso.

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Isso quer dizer que não gostaria que eu aceitasse, mas como é algo inevitável, e essencial para seu plano, vai deixar que eu tome a decisão de ir e aliviá-lo de me pedir o contrário... pausou. Pois, como salientou, é um cavalheiro, e jamais ousará se por entre mim e meus desejos.

Milla agora estava a minha frente, sentada parcialmente sobre a mesa, numa atitude que definitivamente me fazia encará-la, como se qualquer notícia conseguisse fazê-lo depois que ela se erguera de sua cadeira.

Diga-me... prosseguiu determinada: Vai mesmo deixar que eu a atinja com um golpe preciso de direita?

Eu sorri. Apreciava o espírito combativo dela, isso me seria útil, mas era também meu ponto fraco, pois deveria deter a mim e a ela de expor tais sentimentos. Mesmo que, cada vez mais, me visse dependente deles.

Não vou rebater o fato de que é conveniente que vá, nem tampouco que estou me valendo de seu senso de ética para que assim proceda. Contudo, estou curioso... Apoiei meu queixo sobre meus dedos e inclinei meu rosto até junto ao dela. Acredita que a srta. Van Helsing a esteja chamando para um embate desse porte?

Sempre que ficávamos próximos era impossível não ouvir-lhe a palpitação em sintonia com a minha. As bochechas dela se tornaram rubras e ela sustentou seu olhar no meu, arriscando:

Eu diria que ela é extremamente petulante por me convidar a sua casa, quando protagonizou tal cena com o meu... Milla focou meus lábios, mas mordeu os seus na incapacidade de prosseguir.

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Todavia eu não a deixaria escapar tão facilmente. Então, quando corpo dela ameaçou abandonar a posição em que se encontrava e buscar uma mais segura, meus dedos se entrelaçaram aos dela sobre a toalha de renda. Havia um misto de surpresa e apreensão em seu olhar quando conduzi o dorso de sua mão aos meus lábios e o beijei suave.

O que sou para você, Milla? Soprei sobre sua pele. Correu seus olhos azuis nos meus castanhos.

Um amigo... balbuciou. E eu escorreguei novamente minha boca sobre sua mão.

Confesso que não queria manter o controle, ou ser honesto, até obter uma confissão de seus lábios.

E eu deveria estar agradecido pela sua amizade ser tão devotada ao ponto de se expor assim por mim. Beijei os nós de seus dedos.

Eu... A pele dele exalou o delicioso perfume de jasmim. Não espero sua gratidão determinou entre a indignação e o receio.

De um amigo não se espera gratidão... sugeri levemente rouco. Se espera cumplicidade e lealdade. Mas, intriga-me, não acha que sou leal a você ou qualquer outra mulher. Então, certamente, não sou seu amigo. O que sou para você, Milla? disse uma nota mais alta, estava ansioso como um menino.

Ela me olhou lívida. Alguém especial ditou furiosa consigo mesma por

não ter conseguido manter o controle. Não a culpo, eu raramente não consigo o que quero. Alguém com quem me importo! Droga!

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Ela se ergueu da mesa e correu para porta, livrando-se meu toque e completando irritada:

Eu odeio o modo como consegue essas coisas! A porta bateu estrondosa. Eu a fitei sério, cada pequeno

detalhe do entalhe da madeira. Estava enganado se achava que ambos conseguiríamos levar esse jogo até o fim.

O jornal ficou amassado sobre a mesa. A partir do desenrolar de certos acontecimentos, se faz

necessário que Milla transmita suas impressões, pois nessas não estive presente, minimamente conjecturei o que ocorreu através de minha mente insana.

Eram quatro e meia da tarde quando fui recebida na residência dos Van Helsing. Ainda estava aborrecida pela forma como Edmund tratara aquela visita, como insistia em nos manter próximos nos treinos, mas afastados no que tange nossas emoções; e o retorno aquele lugar, principalmente para encontrar Isabella, não colaborava para amenizar meu ânimo.

Eu queria apenas que as horas se escoassem rápidas. Deixei minha sobrinha com o mordomo e o segui pelo corredor até uma porta dupla de nogueira, que me introduziu a uma saleta de chá. Com uma curta reverência, fui convidada a esperar minha anfitriã em silêncio, e mortificada. O que ela teria para me dizer? Não julgara audácia suficiente estar com meu acompanhante num jardim, ao alcance de todos?

Retirei as luvas e brinquei de batê-las uma contra a outra, reproduzia um som compasso torturante dos minutos que me afastavam da entrevista nada apropriada com aquela mulher. Eu retesei e busquei novamente domesticar meu gênio, já que o tempo passado na carruagem, da residência do Conde até ali, não fora suficiente.

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Inspirei, fechei meus olhos, andei e expirei. Quando os abri de novo, estava de frente para a cornija da lareira e encarava um par de olhos verdes intensos. Os mesmos olhos que bisbilhotaram minha alma enquanto valsávamos no dia festa. Eu me aproximei com cuidado, notando que não importava a distância, eles me encaravam. Isso era perturbador.

Assustador não é? A voz me fez sobressaltar e voltar-me à porta, surpresa.

Controlei-me. Foi essa a intenção do pintor? devolvi rápido, sem lhe

dar chance de ver o quanto estava assustada de fato. Nunca soube disse sincero, estreitando a distância

entre nós. Porém, todos que olham esse retrato, o criticam. E você? ponderei. Acredita que capturou sua

essência? Os olhos verdes brilharam.

Penso que há uma acusação implícita nessa pergunta, e eu não me considero um bisbilhoteiro.

Nem mesmo no que diz respeito ao Conde? alfinetei-o. A porta se abriu e o mordomo entrou com uma salva de

prata e chá. Permita transmitir-lhe as desculpas de minha irmã.

Fez um gesto para que eu me sentasse no sofá castanho de veludo. Houve um compromisso inadiável...

O mordomo nos serviu e se retirou a um aceno de Abraham. Então, talvez eu deva voltar numa hora em que ela se

encontre rebati, devolvendo a porcelana à prata. Creio que isso não fará diferença, pois de certo sabe ou

conjectura, que não foi ela que lhe enviou o convite, mas sim eu. Bebeu da porcelana calmamente. Jamais ousaria menosprezar sua inteligência.

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Eu sorri, voltando a me entreter com o chá. Devo crer que tenho sido observada e que, mesmo não

encontrando motivo para tal, dei-lhe provas de minha vigorosa capacidade mental.

Está zombando de mim determinou. Não tanto quanto o senhor de mim ao me trazer aqui e

me dizer esse monte de baboseiras revidei seca. O que deseja de mim, sr. Van helsing?

Pode me chamar de Abraham... Não o tenho no meu circulo de amigos, por isso não acho

esse um tratamento correto. Sempre é tão intransigente? Só quando me menosprezam.

Ele sorriu e se ergueu do sofá. Os cabelos castanhos claros ondularam a altura do pescoço e ele se voltou ao quadro.

Eu a achei atraente desde a primeira vez que a vi... Certamente essa não é mais uma conversa adequada.

Abraham se virou tão rápido, que não deu dois passos e se pôs entre mim e a porta.

Não só a achei bela como me questionei que tipo de mulher seria para estar ao lado de Edmund.

Um sonoro tapa repercutiu no ar, e levei minhas mãos aos lábios. Céus, ele havia me tirado do sério.

Me perdoe... Pedi quando o vi por sua mão na marca sobre a bochecha.

Seus olhos verdes me fitaram atentamente. Não é mesmo a mulher que todos imaginaram ditou

sob um sorriso de triunfo. Eu não tinha a intenção de machucá-lo, mas não me

deixou outra alternativa prossegui sem lhe dar inicialmente atenção. O que disse?

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Srta. Sonieur o que sabe sobre o Conde? ele não repetiu o que dissera, mas eu ouvira muito bem. Achavam-me uma leviana.

Sei o que devo saber. E isso não deve ser muito ponderou astuto. Talvez sim, talvez não. Quantas refeições fazem juntos? Como? estranhei a pergunta. Que tipo de

questionamento era aquele? Pode parecer inoportuno, mas eu tenho estudado os

hábitos do Conde. Você é algum tipo de pervertido? Posso assegurá-la que tenho interesse em mulheres, não

em homens, se é isso que sugere. Meu coração acelerou quando diminuiu a distância entre

nós, quase nos colando. Eu creio que essa nossa conversa, há muito, passou do

normal. Ora, ele havia mentido para me trazer até ali, desconfiava

de Edmund e de forma alguma se portava como um cavalheiro!

Acredite... Sua respiração pesou sobre meu rosto. Ele possuía um raro cheiro de anis. Nossa conversa é de extrema relevância.

Relevância para quem? Para a senhorita sugeriu há centímetros de meu rosto.

Não nego que, a mim, muito me alegra tê-la tão perto, mas posso assegurar-lhe que minha preocupação maior é a sua vida.

Minha vida? Empurrei-o com toda força e me refugiei junto à lareira, bem próximo dos atiçadores.

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A senhorita desconhece a natureza do homem que acoberta, e que muito pode lhe ser fatal.

Certamente ele não se referia aos sentimentos de Edmund ou meus. Não tinha como conhecê-los, já que até cogitara que eu fosse uma leviana.

Devo dizer que também desconheço a sua, ainda que muito se fale sobre sua conduta como médico. E que, de fato, sempre seja enaltecendo-a. Porém, a do cavalheiro que deveria ser, asseguro-lhe, está longe de ser a mais digna.

É engraçado vê-la falar sobre dignidade quando está sob o teto de um homem que nem seu noivo é.

Eu estava pronta para acertá-lo novamente, quando a minha mão foi detida. Meu pulso foi envolvido por dedos largos e grossos, e meu braço dobrado de forma que meu corpo definitivamente se colou ao dele. Seu olhar adquirira um brilho selvagem e seus cabelos estavam espalhados sobre meu rosto, escondendo-nos do mundo exterior.

Ele me inspirava receio, mas seus músculos me impediam de raciocinar, imobilizavam não só meu corpo, mas minha alma. Como ele podia conseguir tal efeito?

Eu tinha que lutar, me livrar dele. Fechei meus olhos e respirei fundo. Senti o calor do rosto dele junto ao meu, o hálito quente quebrando minhas defesas... Eu parti os lábios e agora esperava por algo que nem sabia o que seria. Ele não era confiável, poderia fazer o que quisesse de mim e ninguém saberia.

O frio do mármore chocou-se com meu corpo no minuto seguinte e eu estava apoiada na cornija, com as mãos fixas em seus entalhes.

De onde eu estava só conseguia ver-lhe as costas largas e o corte perfeito do casaco.

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Por favor, srta. Sonieur, devo pedir que vá embora. Não cogitei refutar o pedido dele, aquela situação estava

fugindo ao controle. Contudo, eu me sentia com mais de um motivo para odiar Abraham Van Helsing!

Então? disse bebericando o chá.

Aparentemente a visita aos Van Helsing não foi o que esperava concedi após o longo silêncio dela à mesa.

Ela continuou entretida com seu dejejum. Pretende ficar silenciosa para sempre? Achei que estaria ansioso por minha volta. O som

de talheres inundou o ar. Para saber o que Isabella queria.

O tom era rascante, e eu estava longe de ser inocente do brilho escuro que aqueles olhos azuis emanavam no momento, ainda que não os visse. Certamente, me aguardara até tarde, mas eu não havia voltado aquela noite.

Um casal de renegados que, há noites, havia fazendo uma limpa em bêbados em East End. Eu havia me descuidado deles ao dedicar meu tempo a Milla e à árdua tarefa de tirar Abraham de meu encalço. Felizmente, ontem à noite agi sozinho, ainda que a intervenção do Van Helsing teria sido bem vinda, pois tornaram-se um bando. Havia mais de vinte deles, porém, apenas a mulher fugiu.

E apesar de tê-la procurado, não restava nenhum rastro no ar... Nenhum cheiro característico. Ela simplesmente desaparecera. Contudo... olho sobre os telhados de um Londres sonolenta em meio à névoa tenho certeza de que já encontrei aqueles olhos antes.

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Não foi uma noite calma para mim. Lise me visitou em sonhos, seus lábios deitaram sobre os meus vorazes. Filetes de sangue guarneciam sua boca, que passeava por meu tórax, enlouquecendo-me. Não era apenas a pele dela contra a minha, que me queimava, mas o rubro do sangue que pulsava no meu. Numa batida cada vez mais intensa, insana. Entrelacei meus dedos a seus cabelos escuros e puxei-a para mim.

Sua respiração espiralava no ar unida a minha, e eu observava, em êxtase, os veios escarlates que novamente se abriam para mim. Não era mais um convite, tão somente a ordem de que a tomasse, gota por gota... Nota por nota de lis. Fechei meus rubros e me entreguei a sensação quase dolorida de sorvê-la, sofregamente, entre os lábios. Líquido quente me preenchendo, chamando-me cada vez mais para me perder nela como homem.

Tomei-lhe um dos seios nas mãos, provei-lhe o peso, a textura e os gemidos que ela despejava no ar para mim. Rolei a palma de minha mão contra o bico, segurei-o firme e deixei a outra mão passear por seu ventre até o encontro de suas pernas. Até que não houvesse mais nenhuma resistência dela a mim.

O frio dos lençóis de linho era tão intenso quanto meu corpo desperto para o desejo e entregue a desilusão de um sonho arrebatador. Não havia nada quente naquele quarto, nem mesmo o fogo que insistia em se manter aceso, quando até mesmo a madeira lhe dispensava o último sopro de vida.

Varri o lençol de mim, da cama. Desfiz, em finas tiras, com as unhas, um travesseiro inteiro. Minha dor não era só física e relegada ao meu sexo. Eu me sentia extremamente só, era

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dor de uma alma incompleta. Meu sexo em riste era apenas a constatação evidente daquilo que não conseguia saciar... Minha sede de Lise.

Encarei os olhos azuis a minha frente, chamando-me à realidade e alheios a pergunta que martelava em minha mente: ela tinha ideia de quanto eu estava pronto para atacá-la? Que mesmo que o seu cheio não fosse de Lis, eu poderia revelar-lhe o lado mais obscuro de minha espécie?

Baixei minha mão esquerda e crispei-a contra minhas calças. Respirei fundo e passeei o dedo indicador pelo lábio inferior, buscando controle. Eu a sorveria até a última gota, sem me incomodar em confessar que adoraria fazê-lo.

Precisava me sentir vivo, ter o doce líquido rubro revolvendo minhas entranhas, vibrando em minhas veias. Ainda que não a amasse como a Lise, era para mim incontestável que a atração entre nós dois era forte o suficiente para desejá-la. Sua pele contra a mim; meu corpo preenchendo o dela.

A solidão é algo torturante, capaz de nos fazer perder a sanidade.

Não foi um convite de Isabella ela ditou, interrompendo o fluxo de meus pensamentos.

Não? retruquei ainda não tão concentrado como deveria.

Abraham me esperava para o chá prosseguiu em falsa serenidade. No fundo, testava-me.

E, por minha conturbação interna, estava longe de conseguir me manter sob controle diante de minha insatisfação em conhecer a verdade sobre seu encontro.

E foi agradável? tentei me manter indiferente.

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Talvez não tão agradável quanto se eu tivesse as respostas certas Milla retribuiu na mesma nota.

Que tipo de respostas Abraham queria? indaguei para ganhar tempo.

As do tipo pessoais. Havia um interesse particular sobre suas verdadeiras intenções...

Meus olhos estreitaram sobre ela, entrelaçando meus dedos sob o queixo.

Estou curioso para saber sua resposta ponderei sério.

Não havia nada a ser dito. Foi tão simples assim? retruquei pensativo. Não

acreditava que toda aquela encenação por parte do Van Helsing terminaria em algo tão insignificante.

Acontece... Seus azuis brilharam e eu soube que estava encrencado. Que não tinha nada para dizer. Realmente eu não estava enganado, ele havia dado um passo. Um belo passo. Eu não sei absolutamente nada sobre você.

Eu estava onde Abraham queria, contra a parede. Contudo, devo observar que certamente não havia como ele prever minha fragilidade emocional por conta de Lise. Esse não foi um passo dado por ele, mas por mim, quando deixei que Milla se tornasse importante em minha vida.

Lentamente, permiti que meus rubros aflorassem e, com um movimento hábil, estava com meu rosto sobre o dela, encarando aquelas turquesas.

Ele deveria ter sido melhor em seu alerta. Segurei-lhe o queixo e deixei os escarlates transbordarem nos azuis.

Escorreguei meus dedos entre seus fios louros, desfazendo a trança que os cingia ao alto de sua cabeça. Ela

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ofegou, cada músculo seu tencionado; cada veia sua trêmula, suspensa em ansiedade.

Beijei-lhe a testa, ela ofegou uma vez mais. Meu corpo agora estava febril, toda a sede pelo rubro havia voltado. Intensa, dolorida, capaz de fazer minhas presas aflorarem e arranharem lentamente a base de seu pescoço, quando meus lábios pararam de molhar sua pele e seu corpo estava mole entre meus dedos.

Milla não possuía um vestígio de receio. De medo de mim, e isso fazia minha alma ansiar por sorvê-la, cada vez mais. Ela partiu os lábios num convite e não tive como fugir da intensidade daqueles orbes azuis. Fitei-a com carinho e busquei por sua boca, arrancando-lhe um mínimo fio escarlate.

Um pequeno deleite para uma alma atormentada como a minha; um despertar da fome que, a muito, eu temia.

Eu lhe alertei que estava mais segura quando não sabia de nada sussurrei-lhe ao pé do ouvido, enquanto minha mão desatava-lhe os nós do corpete e corria livre dentro da chemise, tocando-lhe a ponta do seio. Ela arquejou, permitindo-me explorar mais o gosto de sua boca, calar-lhe os pensamentos.

Quem é você? resfolegou quando a deixei respirar. Tomei-a nos braços e depositei-a sobre a mesa, varrendo

metade do café da manhã com meu gesto. Ergui-lhe a barra da saia e debrucei-me sobre ela, sorvendo seu delicioso cheiro de jasmim.

Sou alguém que precisa de você sugeri, beijando-a mais uma vez. Sem deixá-la pensar, envolvendo sua língua com paixão. Deixando o imortal em mim, vir à pele.

Edmund...

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Ela gemeu meu nome quando toquei-lhe as coxas. Eu estava a um passo de tê-la completamente. Inteira. Em pele e sangue.

Então, o rosto de Lise permeou meus pensamentos. Sua boca tomou a minha e seu perfume se espalhou por tudo a minha volta.

Lise eu murmurei, procurando por ela em meio à névoa de meus pensamentos. Lise! gritei, levando as mãos à cabeça, alucinado por sentir o gosto dela, e foram os olhos aturdidos de Milla que encontrei.

Não havia mais presas ou o olhar escarlate em mim, apenas a frustração de mão poder cobrir o vazio de Lise. Eu não podia destruir Milla por um capricho. Não tinha o direito de roubar-lhe a vida em troca da minha efêmera felicidade.

Sem olhar para trás, eu a deixei sozinha. Em meio à comida, talheres de prata e falta de respostas.

Os dias seguiram cinzentos, Milla passou a adotar uma

postura mais reservada, mesmo nos treinos, que mantivemos. E, eu, evitei invadir o seu refúgio. Os sonhos com Lise se tornaram mais frequentes e eu passei a ter a certeza de que qualquer coisa que vivesse ao lado de Milla; se me permitisse tal envolvimento, estaria deixando de lado minhas convicções, e o que me faz ser um pouco mais humano. Eu deixaria apenas o imortal agir... Cego, louco, sedutor.

Aquela noite, eu deixei-lhe um bilhete sobre minha ausência. Havia recebido uma mensagem bem intrigante, e estava longe de ignorá-la. Com o cair da noite e o tilintar das horas mais obscuras, eu me dirigi à Brixton, lugar

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curioso para o encontro que iria ter. Embora imaginasse o que me levava a seguir as recomendações severas de quem o premeditara.

Brixton era o submundo de Londres. Você poderia encontrar qualquer tipo de estrangeiro em suas vielas; pouco desenvolvimento e uma facilidade grande de se movimentar sem ser percebido. Eu não poderia, de fato, pensar num lugar mais encantador para uma caçada. Ainda que aquele fosse apenas um encontro. Um interlúdio.

Fui deixado a alguns quarteirões do local. Sabia que qualquer descuido meu, tornaria previsível a minha entrada. Todavia, sou um homem discreto, de hábito contrito. Escorreguei pelas sombras até alcançar o pequeno, e duvidoso, estabelecimento cujas paredes, mesas e cadeiras possuíam inúmeras manchas de bebidas e lascas de madeiras a menos.

As janelas eram menos encardidas, que o avental da mulher que servia as bebidas. Senti o inusitado perfume de violetas e a cabeleira ruiva não deixou margem a duvidas de que o lugar era aquele mesmo.

Aproximei-me sem disfarçar minha presença, e um par de olhos avelãs se fixou em mim.

Truzzi... sibilei na direção dela. Alteza ela devolveu irônica. Achei que tínhamos um acordo.

Julliana sorriu-me de canto. Começara, diante daquele mesmo sorriso, a minha caçada. Nunca gostei dos sortilégios usados pela Sociedade de Órion para conseguir seus intentos, contudo, o que ela me trouxe era algo que não podia ser ignorado.

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Isso foi antes do Conselho se transformar num caos e a maioria dos vampiros estar fora de controle. E, deve imaginar, que com eles, os renegados também. Não há mais tempo para esperas. Voltou os olhos à bebida, e emendou: Seu irmão não costura alianças como você, e em breve, não será só Londres que estará infestada deles.

Sentei-me a sua frente, deixando meus sentidos em alerta.

E o que a Sociedade deseja que eu faça... agora? sentenciei sob um meio sorriso irônico.

Na verdade, não vim pelos de Órion determinou séria. Já brincou muito com a jovem, devemos resolver logo a questão com Thryn pausou. Ele está cada vez mais alerta, e há um homem que anda se metendo em nossos assuntos. Encarou-me. O cheiro de fumo de cachimbo barato preencheu o ar. E, pelo que andei apurando nos últimos dias, não parece querê-lo fora de sua vista. Por quê?

Bebi o resto da bebida num só gole. Ele nos será útil, da mesma forma que Milla.

Suas avelãs me fitaram atentamente. Era para ser apenas uma mulher qualquer, alteza ela

sibilava e, em parte, eu entendia o motivo. Não deveria se quer expô-la como alguém próxima a você.

Achei que isso daria mais veracidade à história e nos acobertaria. Tenho certeza de que o olhar de Thryn está mais sobre Milla do que já esteve sobre Lise.

E se acha capaz de abrir mão dela no momento certo? disparou sarcástica.

Não é a única que possui uma carta na manga, Truzzi... sugeri baixo. É melhor deixar as coisas nos termos que

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acordamos. Cumprirei com a minha parte, é isso que veio se certificar não é?

Eu havia me inclinado à frente e sorria sob um rubro intenso, e sobre um tampo oleado, onde mais bebida foi depositada para nós.

Ela, entretanto, recuou um pouco. Não ousaria menosprezá-lo, mas não posso fingir que

não vejo o quanto está envolvido com aquela mulher. Julliana jogou os longos cabelos ruivos para trás e gargalhou, fazendo todos os olhares duvidosos, ao nosso redor, nos fitarem penetrantes, e, a mim, resguardar meus rubros. Devo lembrá-lo de quem é e o que esperamos de você?

Meu sorriso era agora uma linha bem delineada de escárnio.

Enquanto ele se preocupa comigo, você tem podido agir nos subúrbios londrinos com facilidade. Baixei mais ainda a voz para que somente ela me ouvisse: Acredite, o jovem médico também terá sua participação para colocarmos as mãos em Thryn.

Eu não confio em humanos, e você também não deveria.

Desviei meu olhar do dela mantive o sorriso, pensando em Lise.

Eu aprendi a confiar, em alguns. Algum sinal de Thryn? Ele tem tomado suas precauções. Há muitas crias dele

por aí, mas poucos que sirvam realmente de rastro ao seu mestre determinou em avelãs flamejantes. Quanto a confiança que deposta em seu entusiasta, minha missão estava sendo divertida até a noite passada, quando pegou um deles.

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Abraham? Eu não poderia estar mais surpreso, fora o que sempre tentei evitar.

Está com uma cria de Thryn. Ela sorriu deliciada, estava guardando o melhor para o final. Vim lhe avisar que farei uma visita a ele.

Não a quero perto de Abraham sentenciei seco. Tinha certeza do passo que Van Helsing daria e o esperaria fazê-lo. Eu resolverei esse problema.

Eu aceitei sua ajuda quando chegou aqui. Contei a você tudo que sabia sobre o retorno de Thryn e seu desejo de ocupar lugar de Carl. Truzzi enviesou a sobrancelha profundamente. Mas o doutor está fora do nosso acordo.

É a inclusão de uma clausula mínima desafiei-a. O jogo que está jogando é perigoso, e eu não tenho

certeza de que irá mesmo até o final... Eu não esqueço meus compromissos, e por mais que

Milla seja uma bela mulher, meu coração seria incapaz de trair Elise. Ergui-me da mesa e me dirigi à saída.

Não falo do coração ditou a Truzzi, detendo minha passada e atirando algumas moedas à mesa. Sei que a falta do sangue reclamado pode causar a dependência do corpo pelo contato físico. E, quando o corpo reclama sua recompensa, a mente falha. Colocou o capuz sobre o rosto e passou por mim.

Eu não fui tão longe para por tudo a perder apenas pela vontade de possuir uma mulher! Cerrei meus punhos. Há algo muito maior em jogo, e eu não vou abrir mão de Elise novamente... arranhei a verdade.

É bom ouvi-lo falar como o Edmund que sempre foi. Admitir fraquezas não é algo comum nos imortais que conheci ela contrapôs sem interromper seus passos.

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Por isso eu vou lhe dar uma semana, alteza. Nenhum dia a mais. Não podemos correr o risco de perder Thryn.

Fitei-a abrir porta e deixar o estabelecimento, sentindo apenas o ar gélido da noite que trouxe as lembranças de Pest a minha mente.

por Milla

A porta da saleta se abriu, permitindo que Lyod introduzisse o sr. Abraham. Seus olhos verdes procuraram os meus sem cerimônia enquanto eu dispensava o mordomo com um mínimo assentimento.

Srta. Sonieur... Dispensou-me uma reverência. Tão somente por delicadeza retribui.

Continua contribuindo, fervorosamente, para que não o leve muito a sério, sr. Van Helsing delimitei contrafeita, indicando-lhe um assento. Ambos sabíamos que, o que o houvesse trazido ali, não seria demovido facilmente.

Confesso que não entendi seu intento. Sentou-se, encarando-me severo. Por certo, já que não me parece ter poderes fora do comum aos de uma bela mulher, ainda não sabe o que tenho a lhe dizer.

Por certo, e jamais menosprezando sua inteligência, também não é coincidência anunciar sua visita quando sabe que Edmund não está em casa.

Não o negarei. Ele sorriu minimamente. Mas insisto que não possui um mínimo motivo para temer minha presença.

Não? Arqueei minha sobrancelha. Era muita petulância.

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Excetuando, talvez, o risco que corro em ter meu coração inerte...

Não está me adulando em excesso, sir? Num único e preciso gesto, capturou minha mão e beijou-

lhe o dorso com carinho. Seus olhos nos meus. É um risco que vale a pena correr... Um frio cobriu

levemente minha espinha sob o veludo da voz dele. Milla. Meu estômago revirou, gelando, e meu corpo foi impelido a

ficar ereto. Minha mão deixou o calor da dele. Asseguro-lhe que é um risco eminente, e maior do que

supõe ditei, retirando meus azuis do contato visual. Edmund pode chegar a qualquer momento.

Então, seria melhor conversarmos em outro lugar. Imitou meu gesto. Permita-me que a convide para uma volta.

Mas sir... Estaremos sob a vista de todos sentenciou. E por que deveria aceitar? disse rascante. Havia algo

em Abraham que me irritava. Provou-me, mais de uma vez, não ser uma pessoa digna de minha confiança. E está determinado a destruir alguém que prezo demais...

Não estou a favor de Edmund, é fato, mas jamais atentaria contra sua reputação, senhorita. Sua voz soou séria demais; o que me chamou a atenção, fazendo-me fitá-lo.

Há algo que quero mostrar-lhe. A mim? Sim, algo que pode fazê-la acreditar em minhas boas

intenções. Em relação a quem? A você. Em outras palavras, algo que compromete Edmund.

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Gosta tanto dele assim ao ponto de negar qualquer evidência? Seu tom guardava algo além de incredulidade.

Claro que não. Não há nada que possa mudar o fato de que possuo uma dívida com o Conde.

Então não tem o que temer... Estendeu-me a mão. Ele continuará a salvo.

Estreitei meu olhar sobre ele e deixei-me guiar para fora da casa. Será que um dia me perdoaria pelo passo que estava dando?

O coche de Abraham traçou um caminho movimentado até a escola de Medicina, que eu conhecia de nome muito bem, pois não fora apenas um cadáver que eu vira ser vendido para os estudiosos.

Curiosamente, não paramos na entrada principal, e sim, junto a uma pequena porta rodeada por heras, na lateral do edifício. Por segundos, enquanto Abraham se dirigia ao cocheiro, pensei em interpelá-lo sobre estarmos ali apenas os dois. Contudo, decidi deixar de lado minha exigência inicial e seguir meus instintos.

Eu acreditava que ele havia descoberto algo que considerava muito importante para mudar minha opinião sobre o Conde. E, confesso, que estava curiosa em até aonde ele iria para isso. Ainda não estava convencida de que o súbito interesse de Abraham por mim não era fruto de algum plano para ficar mais perto de Edmund. Ainda assim, não atinava o motivo de tanto interesse de um pelo outro.

Edmund já provara inúmeras vezes que possuía apenas certa tolerância a Abraham. Não compreendia muito Edmund, apenas o tanto que meu coração se deixava envolver por sua personalidade sedutora. Embora, esses momentos sempre esbarrassem na tristeza que toldava seus olhos castanhos. Não

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era como se ele não quisesse estar comigo, mas como se parte dele fosse inatingível.

Acredito que aquela mulher, Elise, seja única capaz de romper aquela tristeza. A única que, definitivamente, o completa. Quando o vi com Isabella tive a certeza de que deveria manter meu coração longe do dele, pois eu jamais conseguiria agir como ela... Ter um homem em meus braços, mas não fazer parte de sua alma, de seus pensamentos a cada batida de um relógio.

O som do sapato de Abraham me chamou de volta à realidade. Atravessávamos um corredor cujas portas ostentavam nomes variados e paramos diante da placa que grafava Van Helsing no dourado. Abraham girou a maçaneta e um anfiteatro surgiu sob meus pés. As fileiras de cadeiras desciam em cinco camadas até o centro, onde havia uma mesa.

Abraham passou a minha frente e me ajudou a descer a diminuta escada. Passeou os olhos em meu rosto todo tempo enquanto eu me preocupava em pisar no meio do degrau estreito e não causar nenhum dano a mim ou a ele. Afinal, um passo em falso e rolaríamos até lá embaixo, efetivamente.

Diga-me... ele sentenciou, mantendo meus dedos unidos aos dele. Não está surpresa?

Eu segurava minha saia e tomava conta da altura a ser vencida quando devolvi:

Com o fato de romper sua promessa, não; por me trazer, certamente não... Chegamos a último obstáculo e fixei meu olhar em seus verdes. Vejamos se me surpreende no que pretende me mostrar.

Ele sorriu e inclinou-se para beijar minha mão. Era um belo homem, como costas largas e quadris levemente estreitos. A

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barba por fazer lhe dava um ar de desleixo momentâneo, negado pelo corte impecável de suas roupas. Os lábios roçaram levemente minha pele e me perdi na sensação poderosa de atrair dois homens tão diferentes... E ter a certeza de que, com um, certamente eu me perderia.

Farei tudo ao meu alcance para não decepcioná-la ele ditou sob jades profundas. Por favor... Pediu ao abrir a porta ao fundo do anfiteatro.

Fiz-lhe uma leve mesura e entrei na sala. Pilhas de livros travavam uma luta feroz com igual quantidade de vidros. Fosse alguém com estômago rebelde ou fraco, por natureza, se veria em maus lençóis ali dentro. Por um instante agradeci ter vivido em Whitechapel, jamais bancaria a tola diante de órgãos humanos ou animais conservados em formol.

Havia uma escrivaninha ao canto sob pilhas de papéis, e um bancada ao fundo, próxima à janela, onde havia outros vidros menores com líquidos coloridos. Muitos vermelhos, numa textura aparente de sangue.

Abraham se adiantou à mesa enquanto meus olhos se entretinham curiosos com tudo a minha volta.

Eu gostaria que lesse isso... Estendeu-me um maço de papéis. Antes de qualquer coisa que eu venha a lhe mostrar.

Corri meus azuis dele para os papéis, e novamente destes para seus verdes até tomar o maço para mim. Estreitei minhas sobrancelhas e procurei um acento, que prontamente ele arranjou. Eu não iria ler quase trinta páginas em pé.

Ele, ao contrário, pôs-se junto à janela e cruzou os braços, olhando para fora. A lua ia alta, ainda que entre nuvens, e algo dentro de mim parara de questionar o que uma mulher solteira estaria fazendo com um homem como o doutor, dentro daquelas paredes escuras e silenciosas.

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Todavia, a leitura havia me apreendido a atenção. A história sobre Vlad III cresceu diante dos meus olhos extremamente atrativa e misteriosa. Quando me permiti interromper brevemente a leitura, questionei-me o que de fato me trouxera ali... A possibilidade de desvendar Edmund ou as teorias de Abraham?

As horas passaram sem que eu percebesse, havia detalhes

desde a divisão da família Basarab até as formas aterradoras como Drakulya tratava seus inimigos. A história verdadeira do homem se fundia às lendas locais, relatadas pelo povo da época, que via em seu suserano um ser com poderes inimagináveis, devido a sua postura sempre imponente. Foi assim que sempre encarei qualquer lenda: um nome verdadeiro com vários feitos fantasiosos.

Todavia, admito que certos relatos provincianos me fizeram querer aprofundar mais na história. Eu agora estava diante de uma foto de Vlad e ele não me parecia familiar em nenhum ponto. E, bom, se Abraham acreditava que seres assim existiam, eu não tinha nada a acrescentar. Muito pelo contrário, sentia muitíssimo que desperdiçasse seu tempo e dinheiro em meros clichês.

Nunca encontraram um corpo na tumba ele cortou meu pensamento como uma faca.

Perdão? interpelei-o, deixando de lado ainda metade dos escritos. Agora inúmeros relatos de assassinatos em vários países, com perfurações semelhantes no pescoço, possuíam datas cada vez mais atuais.

O lugar onde supostamente ele foi enterrado... Não há relato de corpos encontrados no local, exceto animais.

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Sei que isso talvez devesse tornar sua busca um pouco mais concreta, mas não pode descartar a possibilidade dele nunca ter sido enterrado ali? pausei, percebendo que os olhos dele escureceram. De certo, seu lado científico deve alertá-lo sobre os fatos mais reais.

O que indica ser real também pode estar apoiado em outros fatos misteriosos ponderou Abraham.

Eu o encarei séria. O que tanto quer provar a mim, sr. Van Helsing? Não

quero concluir que me trouxe aqui apenas para ler essas histórias...

Fatos corrigiu. Que seja. Era só isso? contrapus. Histórias de um

suposto vampiro? Há relatos, como viu, de mortes com certas

características... Sim, há cortei-o seca. Mas aonde quer chegar com

isso? Conheço Edmund há anos iniciou, aproximando-se de

mim Imagino que ele não tenha lhe contado isso. Não... Internamente me questionei o motivo de não

saber daquele detalhe. Por hora, entretanto, apenas externei algo que não comprometesse Edmund: Nem havia motivo para isso.

Ele me avaliou intensamente, deixando-me inquieta. Nos conhecemos há dez anos, na Bélgica prosseguiu

com cuidado: Em um evento um tanto misterioso. Parece-me que mistério está se tornando a sua

especialidade mais do que a ciência em si... Doutor sugeri irônica e ele me lançou um olhar penetrante, que atravessou como uma descarga elétrica o meu corpo.

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Srta. Sonieur não sou um homem dado a invenções ou mentiras disse-me levemente irritado. Há, ainda, outra coisa que desejo lhe mostrar...

Não eram somente os papéis? alfinetei-o. Ele parecia gostar de me ver acuada; eu, por outro lado, gostava de ter as coisas sob controle.

Creio que já leu o suficiente para compreender aonde quero chegar, ainda que, conscientemente, lhe seja inteligível.

Eu realmente devo me opor a sua menção de que meu intelecto possa...

Jamais a traria aqui e revelaria meu maior segredo, se não concebesse que você fosse capaz de compreendê-lo. Ele cerrou os pulsos, contendo a frustração eminente que o atravessou diante de minhas palavras. Em olhos fechados, prosseguiu: Permite-me continuar?

Nos encaramos e eu poderia dizer que não era indiferente a sua presença, e a minha curiosidade, como gostaria de ser. Eu consenti lentamente, Abraham se tornara tão intrigante quanto Edmund.

Estávamos em um clube... Era tarde da noite e muitos frequentadores estavam bêbados. Não se discutia mais política além dos muitos goles de bebidas que eram vertidos

pausou. Eu confesso que meus sentidos não estavam plenamente ativos, mas jamais poderia esquecer o rosto daquele homem... Ele olhou para mim, mas não estava me vendo. Era como se visse além de mim, como se voltasse à cena. Ele entrou pelas sombras, seus olhos não demoraram mais que segundos para encontrar seu alvo. Contudo, não pareceu ter a mesma pressa em enfrentá-lo. Estávamos anestesiados, e foi impotente, que assisti as mesas e o chão se preencherem de sangue. Deixando um rastro viscoso até a

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mesa ao meu lado... Até... pausou. Nunca havia presenciado nada parecido.

Um homem? estranhei, ainda que sua expressão de horror me mostrasse que não mentia.

Sim... E ele não usou nada além de sua força e presas disse baixo, como se o terror daquela noite se espalhasse pela parede a nossa volta.

Você disse, presas? E os olhos dele estavam nos meus, brilhantes.

Eu só não tive o mesmo destino dos demais porque Edmund estava lá...

Ele também é um sobrevivente? indaguei surpresa que alguém pudesse lidar com algo como aquilo facilmente.

Os verdes escuros me fitaram em silêncio. Acho que chegou a hora de lhe mostrar algo mais, para

que o que tenho a dizer sobre Edmund não lhe pareça um despautério...

Sem nenhuma cerimônia, envolveu meu pulso com os dedos e me arrastou pela sala e, depois, pelo anfiteatro. Eu tropeçava em minha saia enquanto obrigava meu corpo a seguir o dele em passadas firmes pela escada e pelo corredor, até que alcançamos o ar livre e uma rajada de vento nos arrebatou.

Aonde vamos? perguntei, tentando conter meus cabelos que se embolavam, impedindo-me de ver onde pisava.

Precisa me prometer que não contará nada a ninguém, srta. Sonieur.

Não contarei balbuciei, entrando numa pequena construção nos fundos da escola. Era térrea e lembrava um armazém.

O vento parou de correr entre nós, mas ainda assobiava pelas frestas da madeira. Um cheiro fétido inundava o ar e

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tudo estava escuro a nossa volta. A mão de Abraham abandonou meu pulso e levei ambas as mãos ao entorno de meus braços. O cheiro estava cada vez mais forte e começava a me enjoar, era como se algo estivesse decompondo. Um animal, ou quem sabe... Um arrepio correu minha espinha e Abraham acendeu um lampião, que trouxe até mim.

Minhas pernas bambearam e o complemento da frase cobriu meus lábios, ainda que sem som: um corpo. Todavia, o que me estarreceu, foi o que o lampião iluminou quando Abraham o colocou a nossa frente. Havia algo oscilando a um metro do chão, amarrado com grossas correntes a duas colunas de madeira, que serviam de sustentação à estrutura do telhado.

O-o que é isso? Eu não podia negar que estava assustada.

Isso, srta. Sonieur, foi algo que cacei ontem à noite. Ele se afastou de mim e se colocou junto ao farnel de tecidos,

removendo a sua parte superior, e para meu desespero total, revelando uma grande cascata de cabelos castanhos enquanto era retirado. E, depois, deixando a mostra uma cabeça de mulher muito pálida, que tombou para o lado.

Ah meu Deus! grunhi, levando minhas mãos aos lábios e andando para trás. O que você fez a ela?

Eu? Ele me fitou surpreso e deu um passo em minha direção.

Não se aproxime retruquei. Não sou uma mulher qualquer afirmei convicta. Sou cheia de surpresas. Continuei recuando.

Acha que a matei? Ela está mesmo morta? indaguei indignada pela

audácia dele e analisando minha rota de fuga. Como eu

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pudera ser tão tola? Várias moças haviam sido atacadas em Whitechapel, e não conseguiam pegar o homem que as mutilava. Quem sabe o segredo de tal falha era porque ele era um médico?

Uma náusea profunda tomou conta de mim. Minha pele resfriou. Abraham Van Helsing era o assassino?

Srta. Sonieur, sei o que está pensando... Eu duvido muito tentei desviar a atenção dele.

Sabe, Edmund deve estar sentindo minha falta e... Droga! ele berrou e eu estremeci. Ele é um monstro!

Deixá-lo raivoso não era uma boa tática. Não há monstros aqui. Tentei ser complacente. Sim há ele retrucou e apontou para a mulher. Este é

um deles! Deus, como eu podia ter sido tão imprudente e ter confiado

em Abraham? Conjecturei várias teorias, mas todas péssimas. A porta por onde entramos estava trancada, e as janelas eram estreitas e raras; e o pior, não trouxera meu punhal.

Certo... Você acredita que ela seja um monstro. Ela é. E voltou-se para o corpo. E vou lhe provar.

De dentro do sobretudo, ele sacou um punhal e avançou contra a mulher, eu gritei enquanto o imitava em passo largos:

Abraham não! Então, ele fez algo absurdamente estranho, olhou para mim

e cortou seu antebraço, fazendo o sangue pingar pela bochecha e lábios da mulher. Como num espasmo, o corpo abriu os olhos enquanto a língua passeava afoita pelas gotas do líquido.

Horrorizada, eu recuei vários passos e vi a mulher se projetar na direção de Abraham, que voltou-se para mim, conforme fazia um torquinete em seu antebraço com o próprio lenço.

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Eu ainda olhava dele para a mulher, aterrorizada. Ele preocupava-se em dar um nó ao lenço quando ela esticou o braço e o segurou pela lapela do casaco. Soltei um grito estridente enquanto ele livrava-se do aperto.

Acredito... resfolegou que agora poderá me ouvir com mais atenção, srta. Sonieur.

Eu assenti, em semblante aflito, enquanto a criatura me sorria. Abraham fitou-a com desprezo, puxando-me para longe dela.

Foi exatamente isso, o que me atacou aquela noite no clube.

Eu não conseguia deixar de olhar a mulher, sua pele pálida e macilenta, seus olhos sem brilho e parte da fronte ainda coberta de sangue, que sua língua tentava inutilmente alcançar.

Não entendo... balbuciei. No mesmo instante em que Abraham se preparava para me

responder, um estrondo fez tremer todo lugar. Não só o chão, como as paredes e o teto, e um vento frio e cheiro de chuva adentrou o lugar. Não havia brilho na noite, ainda que o céu estivesse sobre parte do galpão.

Os verdes dele passearam por todo o lugar e, instintivamente, segurei em sua mão. A mulher gargalhou e uma voz poderosa preencheu todo lugar, sem que conseguíssemos designar de onde vinha.

Talvez eu possa lhe esclarecer algumas dúvidas, minha jovem.

Mestre... a mulher sibilou deliciada, fechando os olhos. Com a mesma presteza, Abraham se desvencilhou de mim e,

para minha total surpresa, sacou uma pistola. Fique atrás de mim.

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Parece que dessa vez não está com seu arsenal de caça, doutor a voz masculina prosseguiu.

Vocês se conhecem? Não tive como não indagar. Digamos que eu e doutor temos assuntos inacabados

a resposta veio de algum lugar a nossa frente. Deus sabe que tentei ignorá-lo... soou mais irônico do que deveria. Mas a curiosidade tende a meter os humanos em situações que não controlam.

E, sem um mínimo ruído, um homem moreno se destacou da escuridão do galpão.

Thryn... Você realmente o conhece? murmurei. Sim e não sentenciou o moreno, parando ao lado da

mulher. Como ele mesmo disse, estávamos num mesmo clube, numa certa data especial. Sorriu. Todavia, tenho certeza de que não me apresentei a nenhuma das pessoas ali. E, devo admitir, que não cometerei o mesmo erro esta noite, srta. Sonieur.

Oh... sabe meu nome estava surpresa. Não vai tocá-la. Abraham se colocou a minha frente.

Ora, eu não era uma mulher indefesa! Interessante... Ele voltou a sorrir, e mesmo que fosse

um belo homem com um porte austero, não gostei de vê-lo daquela forma. Não pensava que seria tão fácil.

Pegue sua cria e vá embora determinou o Van Helsing. Mestre, por favor... a mulher sibilou novamente. E,

com apenas uma mão, e os verdes sobre nós, ele quebrou-lhe o pescoço.

Mudança de planos Abraham... Avançou para nós, devagar, enquanto retirava uma espada do sobretudo. Você está com algo que eu desejo.

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Quando eu disser para correr, faça Abraham disse baixo. Há uma espada junto à porta, pegue-a. Será sua única chance de defesa.

Algo que vai me trazer Edmund completou, andando mais rápido.

Houve um estampido seguido da ordem: Corre.

Eu não olhei para trás, apenas fiz o que Abraham sentenciou, ainda que meu coração falhasse ao ouvir o segundo estampido. Tateei a madeira e quando senti o metal, o empunhei. Voltei-me para Abraham e tudo que vi foram aqueles verdes sobre mim.

Quer brincar, boneca? A espada dele desceu certeira, mas eu a impedi. Será que sabe mesmo o que está fazendo?

Eu respirava rápido, a espada em riste enquanto via Abraham se erguer do chão e vir em nossa direção. O louro fechou os olhos, murmurando:

Que tolo! Sorriu e os abriu em rubros para mim. Diga, princesa, o que prefere... Continuar fingindo que duelamos e eu o mato, sem nenhum remorso; ou prefere baixar essa espada e deixar o doutor vivo?

Eu tremi, hesitei, olhado dele para Abraham que se aproximava claudicante, com sangue escorrendo da perna.

Minha paciência é pequena, tem dois segundos... Eu vou disse, atirando a espada ao chão, na direção de

Abraham, que parou ao som do barulho do metal colidindo com o chão.

Boa menina. Ele se aproximou de mim e enlaçou-me a cintura, levando-me com ele, num salto preciso para cima do telhado.

Milla! Abraham ainda tentou me segurar.

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Dê um recado a Edmund, doutor... Se ele quiser a mulher de volta, que venha até mim.

A chuva voltou a cair impunemente sobre Londres, e minha última lembrança foi Abraham com a mão estirada em minha direção. Depois disso, as sombras nos engoliram.

***

Eu tamborilava os dedos no braço da poltrona, ouvindo o

crepitar da lenha na lareira e tentando mensurar a falta de senso de Milla ao sair com o doutor. Cada nervo meu gritava absurdos, não o nego. Minha parte humana, infelizmente, é extremamente machista e não comporta outro macho em mesmo território; todavia, a parte racional de meu ser estava conformada em abrir mão da jovem e seguir meu caminho, sem deixar-me alquebrar como a Truzzi sugerira.

Contudo, a sequencia de arremessos de uma mão contra a porta de entrada de minha casa, num ritmo frenético, aborreceu-me o suficiente para quase me fazer perder a compostura. Lyod deveria estar deitado a uma hora daquelas, não administra hábitos noturnos tão bem como eu. É um humano como outro qualquer. Atei firmemente o robe a minha cintura, irritado, e me ergui da poltrona, deixando a biblioteca no exato momento em que a porta foi aberta e um Van Helsing ensopado, gotejava sob o batente de minha porta.

Deixe-o comigo, Lyod... sentenciei, avançando na direção de ambos.

Como quiser milorde deferiu, olhando para mim e se curvando, para dar início a sua volta a ala dos empregados.

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Aproximei-me dele, alisando o cavanhaque para me acalmar. Certamente gostaria de matá-lo.

Onde está Milla? É o que você vai me dizer. Ele me encarou,

passando por mim e entrando na casa. Usei de meu sorriso mais sardônico para introduzi-lo na

biblioteca. Aparentemente, veio para conversar... Permita-me.

Indiquei-lhe a porta e ele assim prosseguiu. Aproximou-se rápido do fogo e esfregou as mãos. Era

certo que aquela chuva não lhe faria bem, encharcado como estava da cabeça aos pés. Havia uma casaca descansando sobre o espaldar da cadeira, junto à escrivaninha. Peguei-a e atirei-a a Abraham.

Vista ordenei. Antes que não saiba dizer nada sobre o que aconteceu a srta. Sonieur.

Ele se desfez de sua casaca e cobriu-se com a minha. Eu poderia dizer o mesmo a você rebateu irritado.

Nunca entendi porque a escolheu entre tantas mulheres de Whitechapel.

Eu sorri e me sentei na poltrona mais próxima, mordendo meu indicador. Era uma das perguntas que me fazia, desde que comecei a observá-la, mas apesar do início dessa história não ser muito claro em relação a isso, o que me levou a Whitechapel e, posteriormente, a Milla, foi exatamente o doutor. A conveniência de Sir Allan tê-la trazido até mim foi tão somente obra do destino. Uma daquelas armadilhas que você se pergunta se a sorte, que os humanos tanto clamam, existe.

Milla, de fato, não me era desconhecida completamente. Não desde que começara a querer saber mais sobre o

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doutor, já que ele resolvera se meter em meus negócios. Nada melhor do que conhecer os dele, porém, isso resultou em algo inusitado. Ainda que a jovem jamais tivesse travado qualquer diálogo com Abraham, como também não o fizera com inúmeros de seus admiradores secretos, este se demorava demasiado quando estava próximo a ela, quer fosse somente para sentir-lhe o perfume.

Como observador externo, eu poderia dizer que ele fazia visitas a mais a seus pacientes, do que o estado deles necessitava. Pobre doutor, deveria viver com receio de que sua família jamais a aceitasse. Francesa e pobre, uma agressão completa à sociedade em que Abraham circulava, assim como ao seu futuro, que não tenho dúvidas, será esplêndido.

Está posto, então, de forma devidamente clara que ainda que contando com a sorte ter Milla comigo não era só pela intensa fascinação que ela, como mulher, exercia em mim desde sempre, mas era um trunfo contra Abraham.

Ela é uma mulher fascinante sentenciei sério. Não é só bela, como é inteligente e tem espírito.

Não é só um jogo, não é? Desviou os verdes de mim. Achei que a queria para me afrontar.

As chamas da lareira estavam refletidas em seus olhos e, ouso dizer, também em seu coração.

Meu caro Abraham... prossegui, erguendo-me e pondo as mãos em seus ombros. Ela é encantadora sugeri ao pé de seu ouvido: Nenhum homem seria suficientemente idiota em negá-lo, ou mentir, dizendo não desejá-la.

Ele voltou-se para mim tão rápido, que eu não recuei e deixei-o envolver meu pescoço com suas mãos.

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Vá em frente... Ele apertou com força e eu realmente fiquei sem ar. Não

funciono como os vampiros. Devo ter assustado-o com isso, pois ele me soltou e recuou.

O que é você? Surpreso que não sou um vampiro...? Ajeitei meu

robe. É, não sou. Mas também não sou humano como você. Eu me curo rápido, ando a luz do dia, respiro, como, faço sexo... Sou capaz de manipular seu pensamento, os elementos; tenho uma velocidade surpreendente também. E, claro, preciso de sangue. Não tanto que precise sorvê-lo até a morte, e nem com tanta frequência que justifique ataques a humanos. Eu sou algo que definitivamente não conhece, Abraham, mas convivo com vocês desde que o mundo é mundo. Eu sou um imortal, e sinto muito que a minha espécie seja responsável por pessoas como Thryn estarem a solta em sua sociedade.

Como sente muito por Thryn estar a solta? Somos responsáveis por seres como Thryn. Vampiros? indagou. Mão necessariamente. Seus seguidores, sim, são o que

vocês chamam de vampiros. Quanto a ele existem possibilidades...

Como assim? esbravejou. É complicado explicar. Experimente. Ele foi adotado por um dos 7 Clãs Principais, porém,

nunca soubemos a origem de Thryn. Ele age como um vampiro, cria renegados que os servem, mas eu não tenho tanta certeza de que seja igual a eles.

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Pois é bom que saiba como matá-lo rangeu Abraham, os olhos em fúria. Porque se Milla morrer, não me importa quem ou o que você é, eu te mato.

Eu sorri.

***

Não foi difícil, desta vez, seguir o rastro de Thryn. O que deixava explícito, claramente, aos meus sentidos, seu convite para uma visita. Porém, tão bem quanto eu, ele sabia que não iria só, e Van Helsing não era toda ajuda de que eu precisava para enfrentá-lo.

O curioso, entretanto, foi o local peculiar que Thryn escolheu para utilizar de esconderijo: uma locomotiva, que sibilava sobre os trilhos na estação de King Cross. Ainda que Julliana me fitasse estranhamente, não havia um resquício de dúvida em mim que Thryn havia embarcado; e, muito provavelmente, não só ele.

Eu diria que foi uma excelente escolha ela ponderou ao passar por mim e Abraham, que a fitou longamente.

Ela também é uma de vocês? Estava pronto a responder, quando a Truzzi o fez, sob um

sorriso: Não... prosseguiu com um olhar intenso. Mas já

cheguei a cogitar ser um vampiro, e ter o prazer sublime de me livrar de pessoas inconvenientes.

Isso foi uma ameaça? Abraham sugeriu, subindo atrás dela.

Não, foi um aviso. Nesse exato momento, o trem e pôs em movimento.

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O corpo dela oscilou, e Abraham que estava logo atrás , enlaçou-a pela cintura num reflexo. Os olhos dela

flamejaram nos verdes, e pisou firme com a bota no último degrau, fazendo seu corpo inclinar para frente e deixar, bruscamente, os dedos do doutor.

Ela é o que afinal? Voltou-se para mim, levemente irritado.

Uma caçadora eu disse com cuidado. Desde que criamos o Conselho, e impomos regras a nossa sociedade, contamos com a ajuda da Sociedade de Órion. São humanos treinados por nós, para combater e caçar renegados, protegendo-nos. Deixando-nos no anonimato.

Eu não confio nela ditou sem rodeios. Eu não o culpo por isso disse, tomando a frente no

corredor. As sobrancelhas de Abraham arquearam.

Então, por que a trouxe? Porque ela é uma das melhores, e, nessa questão em

especial, temos um objetivo em comum. Passamos pelos corredores estreitos dos vagões leitos e,

quando íamos em direção aos de carga, a cabeleira ruiva da Truzzi surgiu em nosso campo de visão.

É pior do que eu imaginava... respirou rápido e o vagão chacoalhou, acelerando a locomotiva. Os olhos dela estavam nos meus, sérios. Não acredito que eles pensem deixar essas pessoas ilesas. ofegou.

Mas há pelo menos uma centena de pessoas embarcadas agitou-se o Van Helsing. Como vamos salvá-las?

Um sorriso torto brotou nos lábios da ruiva. Você é o doutor aqui...

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E você, me disseram, o gênio devolveu com igual sarcasmo.

Parem os dois intervi. Seus homens embarcaram antes de nós voltei-me para Julliana , estão posicionados?

Sim... Mas sou obrigada a dizer que eles estão em grande vantagem numérica.

Isso nunca foi um problema para você sentenciei irônico, fixando meus castanhos no doutor. Abraham, nós vamos avançar... Você vai descobrir um meio de descarrilar os outros vagões.

Mas... Milla sentenciou atônito. Pus minha mão no ombro dele.

Eu a manterei em segurança até que tenha feito o que lhe peço. E, num único movimento, retirei minha espada do sobretudo.

Inusitado, entretanto, foi a expressão de Abraham quando a Truzzi rolou suas duas foices no ar.

Você realmente sabe usar isso? Eu adoraria matar a sua curiosidade... Deu-lhe às

costas. Qualquer dia desses. E sumiu na passagem escura que se formava com a porta

do vagão aberta e o céu coberto de nuvens lá fora. A brisa soprou forte no corredor e eu a segui.

***

Relato de Abraham, ouvido após uma deliciosa chávena

num pequeno apartamento, recém-decorado, à beira do Tâmisa.

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Não havia gostado do comportamento da ruiva, tampouco de suas ameaças, mas tinha que admitir que Edmund estava certo ao me delegar aquela função. Passar pelos vagões repletos de pessoas, entretia minha mente com uma necessidade latente de salvar vidas.

Do terceiro, em diante, eu apenas corria. Precisava alcançar o condutor e tentar fazê-lo interromper a viagem. Um descarrilamento, por si só, poderia ocasionar muitas vítimas.

A velocidade do trem parecia aumentar cada vez mais, e, ao cruzar o acesso à locomotiva, algo aterrador preencheu meu campo de visão, não havia uma só pessoa no comando. O trem sibilava no aço da ferrovia, seguindo seus instintos.

Apavorado, desfiz o nó do lenço em meu pescoço e dobrei minhas mangas, tentando entender o complexo esquema de alavancas que chacoalhavam a minha frente. Não há muita criatividade maquinaria em meu ser, admito. Tentei mover duas e tudo o que o trem fez, foi aumentar a velocidade e emitir um longo e ruidoso apito.

Desabotoei alguns botões de minha camisa e me posicionei, com uma boa base de abertura de pernas, da alavanca maior, situada próxima à passagem entre os vagões. Maior, imponente, devia ser a resposta para minhas preces. Com certo esforço, movi-a, e, para meu desgosto total, a locomotiva estalou, soltando-se do resto do trem.

Não tive propriamente tempo para pensar, apenas me atirei em direção à porta do vagão, batendo com metade do corpo contra o chão e as pernas ao ar. Agarrei-me à grade da porta e icei-me, lívido, da promessa certa de colidir com os trilhos, que ainda corriam sob mim.

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A locomotiva, entretanto, se perdia no horizonte enquanto me questionava o que fazer com aquelas pessoas. Os vagões foram diminuindo a velocidade, e agora estávamos no meio do nada, com centenas de pessoas à disposição de uma horda de vampiros. Não era, certamente, o que consideraria uma missão cumprida.

***

Relato de Edmund Ernöyi

Havíamos colocado os homens da Truzzi no teto dos dois vagões de carga, e estávamos ao ponto de entrar, quando o trem inteiro sacolejou e um apito eclodiu no ar. A ruiva apenas fechou os olhos e rosnou:

Parece que o doutor não sabe de que lado está... A porta de comunicação do vagão se abriu e um par de

olhos vermelhos nos fitou de dentro da escuridão, apenas o brilho da lua contra o aço refletiu em meus olhos. O ar se inundou do cheiro férreo de sangue e um rastro rubro marcou nossos passos para dentro do vagão.

O tilintar do aço reverberava pelas paredes, eclodindo como uma sinfonia deliciosa aos nossos sentidos. Tanto eu como a Truzzi éramos caçadores natos, e a adrenalina liberada pelo combate, compelia-nos não nego a sermos ainda mais audazes.

Na minha mente, entretanto, algo martelava: eu esperava mais... Thryn, por todas as suas ações, era um inimigo respeitável, que em nada poderia ou deveria ser

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subestimado. Todavia, ou ele o fazia a nós, ou aquele trem e tudo ao nosso redor era apenas uma encenação.

Se ele realmente quisesse nos pôr fora de combate, não seria tão fácil. Não haveriam poucas surpresas. E, ainda que não soubesse suas reais intenções, e nem se Julliana partilhava de minhas conjecturas, poderia afirmar que éramos apenas convidados a entrar mais e mais num jogo.

Lá fora, os sons não eram distintos dos nossos, e isso me deixava inquieto. Ao final do segundo vagão, quando minha lâmina ceifou um rapaz ruivo ao meio, foi o mesmo que calar a noite. Apenas as avelãs da caçadora me fitaram num brilho escuro, sob uma respiração ofegante.

Eu estava ao lado da porta de comunicação para o último vagão, e ela apenas assentiu para que eu a abrisse. As foices erguidas no ar à espera do que viria. Quis alertá-la quando deixei partir dos meus lábios antes de sentir o peso sobre mim, de um corpo conhecido:

Não gosto disso... O baque do meu copo contra o chão foi seco, e o

perfume doce que invadiu meus sentidos, me fez fechar os olhos por segundos, inibindo-os. Impedindo, momentaneamente, minha reação. Provando-o lentamente, até abri-los e me deparar com um par de presas que tentava, avidamente, morder-me.

Minha mente ainda assimilava o rosto distorcido sobre o meu. A face do terror exposta em traços delicados, cuja bocarra aberta fazia qualquer pensamento correto meu, afugentar-se. Seria uma sina? Eu sempre chegaria tarde?

Milla... murmurei convicto de que não me ouviria, tão somente para manter minha sanidade alerta.

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E, então, Edmund? Houve um esgar que encobriu minhas palavras por segundos, e ainda que não os divisasse, eu sabia que Thryn estava com a Truzzi em seus braços. O tilintar das foices cessara. O que acha de Milla, agora? ele completou após o som do corpo da caçadora colidir com a parede oposta. Caindo às minhas costas.

Devido a sua transformação recente, Milla era incapaz de raciocinar, seu corpo tão somente implorava por sangue fresco. E nada é pior do que a ardência de suas veias, como se um fogo incessante corrompesse sua alma faminta, até que fosse calada, saciada pelo rubro. E eu era incapaz de reagir a ela, sentia-me culpado... Mais uma vez culpado.

A risada de Thryn esvaiu meus pensamentos e ecoou juntamente com suas palavras no silêncio que nos envolvia, quebrado apenas pelo vento, que passara a circular pelo vagão com a porta aberta:

Seu silêncio é reconfortante, sabia? Nova risada. Você nunca soube tirar proveito desses momentos.

Ouvi os passos dele mais próximos e pude ver-lhe os bicos dos sapatos quando sugeriu a Milla, junto a sua orelha:

Não o mate, entendeu? Os olhos dela estavam rubros e arregalados, e eu a

mantinha segura pelos ombros, embora lutasse ferrenhamente para se libertar e suas unhas infligissem vez ou outra, flagelos aos meus braços. Eu não tinha a mínima intenção de machucá-la.

Faça o que sabe fazer de melhor, Edmund... Seja bonzinho e alimente-a. Thryn se voltou para porta de comunicação e eu agora podia ver seu rosto sádico sob a luz do luar, e ele sentenciou sob um sorriso: Essa não é,

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realmente, uma despedida Edmund. Temos um negócio inacabado para acertar. Mais não aqui, não agora. Seus olhos verdes brilharam. Precisamos rever conceitos, alteza. Fez uma pequena reverência e concluiu: Por enquanto, entretanto, aproveite a noite e a companhia...

Milla investia contra mim com mais força, ensandecida, incapaz de entender o que acontecia. Agia por fome, por necessidade intrínseca, e qualquer coisa diferente disso, era descartada. Eu ainda processava a melhor maneira de pô-la fora de combate quando algo zuniu sobre nós, acertando-a no pescoço. O corpo dela cambaleou para trás e caiu, e a voz de Abraham inundou o vagão:

Eu nunca o perdoarei pelo que fez a ela. Thryn... a voz fraca da Truzzy evitou nosso embate

naquele momento. Resolvi ignorar o Van Helsing e me ergui rápido, indo até a caçadora.

Milla estava fora de ação e não havia muito que fazer por ela, exceto o pesar em meu coração. Ela estava com um corte profundo no abdômen e seus olhos estavam cerrados. Fazia um esforço incomum para respirar, e eu praguejei:

Droga, doutor... Pare de resmungar e veja o que pode fazer. Não podemos perdê-la! A pele dela esfriava rapidamente, conforme seu coração falseava.

Os passos duros de Van Helsing acabaram por soar cada vez mais próximos, e ele se agachou ao meu lado, afastando-me com o próprio corpo enquanto rangia:

Veja o que pode fazer por Milla... Aquele era apenas um dardo tranquilizante, como fiz aos outros.

Entendendo que não haveria outro diálogo possível entre nós, naquele momento, consenti, voltando-me para onde ela estava caída. Minha mente ainda não conseguia aceitar

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nada daquilo. Contudo, meus castanhos se surpreenderam alargados quando encontraram o vazio no chão do vagão.

Num movimento único alcancei a porta de comunicação do vagão e lancei meu corpo para fora, esgueirando-me por sua lateral até me içar ao teto do vagão e me colocar ao lado dos companheiros da Truzzi e alguns corpos dilacerados, fitando a carruagem que avançava paralelamente ao trem, deixando-nos para trás. O vento fustigava meus cabelos e soltei um longo suspiro, cerrando meus punhos e irritado comigo mesmo.

Era certo que veria Thryn, novamente...

***

Eu não sei quando a noite se tornou rubra, nem quando passei apenas a viver nela. Lembro-me de pensar em Edmund e da dor intensa que logo depois dominou meu corpo e mente, evanescendo tudo.

Sinto falta da luz do sol, da brisa do poente e dos dias de outono. Eu adoraria vê-lo mais uma vez e dizer que sinto muito... O tanto que sinto.

O vapor que nos levou ao outro lado do oceano partiu ainda aquela noite, sob a chuva fina no cais de Liverpool. Não há um dia em que não anseie por tudo que tinha, pela vida e por ele.

Todavia, o que atormenta meus dias, é saber que me transformei naquilo que ele mais odeia... Em sua caça. E, um dia, serei destruída pelas mãos que me criaram. Eu estou preparada e você?

Pode me ver sorrir? Pode sentir meu toque?

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Ouvir minha voz? A doce tentação de me ver e me querer dominando cada célula sua?

Eu sou uma criatura da noite. Eu me alimento de você, e por mais que você lute, fuja, eu irei te seduzir...