AROUCA, Sergio - O Dilema Preventivista

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tese doutorado faculdade saúde pública - UNICAMP/BRASIL

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  • Sergio Arouca

    O D ilema P reventivistaContribuio para a compreenso

    e crtica da Medicina Preventiva

  • 2003 Editora UNESP

    Direitos de publicao reservados :Fundao Editora da UNESP (FEU)Praa da S, 108 01001-900 - So Paulo - SP Tel.: (Oxxl 1) 3242-7171 Fax: (Oxxl 1)3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SR Brasil)

    Arouca, Srgio, 1942-2003.

    O dilema preventivista: contribuio para a compreenso e crtica

    da medicina preventiva / Srgio Arouca. - So Paulo: Editora UNESP;

    Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003.

    Bibliografia.

    ISBN 85-7139-507-1 (UNESP)

    ISBN 85-7541-036-9 (FIOCRUZ)

    1. Medicina - Histria 2. Medicina preventiva - Brasil 3. Sade

    pblica - Brasil I. Ttulo.

    CDD-614.440981

    03-6890 NLM-WA 100

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Brasil: Medicina preventiva: Sade pblica 614.440981

    Editoras afiliadas:

    Asoctacln de E d itoriales U niversitrias de A m rica Latina y el C aribe

    Associao Brasileira das Editoras Universitrias

  • Captulo IIIA emergncia da Medicina Preventiva

    A Medicina Preventiva como formao discursiva emerge em um campo formado por trs vertentes: a primeira, a Higiene, que faz o seu aparecimento no sculo XIX, intimamente ligada com o desenvolvimento do capitalismo e com a ideologia liberal; a segunda, a discusso dqs custos da ateno mdica, nas dcadas de 1930 e 1940 nos Estados Unidos, j sob uma nova diviso de poder internacional e na prpria dinmica da Grande Depresso, que vai configurar o aparecimento do Estado interventor (Poulantzas, 1969); e a terceira, o aparecimento de uma redefinio das responsabilidades mdicas surgida no interior da educao mdica.

    Nossa preocupao neste captulo compreender como a Medicina Preventiva situa-se em relao s vertentes, ou seja, como se d a substituio da Higiene, e as respostas ao custo da Ateno Mdica, atravs de um discurso que instaura uma atitude que essencialmente normativa e que, rompendo com as barreiras geogrficas da sua origem, ganha uma dimenso continental.

    Para isso, estudaremos a especificidade do discurso da Higiene em sua articulao com a ideologia liberal, as condies do aparecimento da crtica medicina liberal nas dcadas de 1930 e 1940 nos Estados Unidos e, finalmente, a redefinio dos contornos do profissional mdico que responderia a essas crticas.

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    Higiene

    Sigerist (1974) considera que para cada poca histrica possvel relacionar o conceito de Higiene com o contexto cultural e filosfico, uma vez que o primeiro est determinado pela Weltanschaung da poca. O autor exemplifica essas relaes com diferentes civilizaes, como a grega, a romana, a judaica etc., porm, para a nossa anlise, importante situar dois perodos.

    Durante o absolutismo (Hobbes, 1974), o cuidado dos cidados era uma responsabilidade do Estado, o soberano ordenava o que devia ser feito, da mesma maneira que controlava as relaes comerciais, dando aos comerciantes as garantias e a estabilidade necessrias para os seus negcios. Durante esse perodo, tanto na Inglaterra como no continente, quando os governos procuram formas de aumentar a sua riqueza e o poder nacional, que comeam a surgir algumas proposies sobre a Medicina e a Higiene.

    Na Inglaterra, Pety (Rosen, 1963) propunha um primeiro modelo de planejamento de sade, constando de morbidade e mortalidade, que definissem as necessidades de atendimento mdico. J. Beller, um mercador, colocava como soluo para o desperdcio de recursos humanos causados pelas doenas a criao de um instituto com hospitais que atendessem as populaes mais pobres. Porm, o trabalho fundamental que caracteriza essa poca o de Johann Peter Franck sobre Poltica Mdica, que representava um sistema completo de normas a serem seguidas. Nesse perodo, no dizer de Sigerist, faz-se uma higiene desde arriba".

    Em oposio s idias absolutistas, aparece o Contrato social de Jean- Jaques Rousseau (1973), que considerava serem os homens bons em sua essncia, quando viviam em um estado natural, e que o fundamental da natureza humana a liberdade. Assim, a relao com o Estado uma relao de alienao vontade geral, que a do bem comum, sendo o Estado o depositrio dessa alienao.

    Os homens seriam doentes por ignorncia, surgindo a educao com um papel central na obra desse pensador, como uma das formas de exercer e desenvolver o exerccio da liberdade. Surge, no dizer de Sigerist, uma "higiene desde abajo", que pretende ensinar ao povo as medidas higinicas, atravs de inmeras publicaes.

    O desenvolvimento das idias de Rousseau culminou na Revoluo Francesa, com a qual se desenvolvem intensas atividades sanitrias e o

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    florescimento de concepes polticas da Medicina e da Higiene, como a de Lanthenas, e o controle da ateno mdica por parte da populao. Na Inglaterra, tomam-se medidas que so simultaneamente concesses e formas de controle da classe trabalhadora. Na Alemanha, o conceito de Medicina Social um conceito poltico, que fez que vrios dos seus defensores lutassem pessoalmente nas barricadas de 1848 pela liberdade e pelo socialismo, como Newman e Virchow, tendo as associaes camponesas lutado por assistncia mdica e fornecimento gratuito de medicamentos (Engels, 1960).

    O que queremos especificar que a higiene se caracteriza, no sculo xix, por uma ligao com as ideologias liberais que afirmavam as responsabilidades individuais perante a sade e como um conceito poltico nos movimentos socialistas da poca. Porm,

    la coincidncia final entre la ideologia dei liberalismo burgus com su Victoria sobre el cerrado mundo aristocrtico y sobre el enipuje proletrio socializante, y la igualmente liberal y individualista que empregna la teoria y prtica de la medicina, convertir a los mdicos en aliados y defensores naturales de este orden social burgus. (Campos & Garcia, 1973)

    Essa a higiene do fim do sculo xix e incio do sculo XX.A Higiene, entendida no sentido mais geral e etimolgico, a arte de

    conservar a vida, segundo Becquerel (1883) em um tratado em 1883, "Lhygine est la science que traite de la sant dans le double but de sa conservation et de son perfectionnement" e em Arnould (1883), que "Lhygine est ltude des rapports sanitaires de lhomme avec le monde extrieur et des moyens de faire contribuer ces rapports la viabilit de lindividu et de lespce".

    Em vrios livros da primeira metade do sculo xx, a Medicina Preventiva aparecia como uma disciplina, parte ou setor da Higiene. Assim, em obra publicada em 1913, Peixoto (1938), no Brasil, considerava a Higiene como a nova medicina. Enquanto a outra, a velha medicina, procurava, muitas vezes sem o conseguir, curar as doenas, esta trata da sade, para evitar a doena. mais fcil, e seguro. Dessa maneira, a Medicina Preventiva aparece quando " necessrio cuidar dos meios de a defender (a sade) quando em possibilidade de ser agredida ou j em perigo".

    Ponce & Mendez (1950) colocam a Medicina Preventiva como uma das subdivises da Higiene especial, conceituando-a como "la medicina como medio de prevenir las enfermedades, no de curalas (sueros y vacinas)

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    A Higiene mantinha um duplo discurso: Io) afirmando a sua prpria natureza, as suas responsabilidades e fundamentalmente o seu destino inexorvel para a soluo de um conjunto de problemas que no tinham sido resolvidos pela "velha medicina", tampouco por outras instncias da sociedade.

    Peixoto (1938) estabelece as seguintes fases histricas referentes aos conceitos de sade e doena:

    I Ciclo Religioso: temor do doente e da doena. A doena um castigo, punio divina. flagelo, obscuro e misterioso, aliquod obscurum et.divinum: deve ser purgado com preces e exorcismos. O doente um sacrlego e deve ser afugentado e banido. Assim acontecia com os epilpticos, os leprosos, os sifilticos. Na fase herica do cristianismo, esse modo de sentir culminou num conceito aparentemente contraditrio - o tema da doena, sinal da clera divina, e resignao do doente, pois o sofrimento era o caminho da perfeio.

    II Ciclo Mdico: defesa do doente contra a doena. A doena dano e perigo individual; o doente , porm, digno de piedade: res sacra miser. Trat- lo caridosamente servir a Deus, adquirindo graas: procurava-se cur-la. Da, os hospitais e lazaretos para os tratamentos adequados e o decorrente desenvolvimento da medicina que acompanhou essa fase da Higiene, principalmente devida ao cristianismo catlico e reformado.

    III Ciclo Profiltico: defesa do so contra a doena. A doena perigo pblico; o doente continua a merecer a caridade e, mais, deve-se-lhe assistncia, por solidariedade, como parte social, mas no deve ser nocivo comunidade. nessa fase que se pronuncia a independncia da Higiene da Medicina propriamente dita; vm da as prticas de isolamento, quarentenas, desinfeco, notificao compulsria, vacinas coletivas.

    IV Ciclo Econmico: extino da doena. A doena, sendo mal evitvel, deve ser combatida: para o indivduo parte, o sofrimento nus considervel: o doente instrumento ou mquina de trabalho e riqueza parada, estragado ou perdido. Para a sociedade, nus considervel e constante porque todos os males e prejuzos individuais se repetem sem cessar. Da, a doena no deve existir: ao invs de se premunirem contra ela os indivduos, a comunidade se emprenhariam em extermin-las.

    As leis sociais de seguro e previdncia, as campanhas de saneamento marcam essa direo. Essa fase, que a de agora e ser notadamente a de amanh, separa definitivamente a Higiene da Medicina.

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    a persistncia de um mito: o da extino e controle completo das doenas, tendo como objetivo final a morte natural (Illich, 1973; Aris, 1973), a vida fluindo para um fim almejado, sem os percalos das enfermidades, a retomada moderna da fonte da juventude no perdida em algum lugar, espera de aventureiros, mas ali prxima a cada indivduo que, atravs de um conjunto de normas particulares e coletivas, realizaria o velho sonho.

    Mas, para isso, a Higiene separa-se da Medicina e a critica:

    Porque, dentre os mdicos, s a esquerda da classe, os charlates, so conscientes: sabem que enganam; os outros ... sofrem a sorte comum dos doentes, so enganados. Enganados pelo romance de uma cincia engenhosamente enfeitada, construda como aquela esttua mitolgica que iludiu ao amor do prprio estaturio; enganados principalmente pela credulidade aflita do sofrimento que na hora da dor ou do perigo apela para ns, como para a mesma salvao. (Peixoto, 1938)

    Portanto, afirmando as suas possibilidades diante de um objeto aumentado que se confunde com a prpria vida, a Higiene define e demarca os limites da Medicina dentro de sua natureza episdica e das limitaes de sua capacidade em solucionar os problemas desta prpria vida. J aparecem nesse discurso as relaes estabelecidas da sade com o processo produtivo em que o homem um dos fatores de produo.

    Como viso histrica, a Higiene coloca uma histria teleolgica da medicina, caminhando para a realizao de um conceito de sade positiva, permeando todas as condutas humanas, e que na fase moderna, ela prpria, a Higiene, seria o instrumento deste "telos", participando da formao de uma conscincia sanitria.

    Afirmando o seu mbito como superpondo-se ao espao e ao tempo da prpria vida, a Higiene discursa normativamente sobre esta vida; assim, no tratado de Becquerel (1883), encontramos os seguintes temas:

    a) Estudo do homem no estado de sade:1 das idades, do sexo, da constituio e temperamento, das idiossin

    crasias, da hereditariedade, dos hbitos, das raas e das profisses.b) Assuntos de Higiene - em que se trata da atmosfera, do solo, do

    calor, do clima, das guas etc., das habitaes, vestimentas, alimentao, exerccios, percepo, genitais e excretas.

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    c) Higiene aplicada - em que se discuta especificamente a Higiene do trabalho.

    Tumer (1964) relaciona o conhecimento (cultura sanitria) com a sade:

    Se obtendr, evidentemente, una salud mejor no por la simple adquisicin de conocimientos de higiene, sino por su aplicacin. Th salud, depende, no de lo que sabes, sino do lo que haces, se conserva gradas a una manera sana de vivir, a un rgimen higinico constante, y haciendo lo que debes, no simplemente pensndolo, desendolo, o sabiendolo.

    Assim, a Higiene coloca seu discurso em um espao constitudo por um sistema de eixos, em que no vertical ocorre o processo cronolgico do desenvolvimento humano com suas caractersticas particulares, o indivduo em movimento na dinmica dos seus caracteres psicobiolgicos. No eixo horizontal, est o conjunto de atividades desenvolvidas por esse indivduo como uma totalidade que trabalha, alimenta, reproduz e se diverte em um dado ambiente.

    Para cada ponto desse espao, que caracteriza um indivduo no conjunto de sua vida, a Higiene possui normas, recomendaes medidas que, se aplicadas, fariam que esse indivduo se mantivesse em estado de sade at a morte natural.

    A Higiene no uma cincia, mas a aplicao de todo o conjunto das cincias na manuteno do bem-estar, mito de uma unidade do conhecimento em prol do bem viver, espao que se superpe e acompanha a vida, difusa no prprio espao dos homens.

    Totalidade interdisciplinar, saber que se adere vida, a Higiene cria, nesse duplo discurso, uma aluso-iluso s condies reais de existncia, aluso na medida em que discursa sobre o valor de uso da prpria vida na amplitude de suas 24 horas dirias (Ponce & Mendez, 1950):

    El hombre que trabaja necesita hallar en cl hogar la variante de la rutina diaria que sea un sedante espiritual y estimule sus habilidades o inclinaciones naturales (pintura, jardineria, carpintera, avicultura, etc.) en tal forma que aleje su mente dei trajn habitual.

    Adems la fatiga produce la disminucin dei rendimiento de los obreros y por lo tanto de las fbricas, y crea el ambiente propicio para los accidentes de trabajo y para los movimientos gremiales.

    Los salones destinados para aulas deben ser amplios; las paredes pintadas de colores claras pero sin brillo; los ngulos redondeados para facilitar la limpieza.

    La construccin de viviendas para obreros, cercanas a los grandes establecimientos industriales y costeadas por estos procura el acercamiento dei capital y dei trabajo.

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    Iluso, enquanto centra nas medidas higinicas e em uma cultura higinica a soluo dos problemas que esto nas prprias condies de existncia e, portanto, representando uma viso de mundo ideolgico que, no conjunto de suas representaes, abstrai as causaes para afirmar uma soluo normativa, vindo da unidade das cincias, enquanto discursa sobre as alternativas de mudana das condies de existncia, dentro da prpria estrutura que determina essas mesmas condies de existncia. /'

    A diviso tcnica e social do trabalho, a compartimentalizao do conhecimento em disciplinas e cincias que possuem, cada um em seu prprio interior, um mecanismo de aluso-iluso que realiza um recorte sobre o saber, fazem que a Higiene como projeto de sntese se dissolva em suas partes. o fim dos "tratados", como o fim da prpria Higiene, no mais aderindo prpria vida, mas absorvida na multiplicidade das disciplinas. Operao da estrutura que diversifica contra a pretenso da sntese.

    A pretenso de um encontro dos indivduos com uma sntese das cincias, visando o seu bem-estar, pressupe um encontro homogneo desses indivduos em uma relao de igualdade. O projeto da Higiene, em um\ sociedade dividida em classes, com o conhecimento monopolizado no interior das profisses, fez que, na prtica, a Higiene fosse dissolvida e, no ensino, fosse substituda pela Medicina Preventiva.

    Referindo-se ao ensino, Peixoto (1938) desce das promessas e cai na realidade da escola mdica:

    ...Anatomia, Histologia, Patologia geral, Anatomia Patolgica, Teraputica, Clnicas, Medicina Legal, s achamos a preocupao tenaz, obsidente, exclusiva, - da mgua, que chamamos leso - , da morte, que no consideramos ainda o fim de tudo, pois a exploramos nas seces, nas incluses, nos crtes, nos preparados, nas projees, nas gravuras, nos tratados, nas ctedras, nas academias e sociedades sbias. A gente no se cura, mas fica bem informada de que morreu.

    E prossegue:

    Neste fnebre aparelho, como ironia macabra de humorista, uma s, esta singular cadeira de Higiene, dedicada sade. do que menos se trata, naturalmente, nas Faculdades de Medicina; o que no nos importa, est bem visto, e mdicos, consagrados doena e morte...

    Dessa maneira, a Higiene teve, nesse princpio de sculo, o seu desaparecimento determinado, pelo avano do conhecimento da velha medici

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    na", pelo aprofundamento da diviso tcnica do trabalho em uma sociedade de classes, pela compartimentalizao do conhecimento cientfico e pelo seu isolamento dentro das escolas mdicas.

    O desenvolvimento central

    A sucesso cronolgica do aparecimento da Medicina Preventiva, em sua forma estrutural, diferenciando-se das condutas preventivas e superpondo-se ao prprio campo da medicina, pode ser dividida em duas fases. A primeira, que se inicia aps a Primeira Grande Guerra, com a reforma dos currculos das escolas mdicas na Gr-Bretanha, e a segunda fase, aps a Segunda Grande Guerra, com a realizao dos Seminrios Internacionais sobre Medicina Preventiva.

    Em 1922, o currculo das escolas mdicas na Gr-Bretanha foi revisado para que se colocasse mais Medicina Preventiva em seus assuntos. Essa resoluo foi tomada pelo General Medical Council (1923): "that throught the whole period o f study the attention o f the student should be directed by his teachers to the importance o f the preventive aspects o f Medicine".

    Dessa forma, a primeira proposta da Medicina Preventiva aparecia com duas caractersticas bsicas: que seu ensino deveria permear todo o currculo e que seu objetivo seria o desenvolvimento de uma atitude.

    Vejamos como se refere Newman (1923), um dos seus primeiros tericos:

    Even more important than the spirit o f prevention pervading all instruction is the whole attitude o f the student to his clinical work.

    Para que isso seja obtido, o estudante:- must know the phisiological standard o f health and capacity from wich he starts.- must become really been on the search for the etiology, the primary and secundary

    cause, o f the morbid conditions he is investigating.

    A consecuo desses objetivos para a educao mdica definia a necessidade de intensas reformulaes curriculares, em que o ensino bsico seria o degrau inicial para que se pudesse

    instilling into the mind o f the student the necessity for his keeping constantly in view, in all the advice and treatment he may give throughout his professional life, the primary

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  • O dilema prevenlivista

    importance o f promoting the general health o f those who entrust themselves to his care,and o f preventing trivial ailments from developing into definite disease.

    A partir dessas idias, comeam a ser criados departamentos ou ctedras de Medicina Preventiva nas escolas mdicas, tendo logo essas concepes atingido os Estados Unidos e o Canad. Comeam a aparecer artigos nas revistas mdicas relatando experincias dos cursos de Medicina Preventiva e propondo modelos de ensino (Munson & Schmit, 1938; Fitzgerald, 1936; Leathers, 1932).

    Leathers (1932) realiza uma reviso da situao, concluindo que novas abordagens devem ser utilizadas para conciliar os interesses dos estudantes e das faculdades, no ensino da preveno, devendo isso ser feito atravs de uma abordagem clnica.

    A Associao Americana de Sade Pblica solicitou a formao de um comit que formulasse um programa de educao, para estudantes de medicina, em Medicina Preventiva e Sade Pblica. As concluses divulgadas em relatrio preliminar, em 1942, foram baseadas em questionrios, artigos e opinies pessoais de seus membros, sendo suas principais formulaes (Mustard et al., 1942, 1945):

    I o) Os cursos de Medicina Preventiva e Sade Pblica constituem um novo enfoque dentro dos currculos e existem divergncias e confuses em torno de seus conceitos. No existindo consenso sobre o que deve ser includo em tais cursos, devem os seus proponentes insinuar-se de forma oportunista no ensino. Acrescente-se a isso divergncias locais de necessidades, recursos, opinies das direes etc.

    2o) O ensino tem se baseado em leituras e alguns trabalhos de campo, como visitas a departamentos de sade, tratamento de gua, indstrias, etc. Algumas escolas estabeleceram relaes com departamentos pblicos e agncias voluntrias de servios, para observao e participao direta, ocasional, em programas de clerkship clnico.

    3o) A existncia de um pequeno nmero de Departamento de Medicina Preventiva em regime de tempo integral e o limitado aumento desses departamentos no perodo de 1935 a 1942, sendo a porcentagem de horas dedicadas ao ensino da matria 1,9% do tempo curricular.

    O comit recomendou, aps essas e outras consideraes, as necessidades de uma distino mais precisa entre os termos Medicina Preventiva

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    e Sade Pblica, da integrao com outros departamentos, o aumento do nmero de horas, a incluso de Bio-Estatstica e Epidemiologia, a integrao com organismos departamentais, o incio precoce do curso e sua continuidade e, finalmente, que os departamentos fossem denominados de Medicina Preventiva. Foi definido:

    That "Preventive Medicine" be regarded as that body o f knowledge and those practices believed to contribute to the maintenance o f health and the prevention o f diseases in either individual or the aggregate; and that "public health" be regarded to health in the aggregate, either through preventive or corrective mesures or both.

    O relatrio final surge em 1945, reafirmando as posies iniciais, sugerindo um currculo mnimo e o aumento dos oramentos destinados rea, afirmando:

    A separate department o f preventive medicine and health is justified in medical teaching because preventive medicine introduce a new and, i f not revolutionary, at least heretofore neglected point o f view: A primary interest in the conservation o f health through prevention rather than in the diagnosis and therapy o f established pathology.

    O perodo de 1922 a 1950 representa a introduo dos departamentos de Medicina Preventiva nas escolas mdicas dos Estados Unidos e do Canad, ou seja, a criao de entidades pertencentes a um movimento ideolgico geral, no interior da medicina, que comearam a gerar e so geradas por um novo discurso.

    O discurso inicia-se por tentativas mltiplas de definio sobre "aquilo de que fala", ou seja, de como a Medicina Preventiva ganha um novo estatuto, exigindo, portanto, uma nova conceituao.

    Paul (1941) discute que a Medicina Preventiva parte da medicina clnica e que technicaly Preventive Medicine is the science o f preventing illness in man...", mas que, do ponto de vista da escola mdica, "the term Preventive Medicine means more than prophylaxis, just as clinical medicine means more than therapeutics...", sendo que a primeira "concerned with the study o f conditions under wich illness occurs in individuals (or group o f individuals) as well as with the thecnics o f their control".

    A Medicina Preventiva define um objeto de estudo e uma prtica que engloba "those activities that are the direct responsability o f the individual in the prevention o f diseases and the protection o f the health o f himself and o f his family"

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    (Smillie, 1947). Porm, o resultado de suas atividades, no interior da escola mdica, "is the development and maintenance in students o f a preventive attitude or approach wich should permeate all medical work" (Taylor, 1957).

    O objeto, que surge das superfcies primeiras de emergncias, possui uma dupla natureza. De um lado, as condies de ocorrncia das doenas, e, de outro, a atitude preventivista incorporada ao estudante, que dever desabrochar plenamente em sua prtica cotidiana.

    O passo seguinte do processo a delimitao do novo objeto e, portanto, da nova disciplina, atravs de uma grade de especificao que se centra sobre a Sade Pblica e a Medicina Social. A especificao da rea vai desde a incorporao de todos esses conceitos dentro da Medicina Preventiva (Perkins, 1942; Leathers, 1932; Boyd, 1936) at as tentativas de estabelecimento de diferenas especficas (Paul, 1941; Gonzales, 1970).

    Porm, realmente, o elemento que opera a delimitao do objeto o ' enfoque sobre as responsabilidades individuais e da famlia sobre a sade, que simultaneamente delimita aquelas condies determinantes das doenas que devem ser estudadas e o espao das atribuies mdicas. O prefcio de uma coletnea de artigos, organizada pela Academia de Medicina de New York, Miller (1942), define esse espao como that marginal land between public health and medicine.

    Instaurado esse novo objeto, como uma composio entre produo de conhecimentos e desenvolvimento de atitudes, o discurso deixa em aberto a questo de qual a natureza desse conhecimento, que encontra como se fosse uma barreira para a sua incorporao prtica.

    A resposta a essa pergunta no formulada apresentada como uma tendncia apologtica do discurso preventivista, colocando-se como "a philosophy and a science having practical application in every phase o f medicine ... [e] ... a minor revolution in the thinking o f many who teach" (Perkins, 1942).

    Os sujeitos do discurso preventivista, situados nas Associaes Americanas de colgios mdicos, de Sade Pblica e de medicina e nas vrias Academias, bem como nos recm-criados Departamentos de Medicina Preventiva, partem da definio de uma problemtica (ou uma crise) na ateno mdica, que deve ser resolvida no nvel dos prprios mdicos, sob a ameaa de uma interveno estatal.

    No encontro de Boston, em 1920, da Associao Mdica Americana, o relatrio final coloca (Fish Bein, 1947):

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    There is special need that the medical profession develop some method by wich the great possibilities o f modern medidne in the way o f diagnosis, treatment and prevention o f diseases, may be brougth within the reach o f all people. This function, it is believed, should be performed by the medical profession and not through any form o f State Medicine.

    Boyd (1936) retoma a mesma idia, advertindo:

    The medical profession can and must play and important role in the field o f preventive medicine and public health. At present physicians are neglecting their opportunities. I f this neglect continues the opportunities will losen and the field be taken away from physicians by a changing public sentiment.

    O mesmo tom de advertncia utilizado pela Academia de Medicina de Nova York, que conclui sobre a participao do mdico nas mudanas: He must romain in command" (1942).

    Tobey (1942), discutindo o mbito da Medicina Preventiva, define a natureza do projeto:

    This is not state or socialized medicine, but private medical practice so organized as to be o f maximum to the practitioner himself and to the public served by him and by the State.

    As colocaes desses autores introduzem um novo elemento, ou seja, um enfrentamento entre o grupo mdico, em sua organizao privada e o Estado, sendo a Medicina Preventiva uma proposio de conciliao, pela ocupao pelo grupo mdico do espao marginal entre a medicina clnica e a sade pblica. Para a verificao dessa nova dimenso, devemos estudar os elementos (ou fatos) extradiscursivos durante esse perodo.

    O desenvolvimento, no sculo xix, da poltica liberal baseada no laissez- faire cimentou o desenvolvimento da economia capitalista e o surgimento de uma srie de problemas que escapavam da iniciativa privada e exigiram respostas de outros nveis, principalmente do Estado, que muda as suas caractersticas. A situao do sculo XIX foi brilhantemente parodiada por Dickens, que dizia: "cada um por si e Deus por todos, como dizia o elefante danando no meio das galinhas" (Brown, 1968).

    Os Estados Unidos, no intervalo entre 1870 e 1913, j ultrapassavam a Gr-Bretanha como potncia industrial, tendo subido sua participao na produo mundial de 23% para 36%, enquanto a segunda caa de 32% para 14%. Terminada a Primeira Guerra Mundial, durante o perodo de

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    1926-1929, os Estados Unidos respondiam por 42,2% da produo mundial, passando a exercer uma hegemonia poltica na economia do mundo ocidental.

    Porm, em junho de 1929, inicia-se o perodo da chamada Grande Depresso, que rompe com a ascenso do otimismo resultante dos perodos anteriores, caindo em um fenmeno de saturao dos campos de investimento, de superproduo que acabava em uma crise de realizao de mais-valia.

    Ellsworth (1968) assim descreve o quadro geral:

    O declnio da atividade foi rpido, especialmente depois do abalo de confiana, provocado pelo Colapso da Bolsa de Valores. Com apenas breves interrupes, o investimento, a produo industrial, o emprego e a renda nacional mergulhavam verticalmente em trs anos desastrosos. O investimento, chave da atividade industrial, diminuiu virtualmente. Em termos reais, o produto bruto nacional encolheu de um tero a preos correntes, em cerca da metade.

    durante esse perodo e na sua seqncia que se inicia nos Estados Unidos a discusso da ateno mdica (Byrd, 1965). Assim, em 1927 inicia-se investigao sobre o custo da ateno mdica, sendo publicado seus dados em 1932; conclui-se que o custo do servio mdico era muito superior ao que grande parte da populao podia pagar, propondo, portanto, a ampliao dos servios de sade pblica, o desenvolvimento de consultas de coordenao para a melhor distribuio de recursos, o controle dos custos atravs de organizaes comunitrias etc.

    Em 1935-1936, o Servio de Sade Pblica dos Estados Unidos publica outra investigao baseada em entrevistas em 700 mil domiclios e opinies e recomendaes de 2.100 dirigentes da medicina norte-americana. Conclua que era necessria uma reviso da ateno mdica, dado que haviam mudado as condies socioeconmicas.

    Em 1938, rene-se uma Conferncia Nacional de Sade em Washington, que defendeu a tese de um programa geral de ateno mdica que reduzisse os custos excessivos para os indivduos, bem como a expanso dos servios de sade pblica, ateno materno-infantil, recursos hospitalares e seguro-desemprego.

    Em 1939, no aprovada a Lei Wagner, que propunha a expanso das atividades federais e estaduais nos assuntos de sade. Em 1944, a Associao Americana de Sade Pblica publica declarao oficial que defendia a

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  • Sergio Arouca

    idia de um sistema nacional de servios para toda a populao, assim como um programa de seguro social e de impostos para financi-lo.

    A Associao Americana, durante o mesmo perodo, colocou-se contra o seguro obrigatrio de sade, pondo em dvida as estatsticas sobre o custo da ateno mdica, baseando-se, por sua vez, em estudos como o do Instituto Brookings, de 1948, que afirmavam que a grande maioria das famlias americanas contava com recursos para financiar sua ateno mdica.

    O presidente Truman, em 1945, apresentou um informe ao Congresso sobre um Programa Nacional de Sade, de cinco pontos: Io) construo de hospitais e outros recursos necessrios; 2o) expanso dos servios de sade pblica e ateno materno-infantil; 3o) reforo da educao mdica e investigao de sade; 4o) seguros obrigatrios para a ateno mdica; 5o) indenizao aos trabalhadores que perderam dias por doenas ou invalidez.

    Como aconteceu com a Lei Wagner, da qual a proposta de Truman era uma modificao, este projeto no foi aprovado em sua totalidade, restando somente o financiamento para construo dos hospitais e de investigaes.

    Portanto, durante essas duas dcadas, assistimos a um antagonismo entre a organizao do grupo mdico e a redefinio do papel do Estado. O grupo mdico, exercendo o seu papel poltico, em aliana com outros grupos ou setores sociais e econmicos, bloqueia todas as tentativas de interveno do Estado que redundassem em uma perda de sua autonomia econmica. Por outro lado, o Estado comea a manifestar-se no somente atravs de projetos de lei, mas fundamentalmente atravs de grupos racionalizadores ligados ao setor de Sade Pblica que reivindicam o controle central da ateno mdica.

    Porm, ao contrrio do sucedido em outros pases, como na Inglaterra, em que esse movimento levou criao de um Servio Nacional de Sade em 1946, nos Estados Unidos as alianas de classe realizadas pelos grupos mdicos mantiveram seus direitos contra a interveno estatal.

    A redefinio do profissional mdico

    O Commitee on Undergraduate Medical Education of the American Medical Association (1969) elaborou uma declarao sobre objetivos da

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  • O dilema preventivista

    educao mdica que, juntamente com o documento do Executive Council of the Association of American Medicai Colleges (1953) sobre the objetives o f undergraduate medicai education", eighth revision, serviram de base a conferncia de Colorado Spring (1953a, b).

    O primeiro documento introduz algumas idias bsicas:

    i I o) Um conceito compreensivo do homem, que inclui\__\a anlise do homem, do seu comportamento e seu ambiente; nele se incluem a gnese, o crescimento e a maturidade, a natureza e os efeitos de impactos de origens variadas: trauma fsico, doenas infecciosas, e idade, bem como impactos por foras emocionais, necessidades, desgostos e influncias dos costumes sociais.

    Dessa idia decorre a introduo dos conceitos:a) de sade, que possibilitaria a compreenso da histria de vida do

    homem entendida como um processo.b) de ecologia, j que tanto a doena como a sade se do em um

    conjunto de relaes estabelecidas com o ambiente no qual se acha includo o social.

    2o) A definio de um espao de responsabilidade do mdico, que inclui:

    a) a compreenso da sua prpria personalidade e influncia sobre o paciente;

    b) uma conscincia da importncia da famlia e da comunidade no cuidado ao paciente;

    c) a compreenso das suas limitaes e das relaes que deve manter com as especialidades.

    3o) Uma viso da evoluo histrica da medicina, que caminharia para uma nova forma da prtica mdica, superior e ideal: \ ,\(

    No deve o mdico se manter alheio evoluo dos conceitos de sua prpria profisso ... almejando sempre que possvel, evoluir, da medicina teraputica medicina preventiva.

    No segundo documento, os objetivos da educao mdica ganham uma nova forma, ao serem especificados segundo aqueles setores que no processo educativo devem ajudar os estudantes a

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  • Sergio Arouca

    acquire basic professional knowledge, establish essential habits; attain clinical and social \ s kills: necessary to the best utilization o f that knowledge; and develop those basic intellectual

    \aititudesyind ethical or moral priciples which are essential i f he is to gain and maintain the confidence and trust o f those whom he treats the respect o f those with whom he works and the support o f the community in which he lives.

    Esse documento, alm de introduzir um tipo de pensamento classifi- catrio e organizador dos objetivos educacionais, discrimina os objetivos que no devem ser considerados em nvel de graduab, como:

    -Attempting to provide a detailed presentation o f all disorders that affect the human being.

    -Attempting to teach the techniques required for the successful pratice o f the various specialities.

    -Attempting to provide the detailed systematic knowledge o f anatomy, biochemistry, physiology, pathology or pharmacology required o f graduate students majoring in one o f this fields.

    - Attempting to provide a detailed presentations o f all the physycal, chemical, and biological agents, hereditary factors, phychological factors living habits and social forces that may affect the human being favorably or unfavorably.

    Finalmente, introduz uma nova noo, que a do trabalho em equipe;'a. produo de um discurso grupai olha para a continuao de uma prtica grupai, assim a educao mdica deve ajudar o estudante a adquirir habilidades bsicas:

    - In working in the medical team o f physicians, nurses, social workers, physical terapists and others.

    - In working in the community team o f official and voluntary institutions and agencies providing health services.

    Comea, assim, a delinear-se uma nova forma de discurso mdico que recoloca os conceitos de sade e doena dentro de uma perspectiva ecolgica, amplia e define a responsabilidade mdica em termos de estabelecer novas relaes de trabalho, que se acham inscritas em uma evoluo histrica da medicina, na procura incessante da realizao de seus maiores objetivos.

    Seminrio de Colorado Spring (1953a) inicia-se com uma definio das novas responsabilidades e oportunidades da prtica mdica, ou seja.

    124

  • O dilema preventivista

    do prprio mdico, estabelecendo quais as determinaes dessa nova configurao da medicina.

    Denominando relaes discursivas aquelas estabelecidas dentro do prprio discurso, para especificar e determinar o seu objeto, encontramos:

    I o) Aquelas relaes que so estabelecidas entre a cincia e a sociedade.

    - The wiping out o f old-time plagues and pestil-onces making possible tremendous increases in urban living.

    - The discovery and application o f measures to master such scourges as typhoud fever and diphtheria bringing startling changes in mans life expectancy.

    Os avanos dos conhecimentos mdicos, ao criarem uma espiral de sade, tornam a populao mais produtiva economicamente e isso propicia /

    and by virtue o f that fact, in turn, though better nutricion, housing, education, medicai care and scientific research attaining yet higher leveis o f healthfulness.

    Pensamento circular a partir de um ponto no qual a homogeneidade das categorias (biolgicas, econmicas, sociais etc.) faz que, a partir de qualquer lugar, se mova a roda do processo social, em um movimento ascendente de espiral.

    Essa a representao, que se transforma em paradigma no Ciclo Econmico de Sade e da Doena de Winslow (1952):

    Era claro ... que a pobreza e a doena formavam um crculo vicioso. Homens e mulheres eram doentes porque eram pobres; tornaram-se mais pobres porque eram doentes e mais doentes porque eram pobres.

    Nesse sentido, esse crculo vicioso em espiral, em que as variveis so simultaneamente causa e efeito, assumindo em cada volta novos valores, o sentido da espiral pode ser ascendente na medida em que maiores salrios levam a melhor alimentao, educao e moradia, que fmalmente levariam a melhor sade e iniciariam um novo ciclo. Tal sentido seria o do progresso e do desenvolvimento econmico, enquanto o outro, com valores negativos, seria o crculo vicioso da pobreza, ignorncia e doena, que levaria e manteria o subdesenvolvimento.

    Dentro dessa segunda linha, refere-se Nurske (1953):

  • Sergio Arouca

    O conceito (crculo vicioso da pobreza) envolve, naturalmente, uma constelao circular de foras, que tendem a agir e a reagir interdependentemente, de sorte a manter um pas pobre em estado de pobreza.

    No difcil encontrar exemplos tpicos dessas constelaes circulares. Assim, um homem pobre talvez no tenha o bastante para comer; sendo subnutrido, sua sade ser fraca, sendo fraca, sua capacidade de trabalho ser baixa, o que significa que ser pobre, o que por sua vez, implica dizer que no ter o suficiente para comer; e assim por diante. Uma situao dessas aplicada a todo um pas, pode reduzir-se a uma proposio trustica: um pas pobre porque pobre".

    Quais as idias (ou os conceitos) que esto envolvidos em tal idia de causao, que aparece como relao reflexiva permeando o discurso preventivista e que o excede em amplitude, uma vez que ser encontrado na economia, na educao e na agricultura.

    Em primeiro lugar, a noo da identidade das categorias que operam no crculo. Assim, as variveis ligadas produo possuem o mesmo peso causativo que aquelas ligadas a processos biolgicos, como maior energia e capacidade, sade e doena, idnticas quelas ligadas aos fenmenos de moradia, educao e nutrio, como tambm iguais quelas dependentes de uma poltica estatal, como inverses em saneamento, preveno e assistncia.

    Essa noo de ausncia hierrquica das determinaes leva a uma es- tratgia pontual de cada disciplina, em que ser possvel mover a espiral ascendente, a partir da sade, como a partir do aumento da produtividade, ou da educao, alimentao e moradia.

    Em segundo lugar, ao assumir a identidade das categorias, o que se est negando a prpria idia de determinao, como, ao mesmo tempo, est se afirmando a especificidade da pobreza, que deve na riqueza encontrar seu modelo de espiral ascendente.

    Repete-se o paradigma do desenvolvimento-subdesenvolvimento, em que o primeiro se constitui em modelo e meta para o segundo, e este uma fase histrica ultrapassada pelo desenvolvimento.

    E, finalmente, a causalidade circular determina a articulao ideolgica no interior de cada disciplina, pois, ao relacionar o seu objeto como causa e efeito das condies de vida das populaes, abre a possibilidade de um discurso ideolgico que do seu prprio interior se oferece como projeto e alternativa para aquelas condies de vida.

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  • O dilema preventivista

    Articulao do conhecimento com o saber em um crculo de causalidade, que no seu movimento simultaneamente articulado e independente cobre de representao as contradies e determinaes estruturais.

    2o) Emergindo da circularidade, novos problemas apresentam-se, exigindo solues da cincia em sua relao com a sociedade, assim:

    New hazards to community family and personal health appear as byproducts o f ours technological advances. As the menace o f comunicable and acuts disease is lessened, the problem o f chronic disease grows more formidable, creating changed demands on doctors, hospitals, families and community welfare services. As the population has an increasingly large proportion o f older people, degeneratives disease comes to the forefront. As mental illness increases, its victims now occupying half our hospitals beds...

    Ainda:

    o f greatest importance has been the change in people's attitud towards sickeness and health ... Today most people in the United States regard an opportunity o f health as they do an opportunity fo r education, a basic privilege o f all citizens.

    Resultando:

    a growing awareness by medical schools o f the need to re-examine their teaching, so as to provide a setting where students can better learn the habits o f thinking and action wich help them to become effective physicians in the changed scene...

    Emergncia da circularidade que mergulha sobre si mesma, como se a cada avano da espiral correspondesse uma circular paralela, em que os fatores positivos tornam-se negativos, gerando novas respostas das instituies e das cincias, na linearidade das suas relaes com a sociedade.

    o mesmo conhecimento, dentro da mesma estrutura social e com a mesma medicina que, atravs de um novo ator, solucionar os novos problemas, atravs da determinao de novas relaes sociais para este ator e de uma nova ideologia.

    Assim, a mudana Refere-se muito mais ao estabelecimento de novas relaes sociais entre mdico-paciente, famlia, comunidade, outros profissionais e instituies, assumindo-se que essas relaes so determinadas por uma "atitude".' Posio basicamente antropolgica, em que o homem, livre das determinaes, instaura novas relaes sociais; em que atitudes educacionalmente formadas transformam as relaes sociais exis- /

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  • Sergio Arouco

    tentes e que, em ltima instncia, colocam uma outra forma mais geral de causalidade para as relaes sociais, em que estas so determinadas pelos homens e por cada um em particular. Posio cientiflcista quando assume que a criao de um "paradigma" transforma e determina novas relaes sociais.

    Neste ponto que o conhecimento se articula ideologicamente com o saber. O ponto do contato do conhecimento cientfico com a realidade atravs da sua possibilidade de interveno se faz sobre a criao de uma nova

    V' viso de mundo, redefinindo-se os contornos de uma profisso que possui como carter bsico uma idia de projeto-alternativa-interno sua rea profissional.

    f Dessa maneira, as relaes discursivas estabelecidas, que possibilitaram a emergncia desse discurso, referem-se a um campo de causalidade. O primeiro que estabelece as relaes entre as categorias do fenmeno sade-doena com categorias socioeconmicas em um mesmo plano de essncias, mecanismo de analogia sobre as categorias, que opera no sentido inverso do conceito de analogia da medicina das espcies, em que a analogia simultaneamente uma lei de causao, visto que, aqui, assumindo a causao, as categorias equiparam..

    O segundo, que parte de um privilegiamento antropolgico sobre as mudanas sociais, desprezando todo o conhecimento cientfico da sociedade que provocou um descentramento do sujeito para privilegiar na anlise, as estruturas, portanto um mecanismo de centralizao antropolgica.

    Dessa maneira, o discurso sobre a Educao Mdica abre um novo jogo de espacializaes:

    Io) Espacializao primria: em que se coloca a sade e a doena em relao com um dado ambiente que inclui Q social}, que se coloca uma relao linear entre cincia e sociedade, que se estabelece uma causalidade circular acumulativa entre fenmenos sociais e fenmenos mrbidos.

    2o) Espacializao secundria: em que, para a compreenso dessa nova totalidade ecolgica e para a sua soluo,Camplia-se a rede de relaes sociais do mdico, que, ultrapassando o paciente, chega famlia, comunidade e prepara o campo para uma transformao da educao mdica.

    3o) Espacializao terciria: em que se consideram os gestos pelos quais se instauram a produo, a delimitao e a estratgia para a formao desse novo profissional.

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  • O dilema preventivisla

    E sobre esse campo complexo, herdeiro da higiene, instrumento e agente dessas espacializaes que surge a Medicina Preventiva.

    Os documentos da conferncia de Colorado Spring (1953a), apresentavam-se sob a forma de relatrios, e em resposta a quesitos previamente formulados pela comisso organizadora, que, no caso, tratava-se da Associao Americana de Colgios Mdicos, como:

    - What concepts, values and areas o f interest from the field o f preventive medicine should be common to all physicians?

    - What knowledge, skills, methods and techniques should all physicians be competent to aply in order to be effective in the field o f preventive medicine?

    Assim, a pergunta que nos formulamos qual o processo de produo desse discurso, ou seja, qual foi a forma de trabalho que permitiu que houvesse a enunciao?

    O procedimento de trabalho coletivo repete-se em outros encontros. Os seminrios sobre Ensino da Medicina Preventiva patrocinados pela Organizao Pan-americana de Sade em Vina dei Mar e Tehuacn, respectivamente em 1955 e 1966, renem um grupo de especialistas que devem responder a perguntas dentro de um ternrio, assim por exemplo:

    Cales son los objetivos de la ensenanza de la medicina?Qu propsitos persigue la ensenanza de la medicina preventiva?Cales son las funciones de la ctedra de medicina preventiva?

    Dessa forma, um grupo de pessoas reunido durante um tempo determinado, vindo dos mais diferentes lugares, para a produo de um trabalho coletivo, mas no um trabalho aberto a todas as possibilidades do pensar, antes de tudo estruturado e estruturalizante.

    Estruturado, na medida em que um grupo determinado que responde a determinadas perguntas, ou seja, o enunciado que questiona define um leque de respostas possveis. No se coloca em discusso a natureza e a eficcia da Medicina Preventiva como respostas, alternativa ou soluo de uma nova problemtica, mas, antes, afirma-se:

    Our conference tried to formulate the aims and methods o f teaching preventive medicine in the light o f what seens likely to be expected o f physicians in the light o f evoluing objectives o f medical education today.

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  • Sergio Arouca

    Estruturalizante, quando o discurso, produto de um trabalho grupai, metamorfoseado em Informe, Recomendao e cuja autoria confundida com a prpria organizao patrocinadora. No mais a opinio de conceituados especialistas, a experincia pessoal combinada em um trabalho, nem o sujeito perante o discurso, mas sim a fala da instituio que se espraia na internacionalidade.

    Se o discurso, a fala, se transforma em informe, o sujeito transformado em participante ou expert. Se a proposta de anlise arqueolgica a subtrao do autor para deixar livre as regras do discurso, submetidas a uma "episteme", 6 na formao discursiva em que o processo de produo so os relatrios, pareceres e informes que se cristaliza plenamente a arqueologia.

    Porm, na realidade, no so as regras do discurso operando em plena liberdade, h antes um novo conjunto de relaes sociais que se estabelecem:

    Io) As relaes internacionais estabelecidas no ps-guerra, em que se reforam organismos mediadores e fortalecem-se organismos tcnicos. Assim, o surgimento da Organizao Mundial da Sade, em 1946, englobando as organizaes j existentes, como a Organizao Sanitria Pan- Americana criada em 1902.

    Porm, exatamente no contexto dessas novas relaes internacionais que vai se gerar o conceito de subdesenvolvimento que, designando de forma nova uma realidade antiga e que tendo surgido no seio desses organismos internacionais, vai originar toda uma estratgia de ao (Bettelheim, 1965) baseado nesta teoria. Isso decorreu de uma nova forma de diviso do poder internacional aps a Segunda Grande Guerra, em que as superpotncias fazem um acordo que se formalizou na carta das Naes Unidas que estabelece um mtodo de ao diplomtica, o qual no assegura que as pretenses das grandes potncias sigam compatveis em sua substncia" (Furtado, 1968).

    Duas teorias decorreram no plano imediato desse equilbrio do poder, a Teoria da Conteno, que se objetivou na guerra fria, e a Teoria do Subdesenvolvimento, que se objetivou em novas formas de auxlio internacional dentro das chamadas "reas de influncia.

    2o) Diante desse quadro, modifica-se o posicionamento de determinados grupos de intelectuais que so absorvidos nessas novas relaes, em que a "experincia prpria em processos de mudana transforma-os em

    130

  • O dilema preventivista

    experts, para assumirem a posio de sujeitos de um novo discurso que simultaneamente uma Recomendao e uma Norma.

    Mas, em sntese, qual foi o campo discursivo aberto? A Higiene, na ascenso da burguesia, ocupou um lugar na sociedade civil, enquanto sistema de normas que controlavam a sade individual, e um lugar no Estado, enquanto normas coletivas de vida; portanto, no particular que ela exerce o seu domnio associado medicina com seu duplo discurso de auto-afirmao ideolgica e de saber (como articulao entre a cincia e a ideologia). Porm, a higiene como prtica dirigia-se a todos os indivduos e no comportava uma legitimao abrangente de profissionais da sade, dado que o correto seria a formao de uma cultura higinica universal. Portanto, por um lado, a Higiene absorvida pelo Estado na Sade Pblica e, por outro, ela cria um espao a ser preenchido por uma legitimao profissional.

    O enfrentamento nas dcadas dos 1930 e 1940 nos Estados Unidos o confronto entre o Estado e um setor da sociedade civil. O primeiro, dentro de sua autonomia relativa diante dos problemas econmicos e sociais surgidos com a Depresso, prope um esquema racionalizador da ateno mdica que, em ltima anlise, nada mais do que a racionalidade ampliada do capital, mas que no plano imediato entra em conflito com o grupo hegemnico no poder.

    Assim, o controle da medicina aparece como o controle da prpria sociedade civil pelo Estado, reagindo, portanto, atravs de sua instncia poltica especfica e cerceando as propostas de interveno. Tendo a medicina, atravs de sua ligao com os grupos hegemnicos, exercido o controle poltico do Estado, no nvel de sociedade civil que devem surgir as respostas aos novos problemas mdico-sociais:

    Io) Preenchendo o vazio deixado pela higiene no plano individual atravs da definio de novas responsabilidades do mdico diante da sade e da preveno, ou seja, a cultura higinica incorporada profisso mdica.

    2o) Definindo o carter universal dos mdicos ao lhes atribuir uma responsabilidade social diante das famlias e da comunidade.

    3o) Mantendo o carter liberal da profisso, ou seja, mantendo-a no mbito da sociedade civil.

    4o) Definindo um lugar onde se processar essa mudana, ou seja, a educao mdica, e especificamente a Medicina Preventiva.

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  • Sergio Arouca

    Desta forma, a positividade da formao discursiva emergente possui um efeito de raridade ao delimitar, dentro do universo dos discursos possveis sobre a ateno e a educao mdica, aqueles que seriam possveis, ou seja, aqueles que mantivessem a aderncia com os princpios de organizao da sociedade civil em uma dada formao social capitalista, mantendo a autonomia profissional, a no-interveno do Estado, a responsabilidade de cada indivduo diante do coletivo, a evoluo histrica-natural da instituio mdica, o privilgio e o monoplio do conhecimento etc. Essta raridade que permite identificar o discurso preventivista como uma totalidade que unifica o conjunto dos enunciados dispersos.

    Em segundo lugar, possui um efeito de exterioridade, na medida em que especifica um lugar de onde deve ser enunciado o discurso; assim, a institucionalizao desse espao dentro da educao mdica denominada Departamento de Medicina Preventiva, ou de Medicina Social, correspondendo a um domnio prtico que simultaneamente autnomo e dependente. E, finalmente, possui um efeito de acmulo que provoca uma aditivi- dade entre os conhecimentos da Higiene e da Medicina, reorganizados segundo novas relaes em forma de paradigmas (recorrncia) que se investem em suportes tcnicos-materiais, como as condutas preventivistas (ressonncia).

    Desenvolvimento perifrico

    A Medicina Preventiva uma nova atitude incorporadal prtica mdica e essa atitude deve ser desenvolvida durante o processo de formao do mdico, atravs de meios e pessoal especficos. Assim, esse movimento encontra seu lugar natural dentro das escolas mdicas onde profere seu discurso para a mudana, enfrentando a longa luta de preparar novos mdicos com a nova atitude preventivista que possa mudar o atual panorama da ateno mdica. --------- ^

    Sendo definido que a mudana do ensino mdico representava a estratgia fundamental para o desenvolvimento de uma atitude preventivista, realiza-se uma srie de encontros e conferncias internacionais com o objetivo de desenvolver essa rea dentro das escolas mdicas, quais sejam, as reunies do Comit de Especialistas da Organizao Mundial de Sade sobre Educao Profissional e Tcnica de Pessoal Mdico e Auxiliar em

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  • O dilema prevenlivisla

    1950 e 1952; as conferncias sobre o Ensino de Medicina Preventiva de Colorado Springs (Estados Unidos) para o Canad, Jamaica e Estados Unidos, em novembro de 1952, e de Nancy (Frana) para os pases europeus, em dezembro desse mesmo ano; a Primeira Conferncia Mundial sobre o Ensino Mdico em Londres e, em 1950, o Primeiro Congresso Panamericano de Educo Mdica.

    Todos estes encontros levaram a que a Organizacin Panamericana de la Salud (1956) iniciasse a preparao de um Seminrio que seria bsico para a implantao do ensino de Medicina Preventiva na Amrica Latina e que serviu de marco terico para esse movimento: o Seminrio de Vina dei Mar e Tehuacan. A primeira parte do Seminrio realizou-se em outubro de 1955, na Chile, com a participao de 58 diretores e professores de Medicina Preventiva de Escolas Mdicas da Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

    A segunda parte do Seminrio realizou-se em Tehuacan, no Mxico, em abril de 1956, e dela participaram representantes de Escolas de Medicina da Bolvia, Colmbia, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Mxico, Porto Rico, Repblica Dominicana e Suriname.

    Aos participantes foi colocado um ternrio, composto de perguntas o que deveriam ser respondidas pelos grupos de trabalho, de forma tal que

    1 Programas e Mtodos de Ensino de Medicina Preventiva.2 Organizao do Departamento de Medicina Preventiva. A formao

    e as funes do pessoal docente.3 Relaes com outros departamentos da Escola Mdica.4 Papel do Departamento de Medicina Preventiva nas atividades dos

    Servios de Sade Pblica e vice-versa.

    As concluses bsicas desse Seminrio acham-se sistematizadas no Quadro 1 e por elas podemos verificar que os Departamentos de Medicina Preventiva, para alcanar seus objetivos, deveriam provocar uma mudana no nvel da escola mdica, promovendo um sistema de jntegrao curricular aliado tambm a uma mudana de atitudes dos docentes e, ainda, deveriam inaugurar um novo sistema de relaes com os rgos de sade, oficiais ou no, e o ambiente acadmico. Todo esse conjunto complexo de transformaes deveria produzir um novo tipo de mdico que, por suas caractersticas, promoveria uma mudana na qualidade da ateno mdica e, por conseguinte, uma melhoria das condies de sade das populaes.

    constitussem as resolues do Seminrio. O ternrio proposto foi:

    133

  • Sergio Arouco

    Tais seminrios desdobram-se posteriormente em Seminrios Nacionais (Asociacin Colombiana de Facultades de Medicina, 1955; Organizacin Panamericana de la Salud, 1969; Asociacin Venezolana de Facultades (Escudas) de Medicina, 1967; Asociacin de Facultades Ecuatorianas de Medicina, 1971; Asociacin Peruana de Facultades de Medicina, 1974; Congresso Nacional de Professores de Higiene e Medicina Preventiva, 1956), publicaes sobre experincias, programaes e projetos departamentais (Scorzelli, 1966; 1973; Departamento de Salud para la Comunidad, 1971; Mascarenhas et al., 1962, 1963; Pantoja & Thomas, 1973; Renjifo, 1959; Departamento de Medicina Preventiva e Social, 1974; Situao da Medicina Preventiva na Bahia, 1970; Cardoso, 1966; Carvalho, 1966; Encontro de Docentes de Medicina Preventiva, 1969; 1970a; 1970b; 1970c; 1970d; 1970e; 1970f), relatrios de visitas a programas (Rico, 1965; Organizacin Panamericana de la Salud, 1963; Pellegrini Filho, 1974), novos livros (Bastos, 1969; San Martin, 1968; Ferrara et ah, 1972; Sonis, 1971; Rizzi et ah, 1973; Rodriguez, 1945; Kloetzel, 1973; Gernez-Rieux & Gervois, 1971), discusses conceituais (Evang, 1971;Janini, 1972; Tobar Acosta & Tobar, 1974), publicaes de revistas sobre o assunto e relatos de experincia de atividades privadas (Climep, 1969).

    A Medicina Preventiva assume, assim, a forma de um movimento social, que a partir dos Seminrios e Congressos espraia-se em uma rede, em uma dinmica de influncias, de despertar e reforar conscincias.

    Assim refere-se Freitas (1963):

    A convico que o autor unha a respeito da maneira como deveria ser focalizado o ensino da Higiene e Medicina Preventiva se fortaleceu atravs de duas oportunidades: a primeira, a visita a departamentos de Medicina Preventiva nos Estados Unidos da Amrica do Norte e em Porto Rico tornada possvel graas a um travei grant" que lhe foi oferecido pela Fundao Rockeffeller. A Segunda, o Io Seminrio sobre Ensino da Medicina Preventiva celebrado em Vina dei Mar.

    Leser (1970), abrindo o I Encontro de Escolas Mdicas, discutindo o conceito de Medicina Preventiva:

    Eu acredito que um marco que ficar na Histria do nosso Ensino Mdico ser o seminrio que foi realizado em Vina dei Mar - no Chile, sob os auspcios da Organizao Pan-americana de Sade; reunindo representantes de escolas mdicas de um grande nmero de pases do continente. E no caso do Brasil,

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  • O dilema preventivista

    representantes de quase todas as escolas mdicas que na poca existiam... Para algumas escolas isto foi mais um documento de recomendaes no cumpridas, para outras, sentiram que tinham l um grande compromisso...

    Mascarenhas (1954), analisando os problemas de Sade Pblica no Estado de So Paulo, afirma que no existem limites ntidos entre a Medicina Preventiva, e a Curativa, para informar que:

    Vexiste em muitos pases modernos um movimento visando o ensino da Medicina Preventiva aos alunos do primeiro ao sexto ano das Faculdades de Medicina. Estes futuros mdicos melhor dotados de conhecimentos da Medicina Pblica, no apenas cuidaro dos problemas individuais mas tambm atendero repercusso destes na sociedade.

    A expectativa de Sade Pblica dessa colaborao com a Medicina Privada, que se desenvolvia a partir da Medicina Preventiva, j era a esperana de Paula Souza (1950) prefaciando livro-texto sobre o assunto:

    sua colaborao (do mdico) com as autoridades sanitrias pode ser eficientes e valiosa, desde que esteja ele imbudo da orientao correta traada pela Medicina Preventiva.

    A Organizacin Panamericana de la Salud (1969) reuniu em Washington, em novembro de 1968, um Comit de Especialistas para elaborar um Informe sobre o Ensino de Medicina Preventiva e Social nas Escolas de Medicina da Amrica Latina, que formulou objetivos para o ensino de Medicina Preventiva em termos de conhecimentos, atitudes e habilidades para o futuro mdico.

    1 Conhecimento e compreenso de:a) Mtodos para o estudo do nvel de sade coletiva;b) Fatores ambientais, econmicos e socioculturais que modificam

    a sade;v c) Determinantes da condut^em estado de sade ou enfermidade;

    d) Mecanismos para promover a sade e prevenir as enfermidades;e) Diversos sistemas de cuidado da sade individual e coletiva, com

    nfase nos programas e servios do pas respectivo;0 Aplicao do mtodo cientfico ao estudo dos problemas e orga

    nizaes de sade em funo da realidade nacional;

    135

  • Sergio Arouca

    g) Situao Sanitria-Assistencial do pas e sua interrelao com o desenvolvimento sociocultural e econmico.

    2 Incorporao dos seguintes valores e atitudes a sua maneira de pensar e atuar:

    a) Atitude preventiva - Qualquer que seja a sua especialidade ou posio, o mdico, em exerccio, deve estar atento s oportunidades para promover a sade e prevenir a doena no indivduo e na coletividade;

    b) Atitude epidemiqlgica - Sentido de prioridade do "coletivo. Ao tomar suas decises, o mdico deve ter em conta sempre a interrelao do indivduo com seu ambiente e o carter multifa-

    t torial dos fenmenos vivos;c) Atitude social - Insatisfao com as condies de yida da maio-

    ^ / ria da populao e interesse na sua melhoria; o mdico atua sem-)'v ; pre como parte de um sistema assistencial, a servio do indiv-

    \ duo e da coletividade e suas aes devem adaptar-se. a estas\ circunstncias;

    d) Atitude educativa e de equipe - O trabalho do mdico sempre mais eficiente quando nele colaboram os demais integrantes da equipe de sade e quando se estabelece uma boa relao mdico- paciente.

    ( 3 Aquisio de habilidades e destrezas para:a) Medir o nvel de sade e levar em conta os fatores socioculturais

    e ambientais de qualquer mudana na sade individual e coletiva;b) Aplicar as diversas medidas de fomento da sade, de preveno

    secundria e reabilitao, inclusive tcnicas de comunicao e educao individual e de grupo;

    c) Cumprir o papel que corresponde ao mdico como parte da equipe de sade dentro da organizao assistencial do pas;

    d) Conseguir o mximo de eficincia ao menor custo na prestao de servios mdicos.

    O Comit reconheceu que o ensino deve ser composto, segundo seu contedo programtico, de duas grandes reas:

    1 0 ensino dos princpios e tcnicas bsicas requeridas para a formao do estudante em Medicina Preventiva:

    136

  • O dilema prevenlivista

    a) Medicina quantitativa; _ \ b) Epidemiologia; \-Vc) Controle do ambiente; ' v >d) Cincias da conduta;.e) Princpios de Organizao e Administrao.

    2; A aprendizagem e a prtica de suas responsabilidades preventivas coif futuro mdico, frente ao indivduo e comunidade.

    Em relao ao incio e durao do ensino, o Comit recomendou que "deveriam ser ministradas durante todo o plano de estudos a fim de cumprir os objetivos formativos desta disciplina".

    A comparao dos Seminrios de Viria dei Mar e Tehuacan com o Comit de Especialistas em Medicina Preventiva possibilita uma avaliao da evoluo do desenvolvimento da Medicina Preventiva na Amrica Latina.

    Garcia (1972), em investigao realizada em 1968 sobre a Educao Mdica na Amrica Latina, verificou que Medicina quantitativa, Epidemiologia, Cincias da conduta, Organizao e administrao dos servios de sade e medidas preventivas constituem o ncleo fundamental do que hoje se entende por Medicina Preventiva. Como se verifica no Quadro 2, 70% das Escolas Latino-Americanas ensinam essas cinco reas.

    O autor analisa trinta escolas que no ensinam as cinco reas e constri uma escqla de tal forma que em um extremo tivssemos aquelas que s ensinam medidas preventivas, e, no outro, aquelas que ensinam quatro das reas. A anlise dessa escala fornece uma histria da introduo das vrias disciplinas pelos departamentos. Assim, tivemos:

    a) o conhecimento inicial ministrado foi o de medidas preventivas nos tpicos de higiene pessoal e saneamento ambiental;b) a este se acrescentou a epidemiologia, que permite aprofundar o conhecimento da enfermidade e justificar ou descobrir novos meios de controle;c) a medicina quantitativa surgiu como uma necessidade para a investigao epidemiolgica e para o diagnstico da situao de sade a nvel coletivo;d) a introduo de organizao de servios e cincias da conduta marcou uma ruptura com o processo anterior. Conhecida a enfermidade em sua distribuio, alguns de seus determinantes e as medidas de controle, surgiu a necessidade de tornar mais eficiente a ao mdica e, com tal fim, se incorporou a administrao e, em uma etapa posterior, as cincias sociais, que tentam esclarecer porque certas medidas conhecidas como efetivas no se aplicam e porque quando se aplicam no produzem os resultados esperados.

    137

  • Sergio Arouco

    Essa investigao fornece-nos outros dados interessantes sobre o ensino de Medicina Preventiva na Amrica Latina:

    1 Os centros que mais influenciaram a criao dos Departamentos de Medicina Preventiva foram, em primeiro lugar, as escolas mdicas norte- americanas, e entre estas a de Cornell e a Western Reserve.

    2 A mdia de horas de aula (de Medicina Preventiva) por aluno nas escolas com curso mdico completo de 205 horas (desvio-padro de 143).

    3 Das escolas investigadas, 45% possuam programas extramurais tendo como objetivo fundamental a mudana de atitude do estudante em contacto com a realidade.

    4 autor investigou em seis escolas a opinio de estudantes de medicina sobre o ensino de Medicina Preventiva, verificando que a grande maioria dos estudantes via "na Medicina Preventiva uma ferramenta til para o exerccio profissional" e que "sentir-se-iam satisfeitos se tivessem que dedicar, na prtica mdica, mais tempo s medidas preventivas que s curativas.

    Esse ltimo achado contraria a opinio de diversos autores sobre a posio dos estudantes em relao Medicina Preventiva. O autor levanta a hiptese de que poderia estar ocorrendo uma mudana na imagem que o estudante tem do profissional ao ingressar na Faculdade, pois j estaria "incluindo as aes preventivas entre as funes do mdico. Uma outra hiptese que se coloca que o instrumento de investigao utilizado (questionrio) no se presta a esse tipo de problema, uma vez que o estudante poderia ser induzido a responder de uma forma ideal e no expressar seu

    j,-r-, comportamento real diante da disciplina. Essa hiptese reforada pelo- . fato de que a Medicina Preventiva como movimento ideolgico, ao definir

    f seus objetivos em termos de humanismo, bem-estar da comunidade e ! medicina integral, automaticamente coloca aquelas pessoas que esto contra

    ela contra esses objetivos. Esse fato poderia ter induzido os estudantes a ressaltar a sua importncia mesmo quando, na realidade, a consideram secundria.

    Procuramos demonstrar, nos captulos anteriores, que a Medicina Preventiva caracterizou-se como um movimento ideolgico que procurava transformar as representaes sobre a prtica mdica, sem, contudo, procurar ser um movimento poltico que realmente transformasse essa prtica. Dessa forma, o seu discurso mantinha uma relao de organicidade

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  • O dilema preventivista

    com o momento histrico vivido pela sociedade norte-americana, representando uma leitura civil e liberal dos problemas de sade.

    f Fato fundamental dessa leitura que, sendo basicamente um aconte- i cimento supra-estrutural, ela vem marcada pelas caractersticas mais ge- j rais da instncia ideolgica. Assim, a Medicina Preventiva apresenta-se ' como sendo natural, na medida em que representa uma evoluo intrnse

    ca da prpria medicina, regida por suas leis internas e universal, quando generaliza essa alternativa como soluo para os problemas da medicina em qualquer formao social, transformando-se, portanto, em uma soluo que ultrapassa os limites de sua origem para tornar-se internacional.

    Em nosso quadro terico, estabelecemos as relaes que o discurso mantm com uma dada formao social, atravs da noo de organicidade. Ao distribuir-se em um novo espao social, qual seja, o da Amrica Latina, a partir de um centro hegemnico, automaticamente o discurso preventivista situa-se em um novo campo de relaes: o da Dependncia.

    Entendemos que na dinmica das classes sociais com seus intelectuais orgnicos, envolvidos em uma dada episteme, que se especificam as regras da formao. Assim, em relao formao dos objetos, as superfcies de emergncia da Medicina Preventiva vo aparecer no interior das associaes mdicas, em sua luta contra a interveno estatal. Em encontro realizado em Boston, em 1920, o relatrio final coloca (Fish Bein, 1947):

    There is special need that the medical profession develop some method by which the great possibilities o f modern medicine in the way o f diagnosis, treatment and prevention o f diseases, may by brought within the reach o f all people. This function, it is believed, should be performed by the medical profession and not through any form o f state medicine.

    Portanto, as superfcies de emergncia j trazem em si as instncias de delimitao, qu seja, daqueles setores que na sociedade instauram os objetos. No mesmo encontro de Boston, o presidente "was especially disturbed by what he called outside interference' with medical education...", o que significava financiamento de fundaes e universidades estatais para programas de ensino, que podiam representar influncias exgenas ao grupo mdico e seu interesse. Ou seja, as instncias da sociedade que instauram o discurso devem ser aquelas que mantenham a organicidade com seu projeto de classe de origem.

    A partir desse ponto, vemos que a determinao de quem fala, os lugares institucionais de onde o sujeito questiona, as grades de questiona-

    139

  • Sergio Arouco

    mento, as posies dos sujeitos em relao aos diversos objetos etc., ficam submetidos a uma matriz especial. Nesta, o universo dos acontecimentos concretos fica reduzido ao conjunto dos objetos institudos por uma leitura liberal e profissional da medicina, produzida por seus intelectuais orgnicos, distribudos em um espao social apropriado.

    O desenvolvimento dessa estrutura, atravs das regras de formao de conceitos, nada mais do que a construo terico-ideolgica do real, emitida desse ponto especial e particular de enunciao, em que encontramos toda a discusso sobre as diferenas entre Medicina Preventiva e Sade Pblica, as noes de integrao, de inculcao, mudana etc. bem como todo o conjunto de seus paradigmas.

    Vejamos como operam essas relaes de organicidade, diante do fenmeno da Dependncia. Inicialmente, o discurso preventivista, gerado em um pas central do modo de produo capitalista, cria um espao a ser preenchido por intelectuais orgnicos que passaro a ser os seus sujeitos nos pases perifricos. Portanto, o discurso abre o espao para os sujeitos, para a institucionalizao dos lugares que ocuparo e de sua legitimao.

    Em seguida, o discurso propicia os objetos, as estratgias e todo um instrumental conceituai, que ser utilizado na construo terica do real

    / no pas dependente. A construo terico-ideolgica do real, nos pases de- I pendentes, coloca o profissional mdico como agente de mudana das condi-

    / es de sade, esquecendo-se, em primeiro lugar, de relacionar essas con-j --------------*

    dies de sade ao desenvolvimento das foras produtivas nos pases \ perifricos (Navarro, 1973) e, em segundo, de analisar as relaes sociais , que envolvem e determinam o trabalho mdico, bem como a organizao i social da medicina (Donnangelo, 1972).

    A contradio entre as representaes preventivistas sobre o real e as reais condies de existncia das populaes latino-americanas e de seus servios de sade est, pois, centrada sobre o funcionamento ideolgico do movimento. Assim, a ideologia funciona no eixo desconhecimento-reconhecimento, em que o ltimo membro do par fornece uma aluso-iluso ao real em termos de uma forma (ou modo) de construir a representao sobre o real.

    Na Amrica Latina, at a dcada de 1950, a Medicina Preventiva no existia como um movimento, aparecendo somente como uma categoria classificatria de subdivises da Higiene. Aps os seminrios, comeam a surgir:

    140

  • O dilema prevenlivista

    I o) O reconhecimento de uma situao problemtica na rea de sade, que pode ter sua soluo atravs da criao de um profissional mdico com uma "nova atitude". Esse reconhecimento refere-se s condies reais, em termos do predomnio das atividades curativas, da ausncia de viso social dos mdicos, de sua concentrao urbana, e simultaneamente cria a iluso de que essa problemtica pode ser resolvida no nvel da atitude particular.

    2o) A composio do reconhecimento em um conjunto articulado de conceitos, que se pretende como teoria e que fundamente o mundo de suas prticas, ou seja, constitui-se em uma ideologia-terica que a partir de conceitos como os de sade e doena, histria natural, multicausalidade, atitude social, entre outros, justifica a sua alternativa de mudana.

    3o) Um aparelho ideolgico material, que servir de base para a existncia material dessas concepes e prticas, ou seja, os Departamentos de Medicina Preventiva.

    Porm, o funcionamento do par desconhecimento-reconhecimento, na Amrica Latina, ganha outras dimenses de complexidade, quando a ausncia, a que o reconhecimento se refere, , na verdade, a presena das percepes, pelos sujeitos concretos, da dimenso social das formas de vida de grandes parcelas da populao, da existncia das endemias e da fome, da inexistncia de assistncia mdica, enfim, de todo o complexo da pobreza em sua aparncia imediata. Em relao ao segundo elemento, tambm se processa todo um conjunto de estudos que estabelecem, ass.pia- es entre os elementos mrbidos e a estrutura social.

    Dessa forma, a Medicina Preventiva na Amrica Latina configura-se como uma rea em constante tenso, quando, por um lado, enfrenta a escola mdica, os estudantes e os servios de sade, e, por outro, enfrenta as prprias condies reais de existncia com seu saber que no consegue dar conta destas. Da a caracterstica do discurso preventivista ser simultaneamente:

    I o) Crtico: quando coloca em questo a educao, a organizao e a prtica mdica e estabelece as associaes destes fatos com a estrutura social.

    2o) Apologtico: quando se assume como uma forma de pensar, transformadora da situao de crise configurada acima, que transforma os seus sujeitos em mensageiros de uma nova doutrina.

  • Sergio Arouca

    3o) Tecnocrtico: quando instrumenta a atitude preventivista com uma tecnologia procurada na Sade Pblica, administrao de empresas e o ensino com toda uma tecnologia educacional.

    Essa configurao do seu discurso, diante da realidade poltica latino- americana, em que o Estado tem freqentemente assumido total ou parcialmente o controle das aes de sade, atravs dos diferentes sistemas previdencirios, leva, como tendncia, a que a Medicina Preventiva se afaste, progressivamente, das suas relaes com a sociedade civil para aproximar- se do Estado, em sua dimenso tecnocrtica.

    Porm, no ncleo dessas contradies, tm-se desenvolvido novas concepes do papel da Medicina Preventiva na transformao da teoria da medicina, atravs de uma prtica terica especfica, que consegue delimitar o ideolgico no seu interior (Garcia, 1972; Gaete &Tapia, 1970; Comit de Expertos de la OPS/OMS, 1974; Problemas tericos, 1972).

    Tal possibilidade de Prtica Terica tem sido possvel atravs da divulgao de trabalhos como os de Canguilhem (1971; 1972), Bachelard (1972),

    v-Althusser & Balibar (1970), Foucault et al. (1972), Fichant & Pcheux (1971), Bernis (1974), Labastida (1971), Silmon (1973), Piaget (1970), Boltanski (1968), Illich (1974), Jantsch (1972), Heckenhauser (1972) e outros que, num processo de abertura de novos horizontes dentro das Cincias Sociais, tm fornecido novos instrumentais para a anlise da Medicina.

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  • Sergio Arouca

    Quadro 2 - Nmero de escolas segundo os temas de Medicina Preventiva e Social, que se ensinam no plano de estudos, 1967

    TEMAS DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL Nmero de Escolas

    (N= 100)Cincias da

    CondutaOrganizao e Administrao

    MedicinaQuantitativa

    Epidemiolo-gia

    MedidasPreventivas

    + + + + + 70- + + + + 12+ - + + + 7+ + - + + 1+ + + - + 1- - + + + 6- - - + + 2- - - + 1

    (+) Ensina-se o tema.(-) No se ensina o tema. Fonte: Garcia (1972)

    A delimitao

    A Medicina Preventiva, no seu discurso, realiza um trabalho de delimitao, que, por um lado, afirma a sua identidade e diferena com a prpria medicina e, por outro, estabelece as suas diferenas com a Sade Pblica e a Medicina Social.

    Partindo da definio de Sade Pblica de Winslow (1952), Leavell & Clarck (1965) consideram a Medicina Preventiva como a cincia e a arte de prevenir as doenas, prolongar a vida e promover a eficincia e a sade fsica e mental" e deduzem, portanto, que a sade pblica e a privada so divises da Medicina Preventiva que requerem esforos ou aes organizadas da comunidade.

    San Martin (1968), partindo do mesmo conceito de Sade Pblica, chega concluso de que La medicina preventiva es, pues, tal como la curation, parte de la salubridad pero no es sinnimo de ella".

    Portanto, a relao da Medicina Preventiva com a Sade Pblica uma relao de continente-contedo, dependendo da postura assumida pelo sujeito do discurso, ou, em outras palavras, que o discurso abre duas possibilidades para posicionamento dos sujeitos; uma que afirma a hegemonia

    146

  • O dilema preventivista

    da sociedade civil e a sade pblica submetida a ela, e a outra, que afirma a supremacia do Estado ao qual a atividade privada est submetida. Porm, em ambos os casos prevalece a idia de uma dupla leitura, em que a Medicina Preventiva a leitura liberal vinda da sociedade civil, e a Sade Pblica a leitura estatal diante de novas funes do Estado na sociedade capitalista.

    Nesse estabelecimento de fronteiras, a Medicina Preventiva define a relao dos seus agentes com a Sade Pblica, propondo formas de integrao e cooperao de trabalho, mantendo, porm, a autonomia das reas. Por outro lado, o discurso preventivista reorganiza o conhecimento de Sade Pblica de forma que possa ser incorporado prtica liberal da medicina.

    Nos Estados Unidos, essa delimitao extremamente clara na medida em que o mbito de sade pblica bem delimitado diante da ateno mdica, o que no sucede nos pases da Amrica Latina, em que a relao se d com um confronto entre dois tipos de profissionais, cujos limites esto imprecisos.

    Em relao Medicina Social, Leavell & Clarck (1965), discutindo os dois termos, referem que Medicina Social um termo utilizado na Europa para enfatizar a importncia do ambiente humano para a sade, para concluir que a diferena entre os dois conceitos muito pequena.

    Garcia (1972) comenta o fato de que "o uso do termo Medicina Preventiva e Social faz supor que se atribua diferentes significados a Medicina Preventiva e a Medicina Social", porm, quando se analisa o contedo destas disciplinas, no se verifica nenhuma diferena.

    Hubbard (1953), comentando o fato de que at 1964 no existia nenhum Departamento com o nome de Medicina Social nos Estados Unidos, refere que o cidado comum - e muitos mdicos tambm - no sabem realmente o que se entende por Medicina Socializada, mas est certo de que mau. E Medicina Social no soa muito diferente.

    Outros autores enfatizam a diferena de Medicina Preventiva e Social, como a definio de Medicina Social do Congresso Interamericano de Higiene (1955) realizado em Cuba: " o ramo de medicina que se ocupa das relaes recprocas que existem entre as doenas e a sade e as condies econmicas e sociais dos grupos humanos".

    Freitas (1961) considera que en la Medicina Social, se procurar considerar los problemas de salud y enfermedad, donde vivem los individuos en relacin a la

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  • Sergio Arouca

    sociedad, empegando en el ncleo bsico de la sociedad, la famlia... deberm ser considerados los aspectos ecolgicos inclusos econmicos de la Medicina".

    Leff (1953) considera que existem diferentes escolas de Medicina Social, como a de Reabilitao, que coloca como problema a existncia de milhes de pessoas com problemas crnicos de sade, que para a sua recuperao e reintegrao na sociedade necessitam de uma abordagem social. A Escola de Sade Pblica, que considera a Medicina Social como sua extenso, sendo o seu prximo estgio de desenvolvimento. A Escola Psicolgica, que pretende resolver os problemas sociais atravs de uma abordagem psicolgica. A Escola de Sade Positiva, que se prope a estudar a sade como um objeto em si e no como a ausncia de doenas. Aps essa discusso, o autor conclui, revendo a histria da Medicina Social na Inglaterra:

    We should recognize first that any discussion of the theory and practice of social medicine must take place against the background of a social order in which health and disease patterns are continually changing; and, second, that the theories of medicine of the last three centurien can no longer cope with our changing society and must be modified and extehded.

    O Encontro de Docentes de Medicina Preventiva do Estado de So Paulo (1970f) concluiu que: "no que se refere distino entre Medicina Preventiva e Social no parece haver dvidas de que os conceitos diferem na origem e evoluo.

    A Medicina Preventiva desenvolveu-se nas escolas americanas em decorrncia da necessidade de se aprimorar a medicina individualista, numa tentativa de corrigir as distores da extrema fragmentao da ateno mdica, resultante da tendncia de especializao.

    A inspirao predominante identificada em fontes relacionadas com as ideologias da medicina como profisso liberal e surge em resposta s exigncias resultantes de mudanas no sistema social como elemento com tendncia a favorecer a manuteno da ordem existente no campo da sade, da ateno mdica e da organizao profissional.

    Embora a maior difuso do conceito de Medicina Social se deva Inglaterra (com a criao do Instituto de Medicina Social em Oxford, em 1942), as suas origens como disciplinas de ensino parecem ser mais remotas e localizam-se na Alemanha e na Frana. Desenvolvem-se no conjunto das mudanas sociais resultantes da Revoluo Industrial, como uma medicina integrada no campo da sade, esta entendida como responsabilidade bem definida do Estado.

    148

  • O dilema preventivista

    Durante este encontro, definiram-se duas posies:

    1 A identidade atual dos conceitos - Apresentada pelo Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de So Paulo que conceituou Medicina Preventiva como a aplicao de conhecimentos e mtodos de vrias disciplinas promoo, manuteno e restaurao da sade, bem como a preveno de doenas, de incapacitao e de mortalidade prematura, atravs de programa individual ou coletivo de ateno mdica e conclua:

    A Medicina Preventiva assim conceituada tem mais relaes com os conceitos de Medicina Social desenvolvidos na Europa na primeira metade do sculo XIX do que com as filosofias e propsitos da Medicina Preventiva tal como includa nos currculos das escolas americanas a partir de aproximadamente 1940.

    2 Afirmao da diferena - Defendida pelo Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas (1974) que conceituou Medicina Social como o estudo da dinmica do processo sa- de/doena nas populaes, suas relaes com a estrutura de ateno mdica, bem como das relaes de ambas com o sistema social global, visando transformao dessas relaes para a obteno, dentro dos conhecimentos atuais, de nveis mximos possveis de sade e bem-estar das populaes.

    Silva (1973), discutindo a diferena entre os dois conceitos, coloca que

    alguns Departamentos de Medicina Preventiva passaram a adotar, tendencial- mente uma posio potencialmente mais inovadora, uma posio de crtica construtiva da realidade mdico-social e da prtica da medicina, fundamentada bem mais no modelo de medicina social do que no modelo original de Medicina Preventiva

    para afirmar que como disciplina do currculo... a Medicina Preventiva se confunde com a Medicina Social". A partir disso, o autor adota como conceito de Medicina Preventiva aquele apresentado como de Medicina Social

    * pelo Departamento de Campinas, com pequenas modificaes.Analisando essa evoluo, em que encontramos um verdadeiro jogo

    conceituai, nota-se que, na realidade, trata-se de um problema mais profundo do que a simples denominao de um Departamento.

    O informe final do Comit de Expertos no Ensino de Medicina Preventiva e Social da Organizao Panamericana de Sade (1974) considera

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  • Sergio Arouco

    que a Medicina Preventiva desempenha um papel para o desenvolvimento de uma mentalidade preventiva e dos aspectos bio-psico-sociais das doenas, cabendo agora Medicina Social o estudo da instituio de ateno sade e os esquemas de ao mdica produzidos. Assim, enquanto a Medicina Preventiva representava um movimento ideolgico, a Medicina Social deve estudar o seu objeto que, segundo seus autores, el estdio de las acciones en medicina; entiendose por tal el campo de la practica y conocimientos relacionados com la salud".

    A Medicina Social aparece, pois, com duas tendncias; a primeira decorrente da sua origem no sculo XIX, com um movimento de modificao da medicina ligado prpria mudana de sociedade, ou assumindo somente a modificao da medicina atravs da sua mudana institucional, como sucedeu na recente medicina social inglesa; a segunda uma tentativa de redefinir a posio e o lugar dos objetos dentro da medicina, de fazer demarcaes conceituais, colocar em questo os quadros tericos, enfim, trata-se de um movimento no nvel da produo de conhecimentos que, reformulando as indagaes bsicas que possibilitaram a emergncia da Medicina Preventiva, tenta definir um objeto de estudo nas relaes entre o biolgico e o psicossocial. A Medicina Social, elegendo como campo de investigao essas relaes, tenta estabelecer uma disciplina que se situa nos limites das cincias atuais.

    Podemos, a partir desta anlise, afirmar que, independentemente das denominaes utilizadas, existem duas formaes discursivas em confronto, que se definem em relao organicidade dos seus discursos; assim, por um lado, a Medicina Preventiva aparece como uma prtica ideolgica, organicamente ligada aos grupos hegemnicos da sociedade civil e existindo como uma norma que no se instaura, por suas prprias contradies decorrentes da articulao da medicina com o econmico, na prtica. Por outr