Arqueologia da Arquitetura e os Engenhos de Maré no Estuário ...
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ARQUEOLOGIA DA ARQUITETURA E OS ENGENHOS DE MARÉ NO ESTUÁRIO AMAZÔNICO
MARQUES, FERNANDO LUIZ TAVARES
1. Museu Paraense Emílio Goeldi. Coordenação de Ciências Humanas.
Campus de Pesquisa. Av. Perimetral, 1901. Telefone: (91)3075 6272. CEP 66.077-830. Belém-PA [email protected]
RESUMO
A realização de pesquisas arqueológicas na área do estuário amazônico tem revelado que até o início do século XX engenhos de cana-de-açúcar utilizaram a energia das marés para girar suas moendas. O estudo de ruínas de espessos muros e abóbadas construídas em pedra bruta e lapidada e tijolos maciços em locais sujeitos às inundações das marés tem levado à descoberta e caracterização dos componentes destes sistemas hidráulicos que foram elementos críticos funcionais da exploração canavieira em tempos coloniais. A pesquisa contribui para resgate e salvaguarda de preciosas informações sobre funcionamento destes engenhos, cujos riscos da perda são iminentes, e num futuro bastante próximo.
Palavras-chave: engenhos de maré; estuário amazônico; arquitetura hidráulica.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
Introdução
Em 1988, durante estudo de um sítio onde existiu um engenho que funcionou até a década
de 1920, no município de Igarapé-Miri, Pará, a descoberta de vestígios construtivos em
madeira dispostos junto ao rio suscitou interesse em um aspecto crucial ao seu
funcionamento - a força motriz. As estruturas de madeira estavam em locais sujeitos às
inundações diárias das marés, cujas amplitudes são marcantes naquela área. Com apoio de
uma consistente informação oral de um antigo morador do local, pudemos aprender que
estas construções correspondiam às obras hidráulicas do engenho São José, e que foram
identificadas como: 1) caixão, barragem que servia para represamento da água durante a
enchente; 2) canal, depressão escavada no solo, que derivava do igarapé até engenho; e
3) calha, onde era assentada a roda d’água atrelada à moenda do engenho (ANDERSON &
MARQUES, 1992). Portanto, pode-se dizer que no caso desta investigação com base no
depoimento de uma testemunha ocular, em conjunção com as evidências materiais
presentes, revelou-se através do retrato falado apresentado na Figura 01 uma descoberta
relevante para a história da tecnologia no Brasil: moendas de engenhos de cana-de-açúcar
operaram com a energia das marés. (MARQUES, 2004)
Figura 01. Reconstituição do sistema motriz movido a maré do engenho São José, em Igarapé-Miri.: A água da maré atuou na fertilização das margens (1); Durante o preamar uma barragem (2) represava a água enchendo um igarapé e um canal, que foi escavado até o engenho (3). Na vazante, liberava-se a água para girar uma roda acoplada à moenda do engenho (4) (MARQUES, 2004, P.183)
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A continuidade destas pesquisas em outras localidades do estuário fundamentaram a
implantação e consolidação no Museu Paraense Emílio Goeldi do projeto “Arqueologia e
História de Engenhos Coloniais no estuário Amazônico”, no sentido de avaliar aspectos
relacionados à implantação dos sítios na paisagem, à localização das obras funcionais pelos
sítios, bem como as soluções de arquitetura e engenharia que foram empregadas em suas
construções. Estes elementos fornecem importantes subsídios a uma hipotética
reconstituição do seu processo de construção, visando estabelecer um modelo preditivo de
engenho de maré em contexto das épocas coloniais. Atualmente, tem-se ampliado o número
de sítios investigados, ou apenas localizados, para em torno de quarenta engenhos
similares, com suas obras hidráulicas construídas também em outros materiais e técnicas,
como alvenarias de pedra e tijolo maciço.
Figura 02. Mapa de localização de sítios de engenhos de cana-de-açúcar no estuário amazônico, onde foram encontradas evidências de obras hidráulicas sujeitas às marés. (MARQUES, 2004, P.183)
Tendo como enfoque uma abordagem essencialmente da Arqueologia da Arquitetura, esta
pesquisa tem levado ao conhecimento e valorização destes sítios históricos, remanescentes
de agroindústria canavieira, que comprovam que na Amazônia, de fins do século XVIII à
segunda metade do século XIX dispunha-se de um repertório tecnológico de alto nível, nos
campos da arquitetura e engenharia rural.
Esta conclusão se fundamenta no porte das construções de engenhos investigados, com
seus resquícios perdidos em meio à vegetação densa ou nas margens dos rios do estuário,
de algumas peculiaridades em termos de sua significância históricas ou quanto ao seu
aspecto tecnológico, como nos casos do Engenho Murutucu, localizado na periferia de
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Belém, onde se destacam ruínas da capela em estilo neoclássico e seu sistema motriz em
bom estado de conservação, que pertenceu ao arquiteto italiano Antonio Landi; e também
dos engenhos “Bom Intento”, no rio Guamá, e o “Taperuçu”, no rio Capim, os quais
apresentaram sistemas com duas calhas conjugadas.
Energia de Marés
Fundamentalmente, o princípio básico desta tecnologia consiste na transformação de
energia potencial, acumulada pelo represamento da água da maré durante a enchente, em
energia cinética a partir da liberação deste volume durante a vazante.
Uma Tecnologia Quase Milenar.
A energia das marés tem se constituído, ao longo da história do homem, em uma de suas
importantes fontes de energia. Esta técnica teve sua significância refletida pela utilização
em larga escala nos moinhos de cereais desde a época medieval até seu emprego em
tempos atuais, como por exemplo, em grande hidrelétrica maremotriz localizada no estuário
do Rance, na França.
Historicamente, em relação ao aproveitamento da energia das marés em moinhos, as
informações bibliográficas pesquisadas evidenciaram algumas controvérsias quanto à época
de sua origem. Conforme NABAIS (1986, p. 15) esta difusão teria iniciado em 1044, ano
em que o autor relaciona a existência de um moinho de maré localizado ao norte do
Adriático, mas na Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, consta que "... Es
dudoso que, como se ha venido diciendo, este sistema de utilización de la fuerza de las
mareas fuera conocido de los venecianos en el siglo XI, porque las mareas son muy poco
importantes en el Adriático." (ESPASA-CALPE, 1903, p.1441)
Por outro lado, outros autores consideram que a técnica era já conhecida, no mesmo século
XI, porém na Inglaterra, pois no Domesday Book - recenseamento dos bens do reino bretão,
ordenado por Guilherme I, o Conquistador – refere-se moinhos de maré na Inglaterra desde
1087 (SKINNER & TUREKIAN, 1988, p. 80), inclusive havia um destes registrado em Dover,
litoral inglês (DERRY & WILLIAMS, 1973, p. 253).
Esta informação não é aludida por GIMPEL (1976, p. 27) quando aborda a presença de
5.624 moinhos relacionados neste inventário. Especificamente, a propósito de moinhos de
maré, este autor menciona apenas que é conhecida sua existência no século XIII, na foz do
rio Adour, perto de Bayonne, e no estuário do Deben, Condado de Suffolk. A partir de então,
a técnica de passou a ser difundida pela costa oeste da Europa, evidentemente em locais
sujeitos às inundações periódicas do oceano Atlântico, o que compreende praticamente toda
a faixa litorânea estendendo-se desde a Holanda até o sul da Espanha.
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Em Portugal, a mais antiga referência que se tem notícia sobre a existência de um moinho
de maré remonta ao ano de 1290 quando um é reportado em Castro Marim, foz do
Guadiana, na costa sul. (CASTELO BRANCO, 1965, p. 50) Posteriormente, outros se
expandiram principalmente nos estuários do Tejo e do Sado, proximidades de Lisboa, além
de, em menor número, no litoral ao norte e na costa meridional algarvia. (NABAIS, 1986, p.
20)
Com o advento das expedições colonizadoras, a partir do século XVI a utilização da maré
para mover moinhos passa ser propagada até o Novo Mundo, principalmente na América do
Norte ao longo da costa leste, onde ocorrem as maiores amplitudes. Segundo BENTON
(1972), a Enciclopaedia Britannica assinala o primeiro moinho de maré no continente
americano sendo construído em 1635 em Salem, Nova York, e também indica moinhos
deste tipo em Brooklim, construídos em 1636 pelos holandeses. Na década de 1640, foram
reportados moinhos de maré em Manchester, Massachustes (ELDEN, 1935), e em Boston
(SKINNER & TUREKIAN, 1988, p. 80). Para a América do Sul, a maré como força motriz em
engenhos ocorreu desde 1667, no Suriname.
No Brasil, a respeito do uso de energia de maré como força motriz em engenhos de cana-
de-açúcar, referências encontradas mesmo em publicações específicas sobre o assunto
evidenciaram controvérsias. GAMA (1983, p. 135), menciona as cidades de São Luis, no
Maranhão, e Belém do Pará, como locais onde existem ruínas de moinhos de maré, e
quando consultado a respeito, o autor revelou ter se baseado em informações orais.
Forças Motrizes na Agroindústria Canavieira.
Conforme a historiografia nacional, desde sua implantação em 1530 até fins do século XVIII,
nos engenhos do Brasil, para movimentar suas moendas foram utilizadas as seguintes
fontes de energia: a Força Muscular Humana; a Tração Animal e; a Força Hidráulica.
(AZEVEDO, 1990; ANTONIL, 1967; e CANABRAVA, 1981). No século XIX, estas fontes
ainda continuaram movimentando engenhos, a despeito da modernização dos
equipamentos industriais, principalmente com a utilização de máquinas a vapor
reconhecidamente muito mais eficientes na moagem (GAMA, 1983).
Da mesma forma, em relação à região amazônica, as informações históricas encontradas
sobre o tipo de força motriz usada em engenhos referenciam invariavelmente também como
movidos a animal, a água e mais tardiamente, a vapor. (BAENA, 1885; BARBOSA, 1888; e
d'OLIVEIRA, 1889)
No Brasil, até a adoção de máquinas a vapor na década de 20 do século passado, o uso de
rodas d'água para movimentar engenhos foi a técnica mais eficaz. Na área do estuário
amazônico, a viabilidade da utilização da energia hidráulica em engenhos já havia sido
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inicialmente ressaltada pelo jesuíta espanhol Acuña quando aqui esteve em 1639
(CARVAJAL et al, 1941, p. 194). Em 1819, o viajante José de Brito Inglez ao tratar o estado
da Capitania do Pará assim ressaltou: "...qual paiz onde se fação, ou possão fazer com
tanta facilidade estabellecimentos e engenhos d'ágoa cujas vantagens são tão palpáveis"
(INGLEZ, 1819, p. 138)
Com a eventual colonização da região as referências sobre estas indústrias passaram a
constar com mais frequência em relatos de oficiais portugueses e trabalhos científicos.
Posteriormente, viajantes naturalistas europeus descrevem visitas a engenhos locais em
seus relatórios de viagens pela região durante os séculos XVIII e XIX. (FERREIRA, 1980;
WALLACE, 1939; BATES, 1944; SPIX & MARTIUS, 1961). Apesar de oriundos de países
onde o uso água de maré como força motriz em moinhos era bastante conhecido, estes
viajantes praticamente nada reportaram sobre obras hidráulicas e funcionamento dos
engenhos do estuário amazônico. Curiosamente, na coleção de estampas referentes à
Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira na Amazônia, em fins do século XVIII,
constam ilustrações de dois engenhos localizados às proximidades de Belém. Nestes
desenhos são observados muitos detalhes de obras como vertedouros e grandes rodas
d'água, porém, apesar de especificar suas localizações, nada explicam sobre seu
funcionamento (CONSELHO FEDERAL DE CULTURA, 1971).
Figura 03. Estampa da obra “Viagem Filosófica...”, de Alexandre Rodrigues Ferreira, que ilustra um engenho de cana movido por roda hidráulica na qual é demonstrada a calha, em baixo à esquerda.(MARQUES, 2004)
De acordo com outros autores, no final do século XIX, havia um expressivo número de
engenhos "movidos à água". Grande parte destas citações e em especial as de Manoel
Barata (1973) foram compiladas num artigo mais recente sobre a indústria açucareira, no
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qual foram enumerados nomes de engenhos e de seus proprietários, construídos no Pará,
durante os séculos XVII, XVIII e XIX (CRUZ, 1963). De um modo geral, as referências
constantes em obras publicadas sobre os séculos XVIII e XIX são insuficientes quanto a
detalhes de natureza e funcionamento de engenhos do estuário amazônico.
Revisão Histórica sobre Uso de Maré no Contexto Regional
Na região amazônica, esta ideia de aproveitar a água da maré para fazer funcionar
engenhos de cana-de-açúcar foi abordada inicialmente pelo jesuíta João Daniel em sua obra
"Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas", precisamente na Sexta Parte.
Este jesuíta, que viveu na Amazônia de 1741 a 1757, formulou muitas ideias sobre a
utilização de recursos naturais da região amazônica para melhoramentos na qualidade de
vida e economia amazônicas. Em relação aos engenhos locais, considerou extremamente
ineficaz o único tipo de força motriz ocorrente na região, que era a tração animal. (DANIEL,
1976, T.2, p. 27) Neste sentido, propôs "a invenção de represar as marés para fazer moto
contínuo", apresentada com detalhes na Sexta Parte da obra (DANIEL, 1976, T.2, p. 403).
Este invento seria viabilizado pelo baixo custo de terras e condições naturais amplamente
favoráveis, em função da topografia plana dos terrenos marginais a rios diariamente sujeitos
às altas marés. (DANIEL, 1976, T.2, p. 409)
No contexto do final do século XVIII, foi encontrada outra referência sobre o uso de maré,
em área próxima à Amazônia, desta feita no estado do Maranhão. Tratando da produção de
arroz naquele estado em 1772, o colono Joaquim de Melo assinala “para a côrte que nada
podia informar sobre os moinhos de maré pois ainda não vira seu efeito." MARQUES (1970,
p. 92)
Especificamente, em relação a engenhos de cana-de-açúcar foi encontrado um registro do
oficial Francisco Barata, que vivia no Pará e viajou até o Suriname em 1789. Em seu
relatório, ao abordar o estado da agricultura naquela colônia reportou como uma novidade a
natureza do funcionamento de engenhos locais em relação aos engenhos paraenses.
A propósito do uso de maré como motriz de engenhos na área estuarina amazônica, para
ser mais preciso, foi obtida apenas uma referência histórica, ainda que não específica. No
início do presente século, o engenheiro Palma Muniz ao reportar sobre a instalação da
colônia agrícola Nossa Senhora do Ó na Ilha das Onças em 1854, transcreve um inventário
do Engenho Boa Vista que anteriormente lá funcionava: "...Dispunha elle de uma maquina
de engenho de cylindros horizontaes de alta pressão, movido a água, moendo a canna
necessária para produzir em cada maré um pipa de aguardente...". (MUNIZ, 1916, p. 28)
Como foi observado, não foram encontradas descrições de funcionamento de engenhos
movidos a maré no estuário amazônico. O mesmo também se pode afirmar a respeito dos
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construtores destes engenhos. Em relação a este assunto, foi localizada uma informação
dando conta da visita à Província do Pará, de um engenheiro português, Joaquim Luis
Simões Lírio, ao que se supõe, durante a primeira metade do século XIX. Conforme o
registro, este engenheiro que construiu a fábrica hidráulica Tamancão em São Luis do
Maranhão, teria vindo ao Pará também para "levantar outras iguais". (MARQUES, 1970,
p.257). De fato, em viagem àquela capital, comprovamos que o sítio de nome Tamancão foi
realmente também um engenho movido a maré, e que informações sobre a época de sua
construção situavam-no seguramente na primeira metade do século XIX.
O Cenário Geográfico Estuarino
A grande incidência de engenhos está localizada na chamada zona fisiográfica guajarina,
circunvizinhanças da cidade de Belém, que se caracteriza tipicamente como uma paisagem
de estuário. Na área são observadas condições naturais específicas como uma
conformação topográfica essencialmente plana, e recortada por inúmeros rios, furos e
igarapés. De acordo com sua altitude e, por este motivo, sua evidente sujeição à influência
das inundações das marés do estuário, estes terrenos são comumente denominados na
região de "várzea alta" e "várzea baixa". As várzeas altas apresentam altitudes variando de
3 a 6m e que são atingidas apenas pelas marés sizígias nos meses de fevereiro a abril,
enquanto as várzeas baixas correspondem às terras que são atingidas pelas inundações
diárias.
Quanto ao movimento das marés, a extensa rede hidrográfica caracterizada por um grande
número de rios, igarapés, furos e canais, oportuniza sua manifestação em todo o estuário.
Referenciado localmente como enchente e vazante, este fenômeno resulta de forças de
atração que o sol e a lua exercem sobre a massa líquida da terra, ocasionando assim
oscilações periódicas do nível da água dos oceanos, até certo ponto bastante regulares,
denominadas fluxo e refluxo. O fluxo consiste na elevação deste nível d'água, o que dura 6
horas e 12 minutos, até atingir sua cota máxima, denominada "preamar". Neste ponto,
permanece por 7 minutos até iniciar o refluxo, ou seja, o abaixamento do nível d'água, que
demora também 6 horas e 12 minutos, até atingir seu nível mínimo, o "baixamar". Neste
ponto também fica parada por 7 minutos até reiniciar o fluxo. (LIMA, 1956, p. 19-25).
Arquitetura Hidráulica e Arqueologia no Estuário Amazônico
Caracterização da Arquitetura Hidráulica.
Estas obras tiveram como função capturar e reter a água da enchente da maré que
penetrava no igarapé. A interpretação de vestígios das Barragens permitiu concluir que esta
estrutura consistia em dois espessos muros autoportantes, localizados nas margens do
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igarapé, a fim de suportar a carga dos inconsistentes terrenos marginais. Estes maciços
apoiaram a comporta que atravessava o igarapé. Em relação à comporta, somente foram
encontrados indícios de sua existência, através da observação no fundo da obra, ou leito do
rio, de sulcos verticais nos muros que lhes serviam de suporte.
Em alguns sítios foram notados revestimentos do leito, possivelmente para evitar problemas
de infiltração sob as paredes e a comporta. Neste aspecto foram caracterizados blocos de
pedra lapidada e peças de madeira.
Figura 04. Planta baixa e vista da barragem do Sítio Laranjeira, rio Acará.
De um modo geral, estas obras observadas nos sítios apresentavam-se já bastante
descaracterizadas. As necessidades atuais de desobstrução dos igarapés, para fins de
navegação, ou até mesmo para obtenção de pedras para construção podem ser apontadas
como causas deste arruinamento.
Figura 05. Vista da barragem do Sítio Uriboca, rio Guamá.
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Os Canais foram interpretados como sendo as depressões nos terrenos dos sítios que
derivavam desde o igarapé Ladrão, a montante da barragem, até a calha. Classificados
como canais abertos, estas obras escavadas serviram para derivar a água represada no
igarapé Ladrão até o local da roda d'água.
O longo período de estagnação destes engenhos com a eventual obstrução da calha
provocou o quase completo aterramento decorrente da lixiviação das áreas marginais e da
contínua acumulação de sedimentos trazidos pelas enchentes das marés.
Em relação às Calhas, conforme observação de seus remanescentes nos sítios e
informações de moradores locais, estas obras correspondiam a um fosso construído no local
da fábrica do engenho. Assim como as barragens, aí eram empregadas também paredes
de quase um metro de espessura, a fim de resistir à pressão dos terrenos nas laterais. Na
grande maioria foram verificados abóbadas nas extremidades. Funcionalmente, a Calha
constitui o vertedouro através do qual a água represada no igarapé e no canal é liberada
para movimentar uma roda d'água lá instalada.
Figura 06. Desenho das obras hidráulicas do Engenho Murutucu, em Belém.
Estas obras apresentaram-se em melhor estado de conservação que as barragens. Estas
condições podem ser atribuídas à localização próxima da atual residência do morador, que
inibe o saque, e também por se encontrarem aterradas, intencionalmente para utilização do
terreno, ou naturalmente pela sedimentação comum na zona estuarina.
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A existência de entulhos de ruínas e sedimentos em seu interior, acumulados desde que o
engenho parou, impossibilitou a aferição da profundidade do fosso. Em alguns sítios a
remoção de parte destes entulhos junto às extremidades do fosso, permitiu evidenciar vãos
em forma de arco que correspondiam a galerias abobadadas que interligavam o fosso até o
rio, na frente, e ao canal, atrás. Estes artifícios além de contribuir para a solidez da
estrutura como um todo, e propiciavam um aumento de área útil no local da fábrica.
Nas abóbadas localizadas entre o fosso e o canal foram observados sulcos verticais nas
paredes laterais indicando a existência de uma comporta, tipo guilhotina, para possibilitar
controle da liberação da água. Junto ao arco desta galeria, na parte interna da calha, foram
notados degraus em cada uma das paredes laterais.
Figura 07. Desenhos de Planta e Corte da Calha do Engenho Itacuã, rio Acará.
Na maioria dos sítios esta obra apresentou-se de forma retangular, ao nível da superfície do
terreno, larguras iguais nas extremidades e no centro. Porém, em relação ao fundo, foi
observado em alguns sítios que a largura no meio era menor que nas extremidades. As
inclinações das paredes laterais neste ponto estreitam o espaço, indicando o exato local
onde as pás da roda eram impactadas. Em algumas destas obras, nas paredes laterais e
junto às abóbadas de trás também foram notados degraus de escadas de acesso ao fundo.
Materiais e Técnicas de Construção.
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Na caracterização dos materiais empregados construção das obras hidráulicas, foi
constatada a ocorrência invariável de pedras em seu estado bruto, de forma irregular, ou
blocos de pedras lapidadas, em forma de paralelepípedo de até 1m de comprimento. Foi
observado também o emprego de tijolos maciços e vazados e lajotas de barro cozido.
Conforme resultados de análises feitas por geólogos da Universidade Federal do Pará,
acerca da matéria-prima das pedras, predominaram nas alvenarias um tipo de arenito
ferruginoso conhecido localmente por Pedra-Pará. Em alguns sítios foram constatadas
amostras de um tipo de mármore, supostamente importado de Portugal. A ocorrência de
antigas pedreiras nas proximidades não foi indicada por moradores locais, mas sabe-se da
existência em 1859 de uma pedreira denominada de São João, situada a 6km de Belém.
Conforme o viajante AVÉ-LALLEMANT (1980, p. 54), este material era muito usado para
construções e pavimentação das ruas e tornava a jazida muito lucrativa para seu
proprietário, embora ressaltasse a pedra era “arenosa, muito pouco consistente, duma cor
preto-avermelhada, evidentemente com forte mistura de ferro”.
Em relação às cerâmicas, como tijolos, lajotas e telhas, sua utilização em conjunção com a
pedra nas alvenarias era predominante nas construções do século XVIII. Além disso, vale
lembrar que muitos engenhos comportavam suas próprias oficinas, como carpintarias,
ferrarias e olarias. No rejuntamento destes elementos foram constatados antiplásticos
caracterizados como areias e até fragmentos de cerâmica, predominando como ligante, a
cal. Por sinal, em algumas amostras foram observadas carapaças de moluscos associadas
a fragmentos de cerâmica indígena, o que confirma a exploração de sítios de sambaquis
para a obtenção de cal.1
Quanto à técnica construtiva, foram empregadas alvenarias ciclópicas mistas, de pedra e
tijolo em muros de até 1m de espessura. Em algumas destas paredes foram notadas
ligeiras inclinações, em forma de talude, que poderia oferecer maior resistência às pressões
do solo nas laterais, e consequentemente o eventual desmoronamento. Na solução de
fechamento de vãos, foram caracterizadas abóbadas de berço, em arcos em tijoleira.
1 Durante os levantamentos foram localizados dois sítios sambaquis, referenciados localmente como Jacarequara e Prainha, às proximidades dos alguns destes engenhos.
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Figura 08. Vistas da Calha do Engenho Santana, na Ilha de Marajó, com detalhe da abóbada em tijoleira.
A utilização da técnica de alvenaria de pedra e tijolo foi uma prática comum nas construções
do Brasil já no século de seu descobrimento (VASCONCELLOS, 1979, p. 23). Inclusive,
foram encontradas informações sobre a existência de olarias já na época da fundação de
Belém (MEIRA FILHO, 1976, p. 194). Não se pretende, contudo, concluir que materiais e
técnicas construtivos caracterizados nos sítios descobertos possam ser entendidos como
indicadores temporais.
Padrões de Estabelecimento.
A observação em conjunto das plantas baixas dos sítios permite também caracterizar
algumas considerações a respeito da localização na paisagem e das soluções técnicas
aplicadas na arquitetura das obras hidráulicas. Na falta de dados mais detalhados,
principalmente sobre formas de delimitações de propriedades em terrenos ribeirinhos
naquela época, é provável que a escolha destas opções tenha resultado de imposições
ambientais.
Especificamente, infere-se que da conjunção destas condições resultaram os seguintes
tipos de estabelecimento: 1) sítio localizado distante do igarapé Ladrão, o que exigiu a
escavação de um extenso canal aberto desde o local da barragem, até a calha, no local do
engenho; 2) sítio localizado próximo do igarapé Ladrão, o que possibilitou a construção de
barragem e calha, em uma só estrutura, no local do engenho e; 3) sítio localizado à margem
do igarapé Ladrão, onde o conjunto barragem e calha lhe atravessa o leito.
Em relação à arquitetura das calhas, a partir da observação de similaridades e diferenças de
características como forma da planta baixa e ocorrência de escadas laterais junto às
abóbadas, foi possível caracterizar três tipos: 1) sítio de calha em planta baixa de forma
retangular ao nível do terreno e escadas laterais junto às abóbadas.; 2) sítio de calha em
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forma retangular, sem escadas junto às abóbadas e 3) sítio onde a calha apresentou planta
disforme, com reentrância semicircular em uma das paredes laterais.
O estudo tem apontado que na implantação destas indústrias, três fatores tenham sido
determinantes: a disponibilidade de fonte de energia tão próximo quanto possível; a
consistência do solo para assentar as fábricas com seus implementos industriais e; a
localização em rios facilmente navegáveis, viáveis à chegada da cana de canaviais
marginais e à saída do produto para Belém. Por outro lado, conforme a caracterização do
meio físico local, os terrenos marginais de igarapés sujeitos à inundação das marés, são
também essencialmente baixos e, portanto, constituídos por solos de várzea, inadequados à
construção civil.
Considerações Finais
O estuário amazônico é cenário de empreendimentos que na história econômica da região
bem retratam um passado próspero e uma realidade de completa ruína. Esta situação foi
comprovada no grande número de engenhos assinalados na historiografia regional, e
também na quantidade de sítios localizados. Inteiramente esquecidos em meio às
plantações nos terrenos dos moradores ribeirinhos atuais, os remanescentes deste sucesso
alcançado durante o período colonial conferem aos lugares uma nova situação – de maneira
irreversível transformaram-se em... sítios arqueológicos!. Paradoxalmente, é esta
condição que permite vislumbrar medidas legais protetivas para a salvaguarda, e para tal
temos realizado o devido registro no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos, do Instituto
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
No sentido de assegurar a valorização histórica dos sítios e oportunizar a contemplação por
políticas públicas, a pesquisa tem o desafio de prosseguir com as metas de contribuir para o
conhecimento sobre padrões culturais e ecológicos da agroindústria canavieira em um
ambiente amazônico; e principalmente substanciar a elaboração de ações de educação
patrimonial de forma a obter alternativas de utilização dos espaços dos sítios para fins
culturais, de uso e assim, de conservação. Para tanto, em curto prazo, espera-se consolidar
os seguintes produtos: um Banco de Dados da Cultura Material de Engenhos Coloniais;
Organização do acervo documental e iconográfico; proposta para Exposição sobre
Arqueologia de Engenhos; Produção de Catálogo de Sítios Arqueológicos de Engenhos no
Estuário Amazônico; e Elaboração de um Sistema de Informações Geográficas para
localização, catalogação e caracterização dos engenhos coloniais no estuário amazônico.
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Figura 09. Vistas da Calha do Engenho Fazendinha, em Cutijuba.
Os exemplares estudados foram componentes importantes no processo de produção de
engenhos que existiram em tempos coloniais. Sua concepção, no contexto de uma
arquitetura funcional, atendeu a um problema crítico o da obtenção de energia, e cuja
aplicação poderia oferecer subsídios a demandas ainda presentes, como por exemplo, o da
geração de energia elétrica em pequena escala. No período de 1994 a 1999 o conhecimento
de soluções técnicas que foram empregadas no passado não apenas na construção das
obras hidráulicas, mas também no que diz respeito à localização dos engenhos fomentou a
implantação experimental de uma maremotriz para gerar energia elétrica para pequenas
comunidades ribeirinhas localizadas na zona estuarina2 (ANDERSON, NOGUEIRA &
MARQUES, 1993).
2 Projeto Energia Elétrica Gerada pela Maré: Uma Proposta para Desenvolver uma Tecnologia em Benefício de
Ribeirinhos no Estuário do Amazonas, realizado pela Universidade Federal do Pará, nas proximidades de
Belém.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
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