Arqueologia e Imperialismo: O Papel da Arqueologia na Construção de Identidades Nacionais

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O processo de formação de identidades nacionais é contínuo e de natureza dinâmica, sua influência é perceptível nas formas como se estruturam as nações, os nacionalismos e os estados nacionais. Por sua importância, este processo muitas vezes tem sido alvo de controle político por parte de governantes e forças colonizadoras, da mesma forma tem servido como baluarte ante a eminência de práticas imperialistas. Considerando as possibilidades de controle ideológico deste processo, não se pode ignorar a importância da arqueologia, pois sua própria efetivação como ciência está diretamente ligada à construção de identidades nacionais. De fato a arqueologia tem sido utilizada ao longo da história com propósitos políticos, como instrumento construtor de identidades e de apropriação simbólica de territórios. O objetivo deste artigo é abordar de forma concisa a questão da utilização política das informações produzidas pela arqueologia, demonstrando o fortalecimento desta relação a partir do século XIX e de que forma tal empreitada tem sido posta em prática ao longo da história.

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ARQUEOLOGIA E IMPERIALISMO

O Papel da Arqueologia na Construção de Identidades Nacionais*

Fabricio J. Nazzari Vicroski**

Resumo: O processo de formação de identidades nacionais é contínuo e de natureza dinâmica, sua influência é perceptível nas formas como se estruturam as nações, os nacionalismos e os estados nacionais. Por sua importância, este processo muitas vezes tem sido alvo de controle político por parte de governantes e forças colonizadoras, da mesma forma tem servido como baluarte ante a eminência de práticas imperialistas. Considerando as possibilidades de controle ideológico deste processo, não se pode ignorar a importância da arqueologia, pois sua própria efetivação como ciência está diretamente ligada à construção de identidades nacionais. De fato a arqueologia tem sido utilizada ao longo da história com propósitos políticos, como instrumento construtor de identidades e de apropriação simbólica de territórios. O objetivo deste artigo é abordar de forma concisa a questão da utilização política das informações produzidas pela arqueologia, demonstrando o fortalecimento desta relação a partir do século XIX e de que forma tal empreitada tem sido posta em prática ao longo da história.

Palavras-chave: Arqueologia. Imperialismo. Identidades.

*Artigo apresentado com requisito parcial de avaliação da disciplina História, Fronteiras e Identidades, ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Carlos Tau Golin (Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Passo Fundo).

** Mestre em História Regional pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Co-coordenador do Núcleo de Pré-História e Arqueologia (NuPHA/PPGH/UPF) http://arqueologiaupf.wordpress.com Arqueólogo da Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC/CMC/SMC) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. [email protected]

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Introdução

Ao longo do desenvolvimento da sociedade humana, diversas etapas evolutivas

propiciaram a evolução até seu estágio atual, ampliando as possibilidades de interação com a

natureza e, conseqüentemente, promovendo alterações na forma de lidarmos com o meio que

nos circunda, seja ele de ordem natural ou social.

As transformações climáticas ocorridas ao longo do período holocênico1 propiciaram a

transição dos grupos humanos estruturados como caçadores-coletores nômades para

ceramistas-horticultores sedentários ou semi-sedentários. Em decorrência deste

desenvolvimento gradual ocorreram diversas mudanças, entre as quais pode-se citar a

produção de excedentes alimentares que propiciaram o escambo e acabaram por estimular as

primeiras relações comerciais, e por conseguinte a necessidade de domínio ou delimitação de

fronteiras resguardando determinadas porções territoriais, alterando de forma substancial a

relação do homem com a natureza.

Lançaram-se então as bases para o processo de surgimento do capitalismo e da

popularização da nação como uma forma de comunidade, que entre outros fatores teve o

capitalismo como seu principal difusor (ANDERSON, 2008).

Desde então a vastidão territorial do planeta e a necessidade comum de utilização dos

recursos naturais não parecem constituir argumentos válidos ao estabelecimento das formas

de ocupação e domínios de territórios, tal impasse deve-se em grande parte à variedade de

fatores que contribuem para a definição do conceito de região. Segundo o entendimento

desenvolvido pela geografia crítica a partir dos anos 1950, “uma região se organiza a partir da

relação que o homem estabelece com a natureza, principalmente através do seu trabalho,

resultando dessa troca espaços geográficos, dotados de especificidades naturais, econômicas e

humanas” (REICHEL, 2006, p. 44).

Da mesma forma a história (englobando aqui a arqueologia), contribui para a definição

do conceito de região, “ela destaca que as relações sociais, fundamentadas nas experiências

vividas, nas idéias e nos sentimentos que os homens desenvolvem entre si, bem como a

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cultura por eles produzida, são igualmente importantes para configurar um espaço delimitado

ou, em outras palavras, para definir uma região” (idem, 2006, p. 44).

O processo de delimitação de uma região é, portanto, extremamente dinâmico, envolto

numa série de elementos resultantes das formas de ocupação do espaço ao longo do tempo.

Estendendo a discussão para a definição do conceito de fronteira, logo veremos que se trata de

um fenômeno ainda mais complexo, pois além da “fronteira formal da linha, existem as

fronteiras econômicas, sociais, culturais, ambientais, que podem limitar mais que a divisória”

(GOLIN, 2002-2004, p. 15).

O elemento importante a ser destacado é que a delimitação de regiões e fronteiras

possui implicações diretas sobre sua forma de ocupação e exploração econômica, bem como

sobre o domínio da população ali presente, justificando assim o interesse pelo passado remoto

da humanidade e a busca pelas origens das nações ainda na pré-história.

Dispomos de inúmeros exemplos em que a ciência arqueológica foi utilizada para

fortalecer, expandir ou até mesmo criar uma identidade nacional, com a intenção de nutrir

anseios nacionalistas e práticas imperialistas. O objetivo deste artigo é abordar de forma

concisa a questão da utilização política das informações produzidas pela arqueologia,

demonstrando o fortalecimento desta relação a partir do século XIX e de que forma tal

empreitada tem sido posta em prática ao longo da história.

1 Nação, nacionalismo e estado nacional

A fim de introduzir a temática, faz-se necessária uma breve explanação acerca dos

aspectos que envolvem a construção dos estados nacionais, destacando, sobretudo, a

importância da busca de suas origens para a formação de uma identidade nacional, utilizada

aqui de acordo com a definição de Anthony Smith.

Podemos definir a identidade nacional como sendo “a reprodução, transmissão e reinterpretação constante do conjunto de valores, símbolos, lembranças e mitos

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compartilhados, que compõem o legado étnico característico das nações, assim como a identificação dos indivíduos com esse legado particular e sua reserva de lembranças, mitos, símbolos e valores” (SMITH, apud MÄDER, 2006, p. 3).

Em se tratando de conceitos de ampla difusão e utilização variada (quando não

equivocada) cabe apresentar as demais acepções que balizaram esta pesquisa. A este propósito

serve as definições de nação, nacionalismo e estado nacional apresentadas por Montserrat

Guibernau (1997, p. 56-57):

• Nação (compartilha uma mesma cultura, valores e símbolos. O povo que a

compõem possui o senso de pátria);

• Nacionalismo (o sentimento de pertencimento a uma comunidade cujos

membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilos de

vida, e tem a vontade de decidir sobre seu destino político comum);

• Estado nacional (possui o que afirma ser o uso legítimo da força dentro de um

território demarcado, procura unir o povo submetido a seu governo por meio

de homogeneização, criando uma cultura, símbolos e valores comuns,

revivendo tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os).

Naturalmente a busca por uma identidade é um fator relevante nas situações

apresentadas, se por um lado ela alimenta e fortalece nações e nacionalismos, por outro ela

precisa ser forjada ou então moldada a fim de justificar os interesses do estado nacional em

determinadas situações, pois até mesmo “governos eleitos pelos mais duvidosos meios e

ditaduras também pretendem ser a expressão da vontade do povo que dominam”

(GUIBERNAU, 1997, p. 68).

Anthony Smith (1997) contribui para a reflexão defendendo a abordagem que salienta

a importância dos atributos histórico e simbólico-culturais da identidade étnica. Claro que o

etnicismo não constitui a única base para as nações modernas, mas figura entre as mais

debatidas, discussão esta muitas vezes subsidiada por dados arqueológicos.

Para Benedict Anderson a construção de uma imagem de antiguidade mostra-se

essencial à idéia subjetiva de nação (apud GUIBERNAU, 1997), quanto mais enraizados no

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tempo estiverem os elementos que prestam-se aos sentimentos nacionalistas, mais intensos

serão os argumentos a favor do fortalecimento e expansão territorial de uma nação. Não é raro

observar casos onde monumentos e símbolos nacionalistas situam-se fora das fronteiras do

estado nacional que os clama para si, seja por realmente representar determinada nação ou tão

somente por conveniência política.

É evidente enfim, a importância que o sentimento de identidade exerce na constituição

de estados e nações, além é claro de subsidiar práticas nacionalistas, tanto por parte de

governantes como de governados. Na seqüência são apresentados alguns exemplos da

manipulação ou utilização política de informações resultantes de pesquisas arqueológicas com

o intuito de fortalecer ou criar identidades nacionais.

2 Arqueologia, imperialismo e identidades

A arqueologia se consolidou como uma ciência social no século XIX, em sua origem

etimológica significa o "estudo do antigo". Está inserida na grande área das ciências sociais,

logo as sociedades constituem seu foco de pesquisas. Mais especificamente, ela dedica-se ao

estudo dos costumes, da cultura, do desenvolvimento evolutivo, enfim, do modo de vida das

sociedades passadas, as quais não são necessariamente extintas, pois o passado recente de

sociedades contemporâneas também fornece subsídios para a pesquisa arqueológica.

Quanto ao surgimento desta ciência e seu reconhecimento como tal, é natural que seja

resultado de todo um processo de amadurecimento. "A arqueologia deve sua origem aos

colecionadores de antiguidades. Somente no século XIX voltou-se para a pré-história e

história, ocupando-se da reconstituição da história humana remota e ajudando historiadores a

conhecer os períodos pouco esclarecidos pelos relatos escritos2" (KACZANOWSKI &

KOZŁOWSKI, 1998, p. 14).

Em seus primórdios, portanto, os colecionadores tiveram um papel importante, no

entanto, neste período, não havia qualquer preocupação com uma análise mais acurada dos

objetos, eles apenas eram reunidos com o intuito de compor uma coleção. Desconsiderando o

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fato de que uma análise detalhada dos vestígios no contexto em que foram encontrados

poderia resultar no levantamento de informações acerca dos povos e culturas que

desenvolveram tais objetos. Permitindo assim realizar uma associação com sua origem e

compreender, pelo menos parcialmente, o modo de vida destas populações, e não apenas

constituir uma coleção de objetos sem qualquer relação com seus artífices.

Tal preocupação somente manifestou-se de forma expressiva quando lideranças políticas

perceberam certa conveniência no estabelecimento de uma relação entre as civilizações

passadas e contemporâneas com o intuito de defender interesses nacionalistas. De acordo com

Pedro Paulo Funari (2003) “a arqueologia surgiu no bojo do Imperialismo do século XIX,

como um subproduto da expansão das potências coloniais européias e dos Estados Unidos,

que procuravam enriquecer explorando outros territórios”.

O imperialismo, ou seja, o desejo de expansão territorial encontrava-se extremamente

latente no século XIX, países como Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Japão e Estados

Unidos, desejavam estender seus domínios subjugando o maior número possível de povos e

territórios, visando constituir verdadeiros impérios. A efervescência deste desejo imperialista,

também chamado de neocolonialismo, acabou levando à eclosão da Primeira Guerra Mundial

em 1914.

A questão é que não havia territórios suficientes para serem colonizados, além do mais,

cada potência desejava uma "fatia maior", então era preciso encontrar uma forma de legitimar

a ação imperialista sobre territórios pertencentes a outros países, assim recorreu-se a

arqueologia.

Começaram então a ser desenvolvidas algumas pesquisas com a finalidade de

estabelecer um elo de ligação entre os atuais impérios e povos do passado, ou seja, se

determinada nação provasse que seus ancestrais ocupavam o território de um país vizinho, por

exemplo, e valorizasse seus feitos reconhecendo-se como herdeiros destes antepassados, estes

poderiam argumentar que tinham o direito primordial sobre determinada porção territorial. A

Alemanha tentou fazer uso de tal artifício, apregoando uma origem germânica a vestígios

arqueológicos de povos eslavos encontrados na Polônia, tentando assim expandir seu

território à supostas áreas de domínio dos antigos povos germânicos.

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A Itália, por exemplo, poderia lançar-se na conquista de territórios outrora dominados

pelo Império Romano, este projeto, inclusive foi posto em prática pelo líder fascista Benito

Mussolini, através de um regime político totalitário, felizmente, sua iniciativa acabou sendo

frustrada.

Numa outra faceta, no entanto, nações dominadas poderiam fortalecer seu sentimento

nacionalista, reconhecendo sua identidade e ensejando assim a independência.

A relação entre arqueologia e política é muito estreita, freqüentemente a primeira é

utilizada para legitimar a segunda, a "Arqueologia é sempre política, responde a necessidades

político-ideológicas dos grupos em conflito nas sociedades contemporâneas" (CLIVE

GABLE, apud FUNARI, 2003, p. 100).

No Brasil, temos como exemplo a ação imperialista dos Estados Unidos através da

aplicação do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), criado durante o

período da ditadura militar, em parceria com instituições de pesquisa brasileiras, mas

comandado por pesquisadores norte-americanos que pretendiam utilizar-se da arqueologia

para fortalecer sua supremacia no continente americano, alegando, por exemplo, de forma

preconceituosa, que os vestígios mais antigos, bem como as culturas pré-históricas mais

avançadas localizavam-se na América do Norte.

A intenção desta manipulação dos fatos era de conceder aos Estados Unidos uma

espécie de "direito legítimo" sobre o restante do continente, o que não apenas justificaria

como também legitimaria sua freqüente política de intervenção em países latino-americanos.

No Brasil, esta política de enfraquecimento da identidade indígena surtiu efeitos, pois

grande parte da população brasileira ainda hoje acredita que as sociedades pré-históricas que

aqui viviam não passavam de culturas obsoletas, e não raras as vezes buscamos na cultura

estadunidense um ponto de referência.

O PRONAPA foi desenvolvido durante os anos de 1965 e 1971, sendo o responsável

pela qualificação de muitos pesquisadores que se tornaram expoentes na arqueologia durante

as décadas seguintes. Posteriormente teve sua continuidade num programa dedicado

exclusivamente a pesquisas na Amazônia. No entanto, segundo Pedro Paulo Funari (2003, p.

26), os coordenadores deste programa, "Betty Meggers e Cliford Evans treinaram alguns

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brasileiros em uma prática de campo defasada, sem nenhuma preocupação interpretativa,

deixando de lado qualquer pretensão universitária".

Em termos de abrangência territorial, financiamento e sítios arqueológicos prospectados

este programa é singular, pois até o momento não foi superado. Betty Meggers estendeu as

pesquisas a outros países da "área de influência" dos Estados Unidos, a exemplo do Chile que,

assim como o Brasil, encontrava-se em pleno período da ditadura militar encabeçado pelo

ditador Augusto Pinochet.

É notória a ação dos militares em relação a intelectuais que contestavam o regime, no

caso da arqueologia não foi diferente, alguns pesquisadores realmente comprometidos com

desenvolvimento desta ciência, orientando-se sob uma ótica crítica e humanista, foram

perseguidos e forçados a se exilar, sendo em seguida substituídos por outros arqueólogos

seguidores de uma linha compatível com os ideais do regime político vigente, os quais,

obviamente, favoreciam o projeto norte-americano. Este controle sobre a produção científica

ainda se faz presente em nossa sociedade, porém, de forma mais sutil e através de outros

métodos de ação.

Os exemplos da utilização da ciência arqueológica como forma de justificar ações

imperialistas e fortalecer ou negar determinadas identidades nacionais estão presentes nas

mais diferentes regiões do planeta. Um exemplo da África é ilustrativo, com a intenção de

explorar as jazidas de ouro do Zimbábue, a Companhia Britânica da África Meridional

assumiu seu estabelecimento na região como sendo um símbolo do retorno da colonização

européia, apoiados em interpretações errôneas que tentavam buscar uma origem setentrional a

vestígios arqueológicos da cultura material bantu (TRIGGER, 2004, p. 128), descartando

qualquer possibilidade de florescimento de sociedades complexas no continente e,

conseqüentemente, suprimindo qualquer possibilidade de enaltecer eventuais identidades

locais.

Uma situação similar se aplica à Nova Zelândia, onde a partir do século XIX os

britânicos se depararam com tribos indígenas maori, principal empecilho para a ocupação

deste território. Pesquisas arqueológicas voltadas à busca pelas origens deste povo passaram a

ser desenvolvidas ao longo do século XX, através da qual buscou-se romper as possibilidades

de relação de antigos vestígios arqueológicos com a atual população, atribuindo-lhe sua

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origem mais remota na Índia, de onde teriam migrado para a polinésia e por fim colonizado a

região que ocupavam, pouco tempo antes da chegada dos europeus, lhes conferindo assim um

papel de colonizadores, com direitos a terra praticamente equiparados aos europeus.

Felizmente, correntes arqueológicas contrárias a tal acepção logo ganharam espaço,

comprovando a origem polinésia dos maori (TRIGGER, 2004, p. 136).

Exemplos análogos são encontrados em praticamente todos os continentes, onde as

populações nativas eram vistas como provas vivas de estágios primitivos da humanidade, e

qualquer elemento que representasse um desenvolvimento avançado da cultura local era

prontamente relacionado a origens externas, remetendo preferencialmente às origens do

colonizador.

Onde quer que os colonos europeus estivessem empenhados em estabelecer-se em meio a populações nativas, o desenvolvimento da arqueologia tinha muito em comum. Presumia-se que as sociedades nativas eram estáticas e as evidências de mudanças no registro arqueológico, quando notadas, eram atribuídas a migrações, e não ao dinamismo interno. O racismo subjacente a determinadas interpretações era sempre mais implícito que declarado. Fosse como fosse, a arqueologia colonialista servia à depreciação das sociedades nativas que os colonizadores europeus queriam dominar, ou substituir: oferecia aos colonizadores testemunhos de que, em tempos pré-históricos, faltara aos colonizados iniciativa para desenvolver-se por conta própria (TRIGGER, 2004, p. 141).

Num outro viés, a arqueologia também pode fornecer dados que fortaleçam

nacionalismos enfraquecidos ou desprovidos de referências, ou podem ainda permitir o

resgate de identidades perdidas ou atrofiadas, colocando-a como elemento de resistência em

contraposição à expansão colonizadora ou à demarcações territoriais de estados nacionais com

interesses incompatíveis aos da nação.

Em Papua-Nova Guiné, região pródiga em culturas e costumes, a pré-história mostra-se

como uma possibilidade para servir de elemento aglutinador, onde o reconhecimento de um

passado de nove mil anos pode, pelo menos em parte, promover a unificação da nação

(BARROSO, 1999).

Segundo Philip L. Kohl (1998, p. 226), “é importante distinguir arqueologia nacional de

arqueologia nacionalista, pois esta última está freqüentemente envolvida na criação e

elaboração de identidades nacionais3”.

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O fato é que a arqueologia propicia um pano de fundo para o desenvolvimento, criação,

manipulação e resgate da identidade nacional de um povo. Suas descobertas podem ser

utilizadas tanto para justificar uma ação imperialista sobre determinada população e território,

como também para repeli-la. O importante é estarmos ciente da potencialidade do

conhecimento produzido pela ciência arqueológica.

Considerações finais

O processo de formação de identidades nacionais é contínuo e de natureza dinâmica, sua

influência é perceptível nas formas como se estruturam as nações, os nacionalismos e os

estados nacionais. Por sua importância, este processo muitas vezes tem sido alvo de controle

político por parte de governantes e forças colonizadoras, da mesma forma tem servido como

baluarte ante a eminência de práticas imperialistas.

Considerando as possibilidades de controle ideológico deste processo, não se pode

ignorar a importância da arqueologia, pois sua própria efetivação como ciência está

diretamente ligada à construção de identidades nacionais. Percebe-se, uma forte relação entre

política e arqueologia, “não se trata apenas de justificar certas relações de poder, ou de

fortalecer certas ideologias, mas de legitimá-las pela presença de testemunhos materiais que

dêem sustentação científica a essas pretensões" (FUNARI, 2003, p. 101).

Para Philip L. Kohl, “o controle do passado propicia a legitimação do controle do

presente4” (1998, p. 236). Sendo determinada cultura desprovida de conhecimento acerca de

seu passado, naturalmente cria-se um campo fértil para a introdução de ideologias políticas

calcadas na manipulação da identidade nacional, posteriormente utilizada para legitimar

eventuais práticas autoritárias.

A interpretação de vestígios arqueológicos em um determinado contexto político

permite sua utilização para uma variedade de propósitos também políticos (KOHL, 1998),

cabe lembrar que a identidade nacional é de certa forma maleável, pois sua imagem nem

sempre aproxima-se da realidade, mas sim à forma como um povo deseja ser visto.

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De fato a arqueologia tem sido utilizada ao longo da história com propósitos políticos,

como instrumento construtor de identidades e de apropriação simbólica de territórios, é

importante conhecer e refletir sobre sua potencialidade como elemento de controle ideológico,

sem contudo esquecer que ela também pode fornecer subsídio à resistência contra práticas de

domínio cultural e territorial.

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ARCHAEOLOGY AND IMPERIALISM

The role of archaeology in the Construction of National Identity

Abstract: The process of formation of national identities is continuous and of dynamic nature, its influence is evident in the ways to organization the nations, in nationalisms and in national states. Given its importance, this process has been subject to political control by rulers and colonial forces, has similarly served as a bulwark against the imminence of imperialist practices. Considering the possibilities of ideological control of this process, we can not ignore the importance of archeology, because his own fulfillment as science is directly related to the construction of national identities. indeed the archeology has been used throughout history for political purposes, as an instrument builder of identities and symbolic appropriation of territory. The aim of this paper is to address concisely the question of the political use of the information produced by archeology, demonstrating the strength of this relationship from the nineteenth century and how this recourse has been implemented throughout history.

Palavras-chave: Archaeology. Imperialism. Identities.

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1 Período geológico iniciado há aproximadamente dez mil anos.

2 Tradução própria.

3 Tradução própria.

4 Tradução própria.

Bibliografia

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