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58 nhos arqueológicos não representam o único tipo de documento com que temos de contar. Usando as pa- lavras de Vitor Oliveira Jorge, «o documento pré- -histórico tem sofrido uma progressiva ampliação, pois se estende hoje não somente a todas as alterações pro- vocadas pelo homem no meio natural, de forma directa ou indirecta, mas também a todos os elementos que nos permitam reconstituir a própria evolução autóno- ma desse meio natural». Os documentos pré-históricos são, por conseguinte, de natureza muito diversificada, desde artefac- tos de diferentes materiais como ro- chas, minerais, cerâmica, metais e ligas metálicas, vidro, pigmentos, âmbar, restos de animais e restos de plantas (Figs. 1-9), até camadas de sedimentos que, embora não afec- tadas pelo homem, poderão ajudar a estabelecer cronologias e a dar in- formações sobre a evolução do meio natural, nomeadamente no que se refere ao clima. Deste mo- do, « a realidade arqueológica dei- xou há muito de ser monopólio dos arqueólogos». Exige a colaboração de cientistas de numerosas discipli- nas, entre os quais geólogos, geó- grafos, pedólogos, antropólogos, etnólogos, biólogos, paleobotâni- cos, físicos, químicos, metalurgis- tas, matemáticos, técnicos de informática, etc. Ao campo pluridisciplinar, ho- je em dia muito vasto, das aplica- ções de métodos físicos e químicos na investigação de testemunhos ar- queológicos e doutros documentos, associados não só a estudos de ar- queologia mas também a estudos de história da arte, é habitual dar-se o onstituindo os testemunhos arqueológicos o objecto principal imediato da investigação em qualquer trabalho de arqueometria convi- rá, antes de mais, dizer ao leitor, particularmente ao menos informado sobre o que trata a arqueologia, o que são tais testemunhos. Segundo Gordon Childe, um dos maiores pré-historiadores da primeira metade deste século, «entre os resultados sobreviventes do compor- tamento humano os mais familiares são, evidente- mente, as coisas que os homens criaram ou destruiram e que podem ser chamados artefactos. Isto abran- ge, por um lado, instrumentos, ar- mas, objectos de adorno pessoal, enfeites, estatuetas e, por outro la- do, casas de habitação, templos, castelos, canais, túmulos, ruínas... Mas nem todos os dados arqueo- lógicos... podem ser de maneira al- guma chamados artefactos... As li- gações dos monumentos e objectos com o ambiente humano também podem ser dados arqueológicos. O local de fixação em relação aos bons lugares de pesca, terrenos de fácil cultivo ou portos abrigados, pode dar uma indicação decisiva quanto às actividades e economia dos colonos. Um ambiente natural é portanto um incentivo e um limi- te à acção humana. Ao mesmo tem- po a acção do homem pode por si só afectar profundamente o am- biente exterminando alguns animais e introduzindo outros, derrubando florestas e transformando estepes cobertas de erva em campos úteis. Estas mudanças são fundamental- mente o resultado da acção huma- na». Note-se, contudo, que no que se refere à pré-história os testemu- Pretende, investigando os testemunhos acidentalmente sobreviventes da acção humana e outros documentos importantes em estudos de arqueologia e também de história da arte, contribuir – mediante métodos das ciências físicas – para a interpretação de tais testemunhos e documentos ou mesmo para a prospecção dos sítios arqueológicos. ARQUEOMETRIA JOÃO M. PEIXOTO CABRAL C Licenciado e doutorado em engenharia quími- ca pela Universidade Técnica de Lisboa, agre- gado de química inorgânica e análise da mesma Universidade, João Peixoto Cabral é hoje Direc- tor do Departamento de Química do Instituto de Ciências e Engenharia Nucleares, Laborató- rio Nacional de Engenharia e Tecnologia Indus- trial; é também professor catedrático convidado do Instituto Superior Técnico. Investigador no domínio da radioquímica, um dos seus interes- ses científicos actuais situa-se na área da ar- queometria, onde tem produzido obra valiosa, publicada em numerosas revistas e livros da es- pecialidade.

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nhos arqueológicos não representam o único tipo dedocumento com que temos de contar. Usando as pa-lavras de Vitor Oliveira Jorge, «o documento pré--histórico tem sofrido uma progressiva ampliação, poisse estende hoje não somente a todas as alterações pro-vocadas pelo homem no meio natural, de forma directaou indirecta, mas também a todos os elementos quenos permitam reconstituir a própria evolução autóno-ma desse meio natural».

Os documentos pré-históricossão, por conseguinte, de naturezamuito diversificada, desde artefac-tos de diferentes materiais como ro-chas, minerais, cerâmica, metais e ligas metálicas, vidro, pigmentos,âmbar, restos de animais e restos deplantas (Figs. 1-9), até camadas desedimentos que, embora não afec- tadas pelo homem, poderão ajudara estabelecer cronologias e a dar in-formações sobre a evolução domeio natural, nomeadamente noque se refere ao clima. Deste mo-do, «a realidade arqueológica dei-xou há muito de ser monopólio dosarqueólogos». Exige a colaboraçãode cientistas de numerosas discipli-nas, entre os quais geólogos, geó-grafos, pedólogos, antropólogos,etnólogos, biólogos, paleobotâni-cos, físicos, químicos, metalurgis-tas, matemáticos, técnicos deinformática, etc.

Ao campo pluridisciplinar, ho-je em dia muito vasto, das aplica-ções de métodos físicos e químicosna investigação de testemunhos ar-queológicos e doutros documentos,associados não só a estudos de ar-queologia mas também a estudos dehistória da arte, é habitual dar-se o

onstituindo os testemunhos arqueológicos oobjecto principal imediato da investigaçãoem qualquer trabalho de arqueometria convi-

rá, antes de mais, dizer ao leitor, particularmente aomenos informado sobre o que trata a arqueologia, oque são tais testemunhos. Segundo Gordon Childe, umdos maiores pré-historiadores da primeira metade desteséculo, «entre os resultados sobreviventes do compor-tamento humano os mais familiares são, evidente-mente, as coisas que os homenscriaram ou destruiram e que podemser chamados artefactos. Isto abran-ge, por um lado, instrumentos, ar-mas, objectos de adorno pessoal,enfeites, estatuetas e, por outro la-do, casas de habitação, templos,castelos, canais, túmulos, ruínas...Mas nem todos os dados arqueo-lógicos... podem ser de maneira al-guma chamados artefactos... As li-gações dos monumentos e objectoscom o ambiente humano tambémpodem ser dados arqueológicos. Olocal de fixação em relação aosbons lugares de pesca, terrenos defácil cultivo ou portos abrigados,pode dar uma indicação decisivaquanto às actividades e economiados colonos. Um ambiente naturalé portanto um incentivo e um limi-te à acção humana. Ao mesmo tem-po a acção do homem pode por sisó afectar profundamente o am-biente exterminando alguns animaise introduzindo outros, derrubandoflorestas e transformando estepescobertas de erva em campos úteis.Estas mudanças são fundamental-mente o resultado da acção huma-na». Note-se, contudo, que no quese refere à pré-história os testemu-

Pretende, investigando os testemunhos acidentalmente sobreviventes da acção humana e outrosdocumentos importantes em estudos de arqueologia e também de história da arte, contribuir

– mediante métodos das ciências físicas – para a interpretação de tais testemunhos edocumentos ou mesmo para a prospecção dos sítios arqueológicos.

ARQUEOMETRIA

JOÃO M. PEIXOTO CABRAL

C

Licenciado e doutorado em engenharia quími-ca pela Universidade Técnica de Lisboa, agre-gado de química inorgânica e análise da mesmaUniversidade, João Peixoto Cabral é hoje Direc-tor do Departamento de Química do Institutode Ciências e Engenharia Nucleares, Laborató-rio Nacional de Engenharia e Tecnologia Indus-trial; é também professor catedrático convidadodo Instituto Superior Técnico. Investigador nodomínio da radioquímica, um dos seus interes-ses científicos actuais situa-se na área da ar-queometria, onde tem produzido obra valiosa,publicada em numerosas revistas e livros da es-pecialidade.

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Fig. 1 – Ponta de silex em forma de folha de loureiro, de Vale Almoinha (Cambelas, Torres Vedras). Paleolítico Superior (Solutrens).

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nome de arqueometria. O uso deste termo ficou adever-se à vulgarização da palavra archaeometry, es-colhida pelo Research Laboratory for Archaeologyand the History of Art , da Universidade de Oxford,para título da revista que começou a ser editada poresse laboratório, em 1958, destinada à publicação deartigos de investigação e de artigos de revisão sobretrabalhos realizados aí ou noutros laboratórios, envol-vendo o emprego daqueles métodos na referida inves-tigação. Repare-se que a arqueometria, encarada nestaacepção, não compreende os campos, não menos vas-tos e importantes, das aplicações de métodos própriosdas ciências da Terra, das ciências biológicas e das ciên-cias exactas na mesma investigação. Por vezes, embo-ra raramente, o termo arqueometria é tambémutilizado num sentido amplo, ou seja, para designar odomínio global da interacção das ciências naturais edas ciências exactas com a arqueologia e a história daarte.

A arqueometria, encarada de acordo com a acep-ção estrita e tendo em atenção os tipos de métodos quese aplicam, compreende essencialmente três grandesáreas: (1) a prospecção arqueológica; (2) a datação ab-soluta; e (3) a análise de materiais. As designações dasduas primeiras são suficientemente esclarecedorasquanto aos seus objectivos. Mas a da terceira exige umaexplicação. É claro que a análise dos testemunhosarqueológicos e doutros documentos tem sempre por

fim imediato a caracterização dos materiais de que sãofeitos tais testemunhos e documentos, caracterizaçãoessa que poderá ser mineralógica, química, estruturale/ou isotópica, dependendo da natureza dos objectosem causa. O seu objectivo final é que pode ser diver-so. Destacaremos os seguintes: (3.1) a determinaçãoda proveniência dos artefactos, importante para o es-tudo das relações comerciais e, consequentemente,para a compreensão dos processos de permuta cultu-ral; e (3.2) o conhecimento das tecnologias usadas nafabricação de certos materiais, designadamente cerâ-mica, metais e vidro, essencial para solucionar algunsdos problemas mais interessantes na história da huma-nidade como, por exemplo, o problema das origense evolução da metalurgia.

Dada a vastidão do campo da arqueometria, mes-mo quando considerado de acordo com a acepção es-trita, não podemos, neste curto texto, informar o leitorde maneira minimamente inteligível sobre todos osseus aspectos, tanto no respeitante aos métodos apli-cados como no que se refere aos resultados obtidos eà sua importância para o avanço dos estudos de ar-queologia e de história da arte. Poderiamos, sim,enumerar-lhe esses métodos, em cada uma das áreasacima mencionadas, e expor-lhe brevemente um ououtro resultado a que se tem chegado por meio deles.Julgamos, contudo, que tal procedimento seria dema-siado fastidioso para o leitor e que, além disso, dificil-

Fig. 2 – Objectos de adorno do concheiro de Moita do Sebastião (Muge). Em cima: 1 concha de Cerastoderma edule (ex. Cadium edule) eum seixo de xisto; em baixo: três conchas de Theodoxa fluviatilis (ex. Nerithina fluviatilis ). Mesolítico.

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mente lhe permitiria tomar consciência do interessedas aplicações dos métodos das ciências físicas na in-vestigação histórica. Preferível será, no nosso enten-der, focar a atenção num conjunto restrito de questões,das quais pelo menos uma tenha contribuído substan-cialmente para o progresso daqueles estudos. Destemodo, talvez consigamos despertar no leitor um cer-to gosto pela arqueometria, que o estimule a procurarsaber mais sobre as matérias que vamos apresentar-lhee a informar-se sobre muitas outras que deliberadamen-te omitimos. A nossa selecção confina-se às áreas dadatação absoluta e da análise de materiais, e nessasáreas às questões da datação pelo radiocarbono e dadeterminação da proveniência de artefactos, respecti-vamente. Não esconde o autor que, para esta selecção,contribuiu também a circunstância de tais questões se-rem aquelas a que ele próprio tem dedicado ultima-mente uma parte significativa da sua actividade deinvestigação.

I - DATAÇÃO PELO RADIOCARBONO

Nem todos os átomos do carbono são iguais. Nanatureza existem três espécies – os isótopos 12C, 13Ce 14C – todos eles constituídos por um núcleo com

seis protões, electricamente carregado com carga po-sitiva, rodeado por seis electrões com carga negativa,o qual difere de espécie para espécie quanto ao núme-ro das outras partículas de que é feito – os neutrões.O núcleo do 12C possui seis neutrões, o do 13C sete eo do 14C oito. Dos três isótopos do carbono, os doisprimeiros são estáveis. O mais abundante é o 12C, queocorre numa percentagem média de 98,89%. Repare--se que o seu número de neutrões iguala o de protões.A percentagem média do 13C é de 1,11%. Neste caso,o número de neutrões excede em uma unidade o deprotões. O menos abundante é o 14C, cuja percenta-gem média no carbono dos seres vivos, por exemplo,é muitíssimo mais pequena (0,00000000012%). Esteterceiro isótopo do carbono já não é estável mas simradioactivo e, por isso, deu-se-lhe o nome de radio-carbono. Note-se que o número de neutrões do res-pectivo núcleo excede em duas unidades o deprotões. É precisamente por ter demasiados neutrõesem relação ao número de protões que o 14C não é es-tável. O seu núcleo apresenta uma tendência para re-duzir espontaneamente a desproporção de neutrões,transformando-se em um núcleo de azoto-14, 14N, on-de o número de neutrões (sete) passa a ser igual ao deprotões. Esta transformação é acompanhada pela emis-

Fig. 3 - Espólio da Anta Grande da Comenda da Igreja (Montemor-o-Novo). Neolítico Final/Calcolítico.

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são de uma partícula beta (um electrão) e de um anti-neutrino (a antipartícula do neutrino) [ver De que sãofeitas as coisas? Colóquio/Ciências, N.° 21].

Porque Existe Radiocarbonona Natureza

Os raios cósmicos emitidos pelas estrelas, ao pe-netrarem na atmosfera terrestre, reagem com núcleosde átomos dos elementos constituintes do ar dando ori-gem a diversas partículas, entre as quais neutrões deenergia elevada. Alguns desses neutrões, depois de per-derem a maior parte da sua energia em processos decolisão com núcleos de diversos átomos, reagem porsua vez com núcleos de átomos de azoto-14 conduzin-do à formação de radiocarbono.

Fig. 4 – Copo canelado e vasos campaniformes, de Casal do Pardo (Palmela) e Lapa da Rotura (Setúbal). Calcolítico.

14C – 14N + β - + ν–�

A taxa de declínio radioactivo do 14C é caracteri-zada pelo período desta espécie, que é igual a 5 730anos. Quer isto dizer que, se num certo instante hou-ver uma dada quantidade de átomos de radiocarbono,decorridos 5 730 anos haverá metade dessa quantida-de; passados 2 x 5 730 = 11 460 anos subsistirá meta-de da metade, ou seja 1/4; volvidos 3 x 5 730 = 17 190anos restara 1/8; etc... O leitor determinará facilmen-te que ao fim de 10 períodos, i. e., de 57 300 anos,já só haverá cerca de 0,1 % da quantidade de átomosde 14C existentes no início. Assim, se atendermos aque a Terra se formou há cerca de 4 500 milhões deanos, não poderemos deixar de reconhecer que prati-camente todo o 14C que terá existido na Terra na al-tura da sua formação já se transformou em 14N e que,por isso, a ocorrência de radiocarbono na natureza sedeverá a fenómenos que conduzem à sua produçãocontínua no nosso planeta.

n + 14N – 14C + 1H

O radiocarbono está, portanto, a ser continuamenteproduzido na Terra, a um ritmo que se estima andarà volta de 7,5 kg/ano. Por outro lado, em virtude deser radioactivo, está a ser sistematicamente transfor-mado em 14N de acordo com uma taxa de declíniocorrespondente ao período de 5 730 anos. Assim, aquantidade de 14C existente na Terra permanece pra-ticamente constante, em resultado do equilíbrio quese estabelece entre o ritmo da sua produção e a taxa

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do seu declínio radioactivo. Essa quantidade é de cer-ca de 62 toneladas e representa, de facto, uma peque-níssima percentagem da quantidade total do carbononatural.

A comprovação da existência de radiocarbono nanatureza foi feita por Libby e colaboradores, em 1947,medindo a sua radioactividade numa amostra de me-tano colhida dos efluentes gasosos da instalação de tra-tamento de esgotos da cidade de Baltimore. Constituiuo primeiro acto duma série de experiências planeadaspor aquele investigador com base na ideia de que o14C produzido nas altas camadas da atmosfera acaba-ria por se distribuir não só pelo resto da atmosfera mastambém por outros reservatórios de carbono, nomea-damente o oceano e a biosfera.

O Radiocarbono como Meio paraEstabelecer uma Cronologia Absoluta

Segundo Libby, na atmosfera os atomos de 14Cproduzidos começariam por reagir com moléculas deoxigénio do ar originando moléculas de dióxido de car-bono, 14CO2, que se dispersariam depois por toda aatmosfera e se misturariam com as moléculas de dió-xido de carbono estável, 12CO2 e 13CO2, existentesneste reservatório. A distribuição do 14C pelo oceano

Fig. 6 – Machado de talão e dupla azelha, do depósito de Paredesde Coura. Idade do Bronze.

Fig. 5 – Espólio de sepultura individual da Quinta da Água Branca, Vila Nova de Cerveira. Idade do Bronze Inicial.

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Fig. 7 – Vaso de cerâmica decorada, de Santa Vitória de Ervidel(Beja). Idade do Bronze.

Fig. 8 – Elemento de arreio de cavalo, da necrópole de Olival doSenhor dos Mártires (Alcácer do Sal). 1.a Idade do Ferro.

Fig. 9 – Conjunto de garrafas da sepultura do Pombalinho (Santarém). Finais do Séc. I d.C./segundo quartel do séc. II d.C.

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seria consequêcia da reacção reversível do CO2

atmosférico com a água (H2O), a qual dá origem aosiões bicarbonato e carbonato. Por outro lado, a sua dis-tribuição pela biosfera dever-se-ia quer às reacções da-quele gás com as plantas, de acordo com o processode fotossíntese, quer às reacções que promovem o me-tabolismo do carbono nos animais, quer ainda às reac-ções ligadas à respiração de animais e plantas quelevam à produção de CO2 e H2O (Fig. 10). A mortedos seres vivos poria termo às trocas de carbono en-tre eles e o seu ambiente, resultando daí que o teor de14C naturalmente existente na matéria viva passaria adiminuir na matéria morta de acordo com o períodocaracterístico do declínio desta espécie radioactiva. As-sim, seria possível datar materiais carbonados recor-rendo à lei geral do declínio radioactivo, desde quese soubesse, com rigor, o valor do período do radio-carbono, se conhecesse o teor de 14C na matéria vivae ele fosse uniforme em todas as regiões da Terra, seadmitisse que este teor não teria variado ao longo dotempo, e se determinasse o teor de 14C nos materiaisque se pretendia datar.

O método mais frequente para determinar os refe-ridos teores baseia-se na medição da actividade espe-cíf ica do 14C, i .e., do número de partículas betaemitidas por unidade de tempo e por unidade de mas-sa de carbono. Na verdade, de acordo com a lei geralque regula o fenómeno da desintegração radioactiva,a actividade do 14C é proporcional ao número de áto-mos presentes desta espécie. Se no instante t houverN átomos de 14C, a actividade nesse instante será da-da por

onde A representa a actividade específica do 14C noinstante t (a actividade específica na amostra cuja datase pretende determinar) e Ao a actividade específicado 14C no instante t = 0 (a actividade específica na ma-téria viva).

A data da amostra determina-se, portanto, pela ex-pressão

Fig. 11 – Actividade específica do 14C medida em amostras de ida-de conhecida. A curva a cheio representa os valores calculados combase na lei geral do declínio radioactivo (adaptado de W. F. LibbyRadiocarbon Dating, 1952, p. 9).

Fig. 10 – O 14C produzido nas altas camadas da atmosfera distribui--se pela atmosfera, oceanos e biosfera, sendo continuamente per-mutado entre esses reservatórios.

onde λ, a constante de desintegração, está relaciona-da com o período t1/2 pela expressão λ = ln 2/t1/2. In-tegrando aquela equação entre 0 e t, e tomando emconta a definição de actividade específica, obtém-se

- dN = λ N (1)

dt

A = Ao exp (-ln 2

t) (2)t1/2

t = t1/2 ln

Ao (3)ln 2 A

A fim de demonstrar que o radiocarbono poderiaser usado para datar materiais em termos absolutos,Libby e colaboradores começaram por provar, em1949, medindo a actividade específica dessa espécieradioactiva em amostras de madeira e de conchas ma-rinhas de origem recente, colhidas em diferentes lu-gares da Terra, que ela se mantém praticamenteuniforme na matéria viva qualquer que seja o lugaronde se encontre. Mostraram, em seguida, medindoa actividade específica do 14C em amostras de anéisde árvores e em amostras de madeira colhidas de cai-xões de múmias e barcos funerários do antigo Egipto,de idade conhecida, que os resultados obtidos concor-davam satisfatoriamente com os valores calculados apartir da equação que traduz a lei geral do declínio ra-dioactivo (Fig. 11).

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Como veremos, a aplicação do método de dataçãopelo radiocarbono em estudos de arqueologia teve con-sequências verdadeiramente revolucionárias. Porém,não foi só nesta disciplina que isso se verificou. O seuemprego mostrou-se também muitíssimo importanteem geologia, geofísica e noutras disciplinas das ciên-cias naturais que se ocupam do estudo de acontecimen-tos ocorridos nos últimos 50 000 anos. Daí que Libbytivesse sido galardoado em l960 com o prémio Nobelda química.

A Primeira Revolução do Radiocarbono

Meia dúzia de anos de aplicação do método de da-tação pelo 14C bastaram para alterar significativamen-te alguns aspectos da imagem da pré-história oferecidapela arqueologia da primeira metade do século.

Um desses aspectos é o que está relacionado coma invenção da agricultura. As datas de radiocarbonoobtidas para alguns estabelecimentos agrícolas doPróximo-Oriente e da Europa vieram mostrar, em am-bos os casos, que tal invenção era muito mais antigado que se pensava. Datações subsequentes para outrosestabelecimentos agrícolas da Europa mostraram, alémdisso, que a agricultura não fora iniciada ao mesmotempo em todos os lugares. Na verdade, as datas de radiocarbono determinadas para os primeiros estabe-lecimentos agrícolas da Grécia andavam à volta de8 000 BP (*), indicando que eram posteriores às dosestabelecimentos do mesmo tipo do Próximo-Oriente(anteriores a 9 000 BP). As obtidas para os primeirosestabelecimentos agrícolas da Europa Orientalrevelaram-se, por sua vez, ulteriores às dos estabeleci-mentos da Grécia, podendo dizer-se que na EuropaOriental tais estabelecimentos só estariam largamenteenraizados por volta de 7 000 BP. Verificou-se, por ou- ro lado, que as datas dos primeiros estabelecimentosagrícolas da Europa Central e Setentrional andavam àroda de 6 500 BP e que no caso da Europa Ocidentalelas se situavam próximo de 5 000 BP. Contudo, é denotar que, embora cada uma dessas datas fosse muitodiferente do que se previa, os resultados obtidos pormeio do radiocarbono não vieram pôr em xeque as re-lações previamente estabelecidas pelos arqueólogos,em termos de cronologia relativa, entre as diferentesáreas da Europa e o Próximo-Oriente. Vieram, sim, de-monstrar que a velocidade de difusão das primeiras téc-nicas agrícolas teria sido mais lenta do que se julgava.A primazia do Oriente, postulada pelos difusionistas,permaneceu inquestionável.

Outro aspecto da imagem da pré-história que so-freu alterações substanciais, em consequência, da in-

(*) As datas de radiocarbono são expressas em relação ao pre-sente, definido por convenção como sendo o ano de 1950 d.C.. Osímbolo BP, universalmente adoptado, deriva das palavras inglesasBefore Present.

trodução do método do radiocarbono, é o correspon-dente ao Paleolítico, em particular ao Paleolítico Su-perior da Europa, período que teve início há cerca de35 000 anos. Com efeito, no fim da década de 50, jáse conseguira reunir um número de datas de radiocar-bono suficientemente grande para permitir organizarcronologicamente as culturas europeias do referido pe-ríodo de maneira muitíssimo mais exacta do que an-tes. Além disso, foi possível datar, com razoável rigor,algumas das mais belas obras de arte do homem pré--histórico na gruta de Lascaux, na região de Dordog-ne, designadamente as suas impressionantes pinturasrupestres (Fig. 12). Também neste caso o método dedatação pelo radiocarbono conduziu a um resultadoinesperado: a data obtida foi de 15 520 ± 900 BP,muito posterior à prevista. Repare-se que, ao contrá- rio do que se verificara em relação à invenção da agri-cultura, este resultado veio mostrar que as primeiraspinturas de qualidade excepcional produzidas pelo ho-mem teriam sido feitas muito mais tarde do que se ad-mitia. Alguns anos depois, foi possível datar osmateriais da pequena gruta La Tête du Lion, na comu-na de Bidon, os quais são do “estilo III” segundo a no-menclatura de Leroi-Gourhan, i.e., do estilo anteriorao que assinala o apogeu da arte paleolítica. Neste se-gundo caso, o resultado obtido foi de 20 650 ± 800BP, confirmando a idade aproximada que havia sidoatribuída às pinturas daquele estilo.

Um terceiro aspecto da imagem da pré-história quefoi completamente alterado em resultado da aplicaçãodo método do radiocarbono é o relacionado com aperspectiva global do mundo pré-histórico. Até à al-tura do aparecimento deste método, os arqueólogostinham conseguido elaborar uma estrutura cronológi-ca para a Europa estudando o intercâmbio de produ-tos entre o Egipto e as regiões adjacentes, particular-mente o Egeu, e, em seguida, procurando encontrarsincronismos entre as culturas do Egeu e as culturasdas restantes regiões da Europa. Mas o mesmojá não foram capazes de fazer para a África e a Ásia,em virtude de o número de dados arqueológicos paraestes continentes ser muito reduzido e as dificuldadesdemasiado grandes. Por outro lado, para as Américase as regiões do Pacífico nem sequer havia possibilida-de de o fazer, por motivos de natureza geográfica. Mes-mo assim, alguns arqueólogos – os chamadoshiperdifusionistas – atreveram-se a datar a civilizaçãomesoamericana com base em supostas ligações com oEgipto. Ora, o método do radiocarbono veio permitirque se começassem a construir estruturas cronológi-cas para estes continentes e, além disso, que se fizessea unificação dessas estruturas e da estrutura cronoló-gica já existente para a Europa. Tornou-se possível,deste modo, estudar as culturas e civilizações pré--históricas das diferentes partes do Mundo de uma ma-neira completamente independente, e compará-lasnuma perspectiva mundial. Não é de estranhar, porconseguinte, que a primeira pré-história mundial só ti-vesse sido publicada em 1961.

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Fig. 12 – Pormenor duma pintura rupestre na gruta de Lascaux (fotografia de Éditions d’Art Albert Skira S.A.).

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Necessidade de Calibrar asDatas de Radiocarbono

Se é certo que as datas de radiocarbono obtidas nasegunda metade da década de 50 não puseram em cau-sa, em termos de cronologia relativa, as relações quetinham sido estabelecidas pelos arqueólogos entre asdiferentes áreas da Europa e do Próximo-Oriente, certoé também que algumas dessas datas não se mostraramcoerentes com a estrutura admitida. Isso aconteceucom as datas determinadas para vários túmulos mega-líticos de falsa cúpula da Bretanha, para alguns esta-belecimentos calcolíticos dos Balcãs e ainda paradiversas amostras colhidas em estações arqueológicasdo Egipto, correspondentes ao período compreendi-do entre 3 000 e 2 000 a.C., cujas datas históricas eram co-nhecidas. Neste último caso verificou-se mesmo, aocontrário do que se julgava ter ficado antes demons-trado, que as datas de radiocarbono eram sistematica-mente mais recentes (de alguns séculos) do que as datashistóricas. A princípio os desvios observados foramatribuídos a erros aleatórios, alegando-se que a técni-ca de medição da actividade específica do 14C não ti-nha atingido ainda uma precisão suficientemente boa.Todavia, logo que se obteve um número considerávelde datas de radiocarbono tornou-se evidente que se tra-tava, de facto, de um desvio sistemático e que, por-tanto, o motivo da anomalia era outro; ou o teor de14C na biosfera terrestre, entre 3 000 e 2 000 a.C., te-ria sido maior do que é hoje, ou haveria qualquer coi-sa errada na cronologia estabelecida pelos arqueólogospara o Egipto com base em documentos escritos. Ce-do se averiguou que o erro estava no postulado de queo teor de 14C na biosfera não teria variado no decur-so do tempo.

Na comprovação de que este postulado era falsodesempenhou um papel muito importante a investiga-ção desenvolvida paralelamente na área da dendrocro-nologia, sobretudo com certos pinheiros dasMontanhas Brancas da Califórnia, em particular da es-pécie Pinus longaeva (Fig. 13), alguns dos quais che-gam a atingir idades de quase 5 000 anos. A referidainvestigação permitiu que se viesse a dispor de umasequência contínua de anéis de árvores, em que cadaanel corresponde a um ano de crescimento, sequên-cia essa que já abrange actualmente um intervalo pró-ximo de 9 000 anos. Assim, foi possível determinar asdatas de radiocarbono de um grande conjunto deamostras de madeira seleccionadas daquela sequênciadendrocronológica, cada uma das quais compreendia10 anéis, i.e., equivalia a intervalos de 10 anos, e cor-relacionar as datas determinadas com as datas de ca-lendário. Os primeiros resultados obtidos forampublicados nos últimos anos da década de 60, porSuess, para o intervalo de tempo compreendido entre5 400 a.C. e o presente. Tais resultados vieram mos-trar que as datas de radiocarbono determinadas parao período anterior a 1 200 a.C. eram sistematica-

Fig. 13 – Pinheiro da espécie Pinus longaeva. Esta árvore desempe-nhou um papel muito importante na calibração de datas de radio-carbono (fotografia de W. Robert Moore © 1958 National Geographic Society).

Fig. 14 – Relação entre datas de radiocarbono e datas de calendário. O segmento de recta representa a relação 1:1 (adaptado de G. W. Pearson Antiquity, 61, 1987, p. 98).

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mente mais recentes do que as indicadas pelos dendro-cronologistas, como acontecia com as datas obtidas pa-ra as amostras das estações arqueológicas egípcias. Porconseguinte, o teor de 14C na biosfera terrestre, nes- sa altura, tinha sido mais elevado do que é hoje. Poroutras palavras, os referidos resultados vieram provarque “um ano de radiocarbono” não corresponde exac-tamente a um ano do calendário solar.

A curva que estabelece a relação entre as datas deradiocarbono e as datas de calendário designa-se emgeral por curva de calibração. Hoje em dia já se esten-de até um pouco antes de 7 500 a.C. (Fig. 14) e, devi-do aos progressos feitos, por um lado, emdendrocronologia de carvalhos europeus e, por outrolado, na técnica de medição da actividade específicado 14C, possui uma precisão e um rigor muito maio-res do que a de Suess. Não obstante, já no fim da déca-da de 60 se tornara claro que há dois tipos de variaçõesnaturais com o tempo do teor de 14C na biosfera ter-restre: 1) uma variação de longo período, traduzida poruma diferença progressiva entre as datas de radiocar-bono e as datas de calendário, a qual atinge um máxi-mo de cerca de 800 anos à volta de 5 000 a.C.; e 2)variações de curto período, do tipo observado pela pri-meira vez por De Vries, em 1958, que se sobrepõemà variação de longo período.

Causas das Variações Naturais com oTempo do Teor de 14C na Biosfera

Diversas causas têm sido sugeridas para explicar asvariações naturais do teor de 14C na biosfera terrestre,com o tempo, as quais podem classificar-se em duascategorias: 1) causas que promovem alterações do rit- mo de produção do 14C nas altas camadas da atmos-fera, nomeadamente variações da intensidade e/ou dacomposição dos raios cósmicos galácticos, i.e., dosraios cósmicos que provêm de regiões do espaço ex-teriores ao sistema solar, variações da actividade so-lar e variações do campo magnético terrestre; e 2)causas que produzem alterações dos parâmetros do ci-clo do carbono (como, por exemplo, as dimensões dosreservatórios, a velocidade de permuta do carbono en-tre esses reservatórios, e a quantidade de dióxido decarbono na atmosfera), designadamente variações defactores climáticos ou ambientais.

A opinião que mais tem sido manifestada relativa-mente à variação natural de longo período do teor de14C é a de que ela se deve sobretudo à variação como tempo do campo magnético terrestre, em particularda intensidade do campo geomagnético dipolar. Co-mo as partículas primárias dos raios cósmicos (sobre-tudo protões e partículas alfa) possuem carga eléctricae, por isso, são deflectidas pelo campo geomagnéticodipolar, excepto quando se movem paralelamente às linhasde força, à medida que a intensidade desse cam-po for, por exemplo, diminuindo menos raios cósmi-cos serão deflectidos, mais neutrões serão produzidos

por unidade de tempo nas altas camadas da atmos- fera, maior será o ritmo de produção de 14C na Terra e, dado que a taxa do seu declínio radioactivo é cons- tante, mais elevado se tornará o teor de 14C no carbo-no natural. Alguns investigadores procuraram indagarse haveria uma correlação entre a variação com o tem-po do campo geomagnético dipolar e a variação como tempo do teor de 14C na biosfera terrestre, o que,a verificar-se, seria muito vantajoso, pois talvez pudes-se permitir extrapolar a curva de calibração para valo-res aquém do limite inferior atingido presentementepor essa curva e calibrar datas de radiocarbono ante-riores a 8 000 BP. Contudo, os resultados obtidos(Fig. 15), que se traduzem por variações sinusoidais da-quelas grandezas, não merecem por enquanto grandeconfiança, em particular os que se referem à variaçãodo campo geomagnético dipolar cujo esclarecimentoexige a prossecução dos trabalhos de investigação.

Fig. 15 – Variação com o tempo do teor de 14C na biosfera terrestre (curva a cheio) e da intensidade do campo geomagnético dipolar (cur- va a tracejado). As ordenadas à esquerda representam diferenças,traduzidas em anos de radiocarbono, entre os teores de 14C dasamostras depois de transformados em relação ao ano de 1950 re-correndo à lei do declínio radioactivo, e o teor de 14C da amostra referente a esse ano. Adaptado de R. E. Taylor, Radiocarbon Da- ting: An Archaeological Perspective, 1987, p. 28.

Quanto às variações naturais de baixo período doteor de 14C, julga-se que elas são devidas, por um la-do, a alterações da actividade solar e, por outro, à va-riação com o tempo do campo geomagnético nãodipolar. Desde o início dos anos 50 que se sabe quea intensidade dos produtos secundários dos raios cós-micos galácticos exibe uma periodicidade à roda de 11anos, aproximadamente sincronizada com o ciclo decerca de 11 anos das manchas solares, as quais são amanifestação da actividade solar mais facilmente ob-servável pelo homem, correspondendo a regiões decampo magnético extraordinariamente elevado e maisfrias do que as regiões fotosféricas adjacentes. O mí-nimo valor do fluxo de raios cósmicos galácticos é atin-gido quando o número de manchas solares é máximoe vice-versa. Este sincronismo tem sido explicado doseguinte modo. Os raios cósmicos provenientes de es-trelas distantes aproximam-se do sistema solar em to-das as direcções e mais ou menos uniformemente.Quanto entram dentro deste sistema são dispersos nomeio interplanetário por irregularidades magnéticas

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associadas ao vento solar. Devido ao movimento ra-dial de tais irregularidades, as interacções que se dãoprovocam uma alteração da velocidade das particulasdispersas, conferindo-lhes uma componente geralmen-te orientada para fora do sistema solar, donde resultauma diminuição da intensidade dos raios cósmicos ga-lácticos no interior do referido sistema. Assim, sem-pre que a actividade solar aumenta, diminui o fluxodos raios cósmicos galácticos que atingem a Terra detal modo que a intensidade total destes raios na regiãocorrespondente à órbita da Terra passa a ser, nos mo-mentos em que o número de manchas solares é máxi-mo, cerca de metade do valor que tem quando essenúmero é mínimo; consequentemente, diminui tam-bém o ritmo de produção de neutrões nas altas cama-das da atmosfera terrestre. Daí que se tivesse procuradoigualmente averiguar se haveria uma correlação entrea variação da actividade solar e a variação do teor de14C na biosfera terrestre, com o tempo. Foi Stuiver oprimeiro investigador a mostrar, no início dos anos 60,que essa correlação parece existir. Ela é sobretudo evi-dente em alguns períodos realativamente longos du-rante os quais praticamente nenhuma mancha solar foiobservada, em particular o de 1645-1715 d.C. (míni-mo de Maunder), o de 1416-1534 d.C. (mínimo de Spö-rer) e o de 1282-1342 d.C. (mínimo de Wolf), períodosestes a que correspondem máximos na curva de varia-ção do ritmo de produção do 14C (Fig. 16) calculadaa partir dos teores de 14C medidos em amostras deanéis de árvores. Note-se, no entanto, que a questãodas variações naturais de baixo período do teor de14C está ainda em grande parte por esclarecer, o queé compreensível se atendermos à sua enorme comple-

xidade derivada da grande quantidade de factores quepara elas concorrem, entre os quais os já referidos fac-tores climáticos. Ela constitui, por isso, ainda hoje umtema de activa investigação. Tais variações contribuempara aumentar a imprecisão das datas de radiocarbo-no calibradas.

A Segunda Revolução do Radiocarbono

Apesar da curva de calibração de Suess, publicadanos últimos anos de década de 60, não atingir o graude rigor das curvas de calibração de alta precisão deque se dispõe actualmente, ela permitiu aos arqueólo-gos, logo no começo da década de 70, converter asdatas de radiocarbono até então determinadas em da-tas de calendário e, desse modo, corrigir a cronologiaabsoluta que tinha sido elaborada com base naquelasdatas. Recorde-se que esta cronologia, embora nalgunspontos surpreendente, não veio colocar em xeque aestrutura cronológica que havia sido estabelecida porGordon Childe para a Europa e o Próximo-Oriente.Deve-se a Colin Renfrew a iniciativa de calibrar as da-tas de radiocarbono respeitantes àquelas duas regiõesdo mundo pré-histórico, bem como a de identificar asprincipais diferenças observadas entre a cronologia tra-dicional e a resultante da calibração. Algumas dessasdiferenças foram tão pronunciadas que este pré--historiador não hesitou em considerar a calibração co-mo promotora de uma segunda revolução doradiocarbono.

Uma área onde Renfrew verificou desacordos mui-to grandes foi a relacionada com o megalitismo euro-

Fig. 16 – Influência da actividade solar no ritmo de produção do 14C. (a) Frequência de manchas solares observadas: as barras representam onúmero de manchas vistas a olho nu por década antes de 1610; a área tracejada representa o número das observadas ao telescópio. (b) Altera-ções do ritmo de produção do 14C. Adaptado de M. Stuiver e P. D. Quay, Science, 207, 1980, p. 15.

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peu (Fig. 17). Ao contrário da cronologia tradicional,que admitia que a prática do enterramento colectivoteria sido trazida do Mediterrâneo Oriental para o Su-doeste da Península Ibérica e daí se teria difundido paraa Bretanha Francesa, Grã-Bretanha, Irlanda e EuropaSetentrional, a calibração das datas de radiocarbonodeterminadas para os monumentos megalíticos veiomostrar que a origem destes monumentos não estavano Mediterrâneo Oriental. Renfrew sugeriu, por isso,e também porque se tinha apercebido de certas defi-ciências das teorias difusionistas sobre a pré-históriada Europa, que na fachada atlântica europeia, em vezde um centro difusor único do megalitismo, terá havi-do várias regiões onde a prática do enterramento co-lectivo em túmulos de pedra se desenvolveuindependentemente, e, baseado em dados da antropo-logia cultural, procurou explicar a origem local des-ses desenvolvimentos em termos paleo-sociológicos edemográficos.

Outra área onde foram identificadas grandes diver-gências foi a respeitante à cronologia dos Balcãs. Se-gundo a estrutura cronológica tradicional, as culturasdo Neolítico Final desta região eram consideradas con-temporâneas da Idade do Bronze Inicial do Egeu. A ca- libração das datas de radiocarbono para essas culturasveio revelar que elas eram, afinal, pelo menos 2 000anos mais antigas do que se supunha. Por outro lado,a calibração das datas de radiocarbono determinadaspara alguns estabelecimentos calcolíticos da mesma re-gião veio confirmar as opiniões de alguns arqueólogos,baseadas em dados estratigráficos, de que o Calcolíti-co dos Balcãs era contemporâneo do Neolítico Final

do Egeu e de que ele precedia a Idade do Bronze Ini-cial do Egeu de pelo menos um milénio. Tal calibra-ção veio comprovar, por conseguinte, que a metalurgiado cobre se terá desenvolvido nos Balcãs independen- temente de influências do Egeu. Deste modo, Renfrewfoi levado a sugerir que ela terá sido inventada local-mente, não muitos anos depois do seu aparecimentono Próximo-Oriente, como já havia sugerido relativa-mente ao desenvolvimento da metalurgia na Ibéria.

Pelo contrário, não foram detectadas discrepânciassignificativas entre a cronologia tradicional estabele-cida para o Próximo-Oriente, o Egipto, Creta e o Egeue a resultante da calibração, no que se refere ao 3.°milénio a.C.

Assim, a estrutura cronológica que tão cuidadosa-mente havia sido construída por Childe desmoronou--se e, com a sua derrocada, as hipóteses da descobertaúnica e da difusão, que se vira obrigado a admitir paralevar a cabo a sua construção, foram seriamente aba-ladas. Todavia, consoante Renfrew fez notar, muitacoisa valiosa foi possível aproveitar dos destroços daestrutura tradicional, dado que a calibração não pro-vocou a alteração, por um lado, das relações cronoló-gicas entre o Egipto, o Próximo-Oriente, Creta e o Egeuno 3.° milénio a.C. e, por outro, das relações crono- lógicas entre as outras culturas da Europa. Consequen-temente, grande parte do trabalho inovador realizadopelos arqueólogos da primeira metade do século nãofoi gravemente afectada por aquele desmoronamento,resultando daí que muitas das conclusões dos seus es-tudos sobre as culturas das referidas regiões aindahoje se mantêm válidas. Tornou-se claro, porém, que

Fig. 17 – Anta do Tapadão (Alentejo).

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quase todos esses arqueólogos subestimaram a origi-nalidade e a criatividade dos habitantes da Europa pré--histórica ao procurarem no Próximo-Oriente asexplicações para as transformações que tiveram lugarna Europa desse tempo. O reconhecimento deste fac-to operou, a partir do início da década de 70, uma mu-dança radical na orientação da pesquisa arqueológica.

Novo Método paraDeterminar Teores de 14C

Como foi dito atrás, o método que se usa mais fre-quentemente para determinar os teores de 14C baseia--se na medição da sua actividade específica. Desde asprimeiras experiências de Libby, nos anos 40, até à ac-tualidade que não se parou de fazer progressos no de-senvolvimento de novos instrumentos e técnicas pararealizar tal medição. Esses progressos têm-se reflecti-do sobretudo numa melhoria contínua da precisão dasdatas de radiocarbono que vêm sendo obtidas, a qual,em instalações de alta precisão, já atingiu em termosde desvio padrão valores inferiores a ± 20 anos. Note--se, no entanto, que para se conseguirem estes valoresnessas instalações se torna necessário utilizar amostrasque contenham uma massa de carbono da ordem degrandeza de 10 g. Mesmo em instalações actuais paratrabalho de rotina é possível alcançar desvios padrãode ± 40 anos, desde que a amostra não seja demasia-do velha e possua cerca de 5 g de carbono.

A necessidade de quantidades de carbono desta or-dem de grandeza, embora não constitua uma limita-ção à resolução da maior parte dos problemas dedatação que se colocam aos arqueólogos, em virtudede as suas amostras serem em geral suficientementegrandes, impede a solução de alguns desses problemas.Além disso, devido ao facto dessas quantidades repre-sentarem um volume relativamente avultado de amos-tra, obsta à realização de testes de autenticidade dealguns objectos de arte e de documentos históricos va-liosos. Daí que se tenha procurado desenvolver detec-tores proporcionais miniaturais para datar pequenasamostras, o que alguns investigadores acabaram porconseguir tornando possível o uso de amostras con-tendo 3-10 mg de carbono. Há que notar, contudo, quepara se obter com esses detectores e esta quantidadeuma precisão aceitável nas datações, é forçoso prolon-gar muito o tempo de medição (> 1 000 h).

A inovação mais importante, do ponto de vista tec-nológico, feita nos últimos anos no domínio da data-ção pelo radiocarbono foi, porém, o desenvolvimentodum novo método para determinar os teores de 14C, oqual, em vez de assentar na medição do número de nú-cleos de 14C que se transformam por unidade de tem-po e por unidade de massa de carbono, se baseia pelocontrário na medição do número de núcleos de 14Cque ainda não se transformaram. Trata-se de um mé-todo de espectrometria de massa, cuja característicaespecial é a aceleração de iões de carbono. que são pro-

duzidos a partir da amostra numa fonte de iões espe-cial, mediante um acelerador de partículas. Este mé-todo foi introduzido no final dos anos 70 e, desdeentão, vem seguindo duas vias distintas de desenvol-vimento: uma em que se utiliza como acelerador umciclotrão, e outra em que se recorre a um aceleradorelectrostático, em geral do tipo Van de Graaff. Essasvias diferem essencialmente quanto à estratégia adop-tada para a separação e identificação das espécies ió-nicas envolvidas no processo.

Uma das grandes vantagens do método de espec-trometria de massa de iões acelerados é ter muito maiorsensibilidade do que o método convencional, tornan-do possível, portanto, fazer uso de pequenas amostras(2-5 mg de carbono) e de um tempo de medição rela-tivamente curto (1-2 horas). Além disso, supõe-se quepoderá atingir limites de aplicabilidade mais amplos,da ordem de grandeza de 100 000 anos. Todavia, nafase de desenvolvimento em que se encontra, aindanão superou a este respeito, e também no que se refe-re à precisão, o método convencional.

Para ilustrar a vantagem do novo método quantoà sensibilidade citaremos a sua aplicação à dataçãodo célebre sudário de Turim (Fig. 18) que, desde1353 d.C., data do seu primeiro testemunho históri-co, muita gente cria que tivesse sido usada para envol-ver o corpo de Cristo após a sua morte, cuja imagem

Fig. l8 – Negativo da fotografia dum pormenor do sudário de Turim.

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teria, por isso, ficado impressa no sudário. Foi a con-fiança adquirida na possibilidade de fazer datações peloradiocarbono com amostras muito pequenas que terálevado as autoridades eclesiásticas a promover aquelaaplicação em 1988. Para esse efeito, foi colhida umapequena amostra do sudário e esta dividida em três par-tes, as quais foram em seguida enviadas para três dife-rentes laboratórios de reconhecido prestígio. Osresultados obtidos em cada um desses laboratóriosrevelaram-se concordantes entre si, dentro do erro ex-perimental, mostrando, depois de calibrados, que o su-dário datava de 1260 - 1380 d.C., i.e., da época emque a sua existência havia sido pela primeira vez tes-temunhada.

ANÁLISE DE MATERIAIS NAINVESTIGAÇÃO DE RELAÇÓES COMERCIAIS

Desde os tempos mais remotos que os homens vêmtrocando produtos entre si: por um lado, matérias--primas, cuja ocorrência na natureza está, como é sa-bido, limitada a certas áreas geográficas; e, por outrolado, produtos manufacturados, cujo fabrico, quandoespecializado, se encontra igualmente restringido a re-giões particulares, embora neste caso a localização detais regiões dependa em grande parte da capacidadecriativa e inovadora dos seus habitantes e, claro está,doutros factores económicos. Segundo Renfrew, nostempos pré-históricos os produtos de troca mais co-muns eram os do primeiro tipo. Assim, é natural queos processos usados para estudar os sistemas comer-ciais na antiguidade pré-histórica se baseiem mais naanálise dos materiais de que são feitos os objectos tro-cados do que na sua análise tipológica.

Note-se que os processos que assentam na análisedos materiais também têm sido frequentemente utili-zados para estudar o movimento de trocas de muitosprodutos manufacturados num passado mais recente(das comunidades com escrita) como, por exemplo, al-guns produtos alimentares que eram transportados emânforas. É certo que a determinação da proveniênciadas ânforas pode ser efectuada com base em dados epi-gráficos, designadamente marcas impressas e inscriçõespintadas. As marcas impressas aparecem muitas vezesnas asas, na pança ou no fundo das ânforas e, por ve-zes, também na tampa. Contudo, só raramente essasmarcas contêm nomes de localidades. Além disso, nãose sabe exactamente o seu significado, em particularse representam o nome dos proprietários das herda-des onde as ânforas teriam sido fabricadas e enchidasou o nome dos oleiros que as teriam produzido. Destemodo, são raros os exemplos em que as referidas mar- cas tenham possibilitado a determinação precisa deproveniências. Quanto às inscrições pintadas, que pro-vavelmente quase sempre seriam postas nas ânforas,raras vezes se encontram nos materiais recolhidos em

escavações, em virtude de as condições do solo em quepermaneceram enterrados não serem em geral propí-cias à conservação dessas inscrições.

A investigação de sistemas comerciais na antigui-dade sofreu um impulso muito significativo a partir docomeço da década de 70, aparentemente correlacio-nado com a segunda revolução do radiocarbono, oqual trouxe como consequência um crescimento mui-to acentuado das aplicações dos métodos de análisede materiais naquela investigação. De salientar é aenorme variedade dos produtos analisados: materiaisgeológicos como o silex, a obsidiana, o mármore, ojade e a turquesa; materiais cerâmicos compreenden-do cerâmica comum e cerâmica fina de diferentes pe-ríodos; materiais metálicos nomeadamente o cobre, oestanho, o bronze, o ferro, o ouro, a prata e o chum-bo; materiais de vidro de diversas épocas e qualida-des; materiais biológicos como conchas, ossos e oâmbar; etc. É compreensível portanto que, para levara cabo tal investigação, se tenha procurado recorrera uma vastíssima gama de métodos de análise, em par-ticular aqueles que por via de regra são utilizados eminvestigação física, química e das ciências dos ma-teriais.

De acordo com o que referimos no início, não apre-sentaremos aqui uma lista, que seria necessariamentelonga, dos métodos que têm sido aplicados na área daanálise de materiais arqueológicos. Em vez disso, ten-taremos aproveitar o espaço que nos resta para pôr emevidência a importância de alguns desses métodos noestudo de duas questões: 1) a questão das trocas de pro-dutos alimentares; e 2) a questão da origem dos már-mores. A primeira é importante sobretudo para oshistoriadores interessados no estudo da vida econó-mica dos povos. A segunda, podendo ser útil tambémpara esses historiadores, tem interesse principalmen-te para testar a autenticidade de obras de arte e paraassociar de forma correcta fragmentos de estátuas oude documentos epigráficos.

Determinação daProveniência de Ânforas

As ânforas (Fig. 19) foram a embalagem usada porexcelência para transportar produtos alimentares naantiguidade clássica. Elas poderão, por isso, desempe-nhar um papel relevante no estudo do comércio de taisprodutos desde que se conheçam a natureza do pro-duto transportado, a data em que teriam sido fabrica-das e o seu lugar de origem.

Para determinar a proveniência das ânforas o pro-cesso mais seguro é o da análise química do materialcerâmico de que são feitas, o qual se baseia nos seguin-tes postulados: (1) as argilas provenientes de barreirosdiferentes apresentam diferenças de composição quí-mica que, por via de regra, excedem significativamenteas diferenças de composição química existentes den-tro de cada barreiro; (2) embora a lavagem e purifica-

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Fig. 19 – Ânfora do tipo Dressel 14b, de Tróia (Grândola), dos séculos I-II d. C.

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ção das argilas e a adição de têmpera ou doutros ma-teriais, que se fazem nalgumas olarias, levem a que acomposição química das pastas passe a não ser a mes-ma que a das argilas “tal qual” utilizadas na sua manu-factura, essa composição não deixa de ser característicadas olarias de cada região; (3) a cozedura das pastasnão provoca a volatilização dos seus elementos cons-tituintes, salvo raras excepções; (4) durante o tempoem que as cerâmicas permanecem enterradas não sedão alterações importantes da sua composição quími-ca, se exceptuarmos alguns elementos.

A experiência tem mostrado que tanto o primeiropostulado como o segundo são dignos de confiança,desde que se tomem certas precauções em particularas seguintes: se analise, em cada amostra, um númerorazoavelmente grande de elementos químicos (> 16)sobretudo elementos vestigiais e, no tratamento esta- tístico dos resultados da análise, se tenham em devidaconta as correlações que possam existir entre os dife-rentes elementos analisados. O terceiro postulado pa-rece merecer também confiança. É certo que acozedura das pastas conduz a uma alteração da suacomposição química, devida sobretudo a perdas deágua, à oxidação da matéria orgânica e à dissociaçãodos carbonatos, alteração essa cujo grau depende danatureza das argilas utilizadas e da temperatura de co-zedura. No entanto, ela não provoca a volatilização dosrestantes elementos constituintes, salvo raras excep-ções como o cloro e o bromo. O último postulado éque oferece algumas dúvidas. De facto, trabalhos efec-tuados sobre o estudo dos efeitos da acção de agentesnaturais, como as águas subterrâneas, na cerâmica en-terrada mostraram que, no decurso do tempo, poderáhaver alterações significativas do teor de alguns ele-mentos como, por exemplo, o cálcio. Assim, quandona caracterização química do material cerâmico se pre-tende utilizar também este elemento como atributo, torna-se necessário verificar cuidadosamente se tal uti-lização é ou não de confiança. Para isso, recomenda--se a realização prévia de exames petrográficos delâminas delgadas do material cerâmico.

Em geral, muito pouco se sabe sobre as antigas ofi-cinas e zonas de produção de cerâmica. Consequente-mente, a determinação da proveniência das cerâmicasexige primeiro que se proceda à operação de localizaressas oficinas e definir as características de composi-ção dos respectivos materiais. Isso faz-se usualmenteem duas fases: (1) a repartição do material cerâmico,cuja origem se procura determinar, por grupos ou clas-ses de acordo com a sua composição química (classifi-cação); e (2) a comparação dos grupos de composiçãoobtidos nessa classificação com amostras de referên-cia ou grupos de referência. Note-se, todavia, que sãomuito poucos os casos em que se tem um conhecimen-to exacto da localização das oficinas de cerâmica. Porvezes, ela pode ser achada a partir de característicastipológicas da cerâmica, como acontece por exemplocom certas cerâmicas gregas; outras vezes, ela acaba

por conhecer-se através da descoberta de fornos de ce-râmica. No entanto, é possível ultrapassar a dificulda-de que de modo geral existe na selecção de amostrasde referência recorrendo a argilas, designadamente deformações situadas na região onde foi colhido o ma-terial em estudo.

Ilustraremos a enorme potencialidade do proces-so de análise química na determinação da proveniên-cia de ânforas com resultados dum estudo sobre asânforas da Gallia Narbonensis no Alto Império, rea-lizado por Wiedemann, Laubenheimer e colaborado-res, no qual se recorreu ao método de análise poractivação com neutrões que é um dos mais eficazes emtal determinação. A Fig. 20 mostra como se agrupa-ram as amostras colhidas em 12 oficinas da Narbonen-sis tomando por base os valores das concentraçõesmedidas para 18 elementos em cada amostra.Obtiveram-se três grandes grupos de composiqão: (1)o das ânforas produzidas nas oficinas de Istres, Beau-caire, Aspiran, St-Marcel, Sauveterre, Tressan, La Craud’Hyères, Sallèles d’Aude e Corneilhan; (2) o das ân-foras produzidas nas oficinas de Fréjus; e (3) o das

Fig. 20 – Dendrograma obtido na análise de grupos dum conjuntode amostras recolhidas em 12 oficinas de cerâmica da Gallia Nar-bonensis, baseada nos resultados da análise química dessas amos-tras para 18 elementos. (segundo F. Laubenheimer, La Productiondes Amphores en Gaule Narbonnaise, 1985, p . 366).

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ânforas produzidas nas oficinas de Tresques e Chus-clan. No primeiro é possível distinguir com toda a cla-reza vários sub-grupos, que correspondem a ânforasdas oficinas especificadas. Há que notar, todavia, queno terceiro grupo algumas amostras da oficina de Chus-clan aparecem misturadas com amostras da oficina vi-zinha de Tresques.

Tem interesse salientar que no estudo das ânforasda Gallia Narbonensis se procurou também fazer aidentificação de ânforas dos tipos G.3 e G.4, abundan-temente fabricadas nesta província, que haviam sidoencontradas longe do seu lugar habitual de produção,particularmente em Óstia, Wiesbaden e Genebra.Pretendeu-se ainda verificar se uma ânfora do tipoD.2/4 com uma forma pouco comum, que foi achadana oficina de Sallèles d'Aude e cuja pasta não se dis-tinguia a olho das ânforas G.4, muito frequentes nestaoficina, seria de fabricação local ou importada. Foi pos-sível concluir (Fig. 21), comparando as composiçõesdas pastas destas ânforas com as dos grupos de com-posição referentes às oficinas estudadas, que a ânforaencontrada em Óstia teria sido fabricada em Sallèles

d'Aude, que a achada em Wiesbaden proviria de LaCrau d'Hyères e que a encontrada em Genebra teriasido produzida em Corneilhan. Pôde concluir-se, alémdisso, que a ânfora do tipo D.2/4 achada em Sallèlesd'Aude não provinha dessa região, nem tão pouco denenhuma das oficinas conhecidas da Gallia Narbo-nensis.

Determinaçãoda Origem dos Mármores

A questão da origem dos mármores tem-se postosobretudo para a escultura clássica e monumentos epi-gráficos lavrados nesse material (Fig. 22), em particu-lar quando está em causa a sua autenticidade ou,tratando-se de fragmentos, o rigor da maneira de fa-zer a sua associação.

Ainda não há muito tempo era costume atribuirproveniências aos mármores com base nas caracterís-ticas descritas por Lepsius, no fim do século passado,para os mármores das pedreiras gregas mais importan-tes que operaram durante a época clássica, caracterís-ticas essas que se baseavam em exames petrográficosde lâminas delgadas e numa inspecção simples da tex-tura. Assim, por exemplo, admitia-se que um mármo-re de grão médio, com pouca foliação e por vezes commica provinha do Monte Pentélico, perto de Atenas,porque eram essas as características do material queali tinha sido explorado. Dava-se-lhe, por isso, o no-me de pentélico. Pressupunha-se, por outro lado, queum mármore de grão médio a grosseiro, de cor bran-ca, puro, e translúcido procedia da ilha de Paros, porserem essas as propriedades do material que naquelelugar tinha sido extraído. Daí que se chamasse pário.Acabou-se porém por reconhecer, embora só há pou-co mais de 20 anos, que os exames petrográficos domármore são insuficientes para fazer determinaçõesfiáveis da sua proveniência. Por essa mesma alturarealizou-se, com idêntico propósito, o primeiro estu-do importante de caracterização química daquele ma-terial, recorrendo ao método de análise por activaçãocom neutrões, a que se seguiram mais estudos por meionão só do mesmo método mas também doutros méto-dos de análise química. No entanto, os resultados ob-tidos nestes estudos mostraram que a caracterizaçãoquímica dos mármores, mesmo quando baseada emelementos vestigiais, é igualmente insuficiente paraefectuar as referidas determinações.

No caso dos mármores, o processo mais promis-sor para determinar a sua origem parece ser o da aná-lise isotópica dos seus elementos constituintesprincipais, nomeadamente o carbono e o oxigénio, oqual foi sugerido por Craig, em 1972. Este processobaseia-se no facto de as composições isotópicas de taiselementos nos carbonatos variarem, por um lado, com,o modo da sua formação (precipitação puramente quí-mica ou elaboração biológica) e, por outro, com a ma-

Fig. 21 – Determinação da proveniência de 3 ânforas dos tipos G.3e G.4 encontradas em Óstia, Wiesbaden e Genebra, longe portantodo seu lugar habitual de produção, e de uma ânfora do tipo D.2/4achada em Sallèles d'Aude (segundo F. Laubenheimer, La Produc-tion des Ampbores en Gaule Narbonnaise, 1985, p. 364).

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Fig. 22 – Cabeça feminina da época flávia, porventura de Júlia, filha de Tito, encontrada em Milreu.

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neira como se processa o seu metamorfismo. Para me-dir aquelas composições recorre-se ao método de es-pectrometria de massa, que permite determinar asrazões isotópicas 13C/12C e 18O/16O nos referidos ele-mentos, determinação essa que é feita, em geral, to-mando como referência o padrão internacional PDB(um carbonato marinho) e exprimindo os resultadosem termos de diferenças relativas, designadamenteδ13C e δ18O por mil. A Fig. 23 mostra como se distri-buem os mármores colhidos em diversas pedreiras daépoca clássica, localizadas na Grécia, Itália e Turquia,num diagrama de δ13C em função de δ18O. Como sepode ver nesta figura, as variações de composição iso-

tópica entre os mármores de muitas das pedreiras uti-lizadas na antiguidade clássica são suficientemente grandes para, a partir dessa composição, se poder de- terminar com rigor a sua origem. Mas esta determina- ção nem sempre é possível. Contudo, trabalhos recentes tem mostrado que a conjunção da análise iso- tópica com a análise química, usando por exemplo o método de análise por activação com neutrões, per- mite diferenciar os mármores de algumas das pedrei- ras que se sobrepõem no referido diagrama.

Note-se que a demonstração de que o mármore du- ma obra de arte, aparentemente clássica, provém de uma pedreira utilizada na época clássica, embora ne- cessária, não é prova suficiente da autenticidade des- sa obra. Na verdade, ela poderá ter sido falsificadaexculpindo-a numa pedra colhida recentemente damesma pedreira, ou num fragmento duma obra da mes-ma época. Mas se assim for ela não terá pátina ou, sea tiver, será porque a produziram artificialmente pormeios químicos. No entanto, é possível discernir umapátina falsa doutra verdadeira determinando os valo-res de δ13C e δ18O ao longo do perfi l duma lascadelgada extraída da superfície da pedra e complemen-tando esta informação com resultados de análises quí-micas efectuadas numa microssonda electrónica. Odesenvolvimento recente de novas técnicas de microa-nálise isotópica veio permitir que essas determinaçõesse possam fazer com amostras de mármore muito pe- quenas, de cerca de 0,02 mg, e portanto que os testes de autenticidade se possam realizar com pequenas las- cas cuja extracção não desvaloriza em regra a obra de arte.

Fig. 23 – Discriminação dos mármores das pedreiras mais importan-tes da antiguidade clássica com base na composição isotópica dosseus elementos constituintes principais, expressa em termos de di-ferenças relativas δ13C e δ18O por mil, tomando como referência opadrão internacional PDB (segundo N. Herz, Classical Marble: Geo-chemistry, Technology, Trade, 1988, p. 308).

SUGESTÕES DE LEITURA

FONTES DAS ILUSTRAÇÕES

CABRAL, J. M. P. – “Arqueometria no LNETI – Balanço e Pers- pectivas”, Arqueologia N.° 20, 1989, pp. 110-123.

CABRAL, J. M. P. – “Química e Pré-história: datação pelo radio-carbono”, em A. Romão Dias e J. J. Moura Ramos eds., Química eSociedade: a Presença da Química na Actividade Humana, Esco-lar editora e Sociedade Portuguesa de Química, Lisboa, 1990, pp.89-144.

CABRAL, J. M. P. – “Determinação da proveniência de ãnforas mediante a análise química da cerâmica”, em A. M. Alarcão e F.Maye, eds., «Ânforas Lusitanas: Tipologia, Produção, Comércio»,Museu Monográfico de Conímbriga, Diffusion E. de Boccard, 1990,pp. 273-288.

HERZ, N. & WAELKENS, M., eds., – “Classical Marble: Geoche-mistry, Technology, Trade”, Dordrecht, Kluwer Academic Publis-hers, 1988.

TAYLOR, R. E. – “Radiocarbon Dating: An Archaeological Pers-pective”, London, Academic Press, 1987.

De índole geral

AITKEN, M. J. – “Science-based Dating in Archaeology", London,Longman, 1990.

GOFFER, Z. – “Archaedogical Chemistry: A Source Book on tbeApplications of Chemistry to Archaeology”, New York, John Wi-ley & Sons, 1980.

JORGE, V. O. – “Projectar o Passado: Ensaios sobre Arqueologiae Pré-história”, Lisboa, Editorial Presença, 1987.

RENFREW, C. – “Before Civilization: The Radiocarbon Revolu-tion and Prehistoric Europe”, Penguin Books, 1976.

TITE, M. S. – “Methods of Physcal Examination in Archaeology”,London, Seminar Press, 1972.

De índole restrita

CABRAL, J. M. P. – “Caracterização de cerâmicas arqueológicasmediante análise por activação com neutrões: classificação dascerâmicas por métodos de taxonomia numérica”, Conímbriga,XVI, 1977, pp. 103-137.

As fotografias foram cedidas pelos seguintes organismos e enti-dades, cujo obséquio se agradece com reconhecimento. Museu Na-cional de Arqueologia: Fig. 1-9, 19, 22; Museu Monográfico deConímbriga: Figs. 12, 18; National Geographic Magazine: Fig. 13;Serviço Regional de Arqueologia do Sul: Fig. 17. O autor manifesta

também a sua gratidão: ao Serviço de Documentação fotográfica deLa Réunion des Musées Nationaux, França, e a Éditions d’Art Al-bert Skira S. A., pela licença concedida da reprodução a cores dafotografia da Fig. 12.