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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X ARQUIVO 17: A CRIAÇÃO DE UM TRABALHO DE ARTE SOB A CONDIÇÃO FEMINISTA E DESCOLONIAL Fernanda Grigolin Resumo : Arquivo 17 é um projeto expositivo que será realizado no MIS/Campinas em agosto de 2017. O mote inicial é um levantamento de documentação sobre o universo das pessoas trabalhadoras no Brasil no início do século XX, passando pela Primeira Grande Greve Operária, ocorrida no ano de 1917. A Greve teve início na cidade de São Paulo e foi uma imensa mobilização deflagrada por mulheres trabalhadoras. O arquivo produzido é visto como um aparelho espacial, expositivo, descolonial e discursivo. A pesquisadora é a própria artista da ação, mas quem convoca é uma narradora construída. Palavras-chave : Arquivo. Arte Contemporânea. Greve Geral de 1917. Apresentação O presente artigo versa sobre a construção da exposição de artes visuais Arquivo 17, cujo mote inicial é um levantamento de documentação sobre o universo das pessoas trabalhadoras no Brasil no início do século XX, passando pela Primeira Grande Greve Operária, ocorrida no ano de 1917. A Greve teve início na cidade de São Paulo e foi uma imensa mobilização deflagrada por mulheres trabalhadoras. Quais são as reverberações desse fato nos dias de hoje? Como a greve contribui para se pensar um trabalho de arte contemporânea? Estas são algumas das questões trazidas, que foram essenciais para a escolha dos documentos históricos, com edição e exibição realizadas em dezessete trabalhos de arte de baixa manutenção e facilmente expostos e reproduzidos. São livros, panfletos e cartazes. A mulher é a narradora de todo o trabalho e expressa sua subjetividade por meio de um arquivo: fatos históricos são convertidos em vivências interiores. O arquivo produzido é visto como um aparelho espacial, expositivo, descolonial e discursivo. A pesquisadora é a própria artista da ação, mas quem convoca é uma narradora construída. As questões vinculadas às interpretações e percepções teóricas emergirão como ações

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th

Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

ARQUIVO 17: A CRIAÇÃO DE UM TRABALHO DE ARTE SOB A

CONDIÇÃO FEMINISTA E DESCOLONIAL

Fernanda Grigolin

Resumo: Arquivo 17 é um projeto expositivo que será realizado no MIS/Campinas em agosto de

2017. O mote inicial é um levantamento de documentação sobre o universo das pessoas

trabalhadoras no Brasil no início do século XX, passando pela Primeira Grande Greve Operária,

ocorrida no ano de 1917. A Greve teve início na cidade de São Paulo e foi uma imensa mobilização

deflagrada por mulheres trabalhadoras. O arquivo produzido é visto como um aparelho espacial,

expositivo, descolonial e discursivo. A pesquisadora é a própria artis ta da ação, mas quem convoca

é uma narradora construída.

Palavras-chave: Arquivo. Arte Contemporânea. Greve Geral de 1917.

Apresentação

O presente artigo versa sobre a construção da exposição de artes visuais Arquivo 17, cujo

mote inicial é um levantamento de documentação sobre o universo das pessoas trabalhadoras no

Brasil no início do século XX, passando pela Primeira Grande Greve Operária, ocorrida no ano de

1917. A Greve teve início na cidade de São Paulo e foi uma imensa mobilização deflagrada por

mulheres trabalhadoras. Quais são as reverberações desse fato nos dias de hoje? Como a greve

contribui para se pensar um trabalho de arte contemporânea? Estas são algumas das questões

trazidas, que foram essenciais para a escolha dos documentos históricos, com edição e exibição

realizadas em dezessete trabalhos de arte de baixa manutenção e facilmente expostos e

reproduzidos. São livros, panfletos e cartazes. A mulher é a narradora de todo o trabalho e expressa

sua subjetividade por meio de um arquivo: fatos históricos são convertidos em vivências interiores.

O arquivo produzido é visto como um aparelho espacial, expositivo, descolonial e

discursivo. A pesquisadora é a própria artista da ação, mas quem convoca é uma narradora

construída. As questões vinculadas às interpretações e percepções teóricas emergirão como ações

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artísticas estabelecidas dentro das relações espaço-tempo-obras de arte. Todas como forças

pertencentes à montagem do arquivo.

O tema que circunda o Arquivo 17 é a Greve Geral de 1917

A greve eclodiu em julho de 1917, porém apresentava resquícios de práticas de piquetes,

boicotes e paralisações que datam do início dos anos de 1900 (Lopreatto, 1996). Houve greve dos

Ferroviários em 1907, e, depois, em 1912, as comemorações do Primeiro de Maio mobilizaram os

trabalhadores por meio do Comitê de Agitação Contra a Carestia de Vida. Trabalhadores do setor de

calçados e tecelãs realizaram greves no momento. Maria Izilda Santos de Matos (1996), em

pesquisa focada na indústria de juta, também fala das greves como práticas habituais das pessoas

que trabalhavam nesse setor (a maioria mulheres). Em seu levantamento, Matos fala de uma greve

com data de 1902 na Fábrica de Tecido de A. Penteado no Brás.

O tema do artigo parte de um recorte de gênero: as mulheres trabalhadoras, em especial

tecelãs e costureiras, e o seu papel importante para as sucessivas greves ocorridas na cidade São

Paulo. No início dos anos 1900, a indústria têxtil era o lugar da empregabilidade. As mulheres eram

boa parte dos trabalhadores, sendo também indesejáveis em muitos casos, pois eram protagonistas

de revoltas.

Elas atuavam politicamente de forma organizada ou espontânea, desencadeando

greves pelo aumento salarial, pela redução da jornada de trabalho, pelo respeito no

trato em relação a elas mesmas e às crianças, contra o despotismo fabril, ou

solidárias aos seus pais, companheiros e irmãos. Nas circulares que os industriais

ligados ao CIFTSP (Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo)

enviavam nos anos 1910 e 1920, é de se notar a quantidade de mulheres jovens

citadas como “indesejáveis” e ameaçadas de demissão por roubo de peças, boicote,

sabotagem e agitação política. (RAGO, 2007, p. 19).

A Greve Geral de 1917 é qualificada por Christina Lopreato (1996) como uma experiência

inédita e fruto de atuações anarcocomunistas e anarcossindicalistas. “Perplexos, os moradores da

Pauliceia assistiram ao desenrolar dos acontecimentos. Jamais tinham presenciado um movimento

de tal envergadura.” (1996, p. 15). Em sua pesquisa, Lopreato afirma que, diferentemente de um

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movimento espontâneo, foi uma greve preparada e que teve no conceito de Ação Direta sua matriz.

Boicotes, piquetes, barricadas e greves locais foram o caminho da luta diária e culminaram na

Greve Geral, iniciada em 9 de julho com a morte de José Martínez em frente à fábrica Mariangela,

no Brás. No entanto, havia ressonâncias de maio e de dois fatos primordiais ocorridos em junho: a

greve na Cotonifício Crespi (na Mooca) e na Fiação, Tecelagem e Estamparia Jafet (no Ipiranga). O

protesto foi iniciado pelas tecelãs que reivindicavam melhores salários, adicional noturno e fim do

trabalho infantil.

A Greve é analisada com o olhar do hoje. O estado como estado policial, algo instaurado

como política pública na República Velha, foi reassumido no Brasil no governo de Michel Temer.

O 17 é 1917 e é 2017, assim colados, mas não se trata de uma leitura histórica ou sociológica: é

uma colagem anacrônica, espacial e poética de dois momentos. Walter Benjamin expõe que aquele

que quer se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como alguém que cava:

Antes de tudo não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se

espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois “fatos” não são além de

camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa

a escavação [...]. E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos

achados e não sabe assinalar no terreno do hoje o lugar no qual é conservado o

velho. (BENJAMIN, 1987, p. 239)

Todavia, o tema Greve Geral de 1917 é conduzido por uma narradora, A Mulher do Canto

Esquerdo do Quadro, que narra o que viu e o que presenciou, ora relacionado à sua vida pessoal e

experiência direta (em primeira pessoa do singular), ora como espectadora direta ou em comunhão

com outros (em primeira pessoa do plural). A voz pessoal, que é política, torna-se mais pública

quando acessa a voz e a ação de outras mulheres. É o debruçar no imaginário dos ativistas

anarquistas do passado e, com o olhar de hoje, o aproximar das lutas pela vida com as reverberações

sociais atuais, cem anos depois.

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Frame de Sou aquela mulher do Canto Esquerdo do Quadro (2016).

Uma proposta espacial

Arquivo 17 é um trabalho em artes visuais, que envolve uma proposta espacial e uma

proposta de tese em construção. No presente artigo, eu me debruço na proposta espacial. Contudo, é

importante dizer que a pesquisa só foi possível devido a um período de trabalho no Arquivo Edgard

Leuenroth (AEL-IFCH/Unicamp), local que acolheu a pesquisa e compreendeu suas ações. Foi no

AEL que pude ter um envolvimento subjetivo com um arquivo. Seus documentos me afetaram e me

fizeram perceber minhas condições históricas específicas pertencentes àquele momento e ao hoje.

Giovanna Zapperi (2013), ao analisar artistas feministas que trabalham com o conceito de arquivo,

discorre que é o desejo que medeia a relação entre passado, presente e futuro, posicionando a voz

subjetiva do artista no processo de construção de formas alternativas de conhecimento (2013, p. 26).

Maria Tamboukou (2014) afirma ser o arquivo um aparelho espacial e discursivo de

experimentação, cuja configuração tem impacto sobre o tipo de dados e o tipo de saberes que dele

derivarão. Para ela, as questões, interpretações, percepções teóricas e tropos analíticos do

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pesquisador emergem como intra-ações entre as relações espaço-tempo-matéria e as forças dentro

do arquivo (Tamboukou, 2014).

Do Arquivo 17, é interessante levar em consideração tratar-se de uma proposta nas Artes

Visuais, sob um olhar feminista latino-americano (que se pretende descolonizar), tomando como

tema a Greve Geral de 1917. Gênero, sexualidade, raça/etnia, classe social e, no nosso caso, escolha

político- ideológica (anarquismo) desempenham papéis cruciais nos processos históricos de

visibilidade e invisibilidade. O Arquivo 17 atua dentro do contexto da invisibilidade das mulheres,

provindas da classe trabalhadora e de viés anarquista, e ele (o contexto) constrói os insumos

essenciais para compor a voz da narradora em primeira pessoa. Escolheu-se que a narradora fosse

uma trabalhadora branca, mas de origem brasileira e não estrangeira, e as questões raciais seriam

postas nas relações entre imagens – na montagem do arquivo, com protagonismos respeitados.

Nos escritos e na pesquisa sobre os operários de cem anos atrás, homens brancos e algumas

mulheres brancas são citados como protagonistas, muitos de origem europeia, mas, ao entrar em

contato com os documentos escritos e também com imagens fotográficas, perce o e o ve

protagonistas provindos do interior do rasil e da capital pa lista. Parto de ar a gones ( 1 ),

c a posi ão é cont ndente. e acordo com ela, organi a es sociais, nas ais pessoas t m

resistido modernidade capitalista, estão em tensão com a l gica categorial dicotômica e

ier r ica so re ra a, g nero e sex alidade. Assim, conjuntamente à questão de uma mulher

operária e à construção de subjetividades, não posso me esquecer da questão racial e da sexualidade

e suas mais variadas formas de ser e estar. Um dos eixos subjacentes à construção da Mulher do

Canto Esquerdo do Q adro ser a l gica da coali ão. Ela é, segundo María Lugones, “desafiadora

da l gica das dicotomias as diferen as n nca são vistas em termos dicotômicos, mas a l gica tem

como s a oposi ão a l gica de poder. A m ltiplicidade n nca é red ida” (Lugones, 2014, p. 950).

O espaço, a expografia

A exposição foi dividida em zonas e a entrada principal foi interrompida, sendo os

espectadores obrigados a entrar pela porta dos fundos. O lado esquerdo (na perspectiva de quem

entra pelos fundos) foi dividido entre zonas rosas, com imagens espaçadas e narrativas de um eu

privado que se conecta com um nós público. A zona vermelha é a zona da tensão, da greve, da ação

direta. No lado direito, manteve-se o conceito de zonas, porém se usaram os próprios rebaixamentos

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da parede para revestir de cartazes e colocar a estante anarquista no meio. É uma zona do livro, do

panfleto, do jornal e do questionamento. Para este artigo, vou me concentrar em dois pontos da

expografia: a narradora e o espaço expositivo.

Reconhecer, montar, arquivar/expor são as três ações essenciais para desenvolver o Arquivo

17. Reconhecer fotografias, vídeos e documentos produzidos, concernentes ao universo dos

operários da Primeira República; editar esse material, dando- lhe sentido contemporâneo por meio

de um projeto artístico e trazendo à tona questões históricas e sociais do país; exibir o arquivo

formado, dando retorno ao cotidiano para fotografias, relatos e vídeos de uma dada época,

ressignificados pela arte contemporânea. A proposta da exposição, que será realizada no MIS,

Museu da Imagem e do Som, de Campinas, é construída por meio de matrizes, facilmente

reprodutíveis e remontáveis. Há, na proposta, o reconhecimento de imagens e o deslocamento de

seu lugar original, como no caso do documentário, sacando-lhe os frames e passando para fotografia

impressa. Outro exemplo são os documentos trabalhistas expostos cuja tridimensionalidade é

retirada, levando-os para a parede, um lugar canônico da arte. Entretanto, não é o campo da

moldura e da aura que me interessa, os trabalhos vão para a parede diretamente, sem intermediação.

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Planta do Museu da Imagem e do Som de Campinas com desenho expográfico de Arquivo 17. Trabalho

construído conjuntamente com uma das curadoras da exposição, Paola Fabres .

A narradora

É no Ipiranga, diante da Fiação, Tecelagem e Estamparia Jafet, que aparece A Mulher do

Canto Esquerdo do Quadro. É um frame retirado do documentário Funerais do Comendador Jafet.

O documentário, de acordo com a Cinemateca Brasileira, foi organizado por José Inácio de Melo

Souza, que estabeleceu a data da filmagem entre 27 de dezembro de 1923 e 3 de janeiro de 1924.

Antes da edição realizada por Souza, o material examinado encontrava-se disperso em pequenos

rolos referentes aos planos, sem letreiros ou intertítulos, num total de 340 metros. O filme

restaurado pela Cinemateca Brasileira foi realizado no projeto Resgate do Cinema Silencioso

Brasileiro, financiado pela Caixa Econômica Federal, em 2007-2008.

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A imagem (no nosso caso, a imagem técnica) pode ser vista como um ato, um lugar para a

manifestação carnal de um fantasma. Um ato, um lugar para a manifestação de algo não palpável,

não mais existente. Ela pode ser gatilho de uma exposição, de um trabalho de arte, que usa do

artifício, da montagem, para se construir uma narrativa em fragmentos, em repetições. A imagem da

mulher me faz recordar o punctum barthesiano, entregando-me como feminista e artista que busca

montar e remontar temas ainda urgentes, de lutas e conquistas que continuam a ser bandeiras,

mesmo depois de cem anos. Punctum, para Roland Barthes (1980), é o que punge, é o que tem força

de expansão. Essa força, segundo Barthes, é quase sempre metonímica. Assim, ao olhar a imagem

da mulher com a mão na boca, remeto-me a outras muitas mulheres, múltiplas e diversas, que

viveram naquela época como operárias.

Reprodução da imagem da narradora em fotogravura, primeira imagem na exposição

Sou aquela mulher do canto esquerdo do quadro, em videoarte1, pode ser vista como uma

tentativa de pensamento em montagem, uma tentativa de pensamento em arte. Um trecho de doze

segundos do documentário Funerais do Comendador Jafet (1924) é retirado, desmontado,

remontado e repetido de várias maneiras diferentes, junto a cenas do mesmo documentário, com o

propósito de disparar uma relação entre as imagens. O resultado final é uma videoarte de 8 minutos

1 Pode-se assistir à videoarte em: <https://vimeo.com/172035524>.

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e 28 segundos. Nela, mostra-se uma mulher em uma cena de rua, que realiza um gesto muito

limitado, iniciado com a mão na boca até retirá-la, olhando, em seguida, para a câmera. Na

montagem que realizei, coloco a mulher ora em imagem em movimento, ora em fotografia. O início

e o fim do filme são duas fotografias, o início e o fim do movimento. Na exposição, ela se repete

três vezes: sozinha como imagem estática; em montagem com outras imagens no cartaz e, por fim,

no vídeo.

O deslocamento da imagem — sua retirada do movimento e a transformação do frame em

fotografia — gera um ruído atrativo e pertinente ao projeto. A imagem traz à tona a possibilidade de

reconhecer e olhar pessoas em um contexto de rua. E permite o que mais me interessa: ser gatilho

de uma exposição, de uma tese.

O espaço expositivo em si

O espaço é um procedimento de acúmulos. O Museu da Imagem e do Som de Campinas foi,

no passado, a casa do Barão de Itatiba (1808-1884), cujo nome próprio é Joaquim Ferreira

Penteado. Depois se tornou Fórum, prefeitura de Campinas e agora é sede do MIS. A casa

simboliza questões arquitetônicas e históricas de uma oligarquia brasileira vinculada ao café. Os

barões eram produto e produção de um Brasil Império, de um Estado a se fortalecer em dinheiro e

expansão. Campinas era uma cidade-plantio, uma cidade plantio fértil. A cidade de São Paulo, na

época do Barão, era um vilarejo.

O espaço entrega a história social brasileira: de racismo, de exclusão social, de divisão entre

quem pode acessar o quê, e traz em si a diferença social. O trabalho doméstico é construído tendo

como base o racismo, o sexismo e a exclusão. Este lugar é denominado de Palácio dos Azulejos.

Tem esse nome em razão de seu revestimento de azulejos portugueses no pavimento superior. No

piso térreo não há azulejo, mas um salão dividido por pilastras e os fundos.

O Arquivo 17 é instalado num lugar da memória, ele traz em si o poder, as paredes falam.

Há no espaço, ao fundo, a memória das pessoas que foram escravizadas, depois, o lugar da

burocracia com o fórum, em seguida, a prefeitura e o hoje. O arquivo surge em meio a relações

internas entre o espaço-tempo-matéria, a pesquisa histórica e os feminismos, bem como o

anarquismo, mas, ao se instalar no lugar com seus acúmulos históricos e arquitetônicos, ele precisa

estar em confronto, em complexo combate. Pelos fundos, a antiga moradia dos empregados é o

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primeiro lugar-visão após o corredor de acesso. Pelos fundos, a esquerda e a direita são dadas pela

relação com o fundo. Já o fim da exposição é fechado por uma pilha de sacos, uma obstrução

simbólica: um arrimo-barricada. A porta principal sendo obstruída por sacos de café, símbolo

oligárquico que traz o produto do trabalho, das pessoas trabalhadoras da época do império: os

negros. O café também liga o lugar império com o início da industrialização do Brasil e com as

mulheres. As indústrias de saco de juta estiveram entre as primeiras indústrias instaladas na cidade

de São Paulo, com emprego de mulheres, emprego subalternizado. O saco de juta também

simboliza o manifesto silencioso das mulheres: para atravancar as vendas (e, por consequência, os

lucros), as mulheres fizeram um ato de protesto contra as péssimas condições de trabalho que

enfrentavam – costuraram afrouxando os pontos. Com o café já nos sacos, o empilhamento deles,

um a um, provocou a destruição da mercadoria e a perda da colheita. Assim, as mulheres, em uma

revolução silenciosa, atingiram o produtor de café, o oligarca do Império que se manteve na

República, e o industrial.

A perspectiva da memória é transgeracional, sendo a memória algo construído como um

espaço entre o factual e o subjetivo. As questões de classe social, identidade de gênero e racial são

características das relações entre o privilegiado e o subalterno, e são essenciais para compreender as

relações de poder estabelecidas no cotidiano.

Da relação interna entre espaço expositivo (Palácio dos Azulejos) e projeto (Arquivo 17),

nasceu a proposta instalativa Arrimo-Barricada. A proposta remete a aspectos simbólicos e culturais

do Brasil: o arrimo é o muro que sustenta, que dá suporte a uma construção, e esse substantivo tem

um sentido figurado referente a pessoas que sustentam uma família (arrimo de família), como foram

as pessoas negras e seu trabalho o sustentáculo de parte do Brasil Colônia e do Brasil Império. O

arrimo também remete às mulheres trabalhadoras. Dentre elas, muitas eram arrimo de família,

sustentando seus filhos e enfrentando a dupla jornada para dar suporte à família. O arrimo unido à

barricada reverte o projeto instalativo como um lugar de resistência, já que a barricada é um método

anarquista de ação direta de interrupção brutal do espaço-passagem, de criação do confronto no

espaço de forma imediata.

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Considerações finais

Quando se escreve sobre o arquivo que se cria, devem-se forjar a metodologia e a forma de

se falar sobre ele. Isso não significa que leituras, levantamento bibliográfico e olhar agudo para o

trabalho de outros artistas não foram realizados. Porém, o lugar da voz da escrita não é de visitante

que contempla e relaciona o trabalho com outros, e sim um olhar de dentro, que estabelece relações

pedidas pelo trabalho; por isso, foram trazidos aqui a construção da narradora, A Mulher do Canto

Esquerdo do Quadro, e o espaço expositivo em preparação.

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review.com>. Acesso em: 7 maio 2017.

Archive 17: The Creation of a Work of Art under the Feminist and Decolonial Condition

Abstract: Archive 17 is an art project that will be exhibited at MIS/Campinas on August. The initial

step is the collection of documentation on the universe of working people in Brazil in the early 20th

century, particularly the First Great Workers Strike, which occurred in the year 1917. The strike

began in the city of São Paulo, and it was a huge mobilization initiated by women workers. The

produced archive is seen as a spatial, exhibition-oriented, decolonial and discursive device. The

researcher is the artist in action herself, but the one who emerges is the built for one narrator.

Keywords: Archive. Contemporary art. Feminisms.