ARRANJOS PRODUTIVOS DOS CAMPONESES DA PEDRA LISA ... · rural, da Pedra Lisa, ocorreram nos modos...
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ARRANJOS PRODUTIVOS DOS CAMPONESES DA PEDRA LISA: ESTRATÉGIAS DE EXISTÊNCIA NUM LUGAR CERCADO PELA CANA-DE-
AÇÚCAR
Edevaldo Aparecido Souza Universidade Estadual de Goiás - UEG
Rosselvelt José Santos Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Resumo
Este texto tem por finalidade compreender os saberes e fazeres locais das famílias de pequenos produtores da Comunidade rural Pedra Lisa, no Município de Quirinópolis, no Estado de Goiás e como estes existem em um lugar cercado pela cana-de-açúcar. Tem como objetivo compreender as mutações do espaço e as práticas sociais dos camponeses do lugar Pedra Lisa, bem como as alterações nos seus modos de vida, por intermédio das relações com interesses dos capitais do agronegócio e pelo Estado, que promovem desencontros e tensões, mas também possibilitam a esses camponeses criar e recriar novas estratégias e arranjos produtivos para continuarem existindo no lugar. Palavras - Chave: Pedra lisa. Saberes e fazeres. Camponeses. Cana-de-açúcar. Lugar.
Introdução
Pedra Lisa, é uma comunidade rural do Município de Quirinópolis, constituída por
pequenas propriedades, tendo como produção principal o gado leiteiro, com presença
também de gado de corte, mas que atualmente a expansão da produção de cana-de-
açúcar para produção de etanol tem se aproximado do lugar, tendo inclusive três
pequenas e três médias propriedades dentro da comunidade, já aderido à atividade
canavieira. São famílias que estão nessa comunidade a mais de quarenta anos, algumas
das pessoas inclusive são nascidas ali tendo construído suas vidas e relações sociais
neste lugar.
Compostas por características marcantes de uma comunidade camponesa, com alto grau
de parentesco, se tornando proprietários por heranças, muitas das práticas sociais,
religiosas e produtivas ainda permanecem coletivas, com técnicas predominantemente
braçais, com pouca utilização de tecnologias modernas na produção do leite. O tanque
de resfriamento e o veículo automotor no processo produtivo são os mais
representativos nessa categoria, entretanto, no que se refere a mercadorias de consumo,
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uma quantidade muito maior de equipamentos foram incorporados, na perspectiva de
facilitação do trabalho doméstico e da intercomunicação e informação em escala maior.
Pedra Lisa, conhecida administrativamente por sub-região Pedra Lisa, constitui-se numa
das 21 sub-regiões do Município de Quirinópolis, indicada pelo número 3 no mapa 1,
com predominância de pequenas propriedades produtoras de leite.
Mapa 1 - Município de Quirinópolis, localizando a sub-região 3 denominada “Pedra Lisa”
Fonte: SEAGRO (2010) Interpretação, organização e digitalização de Leon Alves Corrêa (2010)
Este texto é parte das discussões trabalhadas na tese de doutorado pela Universidade
Federal de Uberlândia e tem como objetivo compreender as mutações do espaço e as
práticas sociais dos camponeses da comunidade rural Pedra Lisa, Município de
Quirinópolis/MG. Nessa perspectiva, os modos de vida desses pequenos produtores de
leite, vão sendo alterados circunstancialmente, na relação com interesses de
investidores, capitaneados, pelos capitais do agronegócio e pelo Estado.
Para o entendimento das lógicas sociais que operam no espaço, é preciso compreender,
a partir do trabalho de campo, a representatividade dos sujeitos, a lógica de produção e
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de relações sociais de quem chega ao lugar e a de quem já estabeleceu seus vínculos
territoriais.
O papel do Estado e a lógica que ele atua revela interesses conflitantes e desse modo,
esclarecer os mecanismos do planejamento e apropriação do espaço, pode facilitar a
compreensão dos desencontros, das tensões, assim como das possibilidades de se agir
localmente e atender as diferentes demandas de um espaço rural heterogêneo.
Os conteúdos e as práticas sociais dos camponeses de Pedra Lisa
A Geografia Cultural, sobretudo, a partir do tratamento teórico e metodológico dado as
categorias paisagem, território e lugar, têm propiciado contribuições fundamentais para
a discussão a respeito dos modos de vida, dos valores culturais e suas metamorfoses. É
dessa contribuição que nos ocupamos para pensarmos os camponeses de Pedra Lisa, um
lugar em um espaço reocupado pelo setor agroenergético.
Neste estudo, envolvendo amplos processos de fixação de pessoas, de território e de
territorialidades humanas, buscamos compreender a existência de camponeses que
vivem na reocupação de terras pelo setor agroenergético as transformações
socioculturais e a partir delas como se situam frente às imposições do mercado e das
políticas econômicas.
Para Chaveiro e Castilho (2010), o Cerrado é visto como um “patrimônio integrado de
vida em que participam as classes de vegetação, as bacias hidrográficas, o relevo, o
solo, o seu espaço, a sua cultura, os seus símbolos, a sua gente, a sua arte, os diferentes
modos de vida que aqui se constituiu”. Continua os autores afirmando ser “um arquivo
vivo e dinâmico de cores, sabores, sons, espessuras, cantos e relevos. (...) E hoje se
apresenta solapado” (CHAVEIRO e CASTILHO, 2010, p. 2).
Na busca da (re)ocupação desse espaço e da reestruturação dos processos produtivos pelo
capital, estabelece-se disputas e convivências de diferentes lógicas sociais. No tocante às
relações econômicas e culturais o moderno se instala, mas não elimina as práticas locais.
Nessa condição de heterogeneidade socioespacial e cultural, os lugares também são
ressignificados, englobando os seus modos de vida, produção, as festas e relações
familiares.
Desse modo, na comunidade Pedra Lisa, os modos de vida locais não desapareceram, se
metamorfosearam, criando novas condições de existência dos resíduos sociais que
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permanecem, ou seja, testemunhos de elementos do passado num presente com circuitos
produtivos e de rearranjos espaciais novos, que geram disputas e rearranjos dos vínculos
territoriais.
Entende-se, portanto, por resíduos sociais as formas de pensar, fazer, agir e reagir que não
sucumbiram com o desenvolvimento tecnológico presente no Cerrado. São conteúdos
históricos presentes, por intermédio da memória e do imaginário social coletivo “das
pessoas do lugar, os quais possibilitam reproduzir relações, práticas e eventos socioculturais
e religiosos específicos de outros momentos da história, e que se inscrevem no mundo
vivido” (ANDRADE & SANTOS, 2007, p. 27).
Diante da presença dos produtores camponeses, consideramos a possibilidade da
existência de conteúdos residuais da cultura local estar imprimindo, no lugar, ritmos e
relações de produção baseados em saberes e fazeres ancestrais.
Um exemplo a ser dado, pode ser com relação aos saberes medicinais locais. Como
quase não há mais a vegetação do Cerrado, esses saberes tendem a desaparecer, pois a
escassez de frutos, que complementavam o saber alimentar, e as variadas ervas que
alimentavam o conhecimento medicinal dos camponeses do Cerrado, se evidencia com
a expansão, em larga escala, do agronegócio.
A quase eliminação do anjiqueiro, jaracatiá, gabiroba (guaivira), jatobá, goiabinha do
Cerrado, cajuzinho, mama cadela, marmelo, chapéu de couro, sucupira e outras árvores
e arbustos do Cerrado comprometem em muito o saber fazer e os estudos desses
conhecimentos do lugar, no lugar e para o lugar. Com a perda do saber medicinal e da
biodiversidade do Cerrado, as pessoas, na comunidade Pedra Lisa, por mais simples que
seja a enfermidade, ficam dependentes dos medicamentos químicos e dos agentes de
saúde que visitam as propriedades.
De acordo com Lefebvre (1967, p. 68), “cada atividade que se autonomiza tende a
constituir-se em sistema, em ‘mundo’. Por isso, este constitui, expulsa, indica
‘resíduo’”. Na comunidade Pedra Lisa, as imposições de ordem econômica revelam
instâncias de poder, geralmente dos laticínios, que enquanto produtores de leite, sempre
estiveram presentes, determinando comportamentos. Assim, a capacidade de criar e de
também recriar relações sociais não capitalistas de produção podem estar presentes nos
resíduos, como irredutibilidades dos camponeses do lugar.
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A agricultura de “precisão” envolvendo o uso de modernas tecnologias, implantada pelo
setor agroenergético, subsidiada pelo Estado, representa os interesses de grupos
empresariais e impõe, de forma abrupta, aos lugares já ocupados, condições de
produção capitalista. Sob a lógica do lucro máximo, agem modificando
substancialmente a paisagem e a cultura dos lugares.
Esses camponeses são detentores de conhecimentos que se concretizam nas suas
diversas práticas sociais, representando valores humanos, tradições e costumes. São
específicos dos espaços rurais. Por isso, na pesquisa que deu sustentação empírica a esse
trabalho, no lugar, agimos de forma a investigar os saberes humanos, as (re)criações da
tradição, os modos de se relacionarem entre eles e com os sujeitos de fora da
comunidade.
Diante disso, foi possível perceber que os modos de vida locais não desapareceram, se
metamorfosearam, criando novas condições de existência. Diante da presença dos
produtores camponeses, consideramos a possibilidade da existência de conteúdos
residuais da cultura local estar imprimindo, no lugar, ritmos e relações de produção
baseados em saberes e fazeres de tempos passados, entretanto, com modificações e
reinvenções de práticas e costumes.
No espaço coletivo da comunidade, na capela, nas reuniões comunitárias valorizam-se
as relações de vizinhança, de parentesco, de companheirismo, pois isso fortalece o
religioso, as territorialidades e o próprio território. São práticas sociais que no lugar
também envolvem as rezas e festas do catolicismo popular, como o terço, a novena, as
folias de reis.
Perceber esse universo camponês em uma realidade externa à comunidade constituída
em grande parte por paisagens homogêneas, com algumas propriedades rurais limitadas
por grandes lavouras de cana-de-açúcar, onde o agronegócio age, provocando mudanças
socioespaciais significativas, tencionando a existência dos pequenos produtores rurais,
nos fez avançar na discussão sobre paisagem.
Os encontros e desencontros entre a modernidade e as práticas sociais locais estão
presentes, não apenas nas relações sociais, mas é também visível em muitos equipamentos
domésticos. Na comunidade, ainda com características marcantes do passado é possível
verificar a aquisição de várias tecnologias. Contudo, não se livraram, principalmente, de
edificações que incluem os chiqueiros, mangueiros, paiol e até mesmo os estilos das suas
residências.
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Existem chiqueiros e mangueiros com feitio das décadas de 1960/70. O primeiro, no
que se refere à forma de cercado com madeira, bem como ao telhado de tipo colonial
(Foto 1); e o segundo, na madeira utilizada, em forma de lascas, e na disposição das
mesmas (Foto 2). Outro fator interessante é que o camponês, além de produtor de leite,
também reúne outras habilidades, sendo no caso das edificações aquele que projeta e
executa as benfeitorias de sua propriedade.
Figura 1 - Chiqueiro para engorda de porcos
Fonte: Pesquisa de Campo, 2010
Figura 2 - Curral para apartar bezerros
Fonte: Pesquisa de Campo, 2010
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Considerando as habilidades camponesas, as mudanças ocorridas na propriedade não se
efetivam como modernas, há traços do passado, que aparecem na produção de leite. No
curral apresentam-se os contrastes e as contradições entre o novo e o antigo. Algumas
propriedades têm, em seus equipamentos de trabalho e em suas práticas, as mesmas
rusticidades de décadas anteriores. Outras evidenciam o hibridismo do rústico e do
moderno dentro do lugar e às vezes até dentro da mesma propriedade.
Esses formatos modernos, sobretudo os de referências à comunicação e transporte, são
importantes equipamentos de trabalho como os automóveis e motos para locomoção e
transporte da produção. Também os tanques de resfriamentos para o leite são
encontrados em várias propriedades, o que lhes conferem as condições necessárias para
se integrarem ao processo produtivo moderno, exigidos pelo mercado (Foto 3).
Foto 3 - À esquerda, no prédio de porta azul tanque de resfriamento de leite. À direita caminhão tanque, presença do laticínio.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011 Se somar à modernização nos equipamentos de produção, a influência da cidade
(principalmente trazida pelos filhos), e a incorporação da luz elétrica e dos meios de
comunicação de massa, compreende-se que as transformações substanciais, no espaço
rural, da Pedra Lisa, ocorreram nos modos de vida e em partes do sistema produtivo,
sobretudo na organização daqueles camponeses.
A carroça é, atualmente, um instrumento de trabalho raramente encontrado em uso na
comunidade estudada. Em desuso encontra-se também a montaria em cavalo, tornando-
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se uma raridade encontrar, nas estradas da comunidade, camponeses montados a esses
animais (Foto 4).
Foto 4 - Camponês produtor de leite que, mesmo possuindo um fusca, preserva a tradição da montaria à cavalo
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011
As possibilidades de obterem créditos para comprar veículos automotores, associados à
boa qualidade das estradas, fizeram com que a carroça e o cavalo fossem substituídos
por motos com carretas ou até mesmo camionetas de pequeno porte para escoamento da
produção. O que restou dos antigos meios de transportes está encostado embaixo de
árvores ou da pequena área contígua do antigo paiol, agora utilizado como despensa. A
roda d’água (Foto 5) é um dos instrumentos ainda muito presente na Pedra Lisa, devido
a necessidade de levar água até as residências, uma vez que há grande quantidade de
córregos.
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Foto 5 - Roda d’água utilizada para transportar água até as residências da Comunidade.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Nessa comunidade, dentre as tradições que caracterizam o modo de vida local estão as
festas religiosas, sobretudo as relacionadas à religião católica. Na Comunidade costuma-
se rezar o terço, as novenas e ritualizar as folias de reis. Dentre as festas profanas se
destacam os pagodes, os rodeios e o futebol.
As folias de Santos Reis, (Foto 6) tradicionais nessa comunidade, como em todo o
município, acontece todos os anos. De acordo com Nogueira a Folia de Reis da Pedra
Lisa é, provavelmente, a mais antiga do município. Enfatiza a autora que “[...] Os
Foliões, seus familiares e a população da região (Pedra Lisa) se reúnem em um local
determinado [...] para a oração do terço e também os rituais próprios de cantoria da
Folia, bem como para a confraternização de Natal com o jantar, a dança e a bebida”
(NOGUEIRA, 2011, p. 75).
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Foto 6 - Folias de Santos Reis da Comunidade Pedra Lisa
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011
Os encontros de cunho religioso acontecem a cada semana em uma casa diferente,
marcando um ritual que de tão importante se revela como acordo tácito e que se renova
sempre ao final de cada reza. Normalmente os encontros religiosos são semanais, todas
as quintas feiras, com a reza do terço. Nos momentos que antecedem os eventos mais
marcantes do catolicismo, as novenas de natal, por exemplo, e da quaresma que
antecede a páscoa, são usadas, também como encontros para reflexão (Foto 7).
Mensalmente, na segunda quinta feira de cada mês, há a celebração da missa.
Foto 7 - Encontro em Família para reflexão bíblica e rezas do terço.
Fonte: Pesquisa de Campo, 2011
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A religiosidade nesta comunidade é parte de uma identidade que motiva encontros,
reinventa e refaz relações sociais. Nela se estabelece acordos implícitos envolvendo
reciprocidade, arranjos e estratégias produtivas. O modo de vida camponesa vai se
revelando na vida doméstica, no lazer e na capacidade de ao mesmo tempo juntar e
separar o divino e o profano.
A religiosidade camponesa continua como prática comunitária e como tal, motiva
reuniões. No convívio com a modernidade, com as influências que vem do mercado e do
espaço há, sem dúvida, mutações em uma série de hábitos e costumes dos homens e
mulheres da terra na comunidade Pedra Lisa. O encontro/desencontro do local com o
moderno, no que diz respeito às atividades produtivas, mas também dos equipamentos de
consumo doméstico, promove tensões entre os saberes e fazeres desses sujeitos, que vão
incorporando novos hábitos e novos conhecimentos, vindos das cidades e fetichizados nas
mercadorias industriais que deveriam facilitar a vida cotidiana.
As transformações socioeconômicas, socioculturais e socioambientais, presentes na
paisagem, são interpretadas e debatidas pelos próprios camponeses entendendo que
pouco ou quase nada de seus conteúdos são relacionadas ao economicismo, visto que
não são apenas os aspectos econômicos, mas também estratégias de cunho social como
a festa, a religião, o lazer, possibilitam as reinvenções das práticas sociais e dos arranjos
produtivos para que eles existam enquanto sujeitos.
Para os camponeses o preponderante é reconhecer as humanidades envolvidas nas ações
do capital. Significa que o trabalho de pesquisa procurou deixar claro que por detrás da
reprodução dos capitais ligados ao agronegócio, materializado na Comunidade de Pedra
Lisa pela expansão do setor agroenergético, tem-se invadido territórios e culturas. Sob o
argumento de trazer “desenvolvimento” às regiões, municípios, lugares, acoberta-se as
tensões que esse tipo de ocupação causa aos modos de vida dos seus moradores.
Evidenciar que os sujeitos agredidos existem no espaço e constroem sua existência, mesmo
nessa condição, aos poucos se tornou um dos nossos objetivos. Antes de a cana-de-açúcar
tornar-se matéria-prima das usinas de álcool e açúcar, o campones de Pedra Lisa atribuía à
paisagem, significados simbólicos do seu mundo, tornando a casa, o curral, as plantações,
as cercas, a capela, a escola e as vizinhanças, formas passíveis de perceber o território e as
relações sociais que lhe constituía.
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É evidente que as mutações no território e no lugar não iniciaram com a expansão da
atividade canavieira, Ela é consequência da revolução verde e do modelo do agronegócio
que, no Município de Quirinópolis e na Pedra Lisa, tiveram na pecuária e na soja, a
representatividade dessa modernização do processo produtivo no campo.
No lugar, os embates dos sujeitos envolvidos no processo de transformações e
reestruturação econômicas, no entorno das propriedades camponesas, promoveram
mutações na paisagem, ressignificando alguns dos conteúdos socioculturais do lugar. A
partir das relações sociais produtivas envolvendo os camponeses no uso do mesmo espaço,
principalmente as estradas, revelam tensões com os elementos identitários locais. A
presença das lavouras de cana-de-açúcar traz para o lugar as máquinas, os caminhões e o
uso de agrotóxicos e maturadores.
No lugar, há situações de disputas entre o camponês e o usineiro, envolvendo o uso do
espaço, com rebatimento na questão cultural, na econômica e no simbolismo das suas
gentes. Embora não se referindo ao lugar Pedra Lisa, mas aos grandes projetos,
principalmente os dos anos de 1980, para desenvolver o Cerrado, Santos (2008)
considera que as práticas, valores e instituições, historicamente constituídas pelas
populações locais foram seriamente abalados a partir dos projetos estatais e do grande
capital internacional, tornando-se expressões do desenvolvimento econômico,
implicando em desrespeitos à natureza e à história humana.
Na área de estudo considera-se algumas especificidades que indicam reações às ações
do setor agroenergético, culminando em redefinições das condições materiais e
imateriais com que os modos de vida rurais continuam no lugar. A primeira questão que
nos parece relevante são as diferentes lógicas sociais que não se apresentam como
subservientes aos interesses reprodutivistas dos grandes capitais investidos nas grandes
lavouras de cana-de-açúcar. A segunda questão, embora relacionada à primeira, se
especifica no lugar como invenção ou reinvenção daquilo que já existia.
A existência camponesa na Comunidade de Pedra Lisa não é funcional para reprodução
dos capitais investidos para produção de etanol e açúcar, mas fundamental para os
laticínios. Isso significa que o desenvolvimento da sociedade capitalista é desigual
também no lugar. Desse modo, Santos (2008) ressalta a capacidade de invenções ou
(re)invenções de identidades, por parte dos sujeitos, no processo das transformações e
redefinições dos modos de vida e do território. No caso dos camponeses em estudo é
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necessário ressaltar a sua capacidade de criarem e também recriarem as condições de
produção não capitalistas em suas propriedades.
Portanto, a paisagem dos grandes canaviais não é homogênea, unificada e delimitada
apenas por um modo de produção. Ela, no lugar, encontra-se em constante
transformação. Entretanto, não podemos venerar o passado ou aquilo que sobrou de
outras temporalidades sociais.
A existência de diferentes temporalidades sociais em um mesmo lugar não quer dizer
que haja coexistência, quer dizer que a diferença ocorre também no lugar. A partir dessa
constatação, os símbolos da cultura camponesa tanto podem ser valorizados como
depreciados. Eles geralmente não expressam apenas as experiências de vida, e nem
estão imbricados nas tradições produzidas por gerações. Há neles usos que vão conter
desejos, vontades relacionadas aos modos de vida que (re)definidos nas mutações do
espaço podem preservar alguns elementos constituídos a muito tempo e que na
atualidade dos fatos podem possibilitar certas habilidades para se lidar com as mudanças
socioespaciais.
Neste processo em que o velho não é somente o tradicional e o novo não é somente o que
vem de fora, entendemos que o camponês de Pedra Lisa vive um espaço em mutação e na
relação com ele, cria especificidades. Seus interesses são atuais e podem ser interpretados a
partir das relações sociais que estabelece com o dentro e o de fora do lugar. Como pequeno
produtor de leite é também um criador de símbolos, de valores humanos, de identidades que
não são apenas locais e representações que se complexificam ou se simplificam a partir das
relações com o lugar e o global.
Considerar as particularidades dos modos de vida significa compreender que existem
diversas habilidades e diversidades culturais que podem ser incorporadas na produção
de bens e não necessariamente nas mercadorias. Os modos de vida que se caracterizam
pela diferença não se mantêm por si próprios, mas na relação com o diferente se
redefinem como tais. Isso significa que estamos diante de um processo em que o seu
entendimento não implica em defender a sua manutenção.
Portanto, o papel de questionar a desvalorização das práticas sociais locais é
fundamental para propiciar visões mais amplas a respeito do lugar e as suas
especificidades, principalmente dos sujeitos sociais que vivem na mutação do espaço,
outras possibilidades de existência.
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Ao discutirmos a questão na perspectiva de examinar as especificidades do camponês de
pedra Lisa enfocando o seu conteúdo cultural, se antigo ou moderno, se produtivo ou
improdutivo, ressaltamos que o camponês não se sintetiza naquilo que a lógica
dominante apregoa. São conteúdos que transmitem uma lógica pautada na vida, nas
relações sociais e de produção que não visam apenas a produção de coisas. Diferentes
simbologias podem ser analisadas e atribuídas ao camponês e até mais respeitáveis que
os resultados econômicos que conquista.
Isso como pressuposto de análise, pode nos permitir ver além da imposição decorrente
das suas relações, por exemplo, com os laticínios e com a subordinação das suas
especificidades produtivas na reprodução dos capitais, assentadas nas desigualdades
sociais. Desta forma, a realidade concreta dos camponeses de Pedra Lisa, não está livre
da existência de conteúdos em si tradicionais ou modernos. A existência camponesa, o
seu conteúdo sociocultural depende muito mais da formação, postura e dinamismo
desse produtor, que propriamente da sua capacidade produtiva de coisas para o
mercado.
A produção camponesa de coisas, no mundo que nós conhecemos não é somente de
mercadorias é também dos meios de vida. Eles existem nessa condição. É o mundo que
nós temos que decifrar. De acordo com Santos, Kinn e Souza (2010, p. 4), “a
precarização da vida, para essas pessoas, e a indiferença com respeito à história, à
cultura, são maneiras de perceber o movimento, as contradições e as superações, nas
relações entre os produtores tradicionais”. Para os autores, o capital vê, nas condições
vivenciadas pelos produtores locais, possibilidades de incorporação de área evoluindo a
expansão do agronegócio.
É importante salientar também que as mutações do espaço resultaram em infraestruturas
que o camponês consegue usar e torná-las como possibilidade de melhorar as condições
de produção e de vida no lugar. Algumas das logísticas da produção agroenergética,
proporcionadas pelas modernas tecnologias, vem de encontro com os anseios dos
camponeses. Em geral os camponeses usam as estradas melhoradas e de manutenção
constante, assim como os mata-burros na Pedra Lisa. Essas melhorias ampliaram as
possibilidades de acesso ao tanque de resfriamento de leite, antena parabólica, internet
móvel e celular.
No uso desse espaço observam-se novas conexões com a cidade e com o mundo. Com a
instalação de redes de energia elétrica, a aquisição de utensílios domésticos, como
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máquina de lavar roupas tem facilitado o trabalho das camponesas, com maior tempo de
inserção na produção leiteira. Também, em decorrência das estradas melhoradas e das
facilidades em financiamentos de veículos, ocorre uma maior utilização de carros e
motos, tanto para o transporte do leite (Foto 8), como para o acesso rápido à cidade e/ou
outras localidades.
Foto 8 - Produtor de leite da Pedra Lisa, utilizando moto e carreta para transporte do produto.
Fonte: Trabalho de Campo, 2011
Como a utilização de tecnologia gera também uma racionalização das atividades
produtivas, algumas pertenças culturais e religiosas, na sub-região Pedra Lisa passam a
ter uma existência redefinida pelas suas práticas sociais e econômicas, assim como
também em outras sub-regiões. No lugar, mantiveram-se algumas das manifestações
culturais, como a Folia de Santos Reis, as rezas, certo número festas tidas como
profanas e, embora as formas de organização do trabalho tenham se modificado, esses
costumes revelam ainda saberes e fazeres da cultura local, como a benzição para currar
males, inclusive do gado leiteiro.
Neste processo, reconhecemos adaptações, ajustes que foram interpostas pelos
processos da modernidade, pois as novas tecnologias se apresentam aos camponeses
como possibilidade de incorporação de parte dessa modernidade ao seu modo de vida,
inclusive não negando costumes mais antigos. Assim, a necessidade de ter a televisão
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não substitui a prática do uso do rádio, até porque os produtores de leite, o leva para o
curral. Além de eles ouvirem as notícias e as modas de violas e música sertaneja,
moderna ou de raízes, há uma crença de que as músicas acalmam as vacas no momento
da ordenha.
A partir da modernização da produção, ao implantar certos modelos de reprodução
ampliada do capital, no território camponês de Pedra Lisa, a produção de cana-de-
açúcar contribuiu para identificarmos a constituição de uma paisagem heterogênea que
indica a presença de modos de vida que não se definem, nem como arcaico e nem como
atrasado, mas como diferente, criativo e mutável.
Nesta perspectiva, ao analisar o processo de modernização da agricultura,
compreendemos que houve várias situações em que o pequeno produtor não teve como
se manter na terra e migrou para a cidade. Mesmo aqueles que permaneceram em suas
terras, tiveram que modificar algumas de suas práticas sociais. O pequeno produtor
camponês consegue existir como produtor de leite se investir recursos na alimentação
do rebanho.
A priori, na Comunidade Pedra Lisa, isso não os destituiu das suas identidades, ao
contrário, contribuiu para o afloramento das suas sociabilidades e reciprocidades,
fortalecendo relações sociais no uso de novas tecnologias como é o caso da aquisição
coletiva de tanque de resfriamento de leite e a incorporação de ração animal. Contudo
essa situação que envolve conquistas camponesas indica que a presença da indústria
canavieira, no Município de Quirinópolis, evidencia profundas transformações no
espaço rural.
Considerações Finais
O que está posto nesta discussão é exatamente a presença de camponeses num espaço
em que a supremacia do capital agroenergético é incontestável. O Estado brasileiro
como planejador do espaço se comporta como incentivador desse modelo. Neste
contexto, no interior do Cerrado goiano, permanece sem garantia de existência ou a
livre escolha, com enormes prejuízos a sua existência social, um grupo de camponeses
produtores de leite. Ressaltar o valor das suas humanidades e questionarmos a
desvalorização das suas práticas socioculturais foi o caminho escolhido.
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Ao analisarmos o espaço vivido, o lugar Pedra Lisa, consideramos como relevante para
o camponês permanecer com a terra estabelecendo no lugar uma existência particular
repleta de sentidos e significados. Trata-se de uma existência que passa por mutações
inclusive de seus interesses sócio produtivos. O modo de vida constituído, por
elementos que vão para além daquilo que a visão abarca, revelaram, neste estudo,
identidades, enraizamentos e pertenças territoriais, envolvendo e desvendando os
conteúdos dos seus patrimônios culturais.
Em verdade são patrimônios que tem valor humano local. Na comunidade são usados
pelas famílias para permanecer na terra. Sendo partes de saberes e fazeres, ajudaram na
compreensão da sua existência em um espaço tomado por práticas que apregoam o
“desenvolvimento no campo” no qual o grande argumento é exatamente a geração de
empregos. Para quem? Geram algumas dezenas de empregos individuais, mas que
tencionam a existência daqueles camponeses.
São questões que procuramos expor e iniciar o debate. Sabe-se que a ênfase dada ao
conteúdo rural pelas políticas públicas é muito mais agrícola do que agrária, muito mais
mercadológica do que para economia de consumo, muito mais de produção para
exportação do que de alimentos para o país. Como tratar da existência de grupos sociais
diferentes, no caso os camponeses de Pedra Lisa, em um espaço cada vez mais
homogêneo e homogeneizante?
Referências
ANDRADE, Rodrigo Borges de; SANTOS, Rosselvelt José. Religiosidade e modo de vida: a (re)construção do lugar na comunidade rural Tenda do Moreno em Uberlândia-MG. Dissertação (mestrado). 216 f. Uberlândia: UFU, 2007. CHAVEIRO, Eguimar Felício e CASTILHO, Denis.CERRADO: patrimônio genético, cultural e simbólico, s.d. Disponível em: <http://www.revistamirante.net/2ed/7.pdf>. Acessado em 23/03/2010. LEFEBVRE, Henri. Metafilosofia: prolegômenos. Tradução e introdução de Roland Corbisier. Rio de janeiro: Ed. Civilização Brasileira,1967. NOGUEIRA, Wanderleia Silva. A festa de Folia de Reis em Quirinópolis: lugar de memória 1918-2010. 115 f. (Dissertação de Mestrado). Goiânia: PUC, 2011. SANTOS, Rosselvelt José. (Re) Ocupação do cerrado: novas gentes, outras identidades. In: ALMEIDA, Maria Geralda , CHAVEIRO, Eguimar Felício, BRAGA, Helaine Costa.
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Geografia e cultura: os lugares da vida e a vida dos lugares. Goiânia: Editora Vieira, 2008, p. 98-136. SANTOS, Rosselvelt José; KINN, Marli Graniel; SOUZA, Edevaldo Aparecido. Os grandes projetos de investimentos capitalistas no Cerrado mineiro e os conteúdos humanos das paisagens. In: VIII Simpósio de Geografia: Território e paisagem redimensionados pela expansão da cana-de-açúcar. Quirinópolis: UEG, 2010.