Art 033

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http://www.utjuris.net Fonte: BDJur COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NA INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE RAQUEL VELOSO DA SILVA Advogada, pós-graduada em Direito Público

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Fonte: BDJur

COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NA INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE

RAQUEL VELOSO DA SILVA Advogada, pós-graduada em Direito Público

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COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NA INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE

RAQUEL VELOSO DA SILVA Advogada, pós-graduada em Direito Público

As constantes transformações ocorridas no final do último

século, desencadeadas pela evolução científica e, sobretudo, pela

globalização, não poderiam deixar de provocar sensíveis efeitos no

mundo jurídico. Assim sendo, cabe ao Direito acompanhar as mais

variadas expectativas dos grupos sociais, já que este não se

consubstancia somente em norma de conduta desejada, e sim, de conduta

vivenciada.

A dinamicidade do Direito se evidencia nas alterações

vislumbradas em determinadas posturas jurídicas inovadoras e na

substituição e criação de valores nunca concebidos. Aflora-se a cada

instante, a necessidade de respaldar os novos hábitos e costumes e as

novas formas de subjetividade e privacidade, inéditos até recentemente.

Não há que se pensar, portanto, no Direito como uma ciência

estática, sobretudo o direito referente à família que incide sobre os

vínculos e relações afetivas entre as pessoas. Aleatório como a existência,

o Direito é igualmente mutável e seu objeto é retirado no seio da própria

vida daqueles que o invocam.

A heterogeneidade entre o mundo da subjetividade do afeto e

o mundo da objetividade da norma legal está presente constantemente no

litígio judicial em que se insere o conflito familiar. Exemplificam tal

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desigualdade, o confronto da subjetividade dos genitores em

contraposição à subjetividade do filho, aparentemente, por completo

tutelada pela disciplina legal.

O primeiro capítulo versa sobre os aspectos constitucionais

determinantes dos conflitos advindos do estabelecimento da filiação. Com

este desiderato, inicialmente apresenta-se uma conceituação dos Direitos

Fundamentais, entendidos como a concreção histórica do princípio

fundamental da dignidade humana. Em seguida, trata-se dos direitos da

personalidade, aqueles considerados inerentes à pessoa, destinados a

resguardar a dignidade humana, requisito básico para a inserção do

indivíduo na vida em sociedade.

No segundo capítulo é tratada a questão da colisão de direitos

fundamentais no que tange à filiação, apontando como direitos colidentes

o direito de intimidade da mãe, os direitos de intimidade e integridade

física inerentes ao pai e o direito de identidade pertencente ao filho.

Almeja-se realizar uma análise da referida colisão, e para

tanto, utiliza-se dos subsídios fornecidos pelo próprio texto

constitucional, pelos entendimentos jurisprudenciais e também das

valiosas contribuições extraídas da doutrina sobre os direitos

fundamentais. Apresenta-se como parâmetros para dirimir a dialética

de interesses contrapostos, dentre outros, os princípios da unidade da

constituição, da concordância prática, da razoabilidade e principalmente

da proporcionalidade. Este último considerado instrumento de grande

valia para uma adequada hermenêutica constitucional, no tocante à

ponderação dos direitos da personalidade.

2

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1 – Direitos Fundamentais

1.1 – Aspectos Constitucionais

Diversas expressões poderiam designar tais direitos, como

direitos naturais, direitos humanos, direitos individuais, liberdades

fundamentais, direitos fundamentais do homem, dentre outras. Não

constitui tarefa simples precisá-los conceitualmente, pois estão vinculados

a constantes transformações provocadas pelo desenvolvimento da

sociedade.

Alexandre de Moraes apresenta sua definição acerca dos

direitos fundamentais como sendo:

“O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do

ser humano que tem por finalidade básica o respeito a

sua dignidade, por meio de sua proteção contra o

arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de

condições mínimas de vida e desenvolvimento da

personalidade humana”1.

O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana

configura-se como valor unificador dos direitos fundamentais do homem.

Edilsom Pereira de Farias corrobora tal entendimento:

“O princípio fundamental da dignidade da pessoa

humana cumpre um relevante papel na arquitetura

constitucional: ele constitui a fonte jurídico-positiva dos

direitos fundamentais. Aquele princípio é o valor que dá

unidade e coerência ao conjunto dos direitos

fundamentais”.2

3

1 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo : Atlas, 1997. p. 39. 2 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos – A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. p. 66.

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A Constituição brasileira de 1988 classifica os direitos

fundamentais conforme o seu conteúdo, referindo-se à natureza do bem

protegido e do objeto de tutela. Em consonância com tal critério, tem-se

os direitos fundamentais divididos em cinco grupos:

(1) direitos individuais (CF/88, art. 5o), referem-se aos

direitos inerentes à própria pessoa humana;

(2) direitos coletivos (art. 5o), são evidenciados, na maioria,

como direitos sociais, de alcance coletivo;

(3) direitos sociais (arts. 6o a 11 e 193 e ss), apresentam-se

como liberdades positivas, de observância obrigatória de um

Estado Social de Direito, visam à melhoria das condições de

vida dos hipossuficientes;

(4) direitos à nacionalidade (art. 12), concernetes aos

direitos decorrentes do vínculo jurídico que liga o indivíduo

ao Estado;

(5) direitos políticos ( arts. 14 e 17), são as regras que

disciplinam as formas de atuação da soberania popular.

Edilsom Pereira de Farias elege o princípio da dignidade

humana como balizador dos referidos direitos fundamentais e afirma ainda

que este funciona como:

(...)“uma cláusula aberta no sentido de respaldar o

surgimento de direitos novos não expressos na

Constituição de 1988 mas nela implícitos, (...), pode-se

mencionar a dignidade da pessoa humana como critério

interpretativo do inteiro ordenamento constitucional”.3

Em segmento à mesma idéia, continua o autor, declarando

que “como ratio iuris determinante daqueles direitos, o princípio da

dignidade da pessoa humana possibilita a referência a um sistema de

direitos fundamentais”.

4

3 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit. p. 67

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Os direitos individuais, são divididos pela doutrina nos

seguintes grupos: direito à vida, direito à intimidade, direito à igualdade,

direito de liberdade e direito de propriedade. Tais direitos representam

vários princípios que visam a proteção da dignidade da pessoa humana.

Disposto no art. 1º, inc. III da Constituição Federal, este direito conduz e

fundamenta a interpretação e aplicação de todos os demais direitos

fundamentais.

José Afonso da Silva considera que “A dignidade da pessoa

humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos

fundamentais do homem, desde o direito à vida”4.

A dignidade humana é considerada como o essencial comum a

todos os indivíduos, estabelecendo-se um dever de respeito e

intangibilidade, até mesmo em face do Poder do Estado.Os direitos de

personalidade como o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à

imagem, dentre outros, previstos no art. 5º, inc. X, surgem em

decorrência da consagração da dignidade da pessoa humana como

fundamento da República Federativa do Brasil.

De forma sintética, pode-se vislumbrar a dignidade como

sendo um valor inestimável, imensurável e indisponível, próprio da

personalidade de cada pessoa.

1.2 – Direitos da personalidade

Nos dias atuais, uma das matérias de grande relevância é

aquela que se relaciona com os chamados direitos da personalidade. Há

quem diga até que os mesmos, deveriam assumir posição jurídica

5

4 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 106.

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autônoma. Nesse sentido defende-se uma nova concepção sobre esses

direitos, pela qual:

“Existe um direito geral de personalidade, de modo a

garantir o respeito a todos os elementos,

potencialidades e expressões da personalidade

humana, ou seja, a toda a esfera individual em seus

vários aspectos ou manifestações, acrescentando-se-

lhe, inclusive valores como o sentimento, a inteligência,

a vontade, a igualdade, a segurança e o

desenvolvimento da personalidade”.5

Rita de Cássia Curvo Leite, através de um enfoque moderno,

relaciona os direitos da personalidade às necessidades pessoais advindas

da evolução social:

“Dentro de uma sociedade evolutiva e globalizada,

assim, é inegável a importância desses direitos na

medida em que andando ciência e tecnologia a passos

largos deve o direito, amparado nos costumes, na

jurisprudência e em princípios gerais de ordem moral e

filosófica, acompanhar essas transformações não se

esquecendo jamais de que o seu papel fundamental é o

de proteger o ser humano, preservando sua identidade,

integridade e dignidade”.6

Segundo a mesma autora, no Direito contemporâneo, a Carta

de São Francisco, datada de 1948, foi considerada o alicerce de

consagração dos direitos da personalidade pelo direito internacional. No

Brasil, entretanto, foi a partir da promulgação da Constituição Federal de

1988 que se deu início à valorização ao respeito e à proteção dos direitos

6

5 CAMPELO DE SOUZA, Rabindranath V. A. O direito geral de personalidade. Coimbra: Ed. Coimbra, 1995, p. 91-93 e 203-359. 6 LEITE, Rita de Cássia Curvo. Os Direitos da Personalidade. In: SANTOS, Maria Celeste Corediro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunis, 2001. 374 p. (p. 151)

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da personalidade com o intuito de se erigir a dignidade da pessoa

humana.

Os Direitos da personalidade, também chamados individuais,

pessoais, direitos de estado, direitos privados da personalidade e ainda,

inatos, subjetivos essenciais ou personalíssimos, são, conforme Limongi

França:

“Os direitos subjetivos absolutos, porque exercitáveis

erga omnes, que recaem em certos atributos físicos,

intelectuais ou morais do homem, com o objetivo de

resguardar a dignidade e integridade da pessoa

humana”7.

Assim, os Direitos da Personalidade são inatos, ou seja,

inerentes à condição humana; constituem requisito básico para o

incremento da pessoa na sociedade. Tais direitos são de natureza

subjetiva, isto é, comuns da existência, na medida em que são suficientes

em si mesmos. Não possuem cunho patrimonial, são, portanto

extrapatrimoniais, o que não obsta, no entanto, que a lesão a qualquer

deles pressuponha a obrigação de indenizar.

Previstos na Constituição Federal, são preexistentes ao

ordenamento e englobam a tutela de bens específicos, como a honra, a

intimidade, a imagem da pessoa, a identidade, a integridade, entre

outros; sem contudo se estabelecer como direito público ou privado, como

bem esclarece Elimar Szaniawski: “os direitos da personalidade não são

nem públicos nem privados. São simplesmente direitos da

personalidade”8.

Os Direitos da personalidade não podem desvincular-se da

pessoa do titular, em conseqüência são, de um só turno, absolutos,

7

7 FRANÇA, Limongi R. Instituições de Direito Civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 1037. 8 SZANIAWSKI, Alimar. Direitos da Personalidade e sua tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 15.

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extrapatrimoniais, intransmissíveis ou indisponíveis, impenhoráveis,

imprescritíveis, irrenunciáveis, vitalícios e necessários e, enfim ,

ilimitados.

De forma sintética, Rita de Cássia Curvo Leite9 justifica cada

um dos caracteres essenciais dos Direitos da personalidade:

Absolutos: são oponíveis erga omnes, implicam um dever

geral de abstenção;

Extrapatrimoniais: não são suscetíveis de avaliação

econômica ou pecuniária;

Intransmissíveis ou indisponíveis: são inseparáveis da

pessoa, logo ninguém pode usufruir em lugar de outrem bens como a

vida, a integridade física e psíquica, a liberdade, o nome e assim por

diante.

Impenhoráveis e imprescritíveis: não se extinguem, quer

pelo não uso, quer pela inércia na sua defesa, não ficando sujeitos à

execução forçada.

Irrenunciáveis: se não é possível alienar a personalidade,

então não há que se falar em renúncia da mesma.

Vitalícios e necessários: não podem faltar e jamais se

perdem enquanto viver o titular.

Ilimitados: não são passíveis de limite em um numerus

clausus.

É mister destacar, entretanto, que nem sempre tais caracteres

serão tratados como inflexíveis ou absolutos em si mesmos. Ao contrário,

8

9 LEITE, Rita de Cássia Curvo. op. cit. p. 157-160.

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em algumas situações específicas, estes manifestar-se-ão de forma

relativa para salvaguardar interesses superiores.

Como exemplo da cogitada flexibilidade pode-se citar o

conflito de interesses, pelo qual um direito da personalidade só pode ser

satisfeito à custa do sacrifício de outro. Nesse caso se faz necessário o

estabelecimento de uma hierarquia de valores, ou seja, a determinação de

quais interesses humanos são mais valorizados pela sociedade.

A classificação dos direitos da personalidade não é uníssona

na doutrina. Modifica-se, em extensão e conteúdo, de acordo com o

contexto edificado em divisões que ligam direitos correspondentes ao

aspecto físico e moral. No primeiro grupo apresenta-se o direito à vida e,

no segundo, as emanações de índole incorpórea da personalidade, como a

liberdade, honra, privacidade, intimidade etc.

Carlos Alberto Bittar considera três espécies de direitos da

personalidade:

“Direitos Físicos (à vida, à integridade física, ao corpo,

ao cadáver, à imagem), Direitos Psíquicos (à liberdade,

à intimidade, à integridade psíquica, ao segredo) e

Direitos Morais (à identidade, à honra, ao respeito, às

criações intelectuais)” 10.

Insta ressaltar que, os Direitos da personalidade estão

sujeitos à mudanças e prolongamentos, ou seja, não podem ficar fadados

à estagnação. Tal afirmação não poderia ser refutada posto que, inerentes

que são à pessoa humana, os referidos direitos não poderiam deixar de

acompanhar a dinamicidade do desenvolvimento das relações sociais.

Coadunando-se a tal entendimento, preleciona Maria Celina

Bodin de Moraes:

9

10 BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2002. p. 63-64.

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“À identificação taxativa e ao desmembramento dos

direitos da personalidade se opõe a consideração de

que a pessoa humana – e, portanto, sua personalidade

– configura um valor unitário, daí decorrendo o

reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de uma

cláusula geral de tutela a consagrar a proteção integral

da personalidade, em todas as suas manifestações,

tendo como ponto de confluência a dignidade da pessoa

humana”11.

2 – Colisão de direitos fundamentais na investigação de paternidade

2.1 – Hierarquia de interesses

Considerando a unidade da Constituição Federal, o intérprete

deve buscar harmonizar os conflitos sociais e ideológicos decorrentes das

relações humanas. A existência de interesses contrapostos na Carta

Magna conduz à necessidade de ponderá-los, harmonizá-los e

compatibilizá-los, por mais contrários que possam se apresentar.

Em sintonia com o tema ora discutido, pode-se exemplificar a

contraposição de interesses, na tentativa de compatibilizar o interesse do

filho em descobrir quem é seu pai, baseando-se no seu direito de

identidade; com o direito do suposto pai de não se submeter ao exame de

DNA, em face do seu direito de integridade física ou de intimidade.

Partindo-se do ponto de que ninguém pode ser obrigado a

fazer aquilo que não está previsto em lei, como é o caso do exemplo

supracitado, para o qual inexiste norma disciplinadora, a solução tem se

tornado cada vez mais delicada e distante de uma unanimidade

doutrinária e jurisprudencial.

10

11 MORAES, Maria Celina Bodin de. op. cit. p. 174.

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Em conseqüência de tal discussão é que tem ocorrido a

ascendência da teoria da proporcionalidade ou da razoabilidade,

objetivando evitar a aplicação muito rígida dos direitos previstos no art.

5º da Constituição Federal quando a ofensa se justificar pela proteção de

valor maior, também garantido constitucionalmente.

Sylvio Clemente da Motta Filho e William Douglas Resinente

dos Santos fazem alusão ao precioso trabalho de pesquisa desenvolvido

por Daniel Sarmento, acerca da ponderação dos interesses

constitucionais, e dentre as várias conclusões por ele apontadas,

destacam-se:

“O princípio da proporcionalidade desenvolveu-se na

França e na Alemanha, a partir do direito

administrativo, e nos Estados Unidos, por força da

interpretação evolutiva da cláusula do devido processo

legal. Ele é acolhido pelas doutrina e jurisprudência

brasileiras, representando um instrumento potente para

a análise da razoabilidade e da justiça das leis. O

princípio em questão impõe que as normas sejam

adequadas para os fins a que se destinam, sejam o

meio mais brando para a consecução destes fins e

gerem benefícios superiores aos ônus que acarretam

(trinômio: adequação, necessidade e proporcionalidade

em sentido estrito).

A ponderação de interesses tem de ser efetivada à luz

das circunstâncias concretas do caso. Deve-se

primeiramente, interpretar os princípios em jogo, para

verificar se há realmente colisão entre eles. Verificada a

colisão, devem ser impostas restrições recíprocas aos

bens jurídicos protegidos por cada princípio,de modo que

cada um só sofra as limitações indispensáveis à

11

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salvaguarda do outro. (...) Nestas compressões, deve

ser utilizado como parâmetro o princípio da

proporcionalidade, em sua tríplice dimensão.

O método da ponderação, embora conceda ao juiz certa

margem de discricionariedade, não é puramente

subjetivo ou irracional. Existem pautas substantivas que

podem ser utilizadas para a aferição da legitimidade de

cada decisão, tais como o princípio da proporcionalidade

e a comparação do resultado da ponderação com a

axiologia perfilhada na Lei Maior”12.

Em relação ao assunto em tela, qual seja, o conflito de

interesses entre pais e filho, no tocante à prevalência de seus direitos de

intimidade, integridade física e identidade pessoal, respectivamente, tem-

se que o filho e não os pais, podem invocar, em sua defesa, o abuso de

direito, e os deveres de proporcionalidade e razoabilidade, conforme opina

Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida13.

A autora lembra ainda, a expressão de alguns Ministros do

Supremo Tribunal Federal, ao se referirem à intangibilidade física do

investigando como risível e à quebra parcial da intimidade, como

justificada quando confrontada com a destruição do direito geral de

personalidade do filho, do qual decorre seu direito de identidade pessoal

norteador de todo o seu reflexo social futuro.

Sob o mesmo prima se manifesta Maria Celina Bodin de

Moraes:

“O abuso ocorre, pois, especialmente, quando o

exercício do direito, anti-social, compromete o gozo dos

direitos de terceiros, gerando objetiva desproporção, do

12

12 SARMENTO Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. In:MOTTA Sylvio; DOUGLAS, William. Direito Constitucional.. 11.ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2002. p. 20-22. 13 ALMEIDA, Silmara Juny de Abreu Chinelato. Exame de DNA, filiação e direitos da personalidade. In: LEITE, Eduardo de Oliveira (Coord.). Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 390 p. (p. 359).

Page 14: Art 033

ponto de vista valorativo, entre a utilidade do exercício

do direito, por parte de seu titular e as conseqüências

que outros têm que suportar.

(...)

O direito à integridade física configura verdadeiro

direito subjetivo da personalidade, garantido

constitucionalmente, cujo exercício, no entanto se torna

abusivo se servir de escusa para eximir a comprovação,

acima de qualquer dúvida, de vínculo genético a

fundamentar adequadamente as responsabilidades

decorrentes da relação de paternidade”.14

Segundo Humberto Bergmann Ávila, a proporcionalidade não

é um princípio. Ele a define como:

“Um postulado normativo aplicativo decorrente da

estrutura principal das normas e da atributividade do

Direito e dependente do conflito de bens jurídicos

materiais e do poder estruturador da relação meio-fim,

cuja função é estabelecer uma medida entre bens

jurídicos concretamente correlacionados”.15

Em sendo a proporcionalidade resultante da estrutura de três

elementos, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido

estrito, o autor buscou justificar cada um dos elementos. Para ele, a

medida será adequada se o meio escolhido patrocinar o resultado

almejado; será necessária se, dentre outras medidas disponíveis e

eficazes, for ela a que menos gravame oferecer em relação aos direitos

envolvidos; e finalmente será proporcional ou correspondente se, quanto

ao fim perseguido, não restringir demasiadamente os direitos envolvidos .

13

14 MORAES, Maria Celina Bodin. op. cit. p. 193. 15 ÁVILA, Humberto Bergmann. A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade, In: Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, Porto Alegre, Síntese, nº 1, Coleção Acadêmica 9, p. 27-54, 1999.

Page 15: Art 033

No caso em análise, verifica-se a presença interativa dos três

elementos. Quanto à adequação, é certo que tanto o acesso à intimidade

do pai, como ao segredo resultante da opção da mãe, é meio adequado

para se obter a verdadeira paternidade. Relativamente à necessidade,

esta se evidencia em face da importância da identidade genética para o

futuro de uma pessoa em suas relações pessoais e sociais. Por fim, a

proporcionalidade confirma-se por ser a medida, a menos gravosa em

relação aos direitos envolvidos, salvaguardando assim os direitos de

personalidade do filho e por conseqüência os direitos patrimoniais.

No entender de Paulo José da Costa Junior:

“O critério norteador para a disposição de tais bens da

personalidade haverá de ser o do balanceamento de

bens e interesses: o bem-interesse sacrificado deverá

encerrar menos valor que o bem-interesse salvo. Ou a

conduta humana haverá que consubstanciar um meio

justo para atingir um fim justo, ou então, a ação

desenvolvida pelo sujeito-agente haverá que ser

socialmente adequada”.16

Humberto Bergmann Ávila, continuando, afirma que:

“Enquanto a proporcionalidade consiste numa estrutura formal de relação

meio-fim, a razoabilidade traduz uma condição material para a aplicação

individual da justiça.” 17

Ainda conforme o mesmo autor, a razoabilidade estabelece

que as condições pessoais e individuais dos sujeitos envolvidos devem ser

sopesadas na decisão, podendo esta também, ser invocada em favor do

filho.

14

16 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O transplante do coração face ao Direito Penal Brasileiro. RT 389/395, p. 396. 17 ÁVILA, Humberto Bergmann. op cit. p. 50.

Page 16: Art 033

2.2 – Colisão de direitos fundamentais

O fenômeno, tecnicamente designado pela doutrina por colisão

de direitos ou conflito de direitos fundamentais, é o choque de direitos

fundamentais ou choque destes com outros bens jurídicos protegidos

constitucionalmente. Tal acontecimento decorre dos direitos fundamentais

serem direitos heterogêneos, com conteúdo muitas vezes aberto e

variável, apenas revelado no caso concreto e nas relações dos direitos

entre si ou nas relações destes como outros valores constitucionais.

Edilsom Pereira de Farias afirma que a colisão de direitos

pode ocorrer de duas maneiras:

“(1) o exercício de um direito fundamental colide com o

exercício de outro direito fundamental (colisão entre os

próprios direitos fundamentais);

(2) o exercício de um direito fundamental colide com a

necessidade de preservação de um bem coletivo ou do

Estado protegido constitucionalmente (colisão entre

direitos fundamentais e outros valores

constitucionais)”18.

Sob a ótica do respeitável constitucionalista português José

Joaquim Gomes Canotilho tem-se que:

“De um modo geral, considera-se existir uma colisão de

direitos fundamentais quando o exercício de um direito

fundamental por parte do seu titular colide com o

exercício do direito fundamental por parte de outro

titular. Aqui não estamos diante de um cruzamento ou

acumulação de direitos (como na concorrência de

15

18 FARIAS, Edílson Pereira de. Colisão de Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2. ed. atual. Porto Alegre: S.A Fabris, 2000. p. 116.

Page 17: Art 033

direitos), mas perante um choque, um autêntico

conflito de direitos”19.

No entender de Mônica Neves Aguiar da Silva Castro:

“Há colisão de direitos quando o exercício de um por

parte de seu titular esbarra no exercício de outro por

parte de pessoa diversa, ou em face do Estado”20.

Oportunamente, a autora refere-se à solução de tal conflito,

afirmando que, na ocorrência da colisão de direitos, a solução não é

simples:

“As regras reguladoras do conflito devem ser

construídas com base na harmonização de direitos e

mesmo na prevalência de um bem em relação a outro,

precedência esta, que só no caso concreto, poderá ser

determinada”21.

Os direitos fundamentais vêm expressos em normas

contemporâneas dispostas na Constituição, não estabelecem nenhum tipo

de hierarquia entre eles e todas as normas consagradoras de direitos

fundamentais são gerais. Assim sendo, a colisão não pode ser resolvida

pela supressão de um direito em favor do outro. Esta será solucionada

considerando-se o peso ou a importância relativa de cada direito, a fim de

se escolher qual deles, no caso concreto, predominará ou sofrerá menos

compressão.

A realização de uma ponderação dos bens envolvidos, visando

decidir a colisão através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo, torna-

se indispensável. Esta tarefa constitui um desafio pelo qual deve-se

estabelecer um critério único a ser utilizado em todas as hipóteses.

16

19 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1991. p. 657. 20 CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, imagem, vida privada e intimidade, em colisão com outros direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 96. 21 CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. op. cit., p. 97.

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Tal critério consiste na aplicação daquele que é considerado

por Canotilho22 como o princípio dos princípios: o princípio da

proporcionalidade.

Note-se que atual Constituição Federal não positivou

expressamente a proporcionalidade como princípio. Cabe, então,

considerá-lo como princípio implícito no nosso ordenamento jurídico.

Neste sentido, a posição de Lúcia Valle Figueiredo:

“Com efeito, resume-se o princípio da

proporcionalidade em que as medidas tomadas pela

Administração estejam na direta adequação das

necessidades administrativas. Vele dizer: só se

sacrificam interesses individuais em função de

interesses coletivos, na medida da estrita necessidade,

não se desbordando do que seja realmente

indispensável para implementação da necessidade

pública”23.

O intuito, portanto, da ponderação dos direitos em conflito é o

de relativizá-los sem, contudo, comprimi-los definitivamente.

Corroborando os entendimentos supracitados, Edilsom Pereira

de Farias, em apropriada argumentação sobre a solução da colisão, expõe

que:

“Verificada, no entanto, a existência de uma autêntica

colisão de direitos fundamentais cabe ao intérprete-

aplicador realizar a ponderação dos bens envolvidos,

visando resolver a colisão através do sacrifício mínimo

dos direitos em jogo. Nessa tarefa, pode guiar-se pelos

princípios da unidade da Constituição, da concordância

17

22 CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. cit., p. 658. 23 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 46.

Page 19: Art 033

prática e da proporcionalidade, dentre outros,

fornecidos pela doutrina”.24

O princípio da unidade da Constituição pressupõe a

compreensão do texto constitucional como um todo, um sistema que deve

necessariamente compatibilizar os preceitos divergentes. Já de acordo

com o princípio da concordância prática, os direitos fundamentais devem

ser harmonizados por meio de juízo de ponderação que vise resguardar e

concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionalmente tutelados.

Em cada caso concreto, os direitos fundamentais assumem,

dentro do texto constitucional, posições díspares e conflitantes. Assim

cabe ao intérprete constitucional decidi-los, sem contudo, afirmar a

preponderância, em tese e portanto absoluta de um direito sobre o outro.

Haverá sim, um dever de ponderação e não de revogação.

A título exemplificativo pode-se mencionar a decisão do

excelso Supremo Tribunal Federal no Hábeas Corpus 71.373 descrita por

José Rubens Costa:

“O Supremo Tribunal Federal, por maioria, voto do

Ministro Marco Aurélio (Pleno, HC 71.373-RS,

Rel.designado Min. Marco Aurélio, v. u., DJ 22.11.96, p.

45.686, ESTF 1851-02:397, ao que parece a primeira

decisão sobre o tema), concluiu pela impossibilidade da

submissão da parte ou de terceiro ao exame sobre o

próprio corpo, ou exame de DNA para verificar

paternidade:Discrepa das garantias constitucionais –

preservação da dignidade humana, da intimidade, da

intangibilidade do corpo humano, e da inexecução

específica e direta de obrigação de fazer. Concordantes

os Ministros Celso de Mello, Sydney Sanches, Néri da

18

24 FARIAS, Edilsom Pereira de. op. cit. p. 122.

Page 20: Art 033

Silveira, Octavio Gallotti e Moreira Alves; vencidos,

Ministros Francisco Rezek, Relator, Carlos Mário da

Silva Velloso, Sepúlveda Pertence e Ilmar Galvão”.25

Segundo o autor, o entendimento da maioria do Supremo

Tribunal Federal, é deveras criticável, posto que aos direitos fundamentais

ali mencionados podem opor-se outros direitos também fundamentais,

como defende a então minoria.26 Assim afirmou, de modo peculiar, o

Ministro Francisco Rezek: “o sacrifício imposto à integridade física do

paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante”.27

Nesse diapasão, insta lembrar que a completa tutela da

criança, particularmente de sua dignidade, pressupõe uma tarefa primária

e urgente, a de garantir o seu direito à identidade, imanente em primeiro

lugar da origem de seus progenitores. Trata-se do direito de conhecer as

próprias origens, não apenas a origem genética mas também a cultural e

a social.

Note-se que aqui, não está em jogo o afeto, aspecto que pode

perfeitamente estar resolvido no âmbito da família socioafetiva, o que ora

se discute é a questão da verdadeira identidade, em sede de direito

fundamental. É nesse aspecto que se evidencia a indisponibilidade da

paternidade biológica, pois esta se apresenta relacionada ao direito ao

nome de ascendência e descendência , ou seja, ao direito da

personalidade, que é ao mesmo tempo indisponível, irrenunciável

imprescritível e intransmissível.

Corroborando tal entendimento, se pronuncia Pietro

Perlingieri:

“O patrimônio genético não é mais indiferente em

relação às condições de vida nas quais a pessoa opera.

19

25 COSTA, José Rubens. Direito indisponível à verdade histórica: exame compulsório de DNA. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 357, p. 99-105, Set./Out. 2001. p. 99. 26 Idem. op. cit. p. 100. 27 HC 71.373-RS, Rel.designado Min. Marco Aurélio, v. u., DJ 22.11.96, p. 45.686, ESTF 1851-02:397.

Page 21: Art 033

Conhecê-lo significa não somente impedir o incesto e

possibilitar a aplicação dos impedimentos matrimoniais

ou prever e evitar enfermidades hereditárias mas,

responsavelmente, estabelecido o vínculo entre o titular

do patrimônio genético e sua descendência, assegurar

o uso do sobrenome familiar, com sua história e sua

reputação, garantir o exercício dos direitos e deveres

decorrentes do pátrio poder, além das repercussões

patrimoniais e sucessórias”.28

O fundamento do voto do Ministro Marco Aurélio no acórdão

em exame, assentou-se, basicamente, no princípio da legalidade,

assegurando a inexistência de lei que ampare a condução forçada para a

coleta do material destinado à perícia, e que se a mesma existisse, seria

ela, inconstitucional.

Entretanto, do voto do então Ministro Francisco Rezek,

extraem-se dois fundamentos que justificam a aludida perícia forçada: o

do art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente e o do art. 339 do

Código de Processo Civil. O primeiro define que o reconhecimento da

filiação não pode sofrer qualquer restrição, como ocorreria no caso da

recusa. O segundo estabelece que todos têm o dever de colaborar com o

Poder Judiciário para a consagração da verdade. O Ministro cita ainda

outros dois dispositivos processuais, em tema de prova, os arts. 130 e

332 do CPC. Conforme os artigos in verbis:

ECA – art. 27: ”O reconhecimento do estado de

filiação é direito personalíssimo, indisponível e

imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou

seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o

segredo de Justiça”.

20

28 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997. p. 177.

Page 22: Art 033

CPC – art. 339: “Ninguém se exime do dever de

colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento

da verdade”.

CPC – art. 130: “Caberá ao juiz, de ofício ou a

requerimento da parte, determinar as provas

necessárias à instrução do processo, indeferindo as

diligências inúteis ou meramente protelatórias”.

CPC – art. 332: “Todos os meios legais, bem como os

moralmente legítimos, ainda que não especificados

neste Código, são hábeis para provar a verdade dos

fatos, em que se funda a ação ou a defesa”.

Infere-se do exposto que no caso em questão, o direito ao

reconhecimento encontra maior respaldo no ordenamento jurídico.

Segundo o professor Ives Gandra da Silva Martins:

“O fruto da relação carnal é de responsabilidade dos

pais ou daquele que a forçou. O filho será sempre a

vítima de um ato de que não participou, que não pediu

para acontecer e de cujas conseqüências é o único

prejudicado.

(...)

À nitidez, quando falo em paternidade, refiro-me ao

direito em conhecê-la de todos os componentes da

família. O pai tem direito de saber se o filho lhe

pertence, não havendo, nesta matéria, a meu ver,

cláusula absoluta de preservação da intimidade”.29

No momento em que se investiga uma paternidade, tanto a

mãe quanto o suposto pai, sofrerão certa invasão aos seus direitos de

intimidade e de segredo, pois não existe outro modo de perquirir-se a

21

29 MARTINS, Ives Gandra da Silva. O exame de DNA como meio de prova – aspectos constitucionais. In: LEITE, Eduardo de Oliveira, (Coord.). Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 128.

Page 23: Art 033

identidade do investigante. Há de se ressaltar, no entanto, que tal invasão

não importa divulgação. O segredo de justiça das ações de investigação

de paternidade, acertadamente, ampara o sigilo dos fatos relativos à

intimidade do investigando.

Note-se portanto, que os direitos de personalidade da mãe

daquele que investiga a paternidade também devem ser sopesados,

resultando em questões bastante polêmicas e de difícil solução. Nesse

caso além do direito de intimidade já atribuído ao pai, agrega-se ainda o

direito ao segredo.

Em resposta, Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida

explica que:

“Os direitos de personalidade são oponíveis erga

omnes, em princípio, como regra, mas não, de modo

absoluto. Notadamente quando se confrontam com

direitos da mesma natureza: os direitos de

personalidade do filho – direito à identidade lato sensu

e direito geral de personalidade”.30

Continua a autora, afirmando que o Estado não tem

legitimidade para obrigar a mãe a revelar seu segredo, entretanto o filho,

na defesa de seu direito poderá intentar a tutela jurisdicional.

Numa análise mais ampla da Constituição, ou até mesmo em

maior projeção, destaca-se, no âmbito dos direitos do filho, o seu art.

227, sinopse da conceituação internacional dos Direitos da Criança,

proclamados pela ONU. O referido artigo enunciou o princípio

programático de proteção, um meio de defesa dos direitos da

personalidade da criança e do adolescente. De acordo com o disposto, in

verbis:

22

30 ALMEIDA, Silmara Juny de Abreu Chinelato e. op. cit. p. 350.

Page 24: Art 033

Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do

Estado assegurar à criança e ao adolescente, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,

à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a

salvo de toda forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão”.

Segundo a explanação do professor Rui Geraldo de Camargo

Viana31, o Direito moderno tem reconhecido a evolutiva importância da

filiação, dispensando maior atenção à defesa dos interesses da criança, o

que se percebe pela facilitação do reconhecimento do estado jurídico de

filho, “num movimento de feição pedocêntrica”. Por essa razão endente

ser inquestionável o direito do filho à regularidade de seu estado de

filiação.

Com referência à procriação artificial, o ilustre professor,

defende a proibição de qualquer restrição ao uso dessas técnicas,

justificando-se por entender, que tal procedimento se relaciona ao direito

à disposição do próprio corpo e que o Estado, fundando-se em normas

constitucionais, deve garantir o livre acesso à procriação, observando

ainda, os princípios do livre planejamento familiar e da paternidade

responsável.

Em suas conclusões finais, o referido professor alega ainda

que o direito do filho ao registro de sua paternidade sobrepõe-se ao

aparente direito de intimidade de sua mãe em ocultar seu relacionamento

sexual.

Alguns autores defendem a relativização do direito à

identidade, alegando que este sofre mitigações, já que os dados

23

31 VIANA, Rui Geraldo de Camargo. A família e a filiação. São Paulo: USP, 1996. Tese apresentada ao Concurso de professor titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Page 25: Art 033

concernentes à origem biológica de uma pessoa, podem ser legalmente

ocultados da mesma.

Entretanto, na leitura de Walter de Moraes, é inaceitável

qualquer criação jurídica fictícia que não seja compatível com a realidade

física, devendo preponderar, no âmbito do direito de família, a verdade

material, principalmente no diz respeito à filiação, já que esta se encontra

vinculada à verdade da origem de cada ser e lhe resguarda a própria

identidade e a consciência de sua personalidade.32

Na realidade, tanto a identidade genética quanto a intimidade

e a intangibilidade do corpo são direitos da personalidade, componentes

da dignidade da pessoa, de modo que a dignidade de qualquer dos pais e

a do filho, estão em confronto. Assim sendo, torna-se impossível atender

a um direito sem o conseqüente sacrifício do outro.

Na opinião de Belmiro Pedro Welter33, o sacrifício do direito do

investigado, justifica-se sobretudo pelas seguintes razões:

• o investigante tem o direito à identidade biológica;

• o exame de DNA oferece a segurança necessária à determinação

da paternidade biológica;

• em matéria de filiação, a ficção jurídica foi abolida. A filiação

pode apoiar-se apenas no dado biológico ou no socioafetivo.

Conforme os seguintes artigos da Constituição Federal, in verbis:

CF – art. 226, § 4º: “Entende-se, também, como

entidade familiar a comunidade formada por qualquer

dos pais e seus descendentes”.

24

32 MORAES, Walter de. Adoção e Verdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 133 es. 33 WELTER, Belmiro Pedro. Possibilidade de condução coercitiva do investigando para fazer exame genético. Revista de Direito Privado. São Paulo: RT, nº 8, out.-dez./2001. p. 22-25.

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CF – art. 226, § 7º: “Fundados nos princípios da

dignidade da pessoa humana e da paternidade

responsável, o planejamento familiar é livre decisão do

casal, competindo ao Estado propiciar recursos

educacionais e científicos para o exercício desse direito,

vedada qualquer forma coercitiva por parte de

instituições oficiais ou privadas”.

CF – art 227, § 6º: “Os filhos, havidos ou não da

relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos

direitos e qualificações, proibidas quaisquer

designações discriminatórias relativas à filiação”.

a) O fato de existirem inúmeras opções para a coleta do

material para o exame de DNA, como a saliva ou mesmo a raiz do cabelo

propicia a desconsideração de uma possível lesão corporal;

b) Por meio de sua recusa, o próprio investigado é quem dá

causa à exclusão do princípio da dignidade do filho;

c) O interesse de origem biológica refere-se ao indivíduo, à

família e à sociedade;

d) O investigante figura como a parte mais fraca da

relação processual;

e) Os princípios da igualdade e da idêntica dignidade entre

os pais e o filho, relativizam o princípio da dignidade da pessoa humana.;

f) No Direito Comparado, admite-se a submissão forçada do

investigado ao exame de DNA, como é o caso, por exemplo, da França,

Alemanha, Portugal, Canadá e outros Estados norte-americanos.

Não resta dúvida sobre a extrema complexidade do tema.

Assim sendo, somente no plano constitucional é que pode auferir uma

solução momentânea, isso porque a matéria requer o aval do legislador

originário, buscando decidir a questão através da ponderação entre os

25

Page 27: Art 033

bens jurídicos de maior expressão constitucional: o direito à intimidade da

mãe, à integridade física do pai ou à identidade do filho.

Infere-se portanto, que o meio mais apropriado para a solução

do problema em tela, a colisão dos direitos fundamentais, é o princípio da

proporcionalidade, por ser este, considerado o axioma do Direito

Constitucional.

Posicionando-se sobre tal argumentação, José Renato Silva

Martins e Margareth Vetis Zaganelli afirmam que:

“O valor maior a ser tutelado, mesmo em detrimento

da intimidade e/ou integridade física, é o da

personalidade e/ou identidade, de forma que o

intérprete deve sempre considerar as normas

constitucionais, não de forma isolada, mas unidas num

sistema interno de normas e princípios, com destaque

maior da máxima efetividade, no sentido de que a uma

norma constitucional deve ser atribuído o sentido que

maior eficácia lhe der”.34

Em suma, deve-se analisar cada direito em questão, de forma

globalizada, ou seja associar a cada um deles todos o demais preceitos

constitucionais, com o intuito de dimensioná-lo como valor a ser atribuído

à vida de uma pessoa. Nesse sentido sobressai-se na Constituição os

direitos que envolvem os filhos, posto que é notório o seu empenho para

garantir o melhor interesse do menor.

CONCLUSÃO

26

34 MARTINS, José Renato Silva e ZAGANELLI, Margareth Vetis.Recusa à realização do exame de DNA na investigação de paternidade: Direito à intimidade ou direito à identidade? In: LEITE, Eduardo de Oliveira, Grandes temas da atualidade – DNA como meio de prova da filiação. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000. p. 151-162. (p.160)

Page 28: Art 033

A família é uma organização que sobrevive às mudanças

históricas, políticas e econômicas da humanidade, persistindo na função

de sua estrutura inabalável, responsável pela construção do indivíduo e

pela transmissão da cultura. Entretanto, tais mudanças provocam, através

dos tempos, um novo desenho de seus contornos.

Em meio a tantas inovações, o filho continuou a ser o mesmo

fruto inocente, seja de uma relação sexual, seja de uma reprodução

assistida. O fato é que ele se apresenta como o único que não se

manifestou nem optou por nenhum tipo de família ou forma de vir ao

mundo.

É certo que constitucionalmente, o filho, tem garantidos os

seus direitos à identidade, à paternidade e à proteção familiar. Entretanto

não resta dúvida que ainda assim, representa a parte mais frágil da

relação, o que deve ensejar maior proteção do Direito no que se refere às

sua necessidades de bem-estar, segurança e proteção, tanto no âmbito

patrimonial, quanto no afetivo.

Tal temática é merecedora de preocupação, tendo em vista a

situação jurídica dos pais e filhos. Persegue-se uma necessária dialética

entre as relações familiares, assegurando-se a dignidade dos entes da

família. Nesse sentido, deve o Estado criar condições de equilíbrio nestas

relações, tentando promover o respeito aos direitos da criança, tanto

quanto dos pais, buscando-se justiça na ponderação dos direitos inerentes

a cada um.

Há a possibilidade entretanto, de que com o passar dos anos

surja uma lacuna psicológica para o filho, decorrente da necessidade de

conhecer suas origens. A causa do referido questionamento pode se dar

pela peculiaridade de caracteres físicos, pela ocorrência de doenças

hereditárias ou simplesmente pelo desejo de saber como é, onde está e

27

Page 29: Art 033

como vive aquele que lhe deu a vida e que por não querer ou não poder,

não o reconheceu como filho.

Nesse caso, se a mãe se manifestar alegando os seus direitos

à intimidade e ao segredo; o pai invocar os seus direitos à intimidade e à

integridade física, restará ao filho investigar sua paternidade clamando

pelo seu direito à identidade.

Estará estabelecida assim, a colisão de Direitos fundamentais

na relação de filiação, devendo prevalecer o direito à verdade histórica do

filho, não como forma de descaracterizar a família socioafetiva já

constituída, mas sim com respaldo do direito à identidade daquele que se

viu em tal situação por opção de outrem, o pai ou a mãe. Estes, em

qualquer situação, devem assumir a responsabilidade pelo ato que deram

causa.

Assim sendo, com exceção dos doadores de sêmen, os quais

jamais desejaram a paternidade através de seu ato e nem sequer sabem

para quem foi feita a doação, os direitos inerente aos pais, devem ser

mitigados em face aos direitos do filho. Assim o é, porque este, em nada

contribuiu para tal situação, assim seus direitos devem permanecer

intocáveis.

Através do princípio da proporcionalidade de valores, axioma

do Direito Constitucional, a identidade de um filho há de preponderar

sobre os direitos dos pais. Nesse sentido conclui-se que, apesar de todo o

desvelo e amor encontrados na família socioafetiva, se necessário for, o

filho deve ter o direito de saber como foi gerado e conseqüentemente,

conhecer sua proveniência genética para ser capaz de ter respostas para

as dúvidas acerca de si próprio.

28

Page 30: Art 033

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