Art. 08 - Geodinâmica de Superfícies - RBG 10 Nº 2

14
 77 Revista B rasileira de Geomorfologia - v. 10, nº 2 (2009) www.ugb.org.br GEODINÂMICA DE SUPERFÍCIES DE APLANAMENTO, DESNUDAÇÃO CONTINENTAL E TECTÔNICA ATIVA COMO CONDICIONANTES DA MEGAGEOMORFOLOGIA DO BRASIL ORIENTAL  Robert o Célio V aladão UFMG/IGE O - Rua Professor Manoel Casassanta, 288 - Apto 201 - Bairro Ouro Preto - Belo Horizonte - MG - Cep 31310-390 - T el.: (31) 9157-6962 / 3498-1958 - e-mail: [email protected]) Resumo A megageomorfologia do Brasil Oriental é avaliada, neste trabalho, a partir da análise da desnudação continental meso- cenozóica, das superfícies de aplanamento elaboradas em razão desse processo e dos soerguimentos crustais a ele associados. Muitos resultados alcançados diferem significativamente daqueles apresentad os em trabalhos prévios, particularmente no que se refere à gênese e diversidade das superfícies de aplanamento, ao mecanismo de evolução da paisagem desde a fragmentação do Gondwana-Oeste, e à magnitude e amplitude dos soerguimentos crustais neocenozóicos. A história fanerozóica do relevo do Brasil Oriental foi pontuada por episódios de intensa desnudação e pelo acúmulo de espessa sequência sedimentar em bacias marginais e interiores. Desde o Paleozóico, grande parte da área investigada perma- neceu soerguida e em acelerado processo erosivo, particularmente a região em que atualmente se localiza a Serra do Espinhaço mineiro e baiano e a Chapada Diamantina. O processo de individualização da Placa Sul-Americana e abertura do Atlântico Sul, iniciado no Mesozóico, imprimiu novo ritmo à desnudação do continente, cuja justaposição ao caráter episódico dos soerguim entos crustais culminou, na área investigada, na elaboração de três amplas superfícies de aplanamento: (i) Superfície Sul-Americana; (ii) Superfície Sul-Americana I ; (iii) Superfície Sul-Americana II . A elaboração dessas superfícies foi acom- panhada pelo recuo do Grande Escarpamento, uma proeminente feição do relevo herdada do processo de rifteamento da margem continenta l leste brasileira. Esse escarpamento constitui um divisor hidrográfico de expressão regional, separando a bacia do Rio São Francisco, caracterizada pela reduzida capacidade desnudacional, daquelas bacias articuladas diretamente ao nível de base do Oceano Atlânti co, mais agressivas. Palavras-chave:  superfícies de aplanament o; desnudação continental; soerguiment o crustal; megageomorfologi a. Abstract The megageomorphology of eastern Brazil is studied herein using as a major approach the analysis of the meso-cenozoic continental denudation and its relationships with planation surfaces and conti nental uplift. The results obtained differ significantly from those presented by previous authors, particularly in relation to those aspects as genesis and diversity of the planation surfaces, mechanisms of landscape evolution following the break-up of the western-Gondwana, and the magnitude and geographical limits of the neo-cenozoic crustal uplift. The Phanerozoic history of the eastern Brazil relief was punctuated by episodes of intense denudation associated with accumulation of thick sedimentary sequences at the continental margin ad interior basins. Since the Paleozoic, the major part of the study area has experienced accelerated erosional processes, particularly the region occupied nowadays by the Serra do Espinhaço and the Chapada Diamantina. The break-up of the Gondwana and opening of the South Atlantic ocean, during the Mesozoic, has increased rates of continental denudation which has culminated in the elaboration of three planation surfaces: (i) Sul-Americana Surface; (ii) Sul-Americana I Surface ; (iii) Sul-Americana II Surface . The sculpturing of these surfaces was  Revista Brasileira de Geomorfologia, v .10, n.2, p.77-90, 2009

Transcript of Art. 08 - Geodinâmica de Superfícies - RBG 10 Nº 2

Revista Brasileira de Geomorfologia - v. 10, n 2 (2009)

www.ugb.org.br

GEODINMICA DE SUPERFCIES DE APLANAMENTO, DESNUDAO CONTINENTAL E TECTNICA ATIVA COMO CONDICIONANTES DA MEGAGEOMORFOLOGIA DO BRASIL ORIENTALRoberto Clio ValadoUFMG/IGEO - Rua Professor Manoel Casassanta, 288 - Apto 201 - Bairro Ouro Preto - Belo Horizonte - MG Cep 31310-390 - Tel.: (31) 9157-6962 / 3498-1958 - e-mail: [email protected])

Resumo A megageomorfologia do Brasil Oriental avaliada, neste trabalho, a partir da anlise da desnudao continental mesocenozica, das superfcies de aplanamento elaboradas em razo desse processo e dos soerguimentos crustais a ele associados. Muitos resultados alcanados diferem significativamente daqueles apresentados em trabalhos prvios, particularmente no que se refere gnese e diversidade das superfcies de aplanamento, ao mecanismo de evoluo da paisagem desde a fragmentao do Gondwana-Oeste, e magnitude e amplitude dos soerguimentos crustais neocenozicos. A histria fanerozica do relevo do Brasil Oriental foi pontuada por episdios de intensa desnudao e pelo acmulo de espessa sequncia sedimentar em bacias marginais e interiores. Desde o Paleozico, grande parte da rea investigada permaneceu soerguida e em acelerado processo erosivo, particularmente a regio em que atualmente se localiza a Serra do Espinhao mineiro e baiano e a Chapada Diamantina. O processo de individualizao da Placa Sul-Americana e abertura do Atlntico Sul, iniciado no Mesozico, imprimiu novo ritmo desnudao do continente, cuja justaposio ao carter episdico dos soerguimentos crustais culminou, na rea investigada, na elaborao de trs amplas superfcies de aplanamento: (i) Superfcie Sul-Americana; (ii) Superfcie Sul-Americana I; (iii) Superfcie Sul-Americana II. A elaborao dessas superfcies foi acompanhada pelo recuo do Grande Escarpamento, uma proeminente feio do relevo herdada do processo de rifteamento da margem continental leste brasileira. Esse escarpamento constitui um divisor hidrogrfico de expresso regional, separando a bacia do Rio So Francisco, caracterizada pela reduzida capacidade desnudacional, daquelas bacias articuladas diretamente ao nvel de base do Oceano Atlntico, mais agressivas. Palavras-chave: superfcies de aplanamento; desnudao continental; soerguimento crustal; megageomorfologia. Abstract The megageomorphology of eastern Brazil is studied herein using as a major approach the analysis of the meso-cenozoic continental denudation and its relationships with planation surfaces and continental uplift. The results obtained differ significantly from those presented by previous authors, particularly in relation to those aspects as genesis and diversity of the planation surfaces, mechanisms of landscape evolution following the break-up of the western-Gondwana, and the magnitude and geographical limits of the neo-cenozoic crustal uplift. The Phanerozoic history of the eastern Brazil relief was punctuated by episodes of intense denudation associated with accumulation of thick sedimentary sequences at the continental margin ad interior basins. Since the Paleozoic, the major part of the study area has experienced accelerated erosional processes, particularly the region occupied nowadays by the Serra do Espinhao and the Chapada Diamantina. The break-up of the Gondwana and opening of the South Atlantic ocean, during the Mesozoic, has increased rates of continental denudation which has culminated in the elaboration of three planation surfaces: (i) Sul-Americana Surface; (ii) Sul-Americana I Surface; (iii) Sul-Americana II Surface. The sculpturing of these surfaces was

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

77

Valado, R. C.

accompanied by the retreat of the Great Escarpment, an important feature of eastern Brazil relief inherited from the rifting processes that culminated in the formation of the present continental margin. This escarpment is nowadays an important continental divide, separating the So Francisco drainage basin, which is characterized by reduced denudation rates, from the drainage basins of rivers facing the Atlantic Ocean, which have much higher denudation rates. Keywords: planation surfaces; continental denudation; crustal uplift; megageomorphology.

IntroduoAlgumas pores continentais do globo, notadamente as reas de escudos e macios proterozicos, estiveram submetidas a longo e intenso processo desnudacional responsvel pela eroso de espessa sequncia de rochas e pela exumao de complexos litoestruturais consolidados em nveis crustais profundos (LIMA & VALADO, 2002). Nessas reas a eroso excedeu quantitativamente a sedimentao e inibiu a gerao de sequncias estratigrficas espessas que, quando presentes, so comumente caracterizadas pela distribuio espao-temporal fragmentada. Essa caracterstica limita em muito o emprego de procedimentos sedimentolgicos e estratigrficos na reconstruo paleogeogrfica dos escudos. A Geomorfologia, em detrimento escassez desses registros estratigrficos, tem se valido da abundncia de paleoformas produzidas pela desnudao para propor reconstrues e modelos de evoluo do relevo continental. Nesse contexto, o reconhecimento e caracterizao das superfcies de aplanamento tm sido integrados a grande volume de dados produzidos pelas demais reas das geocincias na tentativa de se satisfazer a velha e primordial questo dos estudos geomorfolgicos: a evoluo do relevo continental.

Na poro oriental do territrio brasileiro, (i) a ampla distribuio geogrfica das superfcies de aplanamento, (ii) seu excelente estado de conservao e o (iii) volumoso acervo de dados estratigrficos das bacias sedimentares interiores e marginais, oferecem condies favorveis anlise integrada dessas informaes com o objetivo de se compreender no s a estruturao dos macro-compartimentos geomorfolgicos de trecho do Brasil Oriental sua megageomorfologia , como tambm sua evoluo de longo-termo. Esse o objetivo deste trabalho, o qual visa contribuir elucidao de aspectos inerentes aos Grandes Domnios do Relevo da Amrica Latina, instigante temtica proposta ao autor pela Comisso Organizadora do Simpsio Nacional de Geomorfologia que, em sua stima edio, agrega indiscutvel relevncia ao abrigar o II Encontro Latino-Americano de Geomorfologia. A rea abordada neste trabalho est localizada na poro oriental brasileira onde ocupa larga faixa de orientao norte-sul, abrangendo extensas reas dos estados da Bahia, Minas Gerais e Esprito Santo, alm de pequenas pores dos estados do Piau, Maranho, Tocantins, Gois e Rio de Janeiro (Fig. 01).

Figura 01 - Mapa de localizao da rea investigada. Legenda: I= cidades (VI: Vitria; BH: Belo Horizonte; SA: Salvador); 2= hidrografia; 3= limites interestaduais (Estados: RJ= Rio de Janeiro; ES= Esprito Santo; MG= Minas Gerais; BA= Bahia; GO= Gois; TO= Tocantins; MA= Maranho; PI= Piau; SE= Sergipe; AL= Alagoas).

78

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

Geodinmica de superfcies de aplanamento, desnudao continental e tectnica ativa como condicionantes da megageomorfologia do Brasil oriental

Procedimentos metodolgicosOs avanos mais recentes da geologia no trato da tecnoestratigrafia das bacias interiores e marginais do Brasil Oriental, aliados disponibilidade de produtos de sensores remotos que traduzem com razovel fidelidade as principais feies do relevo continental, forneceram as condies ideais para que se efetivasse um programa intensivo de investigaes de campo, com o objetivo de se estabelecer associaes entre o processo de formao da margem continental, que bordeja a rea investigada, e os eventos de desnudao que tiveram lugar sobre o continente. Nesse contexto, metodologicamente este trabalho foi apoiado na integrao de procedimentos geolgicos e geomorfolgicos, com destaque para: (i) a interpretao de imagens de radar de visada lateral RVL que, em algumas reas, foi associada a imagens de satlite LANDSAT, o que permitiu o reconhecimento e mapeamento dos remanescentes de superfcie de aplanamento ainda presentes na rea de estudo; (ii) o intensivo programa de investigaes de campo, cuja finalidade principal foi caracterizar e descrever detalhadamente as formaes superficiais que revestem os remanescentes das superfcies de aplanamento, notadamente a partir de suas exposies em cortes de estradas, rebordos escarpados de serras e chapadas, poos de inspeo e trincheiras; (iii) a elaborao de sees topogrficas regionais a partir de base altimtrica disponvel em mapas topogrficos na escala de 1:250.000; (iv) a reconstruo morfo-altimtrica daqueles setores das superfcies de aplanamento atualmente j desmantelados pela desnudao, o que permitiu a elaborao de mapas paleotogrficos; (v) a avaliao das deformaes tectnicas neocenozicas segundo sua magnitude e espacialidade, atravs da superposio dos mapas de contorno altimtrico das superfcies de aplanamento, partindo-se do princpio de a diferena altimtrica entre superfcies de aplanamento distintas expressa a magnitude do soerguimento em uma dada localizao e intervalo de tempo; (vi) a anlise da organizao atual da rede hidrogrfica com o objetivo de se determinar qualitativamente sua funcionalidade e dinmica; e, finalmente, (vii) a integrao e compatibilizao de dados de natureza diversa, tendo em vista a grande diversidade e complexidade dos parmetros que acabaram por condicionar a megageomorfologia do trecho do Brasil Oriental aqui investigado.

As superfcies de aplanamento no Brasil Oriental: elemento fundamental da paisagem geomorfolgica macro-regionalAs superfcies de aplanamento no Brasil Oriental constituem trao fundamental da paisagem, embora em algumas reas eventos desnudacionais neocenozicos agressivos foram responsveis, localmente, pelo desmantelamento de seus remanescentes. Todavia, o excelente estado de conservao delas em grande parte da rea investigada permitiu o reconheci-

mento e mapeamento de trs superfcies distintas, denominadas, em ordem cronolgica decrescente, de Superfcie SulAmericana, Superfcie Sul-Americana I e Superfcie Sul-Americana II. Essas superfcies so facilmente reconhecidas no interior continental, onde a presena das rochas sedimentares subhorizontalizadas da Bacia Sanfranciscana favoreceu o recuo paralelo das encostas (backwearing), formando escarpas que to bem delimitam os aplanamentos. A ausncia de rochas dessa natureza na fachada atlntica dificulta a diferenciao morfolgica entre as superfcies Sul-Americana e SulAmericana I, embora as ocorrncias de cada uma delas sejam comprovadas no campo a partir das distintas formaes superficiais que as revestem. Um Grande Escarpamento separa o interior continental da fachada atlntica, alm de configurar o divisor hidrogrfico da bacia do Rio So Francisco com as bacias hidrogrficas costeiras (rios Paraguau, de Contas, Pardo, Jequitinhonha e Doce). Esse escarpamento demarca significativa diferenciao altimtrica entre as superfcies mais elevadas localizadas no interior continental, daquelas mais rebaixadas que ocupam a fachada atlntica. A superfcie mais antiga reconhecida e mapeada na rea investigada foi denominada Superfcie Sul-Americana (Fig. 02 e 03), denominao essa proposta por KING (1956, 1962) para designar a vasta plancie produzida por desnudao entre o Cretceo e o Tercirio Mdio. Embora ocorra grande discrepncia entre a distribuio geogrfica da Superfcie SulAmericana mapeada por esse autor e aquela reconhecida e mapeada neste trabalho (VALADO, 1996, 1999b), sua denominao se justifica pelo fato de ambas terem sido elaboradas a partir da individualizao da Placa Sul-Americana, notadamente aps o encerramento da sedimentao mesozica nas bacias do Paran e Sanfranciscana. Essa superfcie, apesar de reconhecida por vrios pesquisadores, recebeu denominaes diversas, a exemplo da Superfcie de Campos de De MARTONNE (1943), do Peneplano Cretceo de FREITAS (1951) e da Superfcie Japi de ALMEIDA (1964). Ela alcanou comparativamente s demais superfcies reconhecidas e mapeadas neste trabalho o estgio mais avanado de aplanamento, ao transgredir e truncar arcabouo litoestrutural bastante diversificado. A sua reconstituio geomtrica a partir de perfis projetados justapostos s sees topogrficas regionais comprova que essa superfcie assumiu, no interior continental, a arquitetura de amplo e suave sinformal de orientao aproximada norte-sul (Figura 04). Em direo a leste os flancos desse sinformal se articulam a um grande antiformal que, originalmente, se estendeu sobre a Serra do Espinhao e a Chapada Diamantina. Os remanescentes da Superfcie Sul-Americana so revestidos por manto de alterao profundo, geoquimicamente bastante evoludo e contendo teores elevados de ferro, embora seu substrato litolgico seja bastante diversificado. comum a presena de encrostamentos laterticos, comumente recobertos por horizonte arenoso.

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

79

Valado, R. C.

Figura 02 - Imagem de radar de remanescente da Superfcie Sul-Americana localizado na margem esquerda do Rio So Francisco/MG (Folha SE.23-V-B). O aplanamento de cimeira cronocorrelato Superfcie Sul-Americana, sendo revestido por formaes arenosas profundas e latolizadas desenvolvidas sobre a cobertura mesozica da Formao Urucuia. Esse revestimento lhe atribui, nessa imagem, textura homognea e contnua.

Figura 03 - Imagem de radar de remanescente da Superfcie Sul-Americana localizado na poro mineira da Serra do Espinhao (Folha SE.23-XB). Essa superfcie de aplanamento trunca indiferentemente as unidades litolgicas do Supergrupo Espinhao que, nessa rea, so revestidas por formaes superficiais arenosas. Observe que a continuidade desse revestimento e, consequentemente, da extenso da referida superfcie, so localmente interrompidas pela inciso linear da rede hidrogrfica.

80

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

Geodinmica de superfcies de aplanamento, desnudao continental e tectnica ativa como condicionantes da megageomorfologia do Brasil oriental

Figura 04 - Configurao e altimetria da Superfcie Sul-Americana. Dados altimtricos, em metros, baseados no nvel marinho atual. Legenda: 1= curvas de nvel; 2= Grande Escarpamento (posio atual); 3= limite interestadual. Observe a arquitetura assumida, no interior continental, pela Superfcie Sul-Americana, um sinformal de marcada orientao norte-sul.

importante observar que, embora as concluses de KING (1956, 1962) apontem para a existncia de aplanamentos que antecederam a fragmentao do Supercontinente Gondwana, os seus remanescentes no foram encontrados durante as investigaes de campo e o

mapeamento das superfcies, salvo na forma de superfcies exumadas junto s coberturas mesozicas da Bacia Sanfranciscana. Partindo do princpio de que as demais superfcies reconhecidas na rea investigada foram formadas a partir da disse81

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

Valado, R. C.

cao da Superfcie Sul-Americana e que os seus remanescentes encontram-se geralmente nela embutidos, essas foram denominadas Superfcie Sul-Americana I e Superfcie Sul-Americana II. Essa denominao tem como objetivo estabelecer uma relao gentica estreita delas com a Superfcie Sul-Americana. Essa relao pode ser observada no manto de alterao que reveste a Superfcie Sul-Americana, o qual desempenhou papel fundamental na gerao das formaes superficiais que revestem a Superfcie Sul-Americana I, particularmente com relao gerao de depsitos supergnicos de mangans que, apesar de comumente encontrados associados a essa ltima, estiveram geneticamente associados fase primria de concentrao ocorrida durante a elaborao da Superfcie Sul-Americana. A Superfcie Sul-Americana I (Fig. 05) no possui denominao especfica na literatura geomorfolgica, uma vez

que a maioria dos autores sugere que sua gnese esteve associada exclusivamente exumao de superfcie fossilizada recoberta por rochas mesozicas (KING, 1956, 1962; BRAUN, 1971). Todavia os resultados alcanados neste trabalho demonstram que essa superfcie revestida por formaes superficiais que lhe atribuem uma identidade cronoestratigrfica prpria, embora a sua elaborao tenha sido, em algumas reas, favorecida pela presena de uma superfcie mesozica fossilizada. No interior continental essa superfcie mergulha em direo calha do Rio So Francisco, sugerindo que durante a sua elaborao esse rio apresentava traado que, grosso modo, j se assemelhava ao atual. Localmente foi revestida por sedimentos fluviais que se relacionam unidade basal do Grupo Barreiras, datada do Mioceno Superior/Plioceno.

Figura 05 - Imagem de radar de remanescente da Superfcie Sul-Americana I localizado na margem direita do Rio So Francisco, Serra do Repartimento/MG (Folha SE.23-Y-B). Essa superfcie caracterizada nessa imagem de radar pela sua textura heterognea.

82

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

Geodinmica de superfcies de aplanamento, desnudao continental e tectnica ativa como condicionantes da megageomorfologia do Brasil oriental

A Superfcie Sul-Americana II (Fig. 06 e 07) ocupa o piso das depresses interiores e sub-litorneas, correspondendo, grosso modo, Superfcie Sertaneja proposta por ABSABER (1969) para designar o aplanamento que ocupa as atuais depresses semi-ridas nordestinas. Todavia, verificou-se que sua extenso extrapola em muito o domnio morfoclimtico do semi-rido sem, contudo, apresentar quaisquer descontinuidades de ordem geomorfolgica com aqueles remanescentes localizados em domnios climticos mais midos. No interior continental essa superfcie modelada em rampas que mergulham em direo s

principais calhas fluviais (Fig. 08), ao passo que nas depresses sub-litorneas as rampas mergulham em direo a linha de costa onde so conhecidas como tabuleiros costeiros. Embora parte dos remanescentes sub-litorneos da Superfcie Sul-Americana II esteja modelado nas unidades do Grupo Barreiras, na medida em que essa superfcie se distancia da linha de costa eles transgridem e truncam arcabouo litoestrutural diversificado, comprovando que sua ocorrncia no est geologicamente restrita arquitetura deposicional tabular dos sedimentos aluviais que compem esse grupo.

Figura 06 - Imagem de radar de remanescentes das superfcies SulAmericana (SA), Sul-Americana I (SA I) e Sul-Americana II (SA II) localizados na margem esquerda do Rio So Francisco/ MG (Folha SE.23-V-D). Nessa imagem a superfcie de cimeira delimitada por escarpas ngremes e bem definidas (a), ao passo que as escarpas que estabelecem o contato entre as superfcies Sul-Americana I e Sul-Americana II encontram-se desfiguradas e disseminadas no interior de reas dissecadas (b).

Figura 07 - Imagem de radar da Superfcie SulAmericana II em posio sub-litornea, na bacia do Rio Jequitinhonha/BA (Folha SE.24-V-B). O aplanamento, de textura heterognea e spera nessa imagem, dissecado por rede hidrogrfica densa.

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

83

Valado, R. C.

Figura 08 - Representao esquemtica da Superfcie Sul-Americana II na depresso do Rio Verde Grande (MG). Os valores apresentados correspondem declividade mdia da superfcie nos diferentes setores da depresso.

A paisagem geomorfolgica macro-regional na perspectiva temporal: uma cronologia da paisagemAs etapas geodinmicas de evoluo da paisagem geomorfolgica por que passou o Brasil Oriental, elaboradas a partir da anlise da distribuio espacial e altimtrica das superfcies de aplanamento, como tambm de sua relao com o arcabouo litoestrutural das bacias sedimentares interiores e marginais, tem incio com o Evento Brasiliano/Pan-Africano. Esse evento, iniciado no Proterozico Superior e finalizado no Ordoviciano, foi responsvel por ter imprimido, no fragmento litosfrico em que se localiza o Brasil Oriental, matriz litoestrutural que passou a exercer papel fundamental sobre os eventos desencadeados ao longo do Fanerozico. A histria fanerozica do relevo foi marcada por episdios de intensa desnudao da rea continental e pelo acmulo, seja em bacias interiores ou marginais, de espessa pilha sedimentar. Nesse contexto, grande parte da rea reportada neste trabalho permaneceu soerguida e em acelerado processo desnudacional desde o Paleozico, particularmente a regio atualmente ocupada pela Serra do Espinhao mineiro e baiano e pela Chapada Diamantina (VALADO, 1999a; VALADO & DOMINGUES, 1994). O estgio sin-rifte da atual margem continental que bordeja a rea investigada foi precedido ao sul por uma 84

elevao dmica da crosta, motivada por intensa atividade magmtica. Ao norte esse rifteamento assumiu caracterstica inter-dmica (Fig. 09). Durante o estgio sin-rifte propriamente dito ocorreu o quebramento da crosta e, consequentemente, a formao de proeminentes escarpas de falhas associadas aos flancos de rifte em soerguimento, criando um Grande Escarpamento que imps ao Brasil Oriental a estruturao de uma rede hidrogrfica dual. Esse escarpamento passou a configurar um divisor hidrogrfico de expresso regional, individualizando bacias de drenagem agressivas voltadas para o interior dos riftes, daquelas outras, de menor capacidade desnudacional, voltadas para o interior continental (Fig. 10). Nesse contexto, teve incio a elaborao da Superfcie Sul-Americana, no Aptiano, quando a rede hidrogrfica voltada para o interior dos riftes se articulou ao nvel de base do precoce Atlntico Sul. Embora tenham ocorrido significativos episdios de eroso e soterramento da rea investigada aps o Aptiano, todos eles contriburam para a marcante regularidade topogrfica alcanada por essa superfcie, cujo processo de elaborao se estendeu at o Mioceno Mdio (Fig. 11), quando parcela considervel da rea investigada foi soerguida, o que resultou na acelerao da desnudao continental e, consequentemente, no rejuvenescimento de seu relevo.

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

Geodinmica de superfcies de aplanamento, desnudao continental e tectnica ativa como condicionantes da megageomorfologia do Brasil oriental

Figura 09 - Configurao geomorfolgica esquemtica durante as fases pr-rifte (a) e sin-rifte (b) da margem continental leste brasileira. Legenda: A= arqueamento dmico; B= depresso interdmica; C= rifteamento dmico (vulcnico); D= rifteamento interdmico (novulcnico); 1= crosta; 2= manto litosfrico; 3= astenosfera; 4= underplating magmtico; 5= soerguimento.

A tectnica miocnica, embora tenha adquirido distribuio geogrfica generalizada, concentrou-se ao longo de quatro grandes eixos de soerguimento, assim denominados: Alto Paranaba; Arinos Alvorada do Norte; Espinhao Chapada Diamantina; Geraizinhos Marac (Fig. 12). A maior magnitude de soerguimento ocorreu no interior continental, notadamente nas bordas dos Crton do So Francisco (300m 550m) (VALADO & DOMINGUES, 1999). Em razo da reduzida magnitude do soerguimento miocnico na fachada atlntica (o qual no excedeu os 150m), foi produzida, em algumas

reas, a convergncia das superfcies Sul-Americana e Sul-Americana I. Esse soerguimento, tendo em vista seu alcance espacial, acabou por resultar na inciso da rede hidrogrfica regional, criando as condies favorveis ao despimento desnudacional dos remanescentes aplanados da Superfcie Sul-Americana, sobretudo ao longo das principais calhas fluviais. Esse despimento deu incio elaborao da Superfcie Sul-Americana I, cujos remanescentes ocorrem embutidos naqueles aplanamentos de cimeira cronocorrelatos Superfcie Sul-Americana.

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

85

Valado, R. C.

Figura 10 - Paleogeografia de trecho do Brasil Oriental no Neocomiano (fase sin-rifte). Legenda: 1- Grande Escarpamento; 2= divisor hidrogrfico; 3= retrao erosiva das cabeceiras de drenagem; 4= sedimentos flvio-lacustres; 5= limites do Crton do So Francisco.

Mais tarde, ao longo do Plioceno Superior, a rea investigada foi alvo de novo episdio de soerguimento, porm, a esse tempo, concentrado na fachada atlntica (at 600m) (Fig. 13), embora movimentaes de menor amplitude tenham ocorrido de modo generalizado, interrompendo o processo de elaborao da Superfcie Sul-Americana I e iniciando a abertura das atuais depresses interplanlticas e sublitorneas. Gargantas epignicas que hoje abrigam alguns trechos de canais fluviais foram escavadas em consequncia desse soerguimento.

Convergncia espao-temporal de processos e formas na compreenso da megageomorfologia do Brasil OrientalA gnese de cada uma das superfcies de aplanamento aqui retratadas foi dependente da convergncia espao-temporal de uma srie de condies geodinmicas, dentre as quais se destaca a estabilidade do nvel de base desnudao continental. Acredita-se que essa estabilidade foi alcanada em condies de quietao tectnica, ao passo que os soerguimentos crustais episdicos rejuvenesceram a paisagem continental na medida em que propiciaram o aumento da amplitude vertical do relevo.

86

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

Geodinmica de superfcies de aplanamento, desnudao continental e tectnica ativa como condicionantes da megageomorfologia do Brasil oriental Figura 11 - Paleogeografia da rea investigada no eoTercirio. Observe que a Superfcie Sul-Americana se distribui em dois nveis altimtricos distintos, separados por um proeminente escarpamento. Legenda: A= Grande Escarpamento; B= Bacia Sanfranciscana; 1= sedimentos mesozicos; 2= crosta continental; 3= crosta ocenica; 4= manto litosfrico; 5= astenosfera.

Figura 12 - Reconstruo dos principais elementos da rede hidrogrfica no Mioceno, apresentando os principais eixos de soerguimento. Legenda: 1= Grande Escarpamento; 2= eixo de soerguimento; 3= soerguimento (em metros); 4= subsidncia (em metros); 5= rede hidrogrfica; 6= captura fluvial; 7= limite interestadual.

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

87

Valado, R. C.

Figura 13 - Reconstruo dos principais elementos da rede hidrogrfica no Plio-Pleistoceno, apresentando os principais eixos de soerguimento. Legenda: 1= Grande Escarpamento; 2= eixo de soerguimento; 3= soerguimento (em metros); 4= rede hidrogrfica; 5= captura fluvial; 6= limite interestadual.

88

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

Geodinmica de superfcies de aplanamento, desnudao continental e tectnica ativa como condicionantes da megageomorfologia do Brasil oriental

Figura 14: Cronologia de soerguimento e elaborao das superfcies de aplanamento do Brasil Oriental. Legenda: 1= Observe que a partir de 100Ma ocorre mudana na representao da escala; 2= As setas verticais enfatizam os episdios de soerguimento (a: soerguimento miocnico; b: soerguimento pliocnico).

A mais alta frequncia dos eventos de elaborao das superfcies de aplanamento no neocenozico parece estar diretamente associada intensificao das reativaes tectnicas a partir do Mioceno. Essa intensificao no exclusiva da rea investigada, mas, ao que tudo indica, um comportamento de escala global. Os longos intervalos de quietao tectnica que prevaleceram durante o Gondwana vm sendo progressivamente substitudos, desde o Mesozico, por espasmos tectnicos cada vez mais frequentes, cuja atuao tem afetado no s as bordas das placas em franca atividade tectnica (BENJAMIM et al., 1987), como tambm o seu interior (BEHRENDT & COOPER, 1991). Quanto curta durao do evento de elaborao das superfcies Sul-Americana I e Sul-Americana II, importan-

te observar que essas superfcies esto, em grande parte, embutidas na Superfcie Sul-Americana e com ela estabelecem ntima filiao gentica. A longa durao do evento de elaborao da Superfcie Sul-Americana possibilitou o truncamento de arcabouo litoestrutural variado, composto por rochas de resistncia bastante diferenciada. Nesse contexto, a elaborao da Superfcie Sul-Americana I foi favorecida pela presena prvia de uma topografia regularizada, de baixa amplitude vertical, sustentada por manto de alterao espesso. Em muitos locais a sua elaborao esteve subordinada simplesmente ao despimento parcial desse manto, cuja desnudao foi auxiliada, em algumas reas do interior continental, pela presena da discordncia erosiva que marca o contato do embasamento da Bacia Sanfranciscana

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009

89

Valado, R. C.

com a sua cobertura mesozica. Por outro lado, a elaborao da Superfcie Sul-Americana II foi favorecida, no interior continental, pela presena quase que generalizada dos metapelitos do Supergrupo So Francisco, cuja resistncia eroso pequena, e, na fachada atlntica, pela disposio tabular dos arenitos e conglomerados do Grupo Barreiras, embora essa superfcie no esteja espacialmente restrita s ocorrncias desses sedimentos. A durao extremamente longa para o desenvolvimento da Superfcie Sul-Americana no deve significar que a sua elaborao tenha envolvido um processo nico, contnuo e ininterrupto. Apesar desse fato, no foi observado, por meio dos procedimentos de gabinete e campo empregados, nenhum indcio geomorfolgico que permita individualizar superfcies distintas naquelas reas ocupadas pela Superfcie SulAmericana. Todavia, caso essas superfcies tenham existido, a Superfcie Sul-Americana deve ser entendida como resultante da convergncia espao-temporal de mais de um evento de aplanamento.

De MARTONNE, E. (1943) Problemas morfoclimticos do Brasil tropical atlntico. Rev. Bras. Geografia, 5(4):523-550. FREITAS, R.O. (1951). Relvos policclicos na tectnica do Escudo Brasileiro. Bol. Paulista Geografia, 7:3-19. KING, L.C. (1956). Geomorfologia do Brasil Oriental. Rev. Bras. Geografia, 18(2):147-265. KING, L.C. (1962). Morphology of the Earth. London, Oliver and Boyd, 699p. LIMA, O.N.B. & VALADO, R.C (2002). Evoluo do relevo adjacente margem continental oriental brasileira: indicadores geolgicos. In: Congresso Brasileiro de Geologia, XLI, Joo Pessoa, 2002. Anais..., Joo Pessoa, SBG, vol 1. VALADO, R.C. & DOMINGUES, J.M.L. (1994). Opening of the South Atlantic Ocean and denudation of the So Francisco Craton, Brazil. In: International Sedimentological Congress, 14, Recife, 1994. Abstracts, Recife, IAG, S10-S11. VALADO, R.C. & DOMINGUES, J.M.L. (1999). Deformao tectnica neocenozica no Brasil Oriental: zonalidade e magnitude. In: Congresso da Associao Brasileira de Estudos do Quaternrio, 7, Porto Seguro, 1999. Anais..., Porto Seguro, ABEQUA. VALADO, R.C. (1996). King e a Geomorfologia do Brasil Oriental: uma reavaliao. In: Congresso Brasileiro de Geologia, XXXIX, Salvador, 1996. Anais, Salvador, SBG, vol.2, p:511-513. VALADO, R.C. (1999a). Evoluo do Crton do So Francisco e da fachada atlntica brasileira no Fanerozico. In: VII Simpsio de Geologia do Centro-Oeste e X Simpsio de Geologia de Minas Gerais, Braslia, 1999. Anais..., Braslia, SBG, p:108-109. VALADO, R.C. (1999b). Superfcies de aplanamento do Brasil Oriental: mapeamento, caracterizao e geodinmica. In: VII Simpsio de Geologia do Centro-Oeste e X Simpsio de Geologia de Minas Gerais, Braslia, 1999. Anais..., Braslia, SBG, p:107-108.

Referncias BibliogrficasABSABER, A. (1969). Participao das superfcies aplainadas nas paisagens do nordeste brasileiro. Geomorfologia, (19)1-38. ALMEIDA, F.F.M. de (1964). Fundamentos geolgicos do relevo paulista. Instituto Geogrfico e Geolgico, Boletim 41:169-263. BEHRENDT, J.C. & COOPER, A. (1991). Evidence of rapid Cenozoic uplift of the shouder escarpment of the Cenozoic West Antartic rift system and speculation on possible climate forcing. Geology, 19:315-319. BENJAMIM, M.T.; JOHNSON, N.M. & NAESER, C.W. (1987). Recent rapid uplift in the Bolivian Andes: evidence from fission track dating. Geology, 15:680-683. BRAUN, O.P.G. (1971). Contribuio geomorfologia do Brasil central. Rev. Bras. Geografia, 32(3):39.

90

Revista Brasileira de Geomorfologia, v.10, n.2, p.77-90, 2009