Arte Conceitual Gisele Ribeiro in PPGAV19encontro

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[ 175 ] PROJETO URUBU: DESMATERIALIZAçãO E TRANSPARÊNCIA NAS PRáTICAS CONCEITUAIS Gisele Ribeiro Resumo O artigo propõe uma revisão histórica das práticas conceituais a partir de uma reavaliação da pertinência do termo “desmaterialização” aplicado a tal produção, retomando o debate proposto por alguns artistas na época do lan- çamento do livro de Lucy Lippard em 1973, a fim de refletir sobre a atual con- dição discursiva da arte e repensar a relação “material” entre teoria e prática politicamente, de modo a evitar os apelos à transparência e à neutralidade que se entrepõem entre as duas. Estabelece, por fim, um paralelo entre o debate em torno da transparência e da neutralidade no campo da arte e as reflexões propostas por teorias políticas contrárias à domesticação do polí- tico na esfera pública. Palavras-chave: arte conceitual, desmaterialização, transparência, esfera pública. Abstract The article proposes an historical revision of conceptual practices through an revalua- tion of the pertinence of the term “dematerialization” applied to their production, re- visiting the debate proposed by some artists at the time of the publication of the Lucy Lippard’s book in 1973. In this sense, it aims to reflect upon the actual discursive con- dition of art and to rethink the “material” relationship between theory and practice politically, in a way it avoids the appeals to transparence and neutrality interposed between the two. It pretends, altogether, to establish a clarifying parallel between the debate around transparence and neutrality in the art field and the considerations of political theories contrary to the domestication of the political in the public sphere. Keywords: conceptual art, dematerialization, transparency, public sphere. Professora adjunta do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-graduação em Artes da UFES.

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O artigo propõe uma revisão histórica das práticas conceituais a partir deuma reavaliação da pertinência do termo “desmaterialização” aplicado a tal produção, retomando o debate proposto por alguns artistas na época do lançamento do livro de Lucy Lippard em 1973. Reflete sobre a atual condição discursiva da arte e repensar a relação “material” entre teoria e prática politicamente, de modo a evitar os apelos à transparência e à neutralidadeque se entrepõem entre as duas. Estabelece, por fim, um paralelo entre o debate em torno da transparência e da neutralidade no campo da arte e as reflexões propostas por teorias políticas contrárias à domesticação do político na esfera pública.Palavras-chave: arte conceitual, desmaterialização, transparência, esfera pública.

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PRoJEto URUBU: dEsmAtERiAliZAção E

tRAnsPARÊnciA nAs PRáticAs concEitUAis

Gisele Ribeiro

Resumo O artigo propõe uma revisão histórica das práticas conceituais a partir de uma reavaliação da pertinência do termo “desmaterialização” aplicado a tal produção, retomando o debate proposto por alguns artistas na época do lan-çamento do livro de Lucy Lippard em 1973, a fim de refletir sobre a atual con-dição discursiva da arte e repensar a relação “material” entre teoria e prática politicamente, de modo a evitar os apelos à transparência e à neutralidade que se entrepõem entre as duas. Estabelece, por fim, um paralelo entre o debate em torno da transparência e da neutralidade no campo da arte e as reflexões propostas por teorias políticas contrárias à domesticação do polí-tico na esfera pública.Palavras-chave: arte conceitual, desmaterialização, transparência, esfera pública.

Abstract The article proposes an historical revision of conceptual practices through an revalua­tion of the pertinence of the term “dematerialization” applied to their production, re­visiting the debate proposed by some artists at the time of the publication of the Lucy Lippard’s book in 1973. In this sense, it aims to reflect upon the actual discursive con­dition of art and to rethink the “material” relationship between theory and practice politically, in a way it avoids the appeals to transparence and neutrality interposed between the two. It pretends, altogether, to establish a clarifying parallel between the debate around transparence and neutrality in the art field and the considerations of political theories contrary to the domestication of the political in the public sphere.Keywords: conceptual art, dematerialization, transparency, public sphere.

professora adjunta do departamento de artes Visuais e do programa de pós-graduação em artes

da uFES.

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C onsiderando as indagações propostas pelo tema deste “Encontros em Arte” sobre as relações e tensões entre teoria e prática artísticas na contemporaneidade, bem como a proposta específica desta mesa, que traz à tona o debate em torno da(s)

história(s) da arte e sua relevância para a produção atual, proponho neste texto um retor-no às discussões sobre a ideia de desmaterialização na produção conceitual (uma revisão histórica, portanto), acreditando que elas possam contribuir para a compreensão de como o campo da arte se estrutura hoje na condição de espaço discursivo, em que as fronteiras entre prática e teoria servem, muitas vezes, a diferenciações hierarquizadas de poder. Vale a pena ressaltar que, como ex-aluna do mestrado em Linguagens Visuais do PPGAV da EBA-UFRJ, muito me interesso desde então em explorar o terreno entre prática e teoria, entre artista e crítico, dando atenção justamente aos aspectos teóricos da prática e à (mui-tas vezes encoberta) experiência prática material da teoria. Acredito que somente com essa perspectiva caolha é possível pensar a dimensão política da arte, foco de minha pesquisa desde o doutorado.

Nesse sentido, considero que uma das questões que merecem ser reexaminadas na história da arte recente é a concepção generalizada de que a arte conceitual é uma prática que promove a desmaterialização do objeto de arte. Tal asserção foi mais extensivamente propagada pelo livro/catálogo de Lucy Lippard, Six years: The dematerialization of the art object from 1966­1972 (2001), e desde então tem sido perpetuada por numerosos artigos, seja como tema central, seja como pressuposto básico. Embora houvesse em 1973, época da publica-ção do livro, críticas bastante contundentes a essa suposição – até por parte dos artistas incluídos na catalogação de Lippard –, de modo geral, tal afirmação é assumida hoje como fato histórico. A primeira objeção à utilização do termo “desmaterialização” aplicado às práticas conceituais foi feita pelo grupo Art&Language, antes mesmo da publicação do livro, como resposta a um primeiro artigo escrito em 1968 por Lippard e John Chandler, cujos título – A desmaterialização da arte – e conteúdo já portavam o argumento do futuro livro. Segundo a carta do grupo dirigida a Lippard e Chandler:

Todos os exemplos de trabalhos de arte (ideias) a que se referem em seu artigo são, salvo poucas exceções, objetos artísticos. Talvez não sejam objetos de arte tal como os conhe-cemos em seu estado material tradicional, mas são, entretanto, matéria em uma de suas formas, seja em estado sólido, líquido ou gasoso. E é nessa questão do estado material que se concentra minha preocupação quanto ao uso metafórico da desmaterialização. (...) O mapa é um objeto em estado sólido (isto é, papel com linhas em tinta sobre o mesmo) tanto quanto o é qualquer obra de Rubens (tela com pintura sobre a mesma) e como tal, tão suscetível de uma apreciação físico-visual quanto um Rubens.1

Lippard, entretanto, não parece dar muita importância aos argumentos do grupo e no prefácio de Six years... contra-argumenta:

Planejei este livro a fim de expor a caótica rede de ideias que estavam no ar, tanto na América quanto em outros países, entre 1966 e 1971. Enquanto essas ideias lidam mais ou menos com o que uma vez chamei de “desmaterialização” do objeto de arte, a forma do livro reflete intencionalmente o caos, mais do que impõe uma ordem. E desde que escrevi sobre o assunto pela primeira vez em 1967, me foi apontado frequentemente que desmaterialização é termo impreciso, que um pedaço de papel ou uma fotografia

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são tão objetos ou tão “materiais” quanto uma tonelada de chumbo. Ok, argumento aceito. Mas, na falta de termo melhor, continuo a me referir a um processo de desmate-rialização ou a uma depreciação da ênfase sobre os aspectos materiais (unicidade, per-manência, apelo decorativo).2

Ou seja, apesar do questionamento de vários críticos e artistas, incluindo aqueles cujas produções são abarcadas pelo livro, que teriam “apontado frequentemente” os problemas inerentes a sua terminologia, a autora mantém a ideia de desmaterialização, “na falta de termo melhor”. A ideia de desmaterialização – na qual estariam implícitos pressupostos de neutralidade e transparência dos objetos apresentados – não é assumida, portanto, pela produção artística conceitual como característica evidente (como a história recente faz parecer) e poderia ser entendida como reflexo do modo problemático com que Lippard concebe seu livro. Sob o argumento de intencionada ausência de ordem, pretendendo que a publicação fosse uma coleção de documentos em fuga de qualquer narrativa ordenada, Lippard acaba por conceber seu trabalho como editora, crítica e historiadora de modo transparente, recorrendo, aliás, à proximidade que teria com os artistas como argumen-to que garantiria a “imediatez” e maior autenticidade de sua perspectiva. Embora deva ressaltar aqui a importância da contribuição do livro ao incluir em sua organização não apenas aqueles trabalhos ligados a uma arte conceitual anglo-saxã, disseminada hegemo-nicamente, mas também aquelas práticas realizadas no âmbito do que hoje chamamos de “conceitualismo global”,3 no qual se enquadram, por exemplo, as proposta de artistas lati-no-americanos vinculadas a um “conceitualismo do Sul”,4 a crítica à posição de Lippard se deve justamente ao modo como evita o debate sobre os sentidos desse re­enquadramento, apostando em um “não enquadramento”, em que sua postura intencionalmente neutra pressuporia a possibilidade de não haver exclusões.5

Nesse sentido, vale a pena retomar a crítica de Mel Bochner, publicada como resenha na revista americana Artforum 11, n.10, de junho de 1973, em que ataca veementemente o livro. Os argumentos de Bochner se dirigem principalmente à suposição de Lippard de que seu livro seria um “documento”,6 esquivando-se assim tanto da tarefa de reconhecer sua impli-cação na escrita de uma história da arte quanto da tomada de posição e rigor necessários na defesa de qualquer decisão metodológica. Segundo o autor,

A imitação por parte de um crítico é uma forma de autoindulgência. Nesse livro, e em vários catálogos de exposições anteriores, essa tem sido disfarçada como “documento” e apresentada em contexto irrefutável, devido à propagada proximidade entre artista e crítico: “A editora tem estado intimamente comprometida com a arte e os artistas desde sua emergência” (nota publicitária na contracapa do livro). Esse “comprometi-mento” confere autoridade e incontestabilidade àquilo que é explicitamente um em-preendimento acrítico.7

A contrastante diferença entre a atenção de Mel Bochner, como artista, às implicações próprias de uma postura que, baseada na lógica documental, se pressupõe transparente – tanto no caso do objeto artístico quanto com relação ao papel do crítico e do historia-dor – e a suposta despreocupação com que Lippard lida com o termo “desmaterialização” (“na falta de termo melhor”) é indício do grau de incompreensão (ou mesmo de enfren-tamento) que atravessa a perspectiva de muitos críticos e teóricos da arte com relação às

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propostas de artistas conceituais, que infelizmente se perpetuam até nossos dias. Ainda em palavras de Bochner, contra Lippard,

Sua recusa em engajar-se nas complexas e frequentemente contraditórias questões in-telectuais em jogo naquele momento reduz as intenções de uma arte que tenta produ-zir uma poderosa crítica da ordem social e estética vigente em uma série de atividades puramente autopromocionais. (...) The Dematerialization of the Art Object [A desmateria-lização do objeto de arte] não é uma corrupção consciente da história. É uma vítima de forças históricas que é incapaz de reconhecer. Enfrentar essas forças requer uma aná-lise de questões políticas e econômicas implícitas no problema estético. Livros como esse têm um uso predeterminado pela demanda do sistema de distribuição. Eles fun-cionam para sustentar uma posição, estabelecer domínios teóricos, criar hierarquias de indivíduos para o mercado, prover trabalhos como referências definitivas e doutrinar seguidores. Desse modo, é apenas mais um manual ideológico. É, porém, mais perigo-so porque Lippard veste uma máscara de objetividade, uma autonomia que aparece tão estritamente racional e abarcadora, que esconde cada traço de sua proposta. (...) O dis-positivo do narrador invisível é um dispositivo novelístico do século XIX para compor uma ficção histórica, a fim de manipular a resposta do leitor desavisado.8

A resistência à ideia de desmaterialização, no entanto, não parte somente de textos crí-ticos à proposta de Lippard, como espécie de efeito negativo, mas está presente, antes de tudo, nos próprios trabalhos e práticas conceituais que, propondo reflexões sobre o modo como atribuímos sentido às coisas, não poderiam deixar de abarcar em suas análises a ma-terialidade de cada forma assumida. Nesse sentido, trabalhos como o do próprio Mel Bo-chner, Language is not transparent (1969-1970), ou One and three chairs (1965), de Joseph Kosu-th, a entrevista com o gato de Marcel Broodthaers em Cinéma Modèle (1970), as conversas de Ian Wilson e Robert Barry, ou a Exposição de 0 às 24h (1973), de Antonio Manuel, a Publication (1970), de David Lamelas, a ação para o Ciclo de Arte Experimental (1968) de Graciela Car-nevale, além de The Bowery in Two Inadequate Descriptive Systems (1974-75), de Martha Rosler, são exemplos contundentes do posicionamento e das investigações de algumas propostas conceituais ante o apelo à transparência.

IW [Ian Wilson]: O que me chamou atenção como algo importante na comunicação oral foi que, quando uma pessoa faz algo que é vinculado e quer chamá-lo de arte, ela tem que chamá­lo de arte. Para chamar qualquer coisa de qualquer coisa, você tem que falar ou colocar por escrito ou utilizar a linguagem de sinais, caso seja surdo e mudo. Essas são as três alternativas.RB [Robert Barry]: Bom, você poderia colocá-lo em um determinado lugar de modo que seja designado como arte: uma galeria, um museu, uma revista de arte.IW: Mas esse lugar também teria que ter sido chamado...9

Percebe-se que, embora visassem romper com o estatuto do objeto artístico moder-no, autônomo e opaco, os trabalhos desses artistas não abdicavam ou relevavam a crítica a qualquer ideia de transparência atrelada às formas apresentadas, nem mesmo quando utilizada à linguagem verbal, oral ou escrita. Trata-se de ir além da dicotomia opacidade versus transparência, transformando o estatuto dos objetos nas práticas artísticas, descen-

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tralizando-os sem que se tornem “imateriais”, transparentes a qualquer ideia ou represen-tação. Objetos e situações, por mais invisíveis, intangíveis, informes, efêmeros, verbais e aparentemente “imateriais” que sejam, são sempre partes significativas da construção de qualquer proposição, embora não detenham jamais a centralidade significante da obra. Boris Groys10 em artigo recente sobre o legado das práticas conceituais para a produção atual,

Argumentaria que, da perspectiva atual, a maior transformação realizada pelo concei-tualismo foi a seguinte: depois do conceitualismo não podemos mais enxergar a arte basicamente como a produção e exibição de coisas individuais – mesmo readymades. Entretanto, isso não significa que a arte conceitual, ou pós-conceitual, tornou-se “ima-terial”. Artistas conceituais mudaram a ênfase do fazer artístico de objetos estáticos e individuais para a apresentação de novas relações espaçotemporais. Essas relações po-deriam ser puramente espaciais, mas são também lógicas e políticas.

As críticas elaboradas na época pelos artistas, contudo, não foram suficientes para reter a difusão da ideia de desmaterialização difundida por Lippard. Do ponto de vista político, é interessante notar que se, a princípio, a ideia de desmaterialização parecia – segundo o argumento de Lippard – contribuir para a resistência do campo artístico frente ao crescen-te processo de mercantilização da arte, a longo prazo a suposição permitiu, por um lado, a simplista acusação de que a arte conceitual teria fracassado, ao ser também negociada pelo mercado de arte, e, por outro, facilitou a construção de argumentos mediante os quais a arte conceitual negaria toda visualidade, trabalhando com uma “poética do neutro”11 ou com a “estética da administração”, nos termos do conhecido artigo de Benjamin Buchloh “Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetics of Administration to the Critique of Ins-titutions”:12

Do mesmo modo que a crítica modernista (e última proibição) da representação figura-tiva se tinha tornado, na primeira década do século XX, uma lei cada vez mais dogmáti-ca dirigida à produção pictórica, também a Arte Conceitual agora instalava a proibição de toda e qualquer visualidade como inescapável regra estética para o final do século XX. Do mesmo modo que o readymade teria negado não apenas a representação fi-gurativa, mas a autenticidade e a autoria, enquanto introduzira a repetição e a série (isto é, a lei da produção industrial) a fim de substituir a estética do ateliê com base na artesania original, a Arte Conceitual veio deslocar até mesmo aquela imagem do objeto produzido em massa e suas formas estetizadas na Pop Art, substituindo uma estética de produção e consumo industrial por uma estética de organização legal e administra-tiva e validação institucional.

Nesse sentido, enquanto as ideias de neutralidade e transparência seguiriam vigentes como pressupostos de uma idealizada esfera pública, nos moldes de Jürgen Habermas,13 quando vinculadas ao tradicionalmente opaco objeto artístico moderno criariam uma fric-ção que seria prontamente atribuída à faceta negativa da sociedade burguesa na fase de ascensão do Estado moderno: a burocratização. Essa acusação de Buchloh, entretanto, não se dirige a todas as manifestações da arte conceitual, mas, segundo o autor, àquelas alheias à “realidade social”, como seria o caso das proposições de Joseph Kosuth. O incômodo, e

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consequente antagonismo, provocado pelas propostas de Kosuth são claramente percebi-dos no texto de Buchloh:14

Kosuth reclamava, em 1969, precisamente a continuação e expansão do legado positi-vista do modernismo, e o fazia com aquilo que deve ter-lhe parecido na época as ferra-mentas mais radicais e avançadas dessa tradição: o positivismo lógico de Wittgenstein e a filosofia da linguagem (...). Desse modo, enquanto reivindicava deslocar o forma-lismo de Greenberg e Fried, de fato atualizava o projeto modernista de autorreflexi-vidade.

O argumento de Buchloh nega, portanto, a importância tanto da produção de Kosu-th quanto das investigações de Wittgenstein, além de abdicar de uma das características mais positivas do projeto moderno, precisamente, a autorreflexividade, que permitiria, em certo grau, questionar o ideal de transparência (e suposta neutralidade) seja do objeto artístico, do documento histórico, da notícia jornalística, da identidade dos sujeitos, da esfera pública ou do Estado.

Ainda em contraposição aos argumentos de Buchloh e em concordância com o artigo de Boris Groys já citado, diríamos que será justamente no modo como as práticas concei-tuais – incluindo as de Kosuth – entendem a importância da materialidade do pensamen-to que residirá sua relevância atual.

essa nova orientação em direção aos significados e à comunicação não quer dizer que a arte se tornou, de algum modo, imaterial, que sua materialidade perdeu relevância, ou que seu meio se dissolveu em mensagem. Ao contrário. Toda arte é material – e só pode ser material. A possibilidade de usar conceitos, projetos, ideias e mensagens políticas na arte foi aberta por filósofos da “virada linguística” precisamente porque eles afir-mavam o caráter material do próprio pensar. (...) E a linguagem foi compreendida por eles como totalmente material – uma combinação de signos sonoros e visuais. Agora, a verdadeira e historicamente determinante conquista da arte conceitual torna-se clara: ela demonstrou a equivalência, ou ao menos o paralelismo, entre linguagem e imagem, entre a ordem das palavras e a ordem das coisas, entre a gramática da linguagem e a gramática do espaço visual.15

A revisão do termo “desmaterialização” torna-se, portanto, parte fundamental de uma crítica antiessencialista da ordem social e estética16 que desafia simultaneamente a lógica do objeto artístico autônomo opaco e a lógica do documento transparente, atingindo, ao mesmo tempo, o campo da arte, a linguagem (a cotidiana incluída) e o espaço público. Nes-se sentido, o debate em torno da ideia de esfera pública e a renúncia – por parte de teóricos políticos como Chantal Mouffe e Ernesto Laclau – de pressupostos essencialistas, como a categoria “sujeito como entidade transparente e racional”,17 baseando-se igualmente na filosofia da linguagem do último Wittgenstein,18 vêm de encontro à crítica da desmate-rialização realizada por propostas conceituais e permitem pensar a indeterminação como indício da contingência, logo da articulação política que subjaz toda ordem.

A domesticação do político está, portanto, implícita nas defesas de transparência e neu-tralidade vinculadas à lógica documental – e dos meios de comunicação, de modo geral – e é alvo de crítica por parte de autores como Mouffe,19 Hannah Arendt20 e Carl Schmitt.21

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Este último descreve uma série de etapas históricas marcadas por sucessivas tentativas de neutralização do político, cujo conceito é marcado pela relação amigos/inimigos, ou seja, pelo antagonismo. A rejeição do conflito faria com que a busca de uma esfera neutra im-pulsionasse o pensamento em direção à minimização dos antagonismos e do dissenso. Tal argumento coloca em questão tanto a pretensão do Estado liberal de conformar-se como “Estado neutro” quanto a posterior apropriação de suas funções políticas pseudoimpar-ciais por parte do mundo da técnica.

A crença na técnica, hoje espalhada, baseia sua evidência apenas no fato de que se po-deria crer ter encontrado na técnica o solo absoluta e definitivamente neutro. Pois apa-rentemente não existe nada de mais neutro do que a técnica. Ela serve a qualquer um assim como a rádio que pode ser usada para notícias de todos os tipos e de qualquer conteúdo (...). Mas a neutralidade da técnica é algo de diferente da neutralidade de to-das as outras esferas até agora. A técnica é sempre somente instrumento e arma, e jus-tamente porque ela serve a qualquer um, ela não é neutra.22

Não se trata, portanto, de agarrar-se ao ideal de transparência, evitando olhar as condi-ções materiais, discursivas e institucionais que nos emolduram, negando a contingência e o caráter político da situação em que vivemos. Consideraria que observar como as práticas artísticas contemporâneas se posicionam com relação à transparência documental e a suas condições materiais ajuda a identificar algumas questões pertinentes para a esfera pública política da arte.

Desse modo, tanto a arte conceitual quanto as reflexões de Wittgenstein parecem vol-tar a ganhar pertinência, se não as reduzimos a uma arte “desmaterializada”, no primeiro caso, ou a uma apologia cientificista no segundo. A tensão entre opacidade e transparência presente em ambas as “investigações” é o que permite a crítica a todo tipo de fixação últi-ma, com relação tanto às práticas artísticas quanto às esferas públicas. A afirmação do ca-ráter incompleto, aberto e politicamente negociável da arte é, no meu entender, um pres-suposto básico para a compreensão de sua dimensão política e das relações entre prática e teoria que a conformam.

A relevância desse debate torna-se ainda maior tendo em vista o desenvolvimento das propostas conceituais em direção às práticas de site-specific e de Crítica Institucional que provocam uma ampliação da noção de “lugar”. Consequentemente, a “instituição-arte” será compreendida agora não apenas como espaço físico, mas principalmente como “site discursivo”,23 o que leva à possibilidade de fuga dos espaços físicos especializados sem que, necessariamente, se escape da instituição arte. Já não podemos localizar a instituição ape-nas em uma exterioridade, seja ela associada a arquiteturas de museus e de galerias, seja sob a forma de organizações governamentais. As instituições se encontram, percebemos hoje, fluidamente impregnadas em nós, em nossos corpos e nossos modos de articulação, em nossos hábitos.24

Nesse sentido, manter a atenção às condições materiais de cada situação pode evitar o retorno da mitificação de qualquer neutralidade ligada à circulação das práticas artísticas no atual momento pós-fordista de um capitalismo avançado – em que as condições de tra-balho se tornariam, segundo Paolo Virno,25 “imateriais” –, mantendo ambos os aspectos “teóricos” e “práticos” sob uma perspectiva crítica. n

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notas

1 Art-Language. Unpublished letter-essay from the Art-Language group, Coventry, to Lucy Lippard

and John Chandler “Concerning the article ‘The Dematerialization of Art’”, Mar. 23, 1968.( Li-

ppard, Lucy; Chandler, John. The dematerialization of art. Art International, Feb. 1968). An excerpt.

In Lippard, Lucy (Ed.). Six years: The dematerialization of the art object from 1966-1972: a cros-

s-reference book of information on some esthetic boundaries: consisting of a bibliography into

which are inserted a fragmented text, art works, documents, interviews, and symposia, arranged

chronologically and focused on so-called conceptual or information or idea art with mentions

of such vaguely designated areas as minimal, anti-form systems, earth or process art, occurring

now in the Americas, Europe, England, Australia, and Asia (with occasional political overtones).

Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 2001, p. 43. Nessa e nas demais cita-

ções em idioma estrangeiro, as traduções são da autora.

2 Lippard, 2001, op. cit., p.5.

3 Groys, Boris, Introduction – Global Conceptualism Revisited. E­flux, journal, 29, nov. 2011. Dispo-

nível em http://www.e-flux.com/journal/introduction%E2%80%94global-conceptualism-revisi-

ted/. Arquivo consultado em 12 out. 2013.

4 Freire, Cristina; Langoni, Ana. Conceitualismo do Sul/Sur. São Paulo: Annablume, 2009.

5 Segundo Mel Bochner, como sintoma, a fragmentação dos textos originais apresentados no livro

seria tratada displicentemente. Com relação às exclusões, o pressuposto de que é possível consti-

tuir uma esfera pública, ou obra, não excludente é um problema típico do modelo de esfera públi-

ca burguesa, consensualmente estruturada, desmitificado por teóricos políticos contemporâneos

como Chantal Mouffe, como veremos adiante. Em concordância, Bochner diria: “The principles of

exclusion deserve more attention” (Bochner, Mel. Book review. In Stiles, Kristine; Selz, Peter (Ed.). The­

ories and documents of contemporary art: a source book of artists writings. Berkeley/Los Angeles/London:

University of California Press, 1996, p.830).

6 Cf. o subtítulo original do livro: “a cross­reference book of information...”.

7 Bochner, op. cit., p.828.

8 Bochner, op. cit., p.830-832.

9 Wilson, Ian; Barry, Robert. Ian Wilson and Robert Barry on oral communication, July, 1970, Bronx

(NY). In Lippard, 2001, op.cit., p.181.

10 Groys, op. cit., p.1.

11 Combalía Dexeus, Victoria. La poética de lo neutro: análisis y crítica del arte conceptual. Barcelona:

Editorial Anagrama, 1975.

12 Benjamin. Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetics of Administration to the Critique of

Institutions. October, n.55, 1990, p.119.

13 Habermas, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da

sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

14 Buchloh, op. cit., p.124.

15 Groys, op. cit., p.278.

16 Bochner, op. cit.

17 Mouffe, Chantal; Laclau, Ernesto, Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la

democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987.

18 Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1994.

19 Mouffe, Chantal. Prácticas artísticas y democracia agonística. Barcelona: Macba/UAB, 2007.

20 Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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21 Schmitt, Carl. A era das neutralizações e despolitizações. In O conceito do político. Petrópolis: Vozes,

1992.

22 Schmitt, op. cit., p.115-116.

23 Kwon, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. Cambridge/London:

Mit Press, 2004.

24 Fraser, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. Concinnitas Revista do Insti-

tuto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, ano 9, v.2, n.13, dez. 2008.

25 Virno, Paolo. Gramática de la multitud: para un análisis de las formas de vida contemporáneas. Ma-

drid: Traficantes de Sueños, 2003.

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190 Encontro de Alunos do PPGAV/EBA/UFRJ

Organização da publicaçãoClaudia MendesElizabeth Catoia VarelaFernanda LopesMario CaillauxNatália QuinderéRenata SantiniSimone Michelin

Escola de Belas ArtesRio de Janeiro | 2014

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Catalogação na Fonte elaborada por Verônica de Sá Ferreira • crb 7/6244

XIX Encontro de alunos do ppgav/eba/ufrj (19. : 2013 : Rio de Janeiro, rj)

Encontros em arte: lugares, ações, processos / organização Claudia Mendes ... et al. – Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes/ufrj, 2014.

Recurso eletrônico.isbn 978-85-87145-56-7

1. Arte – Seminário. i. Mendes, Claudia. ii. Encontro de alunos do ppgav/eba/ufrj (19.: 2013: Rio de Janeiro, rj). iii. Título. iv. Título: Encontros em arte: lugares, ações, processos.

cdd 060

Organização da publicaçãoClaudia MendesElizabeth Catoia VarelaFernanda LopesMario CaillauxNatália QuinderéRenata SantiniSimone Michelin

ColaboradoresIzabela PucuRafael BtesheShannon Botelho

Design gráfico e diagramaçãoClaudia Mendes

RevisãoMaria Helena Torres

As versões para o inglês dos resumos foram reproduzidas exatamente como nos originais enviados pelos autores, sendo o conteúdo de sua total responsabilidade.

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sUmáRio

10 apRESENtação

Marize Malta

mesa 1 Corporeidade

15 pEça LINHa / LINE PIECE Eleonora Fabião

25 ExSudaçõES: dIáLogoS paRa uMa ação do CoRpo Edgard Mesquita de oliva Junior

31 o CoRpo No FaZER do oBJEto: oS SENtIdoS Na CRIação Leila Maribondo Barboza

37 a pINtuRa No CoRpo E a pINtuRa ENCaRNada: aS CaMadaS dE CoR do E No CoRpo Letícia Carvalho da Silva de oliveira

43 tERRa INCogNIta Maria alice Cavalcanti poppe

mesa 2 Trans(...), transduções e traduções

51 o CINEMa-INtERatIVo E pERFoRMátICo: FIGURAS NA PAISAGEM E CIRCULADÔ andré parente

61 SuSpENSE Katia Maciel

69 do LIVRo ao CINEMa: tRadução INtERSEMIÓtICa daS ILuStRaçõES dE O PEQUENO PRÍNCIPE anna Carolina Batista Bayer

75 tRadução E VÍdEo: THE PASSING, MoVIMENto E SoBREVIVÊNCIa dinah de oliveira

81 VaRIaçõES MoNuMENtoS Maria Lucia Vignoli Rodrigues de Moraes

Page 15: Arte Conceitual Gisele Ribeiro in PPGAV19encontro

mesa 3 Neoconcretismo: assimilação institucional e reativação histórica

89 o aMaNHã, aINda otavio Leonidio

97 LYgIa papE: apRopRIaçõES E apRoxIMaçõES CoM o CINEMa Carlos douglas Martins pinheiro Filho

105 HÉLIo oItICICa: BÓLIdE poR VIR João pereira Vale Neto

mesa 4 Revelando carnavais: ruídos, falas e ecos da folia brasileira

113 apoNtaMENtoS paRa SE CoMEçaR a pENSaR o CaRNaVaL Felipe Ferreira

119 pRoIBIdo SopRaR: poSSÍVEIS CauSaS da pRoIBIção doS INStRuMENtoS dE SopRo NaS ESCoLaS dE SaMBa Na dÉCada dE 1930 giuliana Caetano pimentel

125 a “ÓpERa dE Rua” do CaRNaVaL: CIRCuLaRIdadE NuMa GESAMTkUNSTwERk tupINIQuIM CoNtEMpoRâNEa Isaac Caetano Montes (Izak dahora)

131 REpRESENtaçõES EtNogRáFICaS da CIdadE do RIo dE JaNEIRo EM tEMpoS dE CaRNaVaL: uMa aNáLISE doS FILMES ORFEU NEGRO (1959), dE MaRCEL CaMuS, E ORFEU (1999), dE CaCá dIEguES Maryanne Seabra

137 o pRoCESSo dE CoNStRução da pERSoNagEM BaIaNa dE ESCoLa dE SaMBa No SÉCuLo xx E SEuS MÚLtIpLoS SIgNIFICadoS Vânia Maria Mourão araújo

mesa 5 Práticas curatoriais no Brasil

147 JuNto ao HIStoRIadoR da aRtE: a BIBLIotECa dE aRtES VISuaIS do MuSEu dE aRtE ModERNa do RIo dE JaNEIRo Elizabeth Catoia Varela

154 áREa ExpERIMENtaL – uMa INtRodução Fernanda Lopes

165 aRtE agoRa: RoBERto poNtuaL E a CuRadoRIa CoMo QuEStão Izabela pucu

Page 16: Arte Conceitual Gisele Ribeiro in PPGAV19encontro

mesa 6 Teorias e práticas, táticas e problemáticas

175 pRoJEto uRuBu: dESMatERIaLIZação E tRaNSpaRÊNCIa NaS pRátICaS CoNCEItuaIS gisele Ribeiro

185 a pINtuRa, o dESENHo E o ESpaço Na SÉRIE aMBIÊNCIaS Na paREdE Michele Martins Nunes

191 aCadEMIa dE BELaS aRtES – CoNSIdERaçõES Monica Cauhi Wanderley

197 NotaS SoBRE o FaLSáRIo Natália Quinderé

205 o CaLVáRIo do outRo: pRoBLEMatIZaNdo a oBRa dE VaSCo FERNaNdES Rafael augusto Castells de andrade

211 ExpoSIção

218 analu Cunha

220 Cecilia Cavaliere

222 gabriela Mureb

224 Julie Brasil e Claudio tobinaga

226 Junior pimenta

228 Mariana Madeira

230 paula Scamparini

232 Rafael alonso

234 Vanessa Santos

Page 17: Arte Conceitual Gisele Ribeiro in PPGAV19encontro

tEoRiAs E PRáticAs,

táticAs E PRoBlEmáticAs

coordenação: cezar Bartholomeu (EBA/UFRJ)

a história da arte pode ser considerada a partir do desenvolvi-mento de relações cada vez mais profundas e complexas entre teoria e prática artística. Se consideramos a história da arte a partir da ne-

cessidade de compreender, criticar e conectar a arte à cultura, atualizando sua episteme, é preciso compreender como a arte, sobretudo hoje, se rela-ciona com suas teorias, problematizando-as estruturalmente, traindo-as afetivamente, inventando-as criativamente.