Arte e Sociedade - Roger Bastide

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Nesta obra, Roger Bastide procura enveredar as diferentes dimensões que engendram a sociologia da arte.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS

    HUMANAS

    Temas da Sociologia Brasileira

    Prof. Dr. Luiz Carlos Jackson

    Gustavo Rubio Claret Pereira N USP: 7197862 - Vespertino

  • As Estticas Pobres de Roger Bastide em Arte e Sociedade

    (Autopsicografia)

    O poeta um fingidor.

    Finge to completamente

    Que chega a fingir que dor

    A dor que deveras sente.

    E os que lem o que escreve,

    Na dor lida sentem bem,

    No as duas que ele teve,

    Mas s a que eles no tm.

    E assim nas calhas de roda

    Gira, a entreter a razo,

    Esse comboio de corda

    Que se chama corao.

    Fernando Pessoa

    No de se estranhar que um poema to celebre quanto esse de Fernando Pessoa revele com

    to poucas palavras o sentimento envolvente tanto na aura do artista quanto do leitor, seu pblico.

    Portanto, visto que o prprio poeta expressa a situao na qual se v enquadrado, no sem um misto

    de ironia claro, pois criar fingir ao mesmo tempo na tica de Pessoa; encontramos ressaltados

    nesta metfora vrios dos aspectos da condio social do artista e das duas estticas da qual nos fala

    Roger Bastide em Arte e Sociedade, proporcionando a distino tanto da esttica daquele que cria,

    quanto da esttica daquele que goza da esttica criada, logo, tal semelhana com o poema em

    questo multiplica seu significado, que se torna em si mesmo um fragmento da arte potica.

    Quanto capacidade artstica que reside na atividade criativa, na inveno, ela no se

    resume apenas a uma maneira de proceder, assim como existem duas sociologias da arte, duas

    estticas que se distinguem; existem duas maneiras de inventar, antecede o autor: no primeiro caso

    o artista tem vontade consciente de inovar, de produzir qualquer coisa de indito, o que o leva a

    tomar, geralmente a atitude contrria que se tomava antes dele.1 No segundo caso, vemos, por

    1 BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. Traduo de Gilda de Mello e Souza 3 edio; So Paulo: Ed. Nacional, 1979.

  • outro lado, resulta daquela criao de origem inconsciente que vulgarmente nos referimos como

    gnio do artista. O artista aqui at considera conformar-se com a tradio, mas h algo nele que

    no se adequa, no se ajusta e genial; segundo o autor esse problema depende em grande parte da

    psicologia e no da sociologia. No satisfeito com isso, pois a psicologia no pode explicar tudo,

    diz, Bastide, lancemos mo da pesquisa sociolgica a fim de perscrutar os caminhos que as

    produes artsticas enveredaram ao longo da histria. No h artista sem pblico ou pblico sem

    artista j antecipando, em parte, a discusso. A princpio, considerando os aspectos sociolgicos que

    envolvem a criao artstica, no deixamos de notar que o criador pertence a um certo pas, uma

    certa classe social, a grupos determinados, seus costumes que pesam sobre o indivduo com toda a

    fora da tradio2. E que todos esses elementos tm sua influncia sobre o contedo de sua arte. No

    movimento inverso, em alguns dos casos, os elementos que compem as caractersticas do meio

    social, no apenas inscreverem-se na obra do artista, como podem se insinuar na prpria inspirao

    que brota nele sob uma forma exterior3. Para citar algum exemplo, teramos como possvel

    candidata a pop arte Andy Warhol, no obstante, um prato cheio para discusso que Bastide

    tambm incita sobre as questes do mito que se faz sobre as personalidades artsticas, que

    definiramos como gnio na acepo mais comum. Em resumo, sobre este fato, contentaramos em

    assumir junto ao autor:

    Que toda sociedade possui um mito do artista e esse mito tem um poder to forte

    de coao que se impe ao artista, forando-o a copi-lo em sua existncia

    quotidiana, mesmo que exista entre ele e seu temperamento uma oposio total4.

    Dentre outras diferenas que permeiam a histria da arte, que ensejaram tantas outras formas

    expressivas, no nos esqueamos da participao fundamental do pblico para a arte. A importncia

    do pblico ser melhor compreendida se lembrarmos que o artista deve viver como todo o mundo,

    e que ele vive de sua arte5. Assim como todos os outros homens o artista precisa suprir as suas

    necessidades, necessita agradar os outros, seu pblico, que investe em sua arte e pode lhe fornecer

    dinheiro para sua existncia. Est claro, portanto, as nuances que separam a arte do arteso,

    profissional e a arte do amador, que produz arte pela arte, sem as exigncias que usualmente

    coagem o primeiro. Por outro lado, retornando aos efeitos do mito sobre a produo artstica, Roger

    Bastide retrocede quanto ao relegar essa generalidade da condio humana para o artista. Isto , o

    artistas no um homem (atento nesta hora para outras qualidades obscuras da inveno) como os

    2 BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. Traduo de Gilda de Mello e Souza 3 edio; So Paulo: Ed. Nacional, 1979 3 Idem. Ibid. 4 Idem. p.76 5 Idem. Ibd.

  • outros, escapa condio humana, pois o mensageiro dos deuses sobre a terra ou, pelo menos,

    possudo por um demnio. Escapa devido algumas qualidades superiores, entre elas, a precocidade,

    que a sociologia no relega ao esquecimento, afinal, atribui-se o gnio no a valores individuais, o

    que no suficiente misterioso para, mas a esses segredos quase mgicos6 de to singulares e

    astutos. Trazendo para o nosso contexto brasileiro, por exemplo, o autor indaga se o mesmo no

    acontece aos romnticos brasileiros contaminados pelo ideal artista-heri, que se entregavam de

    corpo e alma a uma morte precoce em busca da imortalidade. No tambm a sociedade que fora-

    os a um certo gnero de vida e de morte precoce, porque os que morrem jovens so amados pelos

    deuses7?

    Enfim, so inmeros os elementos que a sociologia poderia evocar na composio da

    produo de arte como um todo, medida que separamos o joio do trigo, primeiro considerando a

    esttica proveniente do gnero individual do artista produtor, mas que est imbricado em todos

    esses processos que no so em nada idiossincrticos, como vimos e segundo a esttica que

    provm da generalidade dos valores artsticos, referente queles que gozam do objeto de arte j

    acabado, no momento em que ele vira uma linguagem; leem uma dor que no sentem, mas

    procuram goz-la, por certo de no a terem como tem (ou finge ter) o artista; novamente

    encontramos certa sintonia com as palavras de Fernando Pessoa e a sociologia da arte de Roger

    Bastide. Tal a importncia da sociologia da arte posta em reflexo que, por sua vez, enquanto

    procura distinguir essas duas formas da socializao da arte, alude analogamente queles da diviso

    do trabalho social, cujo estudo Durkheim chegou a dedicar na forma de um livro inteiro, sem

    contudo, estar atento a essa dissociao, que na opinio de Bastide de grande pertinncia, entre

    esttica do criador e a do amador. Com efeito, o que nos diz (Durkheim em A Diviso do Trabalho

    Social)?

    Que o homem capaz de duas espcies de atividades: as atividades de trabalho, com o objetivo de

    satisfazer suas necessidades, e as atividades de jogo, para despender gratuitamente os excessos de energia

    (...) A esttica do amador de arte escapa sociologia econmica, mas o criador de arte, enquanto

    profissional, deve submeter-se lei do trabalho8.

    Por ora, temos em linhas gerais o escopo da sociologia da arte que Roger Bastide procurou

    levar adiante enquanto lecionava na Faculdade de Filosofia Cincias e Letras em meados da dcada

    6 Idem. p.79 7 BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. Traduo de Gilda de Mello e Souza 3 edio; So Paulo: Ed. Nacional, 1979. p.78 8 Idem. p.81

  • de 1940, mas no temos o seu contexto. Para que esta resenha no caia em profunda redundncia,

    nada mais adequado do que esmiuar as ideias centrais da teoria contrastando com as coisas que o

    autor presenciou em vida, pois como observa o prprio autor, esse o verdadeiro intuito da

    sociologia como saber. Acaso se esquea, o socilogo incauto deveria saber que nenhuma dessas

    formulaes estaria postas se no fossem suas controvrsias, seu objetivo e seu pblico, ou seja, o

    universo que a cerca.

    Foi em 1938 que Roger Bastide chegou ao Brasil a convite da Faculdade de Filosofia

    Cincia e Letras, recm-criada na poca, para ocupar a cadeira que antes pertencia a Claude Lvi-

    Strauss em ctedra de sociologia. Conta Gilda de Mello e Souza das lembranas de quando era

    aluna que o professor Roger Bastide assim que chegou a So Paulo encontrou um cenrio cada vez

    mais surpreendente, de uma cidade com espao preponderantemente vertical. Uma situao at

    ento imprevista, que entrava cada vez mais em contradio com a sensibilidade horizontal de

    outrora, tal qual a descrita por Gilberto Freyre na caracterstica do complexo Casa-Grande-e-

    Senzala ou Sobrados-e-Mucambos. Como fez a cidade para acomodar as imposies novas da

    arquitetura a velha mentalidade? E quais as consequncias dessa acomodao9? Pergunta Gilda de

    Mello Souza, filsofa h muito graduada e professorando na mesma instituio que recapitula em

    memria.

    Respondendo aqui brevemente a essas perguntas, poderamos dizer que a autora explicita

    como a arquitetura da cidade de so Paulo na contemporaneidade sofreu transformaes as mesmas

    que se repetem na estrutura da de sua sociedade:

    O prdio de apartamentos repete a organizao horizontal da casa-grande,

    distribuindo no mesmo andar os cmodos destinados a patres e empregados; situa

    as acomodaes dos domsticos ao lado da cozinha, fazendo-as ocupar um espao

    prximo e dependente. O arranha-cu , assim, uma espcie de grande monstro

    anacrnico, que se increve na paisagem dinmica a velha e retrgrada estrutura

    patriarcal10.

    No entanto o que podemos encontrar de pertinente nessa impresso que a esttica da qual

    fala a autora e da qual Bastide no deixar de abordar por todos os lados sob a perspectiva da

    sociologia da arte, da arte barroca ou mesmo nas representaes presentes na sociologia das

    religies africanas posteriormente. que o autor se empenhou nos trabalhos de esttica brasileira

    9 SOUZA, Gilda de Mello. Captulo I. A Esttica rica e a Esttica pobre dos professores franceses. In: Exerccios de Leitura. Coleo Esprito Crtico. Duas Cidades. So Paulo: Editora 34, 2009. p.23. 10 Idem. p.24.

  • em agir diferente do que comumente se faria na esttica europeia, substituindo os saltos as vezes

    infundado das hipteses para aprofundar na pesquisa minuciosa das fontes: documentos de

    arquivos, de confrarias religiosas, das Atas das Cmaras locais enfim, por toda uma tarefa

    modesta e paciente que podia esclarecer uma srie de problemas11

    . Em suma, o carter que Gilda

    definiria para atividade intelectual que Roger Bastide exerceu no perodo em que esteve no Brasil,

    estaria em dissonncia com a que outros professores franceses como Claude Lvi-Strauss ou Jean

    Maug estabeleceram a partir da riqueza esttica europeia herdada.

    Era natural pois que, chegando a um pas sem grande tradio cultural, tivesse se

    dedicado elaborao de uma esttica pobre usando o termo em analogia com o

    que hoje se costuma designar por arte pobre, isto , uma esttica que voltando as

    costas para os grandes perodos e as grandes manifestaes artsticas, fosse

    desentranhar o fenmeno esttico do cotidiano, dos fatos insignificantes s sem foros

    de grandeza, que compem, no entanto, o tecido de nossa vida12.

    Concluindo, portanto, o que propomos ensaiar ao longo dessa obra, Arte e Sociedade, assim

    como sua repercusso e advento, consistindo o nosso intento em enveredar pelos argumentos que

    Roger Bastide discorreu sobre a sociologia da arte, que na sua poca nada mais era do que um

    singelo projeto, pouco audacioso, pouco abordado, mas que ainda assim no fugia a sua

    competncia e tinha sua importncia ao desvendar vrios fragmentos pouco observados, at ento,

    de uma sociologia recm-explorada.

    11 SOUZA, Gilda de Mello. Captulo I. A Esttica rica e a Esttica pobre dos professores franceses. In: Exerccios de Leitura. Coleo Esprito Crtico. Duas Cidades. So Paulo: Editora 34, 2009. p.27 12 Idem. p.41.

  • Referncias Bibliogrficas

    BASTIDE, Roger. Arte e Sociedade. Traduo de Gilda de Mello e Souza 3 edio; So Paulo: Ed. Nacional, 1979.

    SOUZA, Gilda de Mello. Captulo I. A Esttica rica e a Esttica pobre dos professores franceses. In:

    Exerccios de Leitura. Coleo Esprito Crtico. Duas Cidades. So Paulo: Editora 34, 2009.

    MICELLI & MATTOS; Sergio, Franklin de. Gilda, A Paixo Pela Forma. (a dignidade do

    feminino, ensaio de Marilena Chau).