Arte - Enciclopedia

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Arte: do caos ao diferenciado * Jotônio Vianna O homem moderno é desesperadamente um produtor e consumidor de imagens, de símbolos, de informações. O grande desafio aberto a nós, indivíduos da atualidade, é descobrir meios de como filtrar o necessário e ignorar o desnecessário, descobrir como sair da rotina da percepção comum e estar apto a distinguir o significado do insignificativo, o essencial do inessencial. No mergulho da procura à resposta, podemos dedicar-nos completamente à Ciência, à Filosofia ou viver dentro de uma redoma de percepções artísticas limitadas. Todas as possibilidades, em separado, são plausíveis, mas também são incompletas. Tanto a Ciência quanto a Filosofia são lógica ou experiência. A Arte - entendida como uma concepção universal e holística - é consciência, intuição e percepção. Porém, a inspiração, consciência e percepção são tão necessárias à poesia quanto à Ciência e à Filosofia. Elas se complementam, ao invés de se contraporem. Todas refletem e traduzem aspectos diferentes, porém intercomplementares da consciência humana, e só quando valorizadas e tomadas em conjunto nos dão uma ideia completa do mundo. Ou seja, Arte, Ciência e Filosofia não têm fronteiras definidas. Arte, Ciência e Filosofia são produtos e elementos de uma mesma dinâmica organizacional, seja ela material, psico ou social. Elas se originam das experiências acumuladas e transbordam, como numa erupção vulcânica, num soluço vulcânico, dos roncos das veias da consciência e da essência do ser humano para a materialidade orgânica do ser e do estar.

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Arte: do caos ao diferenciado* Jotnio Vianna

O homem moderno desesperadamente um produtor e consumidor de imagens, de smbolos, de informaes. O grande desafio aberto a ns, indivduos da atualidade, descobrir meios de como filtrar o necessrio e ignorar o desnecessrio, descobrir como sair da rotina da percepo comum e estar apto a distinguir o significado do insignificativo, o essencial do inessencial.No mergulho da procura resposta, podemos dedicar-nos completamente Cincia, Filosofia ou viver dentro de uma redoma de percepes artsticas limitadas. Todas as possibilidades, em separado, so plausveis, mas tambm so incompletas. Tanto a Cincia quanto a Filosofia so lgica ou experincia. A Arte - entendida como uma concepo universal e holstica - conscincia, intuio e percepo. Porm, a inspirao, conscincia e percepo so to necessrias poesia quanto Cincia e Filosofia. Elas se complementam, ao invs de se contraporem. Todas refletem e traduzem aspectos diferentes, porm intercomplementares da conscincia humana, e s quando valorizadas e tomadas em conjunto nos do uma ideia completa do mundo.Ou seja, Arte, Cincia e Filosofia no tm fronteiras definidas. Arte, Cincia e Filosofia so produtos e elementos de uma mesma dinmica organizacional, seja ela material, psico ou social. Elas se originam das experincias acumuladas e transbordam, como numa erupo vulcnica, num soluo vulcnico, dos roncos das veias da conscincia e da essncia do ser humano para a materialidade orgnica do ser e do estar.Elas podem autodenominar-se umas s outras simbioticamente sem prejuzo nenhum dos significados inerentes s suas especificidades mais acadmicas, etimolgicas ou lexicogrficas. Mas a definio de Arte mgica, traz uma aurola incomparvel, toca mais fundo.Quando se diz: A verdadeira Arte..., parece que se pronuncia a senha para as incurses mentais jamais admitidas por qualquer outra definio abstrata do raciocnio humano. Quando o ser humano descobre frmulas para criar ou para mudar algo est fazendo arte, quando ele filosofa est fazendo arte, quando ele se expressa sob qualquer forma est concretizando, formatando o produto de suas experincias, est dando vida aos seus pensamentos, aos seus raciocnios, s suas abstraes.A verdadeira Arte se sobrepe ao momento histrico que a gerou e exerce o fascnio permanente. E embora sofra as condies de seu tempo e represente as ideias e aspiraes histricas de um momento nico, ela, nos seus instantes de criao, e aps, abre um espao impreenchvel na corrente do tempo.Tornada viva atravs dos smbolos, esttica e valores, a Arte o mpeto da criao, da renovao e da perpetuidade dos sentimentos morais e transcendentais, dos desejos utpicos, da descoberta do desconhecido. O traado e a significao das palavras desvairadas, dos gestos e atos produzidos pela loucura de olhos abertos do artista podem ser traduzidos pela palavra magia, mas no a magia simbitica e primitiva entre a religio, a cincia e arte, fundidas e latentes em nossos ancestrais, mas a magia do tornar possvel o impossvel. A Arte no s aprisiona numa teia universal e secular os gemidos insatisfeitos contidos no limiar da conscincia, ou faz brotar sobre uma tela branca, sobre o vazio do papel ou sobre uma massa amorfa o impulso nervoso que transforma o nada em uma imensido de pensamentos, de formas, que opem uma lei de perenidade partida descontrolada do tempo, mas tambm, progressivamente, serve ao papel esclarecedor das relaes sociais, ao papel conscientizador e iluminista dos homens enquanto seres sociais, ajudando-os a reconhecerem-se a si prprios e a reconhecer em seus desejos a possibilidade de transformar e tornar possvel uma outra realidade social mais concernente aos seus anseios.E aqui o artista descobre a grandeza do homem e d forma artstica a seus conflitos e s suas paixes, seus fragmentos, indo ao reservatrio subconsciente de formas arquetpicas e dos desejos insatisfeitos, desentranhando a prpria psique, para compor, atravs da simbologia, dos signos, sua real natureza.O artista busca sofregamente expor sociedade de seu tempo suas concepes crtico-psquicas e crtico-sociais do mundo material e imaterial que o compem e o rodeiam. Ele busca incessantemente um discurso plstico-simblico que seja inteligvel e atinja plenamente seus objetivos de ser reconhecido em suas pretenses, de se fazer entender e de se fazer comunicar. Mas tambm, irnica e dialeticamente, admite a existncia de uma oposio entre ele, que cria, e aquele que o reconhece.A criao verdadeira, a linguagem revolucionria, nasce do autodidatismo. O reconhecimento tradio, a tradio academicismo. O academicismo no renova, s perpetua o conhecido. S fora do conhecido h revoluo, h linguagem nova. Porm, para haver linguagem nova preciso existir o conhecido, o acadmico, a tradio. Por isso que no caso do artista, a sua aceitao e reconhecimento pela sociedade uma contradio. A aceitao, o reconhecimento, traz em si um componente de perda de valor de seu trabalho, pois o aval da unanimidade social sinnimo de lugar-comum.O homem s cria quando se revolta e provoca a revolta, quando fustiga a banalidade, quando quebra as correntes que o prendem tradio, s regras e s ideias pr-concebidas... quando provoca o caos.O artista s cria o mundo da Arte depois que destri o comumente aceito. Ele inventa, estabelece diferenas e semelhanas, como na crena cosmognica onde Deus criou o prprio mundo a partir do disforme, do indiferenciado... do caos.Plato declarou que os poetas, os artistas, deveriam ser expulsos da Repblica porque todo poeta, todo artista, em essncia, um ser inconformado com o estabelecido. O artista a antena das emoes humanas que surgem dos conflitos, de um momento mpar, de um espao, da terra, de um pedao de papel branco, vazio de alguma coisa que passa, perpassa e trespassa. O verdadeiro artista busca a liberdade anrquica em sua totalidade. No a que lhe concedem, mas a que acredita que possa ter. Ele um tensor: coloca as coisas em movimento, provoca o movimento atravs de tenses contraditrias, cria a polmica... estabelece o caos. Ele um deus que do indiferenciado do caos, da desordem, da ausncia completa de regras ou leis faz surgir e concretizar-se a lgica da cosmogonia. Separa a luz das trevas, o cu da terra, as guas da parte seca e o dia da noite. Cria, ento, o diferenciado humanista, onde as imagens, os conflitos, as paixes humanas so semelhantes.O homem-artista, encarnado pelo faiscar da vontade de interferir na natureza material humana, encontra e projeta a identificao no prprio homem. Atravs da Arte o indivduo encontra a plenitude, apodera-se e participa das experincias do outro, sai do aprisionamento egosta do quadro da vida pessoal, das possibilidades transitrias e limitadas de uma nica personalidade e vai para a existncia mais verdadeiramente humana, mais coletiva e mais social. atravs da Arte que o ser humano toma conscincia de que ele no basta a si prprio, que da sua natureza, como ente de carter essencialmente grupal, o desejo intrnseco de ser mais do que , que nele existe um sentimento latente de se desenvolver e completar, e que isso s possvel quando partilha e participa das experincias alheias...A sociedade conformista, sistmica, tem medo do artista, tem medo do artista-cientista, tem medo do artista-filsofo, defende-se, agarrando-se s tradies, s regras, ao estabelecido. Porm, intrinsecamente, tem conscincia de que sem os artistas, sem as incurses mentais por eles patrocinadas, a metamorfose da vida simplesmente para, morre...Por isso, a aqueles que fizeram, fazem e divulgam a Arte, ou os que encarnaram suas sublevaes do status quo a nossa referncia pela magnanimidade das tentativas e aplausos pelas concretizaes na composio, decomposio e instituio do caos.A declarao de Plato, acima, descontextualizada para servir noo de caos do texto, pois na verdade foi Plato um dos primeiros a defender a tese de que a arte seria a verdadeira base da educao... O delrio a que me impus submergir na reflexo acima foi inspirado nas obras de Herbert Read, Ren Huyghe, Ernest Fischer, Harold Osborne e outros intelectuais e crticos de arte do sculo XX. Na verdade, toda a salada mental que aqui se encerra uma espcie de assemblage (termo grego introduzido na arte por Jean Dubuffet: mistura de objetos e materiais diversos) do pensamento bruto e literal dos autores citados, a quem reverencio e peo licena.

* Jotnio Vianna jornalista