ARTE oANEL DO NIBELUNGO, - palasathena.org.br 1982 N.28/O ane… · 26 THOT. Sigfrido, Gutruna e...

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ARTE o ANEL DO NIBELUNGO, de Wag:ter 4ª Parte o Crepúsculo dos Deuses É noite. Encontramo-nos à vista do bar- ranco que conduz ao abismo da Mãe- -Terra. Nele, as três Nornas ou Parcas som- brias, filhas da primordial Ur-Vala, tecem e cortam.cada uma por seu turno, os fios de ouro de todas as existências. O tema au- gusto da natureza eterna enche de mistério aquele ambiente, raiz universal de tudo quanto vive. Como ali não há passado nem futuro, deslizam, uma após a outra, todas as peripécias que deram lugar ao Anel do Ni- belungo, ou seja: a luz astral, os anais akási- cos, onde está escrito o drama da vida, desde que a Árvore do Mundo fincara suas raízes no lllus da Matéria Prima, erguendo sua copa até o infinito do Espírito Su- A idéia da redenção que emens da cena final de O Cre- púsculo dos Deuses evolui em direçlJo a uma expresslJo mais mlstica e mais religiosa na ópera Persifal (na foto, cenário do primeiro ato). premo e abrigando sob seus ramos e raizes todas as criaturas, até o momento do crime de Alberico. Ao chegar aqui, po- rém, desgastado de horror pela recorda- ção daquele filho do Odio e da Inveja, que maldisse o próprio Amor, o fio se rompe. A ciência das sibilas se dissipa com a luz do nascente dia, e as Nornas, consterna- das, retornam ao seio de sua mãe. En- quanto isso, Brunhilda e Sigfrido saem da gruta de seus amores e, estando ele dis- posto a empreender novas façanhas prote- gido por seu elmo que o torna invisível, como prova de fidelidade deixa a Bru- nhilda o mágico Anel, para protegê-Ia, em sua solidão de fada, naquele ígneo e en- cantado recinto. A cena anterior se desvanece; estamos todos na terra dos vulgares mortais, na morada dos poderosos Gibichingos, entre duas colinas junto ao Reno. Seus reis são Gunther e sua irmã Gutruna. Ao lado, está Hagen, irmão bastardo de ambos, como fi- lho que é da mesma mãe e do perverso Al- berico, que engendrou Hagen sem amor, com o fim exclusivo de obter, através de tal filho, um novo instrumento de vingança contra os deuses e heróis, apoiados por to- dos aqueles infelizes e ignorantes que inte- gravam o povo de Gibich, entre os dólmens e menires, consagrados à servil adulação religiosa a Wotan, Donners e Frika. Em Gunther e Hagen, espécie de Esaú e Jacó dos Eddas, está representada toda a raça humana vulgar, alguns ignorantes e suceptíveis, outros perversos e bastardos instrumentos dos elementais do mal. 24 THOT

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ARTE

o ANEL DO NIBELUNGO,de Wag:ter

4ª Parte

o Crepúsculo dos DeusesÉ noite. Encontramo-nos à vista do bar-

ranco que conduz ao abismo da Mãe--Terra. Nele, as três Nornas ou Parcas som-brias, filhas da primordial Ur-Vala, teceme cortam.cada uma por seu turno, os fios deouro de todas as existências. O tema au-gusto da natureza eterna enche de mistérioaquele ambiente, raiz universal de tudoquanto vive. Como ali não há passado nemfuturo, deslizam, uma após a outra, todas asperipécias que deram lugar ao Anel do Ni-belungo, ou seja: a luz astral, os anais akási-cos, onde está escrito o drama da vida,desde que a Árvore do Mundo fincara suasraízes no lllus da Matéria Prima, erguendosua copa até o infinito do Espírito Su-

A idéia da redenção que emens da cena final de O Cre-púsculo dos Deuses evolui em direçlJo a uma expresslJomais mlstica e mais religiosa na ópera Persifal (na foto,cenário do primeiro ato).

premo e abrigando sob seus ramos e raizestodas as criaturas, até o momento docrime de Alberico. Ao chegar aqui, po-rém, desgastado de horror pela recorda-ção daquele filho do Odio e da Inveja, quemaldisse o próprio Amor, o fio se rompe.A ciência das sibilas se dissipa com a luzdo nascente dia, e as Nornas, consterna-das, retornam ao seio de sua mãe. En-quanto isso, Brunhilda e Sigfrido saem dagruta de seus amores e, estando ele dis-posto a empreender novas façanhas prote-gido por seu elmo que o torna invisível,como prova de fidelidade deixa a Bru-nhilda o mágico Anel, para protegê-Ia, emsua solidão de fada, naquele ígneo e en-cantado recinto.

A cena anterior se desvanece; estamostodos na terra dos vulgares mortais, namorada dos poderosos Gibichingos, entreduas colinas junto ao Reno. Seus reis sãoGunther e sua irmã Gutruna. Ao lado, estáHagen, irmão bastardo de ambos, como fi-lho que é da mesma mãe e do perverso Al-berico, que engendrou Hagen sem amor,com o fim exclusivo de obter, através detal filho, um novo instrumento de vingançacontra os deuses e heróis, apoiados por to-dos aqueles infelizes e ignorantes que inte-gravam o povo de Gibich, entre os dólmense menires, consagrados à servil adulaçãoreligiosa a Wotan, Donners e Frika.

Em Gunther e Hagen, espécie de Esaú eJacó dos Eddas, está representada toda araça humana vulgar, alguns ignorantes esuceptíveis, outros perversos e bastardosinstrumentos dos elementais do mal.

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Numa conversa íntima com seus irmãos, eorgulhoso de seu poderio terrestre, Hagendiz que apesar de grande e invejável suaglória não está completa, pois sabe deimensos tesouros ainda não conquistados;há também o fato de ele ainda não ter umaçompanheira, e tampouco Gutruna despo-sou alguém. Fala ainda de uma mulherperfeita, chamada Brunhilda, cuja moradaé uma montanha rodeada de chamas, eque ninguém poderia conquistá-Ia a nãoser o predestinado Sigfrido, um welsungo,o matador do dragão Neidhole que cui-dava do tesouro dos nibelungos, tesourobastante para torná-lo um senhor domundo.

Nisso ressoa alegre a tocata da trompade Sigfrido. O herói vem com sua barcaReno acima, navegando contra a correntecomo só ele pode fazer. Então, Hagen ter-mina recomendando a Gunther que se es-force por fazer o herói apaixonar-se porGutruna. Para tanto, bastará fazê-lo tomarde um só gole aquela beberagem mágicado esquecimento.

Sigfrido chega à margem do rio, comseu cavalo Grane, cedido por Brunhilda, oúnico que esta conservara do perdido es-plendor de valquíria. A trompa do heróidesperta as chorosas filhas do Reno. Gun-ther e Hagen recebem-no pomposamente,conduzindo-o depois até o imponente palá-cio. Gutruna, púdica e ao mesmo tempoprendada, se oculta. Ao chegarem, Sig-frido propõe a Gunther o dilema de luta-rem ou tornarem-se amigos, diante do queeste se oferece como incondicional aliado.Através do pacto de eterna fraternidade,unem-se estes irmãos de armas, bebendouma taça de vinho na qual foram previa-mente mesclados os sangues de suas veias.Gutruna, então, apresenta-se ruborizada eterna, trazendo ao herói outra taça na qualHagen havia vertido algumas gotas do li-cor do Leteo, o rio das águas do esqueci-mento.

O efeito é instantâneo; Sigfrido, quebrindara por Brunhilda, sua amante,esquece-a no exato momento que retira ataça dos lábios, ficando cegamente apaixo-nado por Gutruna. O jovem declara impe-tuosamente seu amor; e como, ao pergun-tar se seu novo irmão tinha companheira,

Cenário do segundo ato de O Crepúsculo dos Deuses:Bevreuth, 1936,

este lhe respondera que não, pois a únicamulher que poderia fazê-lo feliz habitavauma montanha inacessívei, rodeada pelaschamas, Sigfrido propõe então conquistá--Ia em troca da mão de Gutruna, sem sa-ber que quem iria conquistar era nadamais nada menos que o seu nume, a antesadorada Brunhilda.

Os dois guerreiros terminam de selar suafraternidade com o pacto do sangue: fin-cam as espadas em seus respectivos bra-ços, deixando correr o sangue na taça devinho que bebem em conjunto. Hagen,que se encontra entre ambos, sem quererparticipar do juramento por sua condiçãoinferior de bastardo, rompe a taça com suaespada, enquanto Sigfrido e Gunther es-treitam fraternalmente as mãos e partemrumo às margens do rio, de onde Sigfridosegue em demanda da projetada con-quista. Hagen, ao longe, saboreia infame ofruto cruel de sua vileza, digna da raça ni-belunga.

Brunhilda, desconhecendo totalmentetudo o que acontece, encontra-se sentadaà entrada da gruta,contemplandoabsorta ebeijando mil vezes a prenda do seu amor: oanel de Sigfrido. Nesse momento, ressoampelos ares os relinchos bélicos da valquíriaWaltraute, que chega apreensiva. Cor-rendo o risco de provocar a cólera do pai,vem para prevenir sua infeliz irmã do imi-nente perigo que a ameaça: se não devol-ver prontamente às desoladas filhas doReno o maldito anel, este virá a ser a causade todos os males e ruínas que ameaçamos deuses e o mundo. Enamorada e feliz,alheia por completo à desgraça que se avi-zinha, esquecendo-se de tudo quanto sabiaem sua condição anterior de virgem--guerreira, Brunhilda nega-se absoluta-

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anunciam-lhe fatidicamente que muito embreve uma mulher gloriosa, verdadeira re-dentora do mundo e que sabe compreen-der melhor do que ele os decretos do Des-tino, irá restituir-lhes o maldito anel,sendo tudo isso inevitável, pois ele conhe-cera as ruínas da lança Wotan, que rom-pera com sua espada.

As ondinas desaparecem no rio, e logoem seguida Gunther, Hagen e seus compa-nheiros de caça encontram finalmente Sig-frido. O guerreiro narra-lhes sua infrutí-fera corrida e seu encontro com as ondi-nas. O bastardo Hagen, que já havia pre-meditado por completo um sombrio planode morte para o herói, pergunta-lhe se écerto, como se afirma, que ele entende ocanto das aves. O jovem responde queesqueceu-se do canto dos pássaros desdeque escutou o das mulheres. Gunther, en-tretanto, simples e bom, e além disso total-mente alheio à traição do bastardo, é to-mado de uma tristeza avassaladora, semsaber por quê. Sigfrido, para elevar o es-tado de ânimo de seu irmão de armas, re-nova com ele o pacto de sangue, derra-mando na taça de vinho seu sangue gene-roso, que transborda e se verte na mãe--terra. Querendo distraí-l o ainda mais, co-meça a contar-lhe sua história de heroís-mos, desde que o gnomo Mimo o criou,até que matou o monstro Fafner e tambémo gnomo traidor. Porém no momento emque iria comentar a descoberta de Bru-nhilda na rocha encantada, circundadapor chamas, parte-se o fio da narraçãoporque lhe faltam as recordações anterior-mente apagadas pelo encantamento deHagen. Este, porém, intervém, nesse mo-mento, e oferece-lhe uma segunda taça emque colocara o suco de outras ervas, propi-cias a despertar até as mais longínquaslembranças. Sigfrido deixa assim sua con-dição de esquecido e readquire a clarivi-dência perdida, e reenceta o curso de suanarrativa, a respeito da virgem Brunhilda,seu descobrimento, a cena do recíprocoamor entre ambos e a história do anel.Bem longe estava de imaginar que com ta-manhas revelações acarretava para simesmo a morte inevitável.

Ante semelhante imprudência o castigonão se faz esperar muito. A revelação queacabava de fazer sobre a já, prometida deGunther, seu irmão de armas, era con-trária ao pacto de sangue que acabavamde ratificar, e com isto se fazia credor demorte por perjúrio. Em dado momento,saem do matagal voando e grasnando dois

mente a renunciar ao anel. A valquíriaWaltraute retorna consternada, voandopara o Walhalla, enquanto o cego Sígfridocruza impávido as gigantescas chamas pro-tetoras, ocultando sua cabeça sob o elmomágico, por força do qual assumira a pró-pria forma e semblante de Gunther. Hor-rorizada ante essa agressão ao seu pudorpor parte de um desconhecido temerário,Brunhilda resiste através dos mágicos po-deres do anel. Porém, o fingido Gunther oarranca e penetra com ela na gruta, invo-cando sua espada Nothunga como símbolorepresentativo do respeito com que vai

, tratar no leito e em toda parte o pudor daformosura roubada de Brunhilda (uma es-pada colocada no leito entre um homem euma mulher poderia, com efeito, .assegurara esta o mais perfeito respeito do cava-leiro, acima de toda paixão, conforme asaugustas leis da cavalaria, o que, em nossaépoca de grosseiro materialismo, não con-seguimos entender).

A traição de Hagen, o filho bastardo deAlberico e digno êmulo de seu pai, co-meça, como se vê, a dar seus frutos e, 'as-sim, na simbologia desta obra wagne-riana, a Taça de Hagen vence a Espada.

Perseguindo certo dia um urso que selhe escapou durante a caça, Sigfridodepara-se, por entre um bosque e umabrupto promontório de rochas junto aoReno, com as três formosas ondinas, filhasdo Pai-Reno. Estas, como sempre,mexiam-se sugestivas e tentadoras à su-perfície das águas, sob a pálida luz da Lua,lamentando-se da triste noite que continuareinando nos profundos domínios aquáti-cos, de vez que o ouro sagrado havia dei-xado de ser o Sol daqueles abismos. Cheiasde ansiosa esperança, invocam sem cessarà casta Diana para que lhes envie o heróitanto tempo esperado, o qual lhes restitui-ria o ouro. Travam então sugestiva con-versa com Sigfrido, que perdera a pista dourso perseguido. Inicialmente com do-çura, depois em tom ameaçador, pede-lheo trio a devolução do anel, para que sejaafastada a maldição de Alberico.

O herói, desconfiado a princípio, resisteem devolver-lhes o anel, pois nele vê osímbolo de Amor, conquistado pelo Des-tino como herança do mundo. Em quepese não discernir claramente seu inapre-ciável valor, já que bebera da taça do es-quecimento, não se decide a renunciarnem a maldizer o Amor, paralizado com astravas de seus imortais inimigos: o temor eo medo. As ondinas, já desesperadas,

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Sigfrido, Gutruna e Gunther, personagens de "O Cre-púsculo dos Deuses".

fatídicos corvos, as aves de mau agouro,que revoluteiam sobre a cabeça de Sig-frido; quando o herói se volta paracontemplá-Ios, Hagen, o traidor, ataca-opelas costas vingativamente, sem queGunther pudesse impedi-Io.

Sigfrido, o herói sem par, o redentor domundo, morre assim entre os tristíssimosacordes da mal chamada Marcha Fúnebre,que em verdade representa a solene mar-cha do triunfo sobre a morte, com as nos-tálgicas entradas do Canto da Primavera.Ela e os subseqüentes Lamentos deBrunhilda são os temas que se apresentam,enquanto os seguidores de Gunther con-duzem o cadáver sobre o escudo em dire-ção à montanha.

Gutruna, desolada, recebe do próprioHagen a notícia da morte de seu amadosob as garras de um feroz javali. Gunther,por sua intuição, percebe a perfídia de Ha-gen e a inocência de Sigfrido. Maldiz ocrime daquele bastardo que se vangloriapublicamente de ser o assassino vingador ede ter, portanto, o direito de possuir oanel. No instante, porém, em que vaiarrancar-lhe dos dedos, aparece Brunhil-da,radiante como uma nova deusa. Todos,então, maldizem o bastardo, e Brunhildamanda erguer uma pira funerária seme-lhante a um trono, retira o rutilante anel e,ateando fogo na pira, pronuncia, comacentos de Sibila iluminada pelo entu-siasmo da sua já consciente divindade, amagna profecia: a divinização do Homemredimido, a queda dos deuses, a devoluçãodo anel fatal às ondinas primordiais e achegada da aurora de um novo dia apo-calíptico, no qual a eterna tirania dos deu-ses sobre os homens já não existirá sobre a

Terra libertada e apta a inaugurar a novaIdade de Ouro ...

Em seguida, monta de um salto o seu fielcavalo Grane, e ambos se lançam sobre aardente pira que os consome e dissolve oanel maldito, restituindo os seus puríssi-mos elementos ... O fogo cresce, cresce,assume proporções gigantescas, e atingefinalmente as alturas do Walhalla, cujo pa-lácio de orgulho começa a arder atédesfazer-se em cinzas. As águas sagradasdo Reno, o Pai-Reno eterno, dilatando-sepelos âmbitos do Universo, ascendem gi-gantescas até apagar no seio de suas ondasos restos de todo aquele incêndio cós-mico ... As filhas do rio avançam transfigu-radas e solenes recolhendo de novo o ouropurificado; duas delas afogam entre seusbraços o infame Hagen, que, enlouque-cido por ver escapar sua presa, lança-se àságuas, para recolher o anel. Floshilda,a irmã maior das ondinas, radiante dejúbilo, qual divina Custódia, levanta noalto o ouro reluzente, abafando com os úl-timos acordes da orquestra o tema glo-rioso de Sigfrido, o da Maldição de Albe-rico. Surge então o canto da Majestade doWalhalla, o rutilar do Fogo Encantado, odulcíssimo Canto de Woglinda e o amargoCrepúsculo dos Deuses, e finalmente ocanto inefável da Redenção pelo Amor, sema qual retornaria muito em breve ao Caostodo o edifício do mundo ...

EM/LlO MOUFARRIGE

Baseado no livro "vVagner, Mitólogo y Ocul-tista", de Mario Roso de Luna; Editorial Giem,Buenos Aires, 1 958.

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