Artigo 20

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Embora a produção da bombaatômica seja sempre lembradacomo exemplo da ciência a ser-viço da destruição, há outroigualmente relevante: o desen-

volvimento das teorias eugênicas e seuaproveitamento por movimentos raciais,culminando no Holocausto nazista naSegunda Guerra Mundial.A maioria dos geneticistas do século XXI,quando a genética é assunto ro t i n e i ro namídia, pouco ou nada sabe sobre a históriada eugenia. Conhecê-la, porém, é funda-mental em face de situações concretas daatualidade, como fertilização in vitro, diag-nósticos pré-natal e pré-implantação,a b o rto terapêutico e clonagem re p ro d u-t i va. Em vista das preocupações sobre aemergência de uma nova eugenia, é impor-tante re ver o passado e aprender com ose r ros cometidos.

O MOVIMENTO EUGÊNICO Quando em Theorigin of species, de 1859, Da rwin pro p ô sque a seleção natural fosse o processo desobrevivência a governar a maioria dos seresv i vos, importantes pensadores passaram adestilar suas idéias num conceito novo – odarwinismo social. Esse conceito, de que na luta pela sobre v i-vência muitos seres humanos eram não sómenos valiosos, mas destinados a desapare-c e r, culminou em uma nova ideologia demelhoria da raça humana por meio da ciên-cia. Por trás dessa ideologia estava sir Fran-

cis J. Galton, cujo nome é associado ao sur-gimento da genética humana e da eugenia.C o n vencido de que era a natureza, não oambiente, quem determinava as habilidadeshumanas, Galton dedicou sua carreira cien-tífica à melhoria da humanidade por meiode casamentos seletivos. No livro In q u ir i e sinto human faculty and its deve l o p m e n t, de1883, criou um termo para designar essanova ciência: eugenia (bem nascer). No início do século XX, quando as teoriasde Da rwin eram amplamente aceitas naInglaterra, havia grande preocupação q u a n-to à “degeneração biológica” do país, pois odeclínio na taxa de nascimentos era muitomaior nas classes alta e média do que naclasse baixa. Para muitos, parecia lógicoque a qualidade da população pudesse seraprimorada por proibição de uniões inde-s e j á veis e promoção da união de parc e i ro sbem-nascidos. Foi necessário, apenas, quehomens como Galton popularizassem aeugenia e justificassem suas conclusõescom argumentos científicos apare n t e-mente sólidos.As propostas de Galton ficaram conhecidascomo “eugenia positiva”. Nos EUA, porém,elas foram modificadas, na direção da cha-mada “eugenia negativa”, de eliminação dasfuturas gerações de “geneticamente incapa-ze s” – enfermos, racialmente indesejados eeconomicamente empobrecidos –, pormeio de proibição marital, esterilizaçãocompulsória, eutanásia passiva e, em últimaanálise, extermínio.

Como salienta Edwin Black no livro Ag u e r ra contra os fra c o s , “os EUA estava mprontos para a eugenia antes que a eugeniaestivesse pronta para os EUA”. O aumentono número de imigrantes no final do séculoXIX levou o grupo dominante no país, osprotestantes cujos ancestrais eram oriundosdo norte da Europa, a buscar motivos parae xc l u s ã o. Encontraram terreno fértil napseudociência da eugenia.

IMIGRANTES Os eugenistas usaram os últi-mos conhecimentos científicos para “p ro-va r” que a hereditariedade tinha papel-chave em gerar patologias sociais e doença.Os imigrantes tornaram-se alvos fáceis dedefensores dessa nova “ciência”, que empre-garam os achados do movimento eugênicopara construir sua imagem como pessoasdeformadas, doentes e depravadas, encon-trando eco em seus contemporâneos nasciências sociais e na biologia, entre os quaisa eugenia propagou-se como algo conside-rado perfeitamente lógico.O racismo dos primeiros eugenistas nort e -americanos não era contra não-brancos,mas contra não-nórdicos, e as doutrinas dep u reza e supremacia raciais eram elabora-das por figuras públicas cultas e re s p e i t a-das. Quando as teorias de Mendel chega-ram aos EUA, esses pensadores influentesa c rescentaram um verniz científico ao ódioracial e social.O líder do movimento eugenista dos EUAfoi Charles Davenport, que dirigia o labora-

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DO HOLO CAU STO NAZISTA ÀN OVA EUGENIA NO SÉCU LO XXI

Andréa Guerra

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tório de biologia do Brooklin Institute ofArts and Science, em Long Island, instaladoem Cold Spring Ha r b o r. Em 1903, obteveda Carnegie Institution o estabelecimentode uma Estação Biológica Experimental nolocal, onde a eugenia seria abordada comociência genuína. Em seguida, juntou-se aosc r i a d o res de animais e especialistas emsementes da American Breeders Associa-tion, muitos deles convencidos de que oconhecimento mendeliano sobre gado eplantas era aplicável a seres humanos.

A N T EC E D E N T ES GENÉTICOS O próximopasso de Da ve n p o rt foi identificar os qued e veriam ser impedidos de se re p ro d u z i r.Em 1909 criou o Eugenics Re c o rd Of f i c epara registrar os antecedentes genéticos dosn o rte-americanos e pressionar por legisla-ção que permitisse a pre venção obrigatóriade linhagens indesejáveis. Para isso, og rupo concluiu que o melhor método seriaa esterilização, e o estado de Indiana foi aprimeira jurisdição do mundo a intro d u z i rlei de esterilização coerc i t i va, logo seguidopor vários outros estados. Desde o início,porém, o uso de câmaras de gás estava entreas estratégias discutidas para eliminaçãodaqueles considerados indignos de vive r.Com o tempo, a eugenia passou a ser vistacomo ciência prestigiosa e conceito médicolegítimo, disseminada por meio de livro sdidáticos e instituições de instrução euge-nista. No primeiro Congresso Internacionalde Eugenia, em 1912, líderes de delegaçõesdos EUA e países europeus formaram oComitê Internacional de Eugenia, que, pos-teriormente, deu origem à Federação Inter-nacional de Organizações Eugenistas, cujaagenda política e científica era dominadapelos EUA, para onde eugenistas estrangei-ros viajavam para períodos de tre i n a m e n t oem Cold Spring Harbor.Na Alemanha, a eugenia nort e - a m e r i c a n a

i n s p i rou nacionalistas defensores da supre-macia racial, entre os quais Hi t l e r, quenunca se afastou das doutrinas eugenistas deidentificação, segregação, esterilização,eutanásia e extermínio em massa dos inde-sejáveis, e legitimou seu ódio fanático pelosjudeus envolvendo-o numa fachada médicae pseudocientífica. Não houve apenas extermínio em massa dejudeus e outros grupos étnicos. Em julho de1933, foi decretada lei de esterilização com-pulsória de diversas categorias de “d e f e i t u o-s o s” e, com o início da Segunda Gu e r r aMundial, os alemães considerados mental-mente deficientes passaram a ser mortos emcâmaras de gás. Médicos nazistas re a l i z a-vam experimentos em prisioneiros noscampos de concentração, e, em Au s c h w i t z ,Mengele dedicou-se ao estudo de gêmeospara investigar a contribuição genética aod e s e n volvimento de características nor-mais e patológicas – de 1.500 pares degêmeos submetidos a suas experiências,menos de 200 sobre v i veram.

A NOVA EUGENIA DO SÉCULO XXI A revela-ção das atrocidades nazistas desacreditou aeugenia científica e eticamente, e fez comque a palavra desaparecesse abru p t a m e n t edo uso. No entanto, a eugenia não desapare-ceu, mas se refugiou em muitos casos sob orótulo “genética humana”. O laboratório deCold Spring Harbor é dirigido hoje por umdos descobridores da estrutura de duplahélice do DNA, o geneticista James Watson,que vem propagando idéias claramenteeugênicas. Avanços científicos vêm sendod i recionados à identificação de “indesejá-ve i s”, como a utilização de exames quedetectam doenças genéticas por compa-nhias de seguro e planos de saúde e o uso debancos de DNA no controle de imigração.À medida que diminui o número de filhospor casal, pressiona-se para que sejam cada

vez mais perfeitos. Técnicas de diagnósticopré-natal permitem detectar bebês com pro-blemas genéticos, e embora a decisão sobreaborto terapêutico seja pessoal, difunde-se oconceito de que é cruel não levar em conta aqualidade de vida e que interrompê-la podeser um ato de amor. Os pais também sãolevados a priorizar a qualidade de suas pró-prias vidas. Como saber, porém, o que fazcom que a vida não mereça ser vivida ou nãomereça ser cuidada?

FERTILIZAÇÃO IN VITRO Num futuro pró-ximo, se a eugenia for além dos abortos tera-pêuticos para de fato projetar bebês que sebeneficiem de todos os avanços da genética,p rova velmente não fará sentido que a con-cepção ocorra da maneira tradicional, massim em clínicas de fertilização in vitro.No final de sua vida, Galton escre veu umromance chamado K a n ts a yw h e re, em qued e s c revia uma utopia eugênica. Após oexame de suas características genéticas, oshabitantes de K a n ts a yw h e re com materialgenético inferior eram destinados ao celi-bato em colônias de trabalho. Os que rece-biam um “c e rtificado de segunda classe”podiam se re p roduzir “com re s e rva s” e osbem qualificados eram encorajados a casarentre si. Em 1997, o filme Gattaca esboçavauma versão moderna de um paraíso eugê-nico em que a procriação ocorria por fertili-zação in vitro e só eram implantados em-briões sem defeitos genéticos. Comosalienta o geneticista Nicholas Gi l l h a m ,K a n ts a yw h e re e Ga tt a c a são lugares seme-lhantes e as questões éticas levantadas são asmesmas – a diferença está em um século deavanços tecnológicos.

Andréa Tre vas Maciel Gu e r ra, médicageneticista, é pro f e s s o ra titular do De p a rt a-mento de Genética Médica da Faculdade deCiências Médicas da Unicamp.

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