ARTIGO 5 O Constitucionalismo, A Relação Entre Os Poderes e a Postura Do Estado-juiz
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O constitucionalismo, a relação entre os poderes e a postura
do Estado-juiz
Wilba Lúcia Maia Bernardes*
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* Professora de Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG.
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1 - Traços iniciais do constitucionalismo e o aporte de novos direitos.
Bem o sabemos que a origem do constitucionalismo tem seus fundamentos
lançados na luta contra os governos injustos da Idade Média. A idéia inicial do
constitucionalismo que representa a noção de limitação ao poder, prende-se ao momento
histórico que marca a passagem do Estado absolutista para a o Estado de Direito e
assim, na sua previsão, temos a garantia dos governados em face dos governantes.
Nesta etapa inicial do constitucionalismo, podemos identificar a Constituição
como garantia dos limites estabelecidos ao exercício do poder e, para tanto, seria um
documento escrito que deveria conter duas técnicas que até hoje são consagradas nos
documentos constitucionais modernos: o princípio da separação de poderes e um elenco
de direitos individuais. Podemos afirmar que a Constituição representa o primado que a
lei, vista como produto da razão humana, assume neste momento, passando a ser
considerada o esteio, a segurança dos indivíduos. A idéia de liberdade negativa, apoiada
na noção de isonomia formal, dá sustentação à noção de estarmos vivenciando um
período de reconhecimento do homem não mais como súdito, mas como cidadão.
As técnicas consagradas por este Estado que se denominou Constitucional,
Liberal ou de Direito foram assumidas como regras absolutas1 e deveriam ser
compreendidas considerando todo o contexto do Séc. XVIII que foi, sem dúvida, a
época da consagração do iluminismo que parte da afirmação e identificação do ‘eu’.
Não sem razão, a postura requerida neste momento por parte do Estado é de
mínima intervenção e aos indivíduos é oferecido o livre jogo do mercado. O Estado
gerdame deve se abster de conter as potencialidades naturais do indivíduo que acorria
ao mercado para oferecer as suas ‘propriedades’.
Sendo uma época marcada por impactantes descobertas científicas, o arcabouço
jurídico-constitucional edificado neste período, permanece como uma grande conquista
da humanidade e podemos dizer com VILANI (2002:48) que as instituições do
1 Veja-se, por exemplo, o rigor da afirmação do artigo 16 da Declaração Universal de Direitos do Homem
e do Cidadão de 1798: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação
dos poderes determinada, não tem em absoluto uma Constituição” . Por outro lado, as 10 primeiras
emendas à Constituição norte-americana, aprovadas em 1791, revelam a convicção da necessidade de
previsão dos direitos individuais em uma Constituição (embora implique naquele Estado, também,
considerando suas condicionantes históricas, um compromisso em se assumir o federalismo).
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liberalismo continuam até os dias de hoje presentes na nossa Constituição de 1988: a
representatividade, o constitucionalismo, pluripartidarismo e a separação de poderes.
Mas, a grande herança do liberalismo que permanece viva até hoje entre nós é,
sem dúvida, a noção de que o homem tem direitos em razão de sua individualidade. Os
direitos individuais vão marcar a primeira categoria de direitos fundamentais ao serem
consagrados nas Constituições dos vários Estados. São, os chamados direitos de
primeira geração, a máxima contribuição do primeiro ciclo do constitucionalismo.
Ter, a Constituição, e ao mesmo tempo, sabê-la guardiã de direitos individuais,
se traduz para o homem da época, na possibilidade de refletir a legalidade como reflexo
da justiça e, conseqüentemente, como patrocinadora de segurança social.
É interessante demarcar que neste momento a idéia de direitos individuais ou
civis não está correlacionada à noção de plena fruição de direitos políticos entre livres e
iguais. Vigia a concepção de sufrágio censitário2 e capacitário. Só mais tarde, a partir
das revoluções do século XIX é que será empreendida a luta pela igualdade política,
configurando-se o denominado liberalismo democrático. A participação política, com a
consequente instauração efetiva do sufrágio universal, já proclamado desde a Revolução
de 1789, será uma das marcas das Constituições do início do séc. XX.
As conquistas adquiridas neste período não foram suficientes para evitar ou
minimizar possíveis contradições internas deste regime e seus grandes antagonismos
tornam-se visíveis com as críticas formuladas pelos movimentos do séc. XIX. A
sociedade de massas emergente aponta com amargura os desdobramentos desumanos
patrocinados por uma sociedade extremamente individualista e requer outra postura de
um Estado, para além do absenteísmo.
A noção de isonomia formal presente no Estado Liberal não atende mais a uma
sociedade repleta de carecimentos e ávida por reconhecimento. Princípios de
igualização tornam-se o ponto de partida para novas reivindicações e proclama-se agora
a implementação de uma isonomia material. Para fazer vezes às novas demandas que
partem da noção do homem inserido no seu meio social, o Estado passa a ser um
provedor, um Estado intervencionista.
Neste contexto, aliado ao fim da Primeira Grande Guerra, onde o Estado atuou
como o grande agende ativo e às demandas por reconstrução dos países atingidos neste
conflito, surge o Estado Social tendo como grande bandeira o reconhecimento dos
2 A Constituição brasileira de 1824 é exemplo clássico do predomínio desta visão, assim seus artigos 92,
V; 94,I; 95,I e 45, IV.
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direitos sociais3, denominados de direitos de segunda geração. È também neste
momento que teremos efetivada a noção de sufrágio universal que está ancorada não só
em princípios de liberdade, mas, com a mesma densidade, em princípios de igualdade.
As prestações sociais hão de ser devidas ao homem como seu direito e não
dentro de uma postura servil ou de agraciamento. É a feição mais acabada do Welfare
State ou Estado assistencial e gera um grande avanço em termos de prestações
civilizatórias para a humanidade. Com afirma REGONINI
Na realidade, o que distingue o Estado assistencial de outros
tipos de Estado não é tanto a intervenção direta das estruturas
públicas na melhoria do nível de vida da população quanto o
fato de que tal ação é reivindicada pelos cidadãos como um
direito. (REGONINI, 1993, v.I, p. 416)
A postura da sociedade já é outra e reflete os valores do homem de então. São
reconhecidos direitos sociais em todas as suas feições: direito ao emprego, à
sindicalização, de greve, de aposentadoria, de auxílio em caso de incapacidade e vários
outros direitos dos trabalhadores. A regulamentação econômica, ainda que no contexto
da economia de mercado, é, não só admitida, como requerida.
Os períodos e os fatos vivenciados nesta época que refletem crises econômicas4
e sociais propiciam também uma faceta não tão benéfica do Estado Social. A
justificativa de enfrentamento a tais questões foi o argumento estrategicamente utilizado
para regimes como o nazista na Alemanha e o fascista na Itália. Os regimes nazi-
fascistas pleiteando a assistência às populações de seus Estados, fecham-se em círculos
cada mais excludentes, naturalizando a noção de igualdade e rechaçando a concepção de
liberdade5.
Por outro lado, a crise fiscal que eclodirá no Welfare State também requererá
uma revisão de seus conceitos. As superestruturas administrativas para o atendimento
da dimensão social deste Estado, além da sua feição assistencial, contribuem para o
3 Nossa Constituição de 1934, inspirada na Constituição de Weimar, contém as premissas do Estado
Social, com grande reconhecimento dos direitos sociais. O sufrágio universal também aparece como sua
característica, com a possibilidade de votação das mulheres, vide seu artigo 109. 4 A crise da bolsa de New York, em 1929, é a constatação de que a economia e as finanças geram reflexos
diretos na manutenção de direitos. O New Deal de Rooselwelt, adotado em 1932, tenta recompor as bases
da economia e da sociedade americanas. 5 O Brasil não escapa a essa tendência: com a Constituição de 1937, a Polaca, inauguramos um período
autocrático, com grande inspiração fascista.
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aumento das despesas públicas até um patamar que a entrada de divisas não consegue
cobrir.
Essa visão hegemônica de benefícios para a sociedade começa a sofrer sérias
restrições a partir do final da década de 60 e início da década de 70. Não tendo como
cumprir os compromissos anteriormente assumidos começa-se um processo de
‘esvaziamento’ do Estado que está, agora simultaneamente ao lado do fenômeno da
globalização, sem as suas bases homogêneas de sustentação, pois o pluralismo é uma
nova e forte realidade.
Mas, as conquistas do Estado Social que podem ser visualizadas como o
segundo ciclo do constitucionalismo, também não devem ser descartadas e ainda que
fomentem releituras, há a necessidade de se preservá-las para a viabilizarmos boas
condições de vida.
Assim, ingressamos no Estado Democrático de Direito que sustentando a noção
de constitucionalismo como o limite ao poder abrirá novos espaços de exercício de
cidadania. A relação Estado/sociedade/ indivíduo é retomada sob outros pressupostos e
neste novo ciclo do constitucionalismo teremos também novos direitos se formando e
sendo reconhecidos, como os direitos difusos. Por outro lado, como afirma
CARVALHO NETTO (1999:481), os direitos fundamentais ganham outro significado,
são relidos numa perspectiva participativa, vinculados ao debate público. Se apontamos
com BONAVIDES (2006:571), estamos já falando em direitos de quarta geração como
os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.
Podemos dizer que estamos ainda nos primórdios deste novo momento do
constitucionalismo e há apenas a certeza de que o período atual reflete uma sociedade
complexa e diversa. Novos direitos, novos compromissos, nova perspectiva interna do
Direito nos fazem rever antigos dogmas.
A postura do Estado-juiz, a visão da hermenêutica e a Teoria da Constituição
Cada etapa de desenvolvimento do constitucionalismo reflete uma postura
diferente na postura do Estado-juiz e podemos dizer que essa atuação se dá também em
razão de um novo enfoque da hermenêutica.
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Se vamos ao nascimento do constitucionalismo podemos detectar uma grande
esperança, no Séc. XVIII, de uma atuação compromissada por parte do Poder
Legislativo que passa a ser o centro da produção democrática. As leis seriam legítimas
se produzidas pelo parlamento e a intensa rivalidade entre girondinos e jacobinos6
revela o papel de destaque reservado aos parlamentos. Não poderia ser diferente, pois a
manifestação mais popular dos poderes descansa, neste momento, naquele que se abre à
participação popular: o Legislativo. O Poder Executivo em razão de, em muitos
Estados, estar ligado às estruturas monárquicas de governo, não se abre neste momento,
aos intensos debates de vinculação popular. Já o Poder Judiciário conserva ainda,
considerando sua recente e estreita vinculação ao ancien régime, uma desconfiança na
sua atuação independente, o que é confirmado, na França, com a sustentação legal de
atos de Napoleão. Já no Estado Social, podemos destacar a figura central do Poder
Executivo, não só porque passa a ser demandado intensamente, mas porque
efetivamente é o Poder que pode, considerando os grandes carecimentos patrocinados
pela sociedade de massas, respondê-los eficiente e prontamente com o instrumental que
lhe posto à disposição. È o Poder Executivo aquele que nesse contexto, se abre para
ouvir a população e mais próximo consegue estar do povo, excepcionando regimes que
promovem estrategicamente esta aproximação. O Legislativo continua a operar a
produção de leis, mas perde um pouco seu espaço como arena promissora para a
identificação de legitimidade e embora deva retomar os foros de fiscalização,
principalmente dos atos do Executivo, podemos dizer que os parlamentos se
burocratizam. O Poder Judiciário ainda continua afastado do viés republicano e talvez
considerando a vinculação ao positivismo jurídico, tão forte neste momento, mantenha
perspectiva pouco aberta à sociedade. Finalmente, é no Estado Democrático de Direito
que veremos o florescer do Poder Judiciário, como instância necessária, embora não
única, para operarmos noções de democracia. Os Poderes Legislativo e Executivo
reforçam seu viesses republicanos que se apresentam mediante um devido processo
legislativo, no caso dos parlamentos e mediante uma abertura para atuações diretas da
sociedade civil na definição de políticas públicas. O Poder Judiciário dentro desse novo
contexto promove sua primeira real aproximação com a sociedade e consegue se ver
6 A disputa entre girondinos e jacobinos revela os fundamentos da teoria da representatividade, colocando
em cheque os pontos positivos e negativos do governo representativo e da democracia direta e que leva a
rodo a discussão por um Estado mais centralizado ou descentralizado. Veja sobre a temática: BURNS,
Edward McNall. História da civilização ocidental. Tradução de Lourival Gomes Machado e Lourdes
Santos Machado. 4. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1957, v. II, 602 et seq.
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também como produtor de legitimidade. Podemos empreender a partir de agora uma
revisão intensa dos postulados do princípio da separação de poderes e seu equilíbrio
patrocinado pelo sistema de freios contrapesos. É em síntese uma possibilidade de
revisão dos conceitos sob a ótica democrática.
Como afirmamos na estrutura do Estado de Direito que tem seu porto de
sustentação garantido no primado da lei, não teremos por parte do Judiciário uma
atuação ativa. Ao contrário, a postura do Juiz é extremamente vinculada à leitura literal
da lei, nos dizeres de CATTONI
Cabe ao Poder Judiciário dirimir conflitos interparticulares ou,
conforme o modelo constitucional, entre esses e a Administração
Pública, quando provocado, através dos procedimentos devidos,
aplicando o direito material vigente de modo escrito, através de
processos lógico-dedutivos de subsunção do caso concreto às
hipóteses normativas, sob os ditames da igualdade formal,
estando sempre vinculados ao sentido literal, no máximo lógico,
da lei, enfim, sendo a “boca da lei” (Montesquieu)” (2002:57)
A relação desta postura do juiz como um mero ‘leitor de leis’ com período da
história em que se desenvolve revela-nos certa coerência. Passando pelas revoluções
científicas patrocinadas por Dwarvin, Copérnico, Galileu Galilei, Isaac Newton dentre
outros, pela reforma protestante, pela separação Estado e Igreja, pela formação dos
Estados nacionais e fundando-se na noção de igualdade aritmética, serão edificados
novos padrões de ciência, superando a base anterior da filosofia do ser ou do objeto.
Refuta-se o princípio do movimento para adentrarmos no princípio da demonstração. O
método cartesiano fomentará o mito da universalidade e da neutralidade, o que se
mostra condizente com as posturas assumidas pelo Estado julgador liberal que tem
como lema no direito o primado de regras abstratas e validas universalmente.
Os aportes para a atuação dos juízes na interpretação das leis viram dos métodos
clássicos de interpretação, desenvolvidos a partir do Séc. XIX e vinculados à
contribuição do Direito romano e à obra de Savigny. A perspectiva civilista predomina
relacionada à prevalência do Direito Privado, ou seja, é o apego à noção de autonomia
privada que rivaliza com a pública. Assim, o juiz poderia se socorrer dos métodos
8
gramatical, lógico ou racional, sistemático e histórico7 e quanto às fontes temos a
interpretação autêntica, judicial, doutrinária e administrativa. Os métodos desenvolvidos
nesse período demonstram uma postura limitada de atuação do Poder Judiciário.
É importante frizar que será no Séc. XIX8 que teremos lançadas as bases da
disciplina Teoria Geral do Estado e que, inicialmente, essa é a seara para o
desenvolvimento das teses do Direito Público. Os desdobramentos dos aportes jurídicos
estão, à época, condicionados pelo positivismo científico e nos parece que é essa a visão
hegemônica que nortea da atuação do Judiciário.
É interessante observar que esta postura de neutralidade do aparato estatal,
claramente identificada no Judiciário, vai abastecer sua atuação também no Estado
Social, embora com outros contornos. A idéia de um positivismo jurídico, não escapa
da visão ainda predominante de um positivismo científico. Esse Poder, de modo
contínuo e talvez mais nítido, se apresenta no Estado Social, ainda implementando a
filosofia do sujeito ou da consciência, tendo como aspiração produzir uma justiça
objetiva, embora materializada. Para o Poder Judiciário, ainda vinculado ao método
cartesiano de produção do conhecimento e considerando a eloqüente produção
legislativa do Estado Social, seu desafio é tentar escapar de antinomias e produzir um
Direito efetivo.
A necessidade de materializar os direitos proclamados leva o Judiciário a
reconhecer princípios de igualdade material e a adotar uma postura mais voltada ao caso
concreto. A objetividade na decisão judicial se constrói por intermédio da tentativa de se
colher a vontade objetiva da própria lei. A tarefa do Estado-juiz se mostra complexa e
comprometida com a concretização dos direitos fundamentais e como alerta
CARVALHO NETTO:
Explica-se assim, por exemplo, tanto a tentativa de Hans Kelsen
de limitar a interpretação da lei através de uma ciência do Direito
encarregada de delimitar o quadro das leituras possíveis para a
escolha discricionária da autoridade aplicadora, quanto o
decisionismo em que o mesmo recai quando da segunda edição
de sua Teoria Pura do Direito. (1999:481)
Não é sem razão que neste momento surgem métodos de interpretação mais
elaborados que refletem a visão de uma sociedade mais complexa e o
7 Para um aprofundamento na temática: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
Constituição.São Paulo: Saraiva, 1996. 8 Georg Jellinek, lança em 1900, a obra Teoria Geral do Estado e crava os limites e fundamentos teóricos
desta disciplina.
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redimensionamento do Estado. Os métodos de interpretação se aperfeiçoam e são
pensados em razão da nova sociedade, de forma mais densa e real: os métodos lógico-
sistemático, histórico-teleológico e voluntarista refletem essa visão. A abordagem
evidencia mais, o espírito da lei.
É no contexto do nascimento do Estado Social que surge também a disciplina
Teoria da Constituição. Já se identifica a crise do constitucionalismo liberal e também
as críticas ao positivismo jurídico. A Teoria da Constituição tem no primeiro momento,
ligado ao Direito alemão, a difícil tarefa de tornar o documento de Weimar -1919-
efetivo, o que não se consegue cumprir tendo como referencial os postulados da
disciplina Teoria Geral do Estado. Nomes como Schmitt, Heller e Smend despontam
como autores que incitam dentro da doutrina constitucional um posicionamento
diferenciado: colocando com ponto central a discussão a respeito das questões da
efetividade constitucional.
Os fundamentos do Estado Social serão colocados em xeque a partir de várias
premissas. A crise fiscal do Estado do Bem-estar contribui sobremaneira para a
implementação de uma outra visão de sociedade, a sociedade do Estado Democrático de
Direito. A Teoria da Constituição que pretende descortinar os campos da efetividade
constitucional passa por uma renovação dos seus estudos, ligada a uma sensível
influência pragmática do Direito norte-americano, principalmente, da atuação do
Suprema Corte daquele país; pensa-se a efetividade ao lado das questões de
legitimidade. Autores, como Karl Loewenstein, trazem a concepção de Constituição
ontológica para o centro dos debates da Teoria da Constituição. Por outro lado, uma
nova revolução científica está caminhando e começa a desconstruir os mitos da
neutralidade, universalidade e causalidade. Para tanto, a obra de vários pensadores,
como Freud, Gadamer e Heidegger, para citar alguns, influencia de maneira decisiva o
giro lingüístico-pragmático que se constata. A incerteza está presente em todas as
ciências, até nas Ciências Exatas; a física quântica relativiza conceitos de tempo e
espaço; o papel do inconsciente nas nossas ações e pensamentos é admitido; a
humanidade não caminha linearmente para o progresso, nossa existência pode ser
colocada em xeque; surgem direitos difusos em que seus sujeito e objeto não estão
previamente recortados; a sociedade e o Estado também não têm atuações
matematicamente demarcadas, ou seja, certeza só de temos várias incertezas. Temos
então, que a verdade talvez dependa de conteúdos construídos intersubjetivamente; que
cada olhar pode me trazer um tipo de verdade; que é no contexto e na discussão que
10
teremos a possibilidade de ver cada verdade. É a filosofia da linguagem com o uso da
fala nas deliberações políticas9 como a forma de identidade e identificação do homem
do Séc. XXI. Os conceitos são abertos e não absolutos.
Para a atuação do Estado-juiz isso também implica em novos desafios, talvez
mais do que jamais se tenha imaginado10
. Se vamos construir a verdade como um
conceito dinâmico, então, a questão essencial deve ser aferida no debate, na discussão.
E nesse sentido que as leis deixam de ser vistas com o rigor absoluto da universalidade
e devemos dar ênfase, também, às circunstâncias do caso concreto. Não podemos
apostar em uma única solução para todos os casos. O papel do Poder Judiciário torna-se
importantíssimo para catalização do potencial democrático deste novo momento. O
conteúdo dos discursos legislativos de justificação e dos discursos
executivos/judiciários de aplicação hão de ser tomados, na perspectiva deste novo
Estado, democraticamente, o que envolve potencializar de canais de participação de
toda sociedade; legalidade e legitimidade devem andar juntas. Também é na atuação do
Judiciário que estarão claramente difundidas as idéias de que, como ensina
HABERMAS (1997:116 et seq) autonomia privada e autonomia pública não se
rivalizam11
. A estrutura normativa não mais está vinculada apenas às regras, os
princípios se apresentam como normas jurídicas deontologicamente auridas, que
poderão ser avocados para se obter a decisão justa no caso concreto.
Não sem razão, é neste momento que teremos identificada uma profunda crise
no Direito, crise interna que emerge da definição do ideal justo, daí o nascimento de
novos métodos de interpretação. Será necessário o aporte de teorias sociais e filosóficas
mais sofisticadas para tentar-se um fundamento coerente do Direito, refletindo as bases
9 Como aporte podemos citar Habermas: “A teoria do discurso sustenta que o êxito da política
deliberativa depende não da ação coletiva dos cidadãos, mas da institucionalização dos procedimentos e
das condições de comunicação correspondentes. Uma soberania popular procedimentalista e um sistema
político ligado às redes periféricas da esfera público-política andam de mãos dadas com a imagem de uma
sociedade descentrada” (HABERMAS, Jurgen. Três modelos normativos de democracia. Tradução de
Anderson Fortes Almeida e Acir Pimenta Madeira.Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, n.
3, jan./jun.,1995, p.117) 10
Sobre a atuação dos juízes impõe-se a leitura da obra ‘Juízes irresponsáveis’, onde encontramos
importante observação de Cappelletti ao afirmar que deve ser assegurada sua autonomia, mas é uma
autonomia aberta às instâncias da sociedade por intermédio de instrumentos normativos, organizativos e
estruturais, quando então teremos a possibilidade de aferir justiça. (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes
irresponsáveis? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1989, p. 92/93) 11
Discorrendo sobre a questão da autonomia privada e pública, Habermas expõe: “A co-originalidade da
autonomia privada e pública somente se mostra, quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislação
através da teoria do discurso, que ensina serem os destinatários simultaneamente os autores de seus
direitos.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I, p. 139.)
11
fragmentadas das sociedades hipercomplexas do final do Séc. XX. Como estabelecer-se
uma Teoria da Constituição constitucionalmente adequada, que reenfrente as questões
de efetividade e legitimidade aliada a uma base pluralista de sociedade, é uma questão
ainda em aberto. Visando cumprir está árdua função surgem novos métodos de
interpretação que pretende reconstruir a normatividade constitucional e assim teremos
os métodos integrativo de Rodolf Smend, tópico de Josef Esser e o concretista que tem
como expoentes Friedrich Müller, Peter Häberle e Konrad Hesse12
. Verifica-se na
conjugação dos novos métodos de interpretação uma preocupação voltada para as
especificidades do caso concreto.
Considerações finais
Podemos constatar que o constitucionalismo nasce vinculado às premissas do
Estado Liberal. Os desdobramentos desse constitucionalismo permitem acompanhar o
desenvolvimento de algumas categorias ou gerações de direitos que ao serem
consagradas acabam também identificando os Estados Social e Democrático de Direito.
Os direitos civis e políticos permitem uma acomodação ao Estado Liberal, os direitos
sociais um reconhecimento do Estado do Bem-estar social e os direitos difusos e de
quarta geração nos fazem ver o referencial do Estado Democrático de Direito.
A cada etapa vencida e relida do constitucionalismo podemos detectar uma
alteração na articulação do princípio da separação dos poderes e o papel de destaque
assumido pelos poderes do Estado. No momento atual, requer-se uma atuação
comprometida do Poder Judiciário na perquirição do ideal justo. Com a sociedade
complexa e plural deste final de século, a tarefa do Judiciário se mostra densa e para
cumprir o seu papel deve se abrir aos novos intérpretes constitucionais13
, permitindo
que o viés participativo também toque e descongele suas estruturas e assim podemos
terminar, mais uma vez, com Habermas:
Não é a forma do direito, enquanto tal, que legitima o exercício do
poder político, e sim, a ligação com o direito legitimamente
estatuído. E, no nível pós-tradicional de justificação, só vale como
12
Para uma boa compreensão dos novos métodos de interpretação: BONAVIDES. Paulo. Curso de
direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 13
A expressão deve-se a Häberte na obra ‘Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes
da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição’ (2002).
12
legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de
todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião
e da vontade.” (1997:172)
Referências bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo:
Saraiva, 1996.
BONAVIDES. Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros,
2006.
BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. Tradução de Lourival
Gomes Machado e Lourdes Santos Machado. 4. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1957, v. II.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes irresponsáveis? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989.
CARVALHO NETTO, Menelick. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob
o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, v. 3,
Ed. Mandamentos, maio, 1999.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002.
HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da
Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris. Reimpressão,
2002.
HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I.
13
HABERMAS, Jurgen. Três modelos normativos de democracia. Tradução de Anderson
Fortes Almeida e Acir Pimenta Madeira.Cadernos da Escola do Legislativo, Belo
Horizonte, n. 3, jan./jun.,1995.
REGONINI, Glória. Estado do bem-estar. In Dicionário de política. BOBBIO,
Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco (Org). Trad. Cármem C.
Varriali. 5. ed., Brasília: UnB, 1993.
VILANI, Maria Cristina Seixas. Cidadania moderna: fundamentos doutrinários e
desdobramentos históricos. Caderno de Ciências Sociais. Belo Horizonte; v.8, n. 11,
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