Artigo Aderruan - Centro de Direito...

29
A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL: ANÁLISE DO CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA E DA ADPF 153. Aderruan Rodrigues Tavares(*) 1 RESUMO: Este artigo visa contribuir com a compreensão atual da soberania inserida no direito internacional e, em certa medida, no direito interno. Para tanto, necessita-se rever algumas concepções históricas do conceito da soberania. Nesse estudo, será revista a atuação dos Estados no atual panorama internacional, principalmente quanto ao cumprimento de decisões de cortes internacionais. Assim, traremos a relação entre a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 e a da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Guerrilha do Araguaia, buscando uma possível conformação entre essas duas importantes decisões. Palavras-chaves: Soberania, Direito Internacional, ADPF 53/DF, Caso Guerrilha do Araguaia ABSTRACT: This article aims to contribute with the actual comprehension of the sovereignty in the international law and, somehow, in the national law. Thus, it´s necessary review some history conception of sovereignty´s concept. In this study, the performance of States will be review in the actual international panorama, mainly in relation to the fulfillment of International Courts´ decisions. Therefore, we´ll reflect in the relation between the Supremo Tribunal Federal´s decision in the ADPF 153 and the Corte Interamericana de Diretos Humanos´ decision in the case Guerrilha do Araguaia, seeking a possible solution between these decisions. 1 Assessor de Juiz auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça. Graduado em Direito pela UDF. Pósgraduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Membro do Conselho Administrativo Editorial da Revista Direito Público.

Transcript of Artigo Aderruan - Centro de Direito...

A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL: ANÁLISE DO

CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA E DA ADPF 153.

Aderruan Rodrigues Tavares(*)1

RESUMO: Este artigo visa contribuir com a compreensão atual da soberania

inserida no direito internacional e, em certa medida, no direito interno. Para

tanto, necessita-se rever algumas concepções históricas do conceito da

soberania. Nesse estudo, será revista a atuação dos Estados no atual

panorama internacional, principalmente quanto ao cumprimento de decisões de

cortes internacionais. Assim, traremos a relação entre a decisão do Supremo

Tribunal Federal na ADPF 153 e a da Corte Interamericana de Direitos

Humanos no caso Guerrilha do Araguaia, buscando uma possível conformação

entre essas duas importantes decisões.

Palavras-chaves: Soberania, Direito Internacional, ADPF 53/DF, Caso

Guerrilha do Araguaia

ABSTRACT: This article aims to contribute with the actual comprehension of

the sovereignty in the international law and, somehow, in the national law. Thus,

it´s necessary review some history conception of sovereignty´s concept. In this

study, the performance of States will be review in the actual international

panorama, mainly in relation to the fulfillment of International Courts´ decisions.

Therefore, we´ll reflect in the relation between the Supremo Tribunal Federal´s

decision in the ADPF 153 and the Corte Interamericana de Diretos Humanos´

decision in the case Guerrilha do Araguaia, seeking a possible solution between

these decisions.

                                                                                                                         1  Assessor  de  Juiz  auxiliar  da  Presidência  do  Conselho  Nacional  de  Justiça.  Graduado  em  Direito  pela  UDF.  Pós-­‐graduando  em  Direito  Constitucional  pelo  Instituto  Brasiliense  de  Direito  Público  –  IDP.  Membro  do  Conselho  Administrativo  Editorial  da  Revista  Direito  Público.  

Keywords: Sovereignty, International Law, ADPF 53/DF, Case Guerrilha do

Araguaia.

1 – INTRODUÇÃO

O conceito de soberania é um dos temas mais tormentosos que a

doutrina internacionalista e a constitucionalista têm enfrentado recentemente. A

soberania para alguns é ínsita ao Estado, não podendo pensar nele sem ela.

O presente trabalho não tem o condão de fazer um buscado dos

mais variados entendimentos sobre a soberania. Tem, todavia, o intuito de,

partindo de algumas concepções, contribuir para situar a soberania no atual

contexto contemporâneo.

Nesse sentido, o pensamento vanguardista de HANS KELSEN

sobre a relação entre soberania e direito internacional, aliado à síntese

doutrinária de DALMO DE ABREU DALLARI sobre o mesmo tema, dá o norte

deste estudo. Contudo, as ideias de UMBERTO CAMPAGNOLO,

representando a teoria do dualismo na relação entre direito interno e direito

internacional, também são de grande valia para o enriquecimento deste

trabalho, até para ser fiel ao pensamento contrário da linha seguida por esse

estudo.

Defender-se-á aqui a tese da relativização da soberania estatal

para que os Estados possam conviver harmonicamente uns com os outros,

com fim de uma sociedade internacional livre de guerras armadas, o que gera

desrespeito com os direitos humanos. Assim, os Estados são partes de um

sistema jurídico mais evoluído, que preza a qualificação e intensificação das

relações internacionais, com a devida proteção dos direitos humanos.

Entretanto, embora tal tese não seja nova no campo do

conhecimento jurídico, ainda encontra diversas resistências em algumas

instituições internas dos Estados, ainda mais, naquelas que exercem parcelas

de poder. Trata-se, pois, de um processo longínquo, e, quiçá, maçante, da

realidade de vários países, entre eles, da República Federativa do Brasil.

Assim, o recorte exemplificativo utilizado para a denotação de tal

processo é a relação entre a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF

153, em que o STF considerou válida e recepcionada, nos termos da

Constituição de 1988, a Lei de Anistia, e a decisão da Corte Interamericana de

Direitos Humanos no Caso Guerrilha do Araguaia ou Caso Gomes Lund e

outros, em que essa Corte condenou o Brasil por diversas violações à

Convenção Americana de Direitos Humanos e determinando que o Brasil adote

bastantes medidas para saná-las. A problemática é saber qual decisão dessas

duas vale: se a do Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da jurisdição

brasileira, ou se a da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instância

última na proteção dos direitos humanos no continente americano.

2 – DA SOBERANIA

No ordenamento jurídico brasileiro, a soberania é tida como um

fundamento da República Federativa do Brasil, encartada no inciso I do art. 1º

da nossa Constituição Federal de 1988.

Constitucionalizada, a soberania passa a vincular todas as ações

dos atores internos da sociedade brasileira e dos externos que de alguma

forma se sujeitam ao ordenamento jurídico pátrio.

Nessa perspectiva, entender o conceito e a natureza jurídica, bem

como sua natureza política, da soberania é de fundamental importância na

atual conformação moderno-contextual do direito constitucional e do direito

internacional. Assim, nessa parte do trabalho, cabe apenas uma simplificada

passagem sobre o conceito e as características da soberania, sob pena de

desvio do foco do presente estudo.

MIGUEL REALE conceitua soberania como “o poder de organizar-

se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de

suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência.2”

Busca-se em DALMO DE ABREU DALLARI as ditas

características da soberania3. Vejamos:

a) una: a soberania é assim tida pois “não se admite no

mesmo Estado a convivência de duas soberanias”. Assim, o poder soberano se

manifesta como um poder superior a todos que eventualmente possam existir,

não sendo, portanto, possível existir, num mesmo espaço territorial duas forças

com tal característica;

b) indivisível: é que “além das razões que impõem sua

unidade, ela se aplica à universidade dos fatos ocorridos no Estado, sendo

inadmissível, por isso mesmo, a existência de várias partes separadas da

mesma soberania”.

c) Inalienável: “pois aquele que a detém desaparece quando

ficar sem ela, seja o povo, a nação, ou o Estado”.

d) Imprescritível: “porque jamais seria verdadeiramente

superior se tivesse prazo certo de duração. Todo poder soberano aspira a

existir permanente e só desaparece quando forçado por uma vontade superior.”

2.1.- A SOBERANIA PARA DALMO DE ABREU DALLARI.

Para DALMO DE ABREU DALLARI, a soberania é uma

característica fundamental do Estado, sem a qual, não podemos pensá-lo.4

Para o citado autor, o conceito de soberania, que tem despertado

a atenção de todos desde o século XVI, é tido como um termo político e um

termo jurídico, ao mesmo tempo. Devido a isso, surgiram diversas teorias sobre

                                                                                                                         2  DALLARI,  Dalmo  de  Abreu.  Elementos  de  Teoria  Geral  do  Estado.  21ª  ed.  São  Paulo:  Ed.  Saraiva,  2011,  p.  87  3  DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit.,  p.  82-­‐83  4  DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit.,  p.  82  

o conceito, o que, de certa forma, prejudicou o real entendimento do conceito,

por torná-lo mais impreciso. A soberania comporta um conteúdo

intrinsecamente político, “apesar de todo o esforço, relativamente bem-

sucedido, para discipliná-lo juridicamente”.5 Nessa relação, entre a percepção

jurídica e política sobre o conceito de soberania que DALMO DE ABREU

DALLARI desenvolve esse tema.

Para DALMO DE ABREU DALLARI a noção de soberania

encontra-se “sempre ligada a uma concepção de poder”. Em termos políticos,

isso significa que a soberania pode ser conceituada como “o poder

incontrastável de querer coercitivamente e de fixar as competências”. Com

esse vetor, o poder soberano é absoluto, não admitindo qualquer subversão e

não se preocupando, pois, em ser legítimo ou de acordo com o ordenamento

jurídico. A consequência disso resultou num forte egoísmo entre os Estados,

principalmente entre os mais fortes, que invocavam suas soberanias para

agirem do modo que lhes conviessem.6

Já com uma percepção jurídica, a soberania é tida como o “poder

de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, vale dizer,

sobre a eficácia do direito”. Ou seja, a soberania “é poder jurídico utilizado para

fins jurídicos”, cabendo ao Estado o poder de decidir qual a regra jurídica a ser

aplicada em cada caso. Em tal sentido, não há que se falar em Estados “mais

fortes ou mais fracos”, vez que a noção de direito é a mesma para todos. “A

grande vantagem dessa conceituação jurídica é que mesmo os atos praticados

pelos Estados mais fortes podem ser qualificados como antijurídicos,

permitindo e favorecendo a reação de todos os demais Estados.”7

Ademais, para DALMO DE ABREU DALLARI a soberania ainda é

aceita como independência e poder jurídico mais alto. Naquela concepção, o

Estado não aceita ser submisso a qualquer outro, invocando para tanto

autoafirmação de seu povo. Para esse, o Estado, dentro de seus limites

                                                                                                                         5  DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 81  6  DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 86  7  DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 86  

territoriais, exercerá a jurisdição, decidindo a sua situação eventualmente

guerreada em detrimento de qualquer norma jurídica.8

É óbvio que a afirmação de soberania, no sentido de independência, se apóia no poder de fato que tenha o Estado, de fazer prevalecer sua vontade dentro de seus limites jurisdicionais. A conceituação jurídica de soberania, no entanto, considera irrelevante, em princípio, o potencial de força material, uma vez que se baseia na igualdade jurídica dos Estados e pressupõe o respeito recíproco, como regra de convivência. Neste caso, a prevalência da vontade de um Estado mais forte nos limites da jurisdição de um mais fraco, é sempre um ato irregular, antijurídico, configurando uma violação de soberania, passível de sanções jurídicas. E mesmo que tais sanções não possam ser aplicadas imediatamente, por deficiência de meios materiais, o caráter antijurídico da violação permanece, podendo servir de base a futuras reivindicações bem como à obtenção de solidariedade de outros Estados.9

Com essas premissas, DALMO DE ABREU DALLARI entende

que o Estado soberano, dentro de seus limites territoriais, exercerá com

exclusividade sua jurisdição, por meio de normas ou produzidas por eles ou

aceitas do direito internacional. Em relação à comunidade internacional, o autor

pontua a necessidade de independência entre os Estados, de modo que

nenhum Estado subverta outro Estado.

2.2. A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL PARA HANS KELSEN

HANS KELSEN talvez seja um dos maiores críticos do conceito

de soberania, principalmente se considerando o seu viés político apresentado

por DALMO DE ABREU DALLARI, em que refuta com certa veemência.

Ademais, HANS KELSEN é um dos principais defensores da teoria monista,

com prevalência do direito internacional.

                                                                                                                         8  DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 90  9  DALLARI, Dalmo de Abreu, op, cit, p. 90  

Para o autor austríaco, “o dogma da soberania leva

necessariamente a uma negação judicial do direito internacional”10

HANS KELSEN critica principalmente a teoria do reconhecimento

do direito internacional pelos Estados nacionais. Ao sustentarem essa tese, os

Estados negam que o Direito internacional seja uma norma jurídica superior

aos próprios e Estados e suas ordens jurídicas.11 Em sua doutrina, pela teoria

do reconhecimento a norma fundamental seria uma norma do ordenamento

nacional, sendo que o direito internacional só teria validade caso estivesse em

sintonia com essa norma fundamental. Assim, o direito internacional somente

fundamentaria e determinaria a esfera do direito nacional, caso fosse aceito

pelo Estado nacional.12

Ele vê, na discussão de se afirmar que um Estado é realmente

soberano, em que “a ordem jurídica nacional é uma ordem acima da qual não

existe nenhuma outra”, não existindo, inclusive ordenamento superior, no caso

o direito internacional, o ponto central para definir se o direito internacional é

superior ou não ao direito nacional.13

O resultado da nossa análise foi o de que o Direito internacional, através do princípio de eficácia, determina a esfera e o fundamento de validade da ordem do Direito nacional, e, desse modo, a superioridade do Direito internacional sobre o Direito nacional parece ser imposta pelo conteúdo do próprio Direito.14

Nessa linha de raciocínio, HANS KELSEN entende que um

Estado não pode ser ou não soberano. No máximo, o que se pode é pressupor

que um Estado seja ou não soberano. Essa pressuposição é constatada a

partir de qual teoria é aceita pelo Estado. Caso seja aceita a teoria da primazia

do direito internacional, então se pressupõe que o Estado não é soberano.

                                                                                                                         10  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto.  Direito  Internacional  e  Estado  Soberano.  Org:  Mario  Losano.  São  Paulo:  Martins  Fontes,  2002,  p.  131  11  KELSEN,  Hans.  Teoria  geral  do  direito  e  do  estado.  Tradução  de  Luís  Carlos  Borges.  4.  ed.  São  Paulo:  Martins  Fontes,  2005,  p. 544  12  KELSEN,  Hans,  op,  cit,  p.  546  13  KELSEN,  Hans,  op,  cit,  p.  545  14  KELSEN,  Hans,  op,  cit,  p.  546  

Com isso, a “soberania” do Estado seria em termos relativos, sendo que

somente o direito internacional seria superior ao ordenamento jurídico nacional,

com exclusão de qualquer outro direito nacional. Mas, se por outro lado, houver

a validação da teoria do reconhecimento, pressupõe-se que o Estado é, então,

soberano.15

HANS KELSEN prega a unidade do direito. Assim, não entende

possível que houvesse diversos “direitos estatais”, além do direito internacional.

A começar pela tese da soberania do Estado, HANS KELSEN sustenta a sua

impossibilidade, sendo apenas o direito internacional “soberano”, absoluto, em

que todos os Estados nacionais retiram do direito internacional a sua validade.

Dessa forma, os Estados gozariam de uma soberania relativa, preservando

cada Estado uma ordem jurídica que, na visão do direito internacional, essas

demais ordens jurídicas seriam “válidas exclusivamente para as suas esferas

territoriais e pessoais específicas, e podem ser criadas e modificadas em

conformidade com as suas próprias constituições”. Para HANS KELSEN, “a

soberania de um Estado exclui a soberania de todos os outros Estados”16.

Entender que cada Estado equivale a uma ordem jurídica nacional

isolada, todas soberanas, com o direito internacional fazendo parte de cada

uma, para HANS KELSEN, é conceber que existam “tantas ordens jurídicas

internacionais diferentes quanto há Estados ou ordens jurídicas nacionais”.

Tendo em vista que cada Estado irá aplicar o direito internacional do modo que

suas leis lhe permitirem. Ele não vê problemas quando cada Estado se

pressuponha soberano, entendido aqui a primazia do direito nacional, desde

que o direito internacional estabeleça “as relações com as ordens jurídicas dos

outros Estados e essas ordens jurídicas nacionais como partes da ordem

jurídica do seu próprio Estado, concebido como uma ordem jurídica

universal”.17

Ou seja, HANS KELSEN apenas aceita a soberania em termos

relativos, com a primazia do direito internacional sobre os ordenamentos

jurídicos nacionais, refutando, pois, a teoria do reconhecimento pelo Estado                                                                                                                          15  KELSEN,  Hans,  op,  cit,  pp.  546-­‐547  16  KELSEN,  Hans,  op,  cit,  pp.  547-­‐548  17  KELSEN,  Hans,  op,  cit,  pp.  548  

das normas internacionais. Nesse caso, essas normas existem e são válidas

juridicamente independente da “aceitabilidade” ou não do Estado.

Com efeito, analisando os estudos de UMBERTO

CAMPAGNOLO, HANS KELSEN “reconhece o Estado apenas como um

ordenamento jurídico ao lado ou acima de outros ordenamentos jurídicos,

deixando, assim, aberta a possibilidade de um direito internacional não

coincidente com o direito estatal”18.

Destarte, para HANS KELSEN, a unidade do direito só seria

possível quando todas as normas de direito, advindas de todos os Estados e

do direito internacional, estiverem em apenas um sistema normativo, sem

contradições, em que o próprio direito internacional seria essa unidade

unificadora dos ordenamentos jurídicos, e que os Estados nacionais

receberiam uma delegação judicante para atuar por meio de sua constituição,

mas de acordo com o sistema jurídico internacional.19

Por fim, por consequência dessas ideias apresentadas, o autor

austríaco defende a constituição de um Estado universal, sendo dois meios

possíveis para sua concepção, uma por meio do imperialismo, em que um

Estado por meio de sua força econômica e/ou militar estende sua soberania

sobre os outros Estados, e a outra pelo federalismo, com os Estados se unindo

no sentido da formação de uma confederação universal.20

2.3. A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL PARA UMBERTO CAMPAGNOLO

UMBERTO CAMPAGNOLO foi um grande crítico da doutrina pura

do direito apresentada por HANS KELSEN, especificamente, quando o assunto

é relação entre soberania e direito internacional.

                                                                                                                         18  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  121  19  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  132  20  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  134  

O autor italiano, que inclusive foi aluno de HANS KELSEN,

defende a teoria do reconhecimento, em que o direito internacional só tem

validade caso seja validado pelo direito nacional.

Em sua visão, a soberania é inseparável da ideia de Estado, por

que aquela é essencial a esse21. Assim, a soberania define a relação de

autoridade entre o Estado e os seus nacionais, que são chamados por

UMBERTO CAMPAGNOLO de súditos22. Nesse sentido, ele não vê a

possibilidade de que um súdito possa estar “contemporaneamente sujeito a

dois ordenamentos jurídicos”23, o que de plano refuta o direito internacional

como um ordenamento jurídico.

Para UMBETO CAMPAGNOLO, o direito internacional não

poderia, em hipótese alguma, ser superior aos ordenamentos jurídicos

nacionais, visto que o direito representa a reação do Estado contra seus

súditos, não podendo haver duas possibilidades reacionárias contemporâneas.

“Se Estados fossem incluídos num sistema jurídico mais vasto (direito

internacional), o Estado seria esse sistema mesmo e, em relação a esse, os

assim chamados Estados seriam apenas províncias”24.

Na minha opinião, é indiscutível que a experiência concreta do direito internacional não possa ser definida soberana mais do que aquela do direito interno, como por outro lado a lei dos Estados considerados totalitários não parece aos seus súditos mais soberana do que a Lei dos Estados liberais. Na minha tese, demonstrei não ser possível separar a ideia de soberania da ideia de Estado e de direito demonstrei ainda que Hans Kelsen, tendo-as separado, não consegue oferecer um conceito científico de Estado. De fato, ele mesmo define o seu conceito de Estado como uma norma consuetudinária do direito internacional25.

Assim, UMBERTO CAMPAGNOLO entende que “o direito

internacional não é o resultado da colaboração dos outros Estados com o

                                                                                                                         21  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  165  22  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  163  23  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  161  24  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  161  25  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  173  

Estado do qual emana porque a sua validade, ou seja, a sua existência

mesma, depende exclusivamente do Estado da qual faz parte”26.

2.4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOBERANIA E O DIREITO INTERNACIONAL.

É necessária a reanálise do conceito e dos efeitos da soberania

na busca de novos elementos que possam dar-lhe novo sentido, diante do

atual panorama das relações internacionais, sob pena de se estar diante de um

conceito falacioso e inútil para o desenvolvimento humano e do próprio

conceito de Estado pós-moderno.

Para FERNANDO DE MAGALHÃES FURLAN, a soberania foi

dogmatizada para “justificar a superioridade de um poder, livre de qualquer

sujeição”. Dessa forma, “tomava-se a soberania pelo mais alto poder, a

supremitas, traço essencial para distinguir o Estado dos demais poderes que

com ele disputavam27”. Nesse sentido, também, como se viu acima, é a teoria

de UMBERTO CAMPAGNOLO.

Tal perspectiva do conceito de soberania parece não encontrar

mais guarida na atualidade, em que o “sentimento nacional de soberania” cede

lugar às ideologias nas relações entre Estados, ao que podemos chamar de

relatividade da soberania. Certamente, no plano internacional, as relações

interestatais limitam a força irrestrita da soberania.28

Daí advém a necessidade de perceber a soberania como um

conceito relativo na sua relação com o Estado, para que ela não possa, de

alguma forma, impedir que a interação do Estado com dos outros, quer em

nível regional, quer, internacional29.

Com efeito, CELSO DE ALBURQUERQUE DE MELLO aduz que:

                                                                                                                         26  KELSEN,  Hans,  CAMPAGNOLO,  Umberto,  op,  cit,  p.  180  27  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães.  Integração  e  Soberania  –  O  Brasil  e  o  Mercosul.  São  Paulo:  Ed.  Aduaneiras,  2004,  p.  21  28  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  21  29  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  60  

Esta (a soberania) passa a ser uma noção quase que formal, vez que seu conteúdo é cada vez mais diminuído pela criação e desenvolvimento das organizações internacionais. Muitas vezes, a própria palavra soberania é evitada, como ocorre na Carta da ONU, que prefere usar expressões como ‘jurisdição doméstica’ ou ‘domínio reservado30.

Assim, diante da relativização do conceito de soberania, os

Estados, sob pena de isolamento, são tidos por unidades jurídicas autônomas,

em que são competentes para criar o direito de acordo com suas

peculiaridades culturais, econômicas e sociais, mas que não podem

desrespeitar o direito internacional, sob pena de sanção econômica, por

exemplo.

Dessa forma, cada Estado deve estar em consonância com os

preceitos do direito internacional, das relações internacionais (no tocante a

relações econômicas, diplomáticas, etc.) e da prevalência de proteção aos

direitos humanos.

Embora proponha-se a autonomia jurídica de cada Estado, ainda

subsiste a tese de que nenhum outro Estado poderá adentrar na jurisdição

alheia sem o respectivo consentimento. Consequentemente, caso essa invasão

aconteça, o próprio direito internacional se encarregará de solucionar a

questão.

Destarte, a soberania é a atribuição exclusiva que tem o Estado

de executar suas decisões ou de órgãos internacionais competentes, com

exclusividade dentro do seu próprio território. Ademais, ainda assim, nenhum

outro Estado poderá expedir qualquer determinação vinculante para outro

Estado, sem o devido consentimento deste, sendo possível ser visualizada a

competência de um órgão superior aos Estados em expedição de decisões ou

normas vinculantes internacional, como, por exemplo, as decisões da Corte

Internacional de Justiça. Ou seja, mesmo que a decisão seja internacional,

apenas o Estado em seu próprio território poderá executá-la.

                                                                                                                         30  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  60  

Dessa forma, o direito nacional tem a obrigação de estar em

sintonia com o direito internacional, sendo este um ordenamento jurídico

coordenador e agregador das vontades Estatais, coordenado-as com a

finalidade de proteção dos direitos humanos31.

2.5. O CONSTITUCIONALISMO E O DIREITO INTERNACIONAL NA ANÁLISE DA SOBERANIA

A maioria dos Estados se regula por meio de uma Constituição,

ou uma norma fundamental que faça as vias daquela. Além da relação da

soberania, que, em muitos Estados, é quista pela Constituição32. Com o direito

internacional, interessante estudo também é a relação entre o

constitucionalismo e o direito internacional sob a ótica do estudo sobre a

soberania.

Para CELSO DE ALBURQUERQUE DE MELLO, não há

Constituição, ou mesmo entendimento de tribunal constitucional, que permita a

“alienação” da soberania estatal, “porque fazê-lo seria consagrar o fim do

Estado”33.

Com efeito, não é, para as Cortes Constitucionais, das mais

confortáveis teses afirmar que o direito internacional tem prevalência a suas

decisões. Para tanto, é necessário um pensamento institucionalizado

vanguardista dessas Cortes, mas, faticamente, parecem ainda não estar

preparadas para lidar com as decisões e/ou jurisprudências dos órgãos

internacionais.

                                                                                                                         31  “Na  interconexão  do  direito  interno  com  o  direito  internacional,  a  limitação  das  competências  do  Estado,  pela  atribuição  conferida  aos  órgãos  que  produzem  as  normas  supranacionais,  constitui,  iniludivelmente,  uma  limitação  à  própria  soberania  do  Estado,  considerada  esta  em  sua  concepção  mais  vinculada  à  ideia  de  capacidade  suprema  de  produzir,  por  si  e  internamente,  uma  ordem  jurídica”.  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  59  32  “Se  de  um  lado  o  conceito  tradicional  e  hermético  de  soberania  já  não  mais  prevalece,  até  mesmo  porque  desatende  aos  reclamos  da  sociedade  contemporânea,  é  certo  que  ele  ainda  é  proclamado,  inclusive  nas  Constituições,  por  resguardar  o  direito  de  cada  povo  de  decidir  a  sua  forma  política  de  ser  e  de  fazer-­‐se  construir  em  sua  história  de  maneira  a  não  se  subordinar  aos  comandos  de  potências  estrangeiras”  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  59  33  FURLAN,  Fernando  de  Magalhães,  op,  cit,  p.  60  

Todavia, o constitucionalismo, apoiando-se na soberania estatal,

não pode estar alheio ao processo de internacionalização do direito, bem como

afastado das decisões internacionais. Não pode, pois, servir de barreira para a

efetivação dos direitos humanos decorrente dos institutos do Direito

Internacional. Os direitos fundamentais e os direitos humanos não podem ser

duas esferas isoladas e ciumentas entre si; mas devem atentar que a finalidade

do direito é a proteção do indivíduo em todas as suas esferas, pois os Estados

existem para somente isso.

Conceber duas esferas protetivas distantes e sem diálogo é

conceber dois direitos que não protegem ninguém ao cabo, tendo em vista que

uma via sempre vai querer a prevalência de sua decisão, e não havendo uma

confirmação ao final desse processo. A decisão a ser cumprida no caso

concreto é sempre a mais benéfica para os indivíduos, seja ela de cunho

constitucional ou de cunho internacional, não podendo de forma alguma o

Estado se utilizar de uma pretenciosa soberania para descumprir decisões

internacionais.

3. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADPF 153.

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº

153/DF – ADPF 153 foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil – CFOAB contra a Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de

1979 – Lei de Anistia com o intuito de que o Supremo Tribunal Federal – STF

considerasse tal lei não recepcionada pela Constituição Federal de 1988.

Segundo essa lei acatada, todos aqueles que cometeram crimes

políticos ou conexos com estes, no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de

agosto de 1979, foram anistiados. Para o CFOAB não é

possível, consoante o texto da Constituição do Brasil, considerar válida a interpretação segundo a qual a Lei n. 6.683 anistiaria vários agentes públicos responsáveis, entre outras violências, pela prática de homicídios, desaparecimentos forçados, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e

atentado violento ao pudor, Sustenta que essa interpretação violaria frontalmente diversos preceitos fundamentais.34

Diante disso, O STF afirmou, em suma, que: (a) a lei de anistia se

deu por solução consensual das partes (em plena época da ditadura)35; (b) que

não era aplicável a jurisprudência internacional, porque não seria hipótese de

anistia ‘unilateral’, mas sim recíproca, sem questionar, contudo, quem foi que

se autoconcedeu a anistia; e (c) que o cidadão tinha direito à verdade, mas fez

questão de frisar que eventual ‘Comissão de Verdade’ não teria nem poderia

ter qualquer finalidade de persecução penal”36.

Os Ministros EROS GRAU, CÁRMEM LÚCIA, GILMAR MENDES,

ELLEN GRACIE, MARCO AURÉLIO, CELSO DE MELLO e o presidente do

Supremo CÉSAR PELUSO votaram pela recepção da Lei de Anistia. Ficaram

vencidos o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI e o Ministro CARLOS AYRES

BRITTO. O Ministro JOAQUIM BARBOSA, quando do julgamento, estava

licenciado e o Ministro DIAS TÓFFOLI estava impedido de julgar, vez que tinha

atuado no caso na função de Advogado Geral da União.

A partir de agora, destacam-se as principais fundamentações dos

ministros do STF levadas a efeito para o desfecho do caso posto, que têm

alguma relevância para o estudo do presente artigo, qual seja, a soberania e o

direito internacional.

O relator da ADPF 153, Ministro EROS GRAU, voto condutor do

julgamento, pautou seu voto pela posição restritiva do Supremo (self restraint),

vez que afirma que não é o caso do Poder Judiciário proceder à modificação da

                                                                                                                         34  Trecho  do  relatório  do  Ministro  EROS  ROBERTO  GRAU,  relator  da  ADPF  153.  35  CF.  PIOVESAN,  Flávia.  Lei  de  Anistia,  Sistema  Interamericano  e  o  caso  brasileiro.  In:  Crimes  da  Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  Corte  Interamericana  de  Diretos  Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  São  Paulo:  Ed.  Revista  dos  Tribunais,  2011,  pp.  73-­‐86,  p.  81  36  BALDI,  César  Augusto.  Guerrilha  do  Araguaia  e  direitos  humanos:  considerações  sobre  a  decisão  da  Corte  Interamericana.  In:  Crimes  da  Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  Corte  Interamericana  de  Diretos  Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  São  Paulo:  Ed.  Revista  dos  Tribunais,  2011,  pp  154-­‐173,  p.  154  

situação fático-jurídica dos anistiados, cabendo isso, tão somente, ao Poder

Legislativo.37

A Ministra CÁRMEM LÚCIA, embora tenha votado pela recepção

da Lei de Anistia, nos termos do voto do relator, reconheceu a injustiça do art

1º da Lei de Anistia, mesmo tisnando os direitos humanos, mas que a esfera

judicial não é a própria para revisão desse ato.38

O Ministro CELSO DE MELLO também votou de acordo com o

relator, mas teve o cuidado de analisar decisões da Corte Interamericana de

Direitos Humanos sobre leis de anistia, embora tenha chegado a um

entendimento diverso da Corte:

Reconheço que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (‘Barrios Altos’, em 2001, e ‘Loyaza Tamayo’, em 1998) e contra o Chile (‘Almonacid Arellano e outros’, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas ‘leis de autoanistia’.

A razão dos diversos precedentes firmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos apóia-se no reconhecimento de que o Pacto de São José da Costa Rica não tolera o esquecimento pela de violações aos direitos fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que amparam e protegem criminosos que ultrajaram, de modo sistemático, valores essenciais protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos e que perpetraram, covardemente, à sombra do Poder e nos porões da ditadura e que serviram, os mais ominosos e cruéis delitos, como o homicídio, o sequestro, o desaparecimento forçado das vítimas, o estupro, a tortura e outros atentados às pessoas daqueles que se opuserem aos regimes de exceção que vigoraram, em determinados momentos históricos, em inúmeros países da América Latina.

É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de auto-anistia, o que torna

                                                                                                                         37  RAMOS,  André  de  Carvalho.  Crimes  da  ditadura  militar:  A  ADPF  e  a  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.  In:  Crimes  da  Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  Corte  Interamericana  de  Diretos  Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  São  Paulo:  Ed.  Revista  dos  Tribunais,  2011,  pp.  174-­‐226,  p.  186  38  RAMOS,  André  de  Carvalho,  op,  cit,  p.  186  

inconsistente, para os fins deste julgamento, a inovação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Destaca-se, de igual forma uma passagem do voto do Ministro

GILMAR MENDES entendendo que a Lei de Anistia não deve ser modificada

tendo em vista à época da entrada da sua vigência:

Devemos refletir, então, sobre a própria legitimidade constitucional de qualquer ato tendente a revisar ou restringir a anistia incorporada à EC 26/1985. Parece certo que estamos, dessa forma, diante de uma hipótese na qual estão em jogo os próprios fundamentos de nossa ordem constitucional. Enfim, a EC 26/1985 incorporou a anistia como um dos fundamentos da nova ordem constitucional que se construía à época, fato que torna praticamente impensável qualquer modificação de seus contornos originais que não repercuta nas próprias bases de nossa Constituição e, portanto, de toda a vida político-institucional pós-1988.

O Ministro RICARDO LEWANDOWSKI foi o primeiro a se

manifestar contrariamente ao voto do relator. Para ele, aqueles que cometeram

crimes comuns não poderiam ser anistiados, somente os que por ventura

cometeram crimes políticos.

Para o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, a Lei de Anistia

impede que as partes envolvidas busquem a tutela jurisdicional, em claro

desrespeito ao inc. XXXV do art. 5º da Constituição. Ademais, aduz que:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os Estados Partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - também internalizada pelo Brasil - têm o dever de investigar, ajuizar e punir as violações graves aos direitos humanos, obrigação que nasce a partir do momento da retificação de seu texto, conforme estabelece o seu art. 1.1. A Corte Interamericana acrescentou, ainda, que o descumprimento dessa obrigação configura uma violação à Convenção, gerando a responsabilidade internacional do Estado, em face da ação ou omissão de qualquer de seus poderes ou órgãos

O Ministro CARLOS AYRES BRITTO, foi o outro vencido nesse

julgamento, na esteira do pensamento do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI,

não entende cabível conceder anistia àqueles que cometeram crimes comuns,

dando parcial provimento à ADPF, seguindo o entendimento da Corte

Interamericana de Direito Humanos, embora, em nenhum momento, a ela faça

referência.

4 – A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO GUERRILHA DO ARAGUAIA

4.1 – DO DEVER DE INVESTIGAR OS CRIMES OCORRIDOS NA GUERRILHA DO ARAGUAIA

No Caso Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana de

Direitos Humanos condenou o Brasil por violação a direitos humanos, em

virtude de crimes cometidos contra o desaparecimento de 62 pessoas na

Guerrilha do Araguaia, não se tendo informações sobre o paradeiro de 60 deles

até a data da decisão no caso, que é datada de 24.11.2010, quase 7 (sete)

meses após a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF

153, que foi no dia 29.04.2010.

O caso foi levado à esta Corte, após a denúncia de que em

virtude da Lei de Anistia, o Estado não realizou uma investigação penal com a

finalidade de julgar e punir as pessoas responsáveis pelo desaparecimento

forçado de 70 vítimas e a execução extrajudicial de outra pessoa.39

Diante disso, a Corte enfatizou que os Estados signatários do

Pacto de San José da Costa Rica têm:

“(...) a obrigação, conforme o Direito Internacional, de processar e, caso de determine sua responsabilidade penal, punir os autores de violações de direitos humanos, decorre da obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção Americana. Essa obrigação implica o dever dos Estados-Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas

                                                                                                                         39  Parágrafo  2  do  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.    

as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, o restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e, se for o caso, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos. Se o aparato estatal age de modo que essa violação fique impune e não se reestabelece, na medida das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas a sua jurisdição o livre e pleno exercícios de seus direitos.

Assim, gera-se a obrigação de investigar e punir aqueles que

deram causa ao desaparecimento forçado de pessoas, bem como daqueles

que cometeram crimes de torturas e homicídios. Em relação ao crime de

desaparecimento forçado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos

entende que este crime tem um caráter permanente, não cessando até que se

tenham notícias sobre o paradeiro do indivíduo:

No Direito Internacional, a jurisprudência deste Tribunal foi precursora da consolidação de uma perspectiva abrangente da gravidade e do caráter continuado ou permanente da figura do desaparecimento forçado de pessoas, na qual o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade. Em conformidade com todo o exposto, a Corte reiterou que o desaparecimento forçado constitui uma violação múltipla de vários direitos protegidos pela Convenção Americana, que coloca a vítima em um estado de completa desproteção e acarreta outras violações conexas, sendo especialmente grave quando faz parte de um padrão sistemático ou prática aplicada ou tolerada pelo Estado.40

Com isso, mesmo que se entenda que o Brasil não estava

obrigado a investigar fatos ocorridos antes de 10 de dezembro de 1998,

quando foi reconhecida a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos                                                                                                                          40  Parágrafo  103  da  caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.  

Humanos, a obrigação subsiste após essa data, tendo em vista o caráter

permanente do crime de desaparecimento forçado de pessoas.

Assim, o Brasil está sendo obrigado pela Corte Interamericana de

Direitos Humanos a investigar e, se for o caso, punir os violadores de direitos

humanos, com intuito de informar os familiares sobre o paradeiro dos

desaparecidos na região do Araguaia, quando da Guerrilha:

Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a importância do dever estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos. A obrigação de investigar e, se for o caso, julgar e punir, adquire particular importância ante a gravidade dos crimes cometidos e a natureza dos direitos ofendidos, especialmente em vista de que a proibição do desaparecimento forçado de pessoas e o correspondente dever de investigar e punir aos responsáveis há muito alcançaram o caráter de jus cogens.41

4.2. AS LEIS DE ANISTIAS E A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, as leis de

anistias, relativas a graves violações de direitos humanos, são incompatíveis

com o direito internacional e as obrigações internacionais dos Estados,42 tendo

em vista que elas contribuem para a perpetuação da impunidade:

(...) são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis

                                                                                                                         41  Parágrafo  137,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.    42  Parágrafo  147,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos.    

reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.43

Nessa esteira, para a Corte Interamericana de Direitos Humanos

não só as leis de autoanistias são consideradas contrárias ao Direito

Internacional, mas igualmente, a lei de anistia, nos moldes que foi aprovada

pelo Brasil. Para a Corte, o mais importante não está na forma como fora

concebida a norma de anistia, se por acordo político, ou se tratando de lei de

autoanistia, mas sim no aspecto material da lei, em que essa é obstáculo para

investigação e punição de graves violações de direitos humanos.44

4.3 – DA OBRIGAÇÃO DO BRASIL EM CUMPRIR A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A Corte Interamericana de Direitos Humanos é a ultima instância,

quando o assunto é direitos humanos no continente americano45. Assim, suas

decisões devem ser atendidas por todos aqueles Estados que reconhecem sua

jurisdição, como é o caso do Brasil, sob pena de transgressão do art. 68, §1º,

da Convenção de Americana de Direitos Humanos46 e do artigo 2747 da

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.

Dessa forma, a República Federativa do Brasil, conforme a

decisão da Corte no caso Guerrilha do Araguaia está obrigado a:

a) investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os

responsáveis, em que a Lei de Anistia não sirva de obstáculo a essa

determinação48;

b) determinar do paradeiro das vítimas49;

                                                                                                                         43  Parágrafo  171,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  44  Parágrafo  175,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  45  Parágrafo  176,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  46  “Artigo  68  -­‐  1.  Os  Estados-­‐partes  na  Convenção  comprometem-­‐se  a  cumprir  a  decisão  da  Corte  em  todo  caso  em  que  forem  partes”.  47  “Artigo  27  -­‐  Uma  parte  não  pode  invocar  as  disposições  de  seu  direito  interno  para  justificar  o  inadimplemento  de  um  tratado”  48  Parágrafo  253  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  

c) publicar da sentença da Corte50, que aliás, já foi cumprida,

quando a Secretaria Especial de Direitos Humanos, vinculada à Presidência da

República, disponibilizou a sentença em seu sítio eletrônico;

d) editar ato público de reconhecimento de responsabilidade

internacional, em que a Corte determina que o Brasil reconheça sua

responsabilidade internacional, bem como celebre atos de importância

simbólica, que assegurem a não repetição das violações ocorridas no presente

caso51;

e) tipificar do delito de desaparecimento forçado, em que a Corte

determinou que o Brasil continue com as proposições legislativas para essa

tipificação (PL 4038/08 e PL 301/07)52;

f) instituir a Comissão da Verdade, com o intuito de vasculhar o

passado referente às pessoas desaparecidas, em busca de elementos que

possam determinar seu paradeiro. Todavia, a Corte ressalva que a instituição

dessa Comissão, não exclui a obrigatoriedade do Brasil de investigar e punir os

violadores de direitos humanos da época em questão5354.

Diante de tais mandamentos, para VALERIO DE OLIVEIRA

MAZZUOLI e LUIZ FLAVIO GOMES, o Brasil tem a obrigação de cumprir a

decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não tendo qualquer

“valor jurídico a Lei de Anistia brasileira”55.

5. A RELAÇÃO ENTRE A DECISÃO DA CORTE E A DO STF

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     49  Parágrafo  258  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  50  Parágrafo  270  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  51  Parágrafo  274  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  52  Parágrafo  284  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  53  Parágrafo  297  e  ss,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  54  Cumprindo  essa  decisão,  o  Brasil  editou  a  Lei  nº  12.528,  de  18  de  novembro  de  2011,  que  cria  a  Comissão  Nacional  da  Verdade  no  âmbito  da  Casa  Civil  da  Presidência  da  República.    55  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira.  Crimes  da  ditadura  militar  e  o  “Caso  Araguaia”:  aplicação  do  direito  internacional  dos  direitos  humanos  pelos  juízes  e  tribunais  brasileiros.  In:  Crimes  da  Ditadura  Militar:  Uma  análise  à  luz  da  jurisprudência  atual  da  Corte  Interamericana  de  Diretos  Humanos.  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira  (Coords).  São  Paulo:  Ed.  Revista  dos  Tribunais,  2011,  pp.  49-­‐72,  p.  72  

Assim, como pensam VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI e LUIZ

FLÁVIO GOMES, também entendemos que a República Federativa do Brasil

deverá acatar e cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos

Humanos. Veja-se, que a obrigação de cumprir a decisão da Corte

Interamericana recai sobre todas as funções (ou poder) do Estado brasileiro,

não somente, sobre o Poder Executivo.

Assim, é bom repisar que a Corte Interamericana de Direitos

Humanos não revogou a decisão do Supremo Tribunal Federal e nem retirou

do ordenamento jurídico brasileiro a Lei de Anistia, até porque sua função não

é essa, apenas atuou dentro de seu âmbito de competência56. A Corte, em

relação ao STF, apenas conclui que órgão brasileiro não levou em

consideração os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo

Brasil, não analisando a Lei de Anistia sob o controle de convencionalidade57:

Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando um Estado é Parte de tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.58

                                                                                                                         56    “Primeiro:  que  a  punição  do  Brasil  “não  revoga,  não  anula,  não  caça  a  decisão  do  Supremo”.  Correto,  realmente.  Cada  qual  analisou  no  seu  âmbito  de  competência.  E,  no  plano  do  direito  internacional,  a  lei  “carece  de  efeitos  jurídicos”.  E  como  a  própria  já  decidiu,  tampouco  impediria  que  a  Constituição  tivesse  que  ser  alterada  para  se  conformar  aos  parâmetros  do  direito  internacional”.  BALDI,  César  Augusto.  Op,  cit,  p.  171  57  GOMES,  Luiz  Flávio,  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira,  op,  cit,  pp.  52-­‐53  58  Parágrafo  176,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  

Ainda no juízo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a

proteção dos direitos humanos exercida pelos órgãos internacionais tem um

viés subsidiário, cabendo aos órgãos judiciais internos a imediatividade dessa

proteção. Assim, os órgãos internacionais, segundo a Corte, nos quais ela se

inclui, não têm o condão de revisar ou cassar as decisões internas dos Estados

que julguem casos práticos sobre direitos humanos, mas apenas verificar se

tais decisões estão de acordo ou não com as normas internacionais de

proteção aos direitos humanos59.

Para ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, o direito internacional

considera todos os atos internos (leis, atos administrativos, decisões judiciais,

etc.) expressões da vontade de um Estado, “que devem ser compatíveis com

seus engajamentos internacionais anteriores, sob pena de ser o Estado

responsabilizado internacionalmente”. Dessa forma, na esteira do visto acima,

o Estado não poderá se utilizar de nenhum ato interno para descumprir

obrigação internacional assumida, podendo, caso descumpra, ser coagido a

reparar os eventuais danos causados. Assim, mesmo a norma constitucional

de um Estado é vista não como “norma suprema”, mas como mero fato, que,

caso venha a violar norma jurídica internacional, acarretará a responsabilização

internacional do Estado infrator”60.

Com efeito, outra não seria a conclusão diante de tal assunto,

tendo em vista que a própria Constituição Federal, por meio do art. 7º61, dos

Atos de Disposições Transitórias Constitucionais, determina a subordinação

jurídica brasileira a um tribunal internacional de direitos humanos, ou seja, a

jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos é um

ditame constitucional.

Após sabedores da decisão da Corte Interamericana de Direitos

Humanos, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal deram declarações a

respeito dos efeitos jurídicos (ou não) dessa decisão internacional.

                                                                                                                         59  Parágrafo  32,  Caso  Guerrilha  do  Araguaia,  Corte  Interamericana  de  Direitos  Humanos  60  RAMOS,  André  de  Carvalho,  op,  cit,  pp.  209-­‐210  61  “Art.  7º.  O  Brasil  propugnará  pela  formação  de  um  tribunal  internacional  dos  direitos  humanos”  

Para o Ministro CÉSAR PELUSO, a decisão da Corte

Interamericana apenas gera efeitos na seara da Convenção Americana de

Direitos Humanos, não gerando qualquer efeito para os anistiados pela lei

brasileira. Se, porventura, a decisão internacional gerar algum efeito a essas

pessoas, essas poderão recorrer com pedido de habeas corpus, que "O

Supremo vai conceder na hora."62

Essas declarações do atual Ministro Presidente do STF, ao que

parece, vão de encontro com a passagem de seu voto na Ext. 1085, mais

conhecido como caso Battisti, em que invocando o art. 2663 da Convenção de

Viena afirmou categoricamente que um Estado não pode descumprir tratado ao

qual se vinculou, “este é principal capital da teoria e da prática dos tratados,

pois não tem nexo nem senso conceber que sejam celebrados para não ser

cumpridos por nenhum dos Estados contratantes”. Ademais, tais declarações

não se alinham ao entendimento do próprio Ministro no julgamento do HC

87585, que tratava de um dos julgamentos que o STF se debruçou sobre a

questão da prisão civil do depositário infiel:

Eu estava até recentemente algo hesitante à taxonomia dos tratados em face da nossa Constituição, mas estou seguramente convencido, hoje, de que o que a globalização faz e opera em termos de economia, no mundo, a temática dos direitos humanos deve operar no campo jurídico. Os direitos humanos já não são propriedade de alguns países, mas constituem valor fundante de interesse de toda a humanidade.

Por isso, adiro à posição do grande publicista Paulo Borba Casella, o qual sustenta que a temática dos direitos humanos, por dizer respeito aos direitos fundamentais, que têm primazia na Constituição, é sempre ipso facto material constitucional. E é possível extrair da conjugação dos §§2º e 3º do art. 5º que o que temos aí é, pura e simplesmente, uma distinção entre os tratados sem status de emenda constitucional, que são materialmente constitucionais, e os do §3º, que são material e formalmente constitucionais. Qual a substância da distinção? A de regimes jurídicos. Com qual consequência? Com uma única conseqüência: saber os efeitos ou os requisitos do ato de denúncia pelo qual o Estado pode desligar-se dos seus compromissos internacionais. Esta é a única relevância na distinção entre as hipóteses do §2º e do §3º. E acho que o Tribunal não deve, com o devido respeito, ter receio de

                                                                                                                         62  Jornal  Estadão,  dia  16.12.2010.  63  “Artigo  26.  Todo  tratado  em  vigor  obriga  as  partes  e  deve  ser  cumprido  por  elas  de  boa  fé”.  

perquirir qual a extensão dos direitos fundamentais, até porque eles são históricos. Ou seja, é que preciso que a Corte, no curso da história, diante de fatos concretos, vá descobrindo e revelando os direitos humanos que estejam previstos nos tratados internacionais, enquanto objeto da nossa interpretação, e lhes dispense a necessária tutela jurídico-constitucional" (negritos no original, sublinhado pelo autor)

De igual forma, O Ministro MARCO AURÉLIO aduziu que o

executivo brasileiro está submetido ao julgamento do STF, não podendo

afrontá-lo para seguir a Corte Interamericana de Direitos Humanos. "É uma

decisão que pode surtir efeito ao leigo no campo moral, mas não implica

cassação da decisão do STF", disse. "Quando não prevalecer a decisão do

Supremo, estaremos muito mal."64

Mais preocupado com os efeitos internacionais sobre um eventual

descumprimento da decisão internacional, o Ministro CARLOS AYRES BRITTO

acentuou que prevalece a decisão do Supremo, mas entendeu a situação

ímpar em que se encontra o Brasil: "é uma saia-justa, um constrangimento para

o País, criado pelo poder que é o menos sujeito a esse tipo de vulnerabilidade

(o Judiciário)"65.

Para ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, caso o Supremo Tribunal

Federal mantenha esse “posicionamento negacionista”, o art. 68, I, da

Convenção Americana de Direitos Humanos, que trata da força vinculante das

decisões da Corte Interamericana, está fadado a ser considerado

inconstitucional ou sofrer uma interpretação conforme a Constituição de 198866.

6 – UMA CONCLUSÃO NECESSÁRIA: O CUMPRIMENTO DA DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS FERE A SOBERANIA BRASILEIRA?

Com a teoria da relativização da soberania, o Brasil, ao atender

as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cumpre com                                                                                                                          64  Jornal  Estadão,  dia  16.12.2010.  65  Jornal  Estadão,  dia  16.12.2010.  66  RAMOS,  André  de  Carvalho,  op,  cit,  p.  214  

seu papel internacional, e em nada menoscaba a sua parcela de soberania,

que, como visto, restará intocável, no sentido de preservação do seu território e

de cumprimento de decisões internas ou internacionais.

A soberania não poderá servir de escudo para o não cumprimento

de decisões internacionais por qualquer que seja a entidade ou órgão do

Estado. Ainda mais quando essas decisões vêm de uma Corte que a própria

Constituição Federal pugnou pela sua criação, e que o Brasil aceitou sua

jurisdição. Aceitar a jurisdição de um Tribunal implica necessariamente

obedecer as suas decisões.

Como defendido neste trabalho, cada Estado representa no direito

internacional uma unidade jurídica autônoma, em que a soberania de cada

Estado seria relativizada para reconhecer a primazia dos direitos humanos em

toda a comunidade internacional. Assim, os Estados seriam competentes para

disciplinar quaisquer matérias, inclusive sobre direitos humanos, que restaria

qualificados como direitos fundamentais, mas que não poderiam estar em

contraste com as normas de direito internacional, nem com as decisões das

Cortes responsáveis pela defesa dos direitos humanos. Nessa esteira,

entende-se serem infelizes as passagens acima transcritas pelos Ministros do

Supremo, não reconhecendo a jurisdição e vinculação jurídico-operacional da

decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não contribuindo em

nada para o desenvolvimento do diálogo entre o STF e a CIDH.

Ademais, frise-se que a Corte não vê nenhuma diferença entre

decisão do Supremo, ou decreto legislativo, por exemplo, ou qualquer ato

administrativo no âmbito do Poder Executivo. São todos esses exemplos de

atos internos da República Federativa do Brasil.

Buscando uma aparente conciliação entre essas duas decisões,

pode-se supor que a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

apenas limitou a eficácia da decisão do Supremo Tribunal Federal ao que

tange ao espaço da região do Araguaia, ao período de 1972 a 1975 aos crimes

de tortura, homicídios, estupros e outros crimes graves, bem como o

desaparecimento forçado de pessoas, durante esse período observado nesse

espaço. Assim, em tese, a Lei de Anistia, considerada recepcionada pela

Constituição Federal de 1988, conforme decisão do Supremo, valeria para

todos os outros casos que não foram atacados na Corte de Direitos Humanos.

Com efeito, essa ainda não é a melhor das soluções, pois a Corte

Interamericana de Direitos Humanos foi enfática ao decidir que as leis de

anistias são contrárias à Convenção Americana de Direitos Humanos. O que

não se entende é como o STF considerou a Lei de Anistia válida diante do nível

de proteção que a Constituição Federal de 1988 dispensa aos direitos

fundamentais. Todavia, pode ser uma aparente solução para o problema a

proposta no parágrafo anterior.

Assim, cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos

Humanos, no caso Guerrilha do Araguaia, é o mínimo que se espera por parte

da República Federativa do Brasil. Aliás, também se espera que o Supremo

cumpra seu papel como protetor máximo, no território brasileiro, dos direitos e

garantias individuais de toda a sociedade brasileira, ainda mais, nesse caso,

dos direitos e garantias dos familiares dos mortos e desaparecidos em virtude

da Guerrilha do Araguaia. Não podemos conceber que um Estado vanguardista

na proteção dos direitos fundamentais ponha a salvo a responsabilização de

criminosos. Realmente isso não se coaduna com a sinceridade do Estado

brasileiro para com seus nacionais, e o STF parece estar na contramão da

história.

Por fim, cumpre ressaltar que o STF, cumprindo a decisão da

Corte, não estaria de forma alguma caindo em descrédito perante a sociedade

brasileira. Muito pelo contrário. Ao consentir na investigação dos responsáveis

pelos violadores de direitos humanos, estaria o Supremo a reconhecer a

primazia dos direitos humanos em solo brasileiro, sinalizando para um futuro

em que os direitos fundamentais estarão mais efetivados.

7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALDI, César Augusto. Guerrilha do Araguaia e direitos humanos:

considerações sobre a decisão da Corte Interamericana. In: Crimes da

Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI,

Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp

154-173

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21ª ed. São

Paulo: Ed. Saraiva, 2011

FURLAN, Fernando de Magalhães. Integração e Soberania – O Brasil e o

Mercosul. São Paulo: Ed. Aduaneiras, 2004,

GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar

e o “Caso Araguaia”: aplicação do direito internacional dos direitos humanos

pelos juízes e tribunais brasileiros. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos

Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São

Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 49-72

KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. Org: Mario Losano. São Paulo: Martins Fontes, 2002

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Luís Carlos

Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005

PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, Sistema Interamericano e o caso brasileiro.

In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da

Corte Interamericana de Diretos Humanos. GOMES, Luiz Flávio,

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

2011, pp. 73-86,

RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: A ADPF e a Corte

Interamericana de Direitos Humanos. In: Crimes da Ditadura Militar: Uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Diretos

Humanos. GOMES, Luiz Flávio, MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Coords). São

Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, pp. 174-226.