Artigo - Bortolaia Silva, Elizabeth - Teorias Sobre Trabalho e Tecnologias Domésticas (2003)

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Trabalho de casa é tradicionalmente trabalho de mulher. Homens têm participado minimamente no trabalho do lar. A minha preocupação neste paper é discutir o desenvolvimento de tecnologias para o trabalho doméstico face aos limites desse padrão tradicional de divisão do trabalho entre os gêneros. Meu enfoque é principalmente teórico e abrange uma discussão aprofundada da literatura contemporânea existente internacionalmente. Na última seção do paper eu considero a aplicabilidade das teorias para o caso brasileiro e questiono como circunstâncias nacionais particulares desafiam a abrangência das teorias discutidas.

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TEORIAS SOBRE TRABALHO E TECNOLOGIAS DOMSTICAS

TEORIAS SOBRE TRABALHO E TECNOLOGIAS DOMSTICAS.PRIVATE

Implicaes para o BrasilElizabeth Bortolaia Silva*

*Professora visitante, no Departamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica do Instituto de Geocincias da Universidade Estadual de Campinas.

Endereo Permanente:School of Sociology and Social Policy

University of Leeds

Leeds LS8 2QA - England

INTRODUO

Trabalho de casa tradicionalmente trabalho de mulher. Homens tm participado minimamente no trabalho do lar. A minha preocupao neste paper discutir o desenvolvimento de tecnologias para o trabalho domstico face aos limites desse padro tradicional de diviso do trabalho entre os gneros. Meu enfoque principalmente terico e abrange uma discusso aprofundada da literatura contempornea existente internacionalmente. Na ltima seo do paper eu considero a aplicabilidade das teorias para o caso brasileiro e questiono como circunstncias nacionais particulares desafiam a abrangncia das teorias discutidas.

Variaes significativas no padro tradicional de diviso do trabalho entre os gneros tm aparecido mais recentemente, com maior intensidade nos pases de industrializao mais avanada. As mudanas histricas de padro tm sido associadas com o aumento da participao feminina no mercado de trabalho: quando mulheres casadas tm emprego em perodo integral, as tarefas domsticas so compartilhadas com homens em maior proporo (Gershuny, Godwin e Jones 1994). O maior nmero de mulheres no mercado de trabalho tambm tem sido associado historicamente com o desaparecimento de empregadas (e empregados) para o servio domstico e o desenvolvimento concomitante de tecnologias para o trabalho domstico (Glucksmann 1990).

As tecnologias domsticas tm sido classificadas em trs grupos principais (Hartmann 1974). Servios de infraestrutura: gua encanada, electricidade, gs, esgoto e coleta de lixo. Eletrodomsticos: mquinas utilizadas para desempenhar o trabalho domstico. Mercadorias: bens pr-processados ou semi-processados comprados no mercado. Existe uma relao muito estreita entre servios de infra-estrutura, eletrodomsticos e mercadorias. Eles formam uma corrente de dependncia na qual, por exemplo, o desenvolvimento ou utilizao de tipos particulares de eletrodomsticos dependem da disponibilidade de servios de infraestrutura particulares, e muitas mercadorias dependem da disponibilidade de certos eletrodomsticos. Por exemplo, comidas para fornos de microondas dependem da tecnologia de microondas, a qual requer acesso eletricidade.

Esses tipos de tecnologias apareceram histricamente em momentos diferentes nas vrias sociedades industriais avanadas, e no existe consenso acerca dos seus efeitos sobre o trabalho domstico. Se h consenso geral de que a inovao tecnolgica dos servios de infra-estrutura trouxe melhorias considerveis ao trabalho domstico, pesquisas sobre os usos e efeitos dos eletrodomsticos sobre o trabalho domstico tm apresentado maiores controvrsias, enquanto que as mercadorias so simplesmente consideradas em relao aos prprios eletrodomsticos ou, mais generalizadamente, a estilos de vida. Portanto, eletrodomsticos tm sido o foco principal dos estudos sobre tecnologias domsticas.

A associao entre, por um lado, o aumento da participao das mulheres no mercado de trabalho, e a pequena mudana nas relaes entre os gneros no espao domstico e, por outro lado, o desenvolvimento de tecnologias domsticas, tm se evidenciado nos contextos da Inglaterra (Glucksmann 1990, Cockburn and Ormrod 1993, Gershuny 1983), dos Estados Unidos (Cowan 1983, Lebergott 1993) e de outros pases de industrializao avanada. E possivel se encontrar tendncias semelhantes no Brasil?

A participao das mulheres na fora de trabalho brasileira cresceu enormemente nos ltimos 40 anos e atualmente perfaz mais da metade do emprego masculino. Essa participao aparece mais acentuada na zona urbana e nos estados mais desenvolvidos, mas os dados se referem ao mercado formal de trabalho. (Espera-se que a proporao de mulheres seja significativamente maior contando-se o mercado informal.) As propores de mulheres casadas, unidas consensualmente e separadas (incluindo desquitadas e divorciadas) aumentou mais significativamente do que aquela de mulheres solteiras. A proporo de empregadas domsticas tem diminudo, principalmente nos centros urbanos mais desenvolvidos, onde o emprego de trabalhadoras domsticas est tambm concentrado. A proporo de domiclios possuidores de tecnologias para o trabalho domstico (tecnologias "tradicionais" como foges, geladeiras e mquinas de lavar roupas; ou tecnologias "modernas" como fornos de microondas, freezers e mquinas de lavar loua) tem aumentado, embora com flutuaes de mercado acentuadas, conforme a situao econmica da populao (Toledo 1989, Neto 1992).

De um ponto de vista geral, parece que as tendncias apresentadas nos pases de industrializao avanada poderiam se replicar no Brasil. Todavia, importante atentar para o significado especfico das relaes entre homens e mulheres no Brasil e para as suas respectivas relaes com o trabalho domstico, alm das tendncias de emprego e do mercado de consumo. Sobretudo, necessrio refletir sobre o fato de cerca de 2/3 das mulheres brasileiras trabalharem em servios manuais e domsticos (cerca de 4/5 das mulheres negras/pardas e cerca da metade das brancas).

muito comum as reflexes sobre as relaes entre trabalho e tecnologias domsticas enfocarem quase que exclusivamente a classe mdia branca vivendo em espaos urbanos. Eu quero primeiramente explorar as implicaes do debate terico sobre trabalho domstico e tecnologias domsticas, tal como este tem se desenvolvido nos pases mais avanados, para depois considerar as implicaes desse debate para o Brasil, e as contribuies que as especificidades do caso brasileiro podem trazer para as teorias existentes.

AS TEORIAS

Os debates mais frutferos sobre transformaes do trabalho domstico, particularmente dentro de perspectivas feministas, enfocam os efeitos das tecnologias domsticas sobre o trabalho domstico, sob dois temas principais interrelacionados. Um tema considera a relao entre trabalho e tecnologia: As tecnologias domsticas tornam o trabalho domstico mais fcil, mais simples, mais rpido, menos cansativo? As tecnologias domsticas liberam as mulheres do trabalho domstico? Outro tema se refere reestruturao das relaes de gnero na sociedade e dentro dos lares: Como as tecnologias se relacionam com a diviso do trabalho entre os gneros? As tecnologias domsticas contribuem para uma participao mais egualitria entre homens e mulheres no trabalho domstico?

Eu identifico trs posies tericas na discusso sobre a relao entre tecnologias domsticas e trabalho domstico.

A primeira enfatiza o poder conservador das tecnologias afirmando que as tecnologias domsticas no tm tido historicamente impactos positivos sobre o trabalho domstico, e que o padro tradicional de diviso do trabalho entre os gneros no lar tem sido reforado com os desenvolvimentos tecnolgicos.

A segunda posio terica considera as melhorias tecnolgicas em relao ao trabalho domstico, sob a suposio de que as solues para a liberao das mulheres do trabalho domstico se repousam no setor de servios. A reestruturao das relaes de gnero esto fadadas a no ocorrer a nvel dos lares. O mercado, via demanda, o foco da modernizao tecnolgica e da reestruturao dos gneros.

A terceira posio assume que a tecnologia se interrelaciona com o trabalho domstico de maneira concreta e positiva. Aceita-se tambm que a inovao das tecnologias domsticas tem algum efeito sobre a reestruturao das relaes de gnero. O emprego feminino est no centro dessas discusses tanto com relao as demandas por melhorias tcnicas, quanto com relao as perspectivas de melhorias das condies no mercado de trabalho.

Em todas essas trs posies tericas aparece o reconhecimento da atuao de um conjunto de aspectos tais como emprego feminino, ideologias da famlia, patriarcado, produo capitalista e mercados de consumo. A literatura oferece evidncias empricas ricas, aambarcando as disciplinas de histria, economia, sociologia, antropologia e estudos feministas. Eu discuto cada uma dessas trs posies tericas considerando seus pontos fortes e fracos para o desenvolvimento de futuras pesquisas, e do debate terico nesse campo de estudo.

O poder conservador da tecnologia

Eu coloco dentro desse grupo os vrios estudos que enfatizam que as tecnologias domsticas, ou no tm tido nenhum impacto positivo sobre o trabalho domstico, ou tm tido apenas um impacto muito pequeno; que a diviso de gnero do trabalho do lar no afetada pela disponibilidade e uso dessas tecnologias, e que as tecnologias no influenciam positivamente as vidas das mulheres que fazem trabalho domstico. (Eu no assumo que as/os autoras/es desses estudos tm vises conservadoras, eu enfatizo que elas/eles vem as tecnologias como tendo um poder conservador dentro dos lares).

O estudo de maior influncia apresentando essa posio o de Ruth Cowan (1974, 1976, 1979, 1983). Ela embasou suas reflexes em trabalhos anteriores de Alison Ravetz (1965) e se engajou com um grande nmero de estudos produzidos na dcada de 1970 nos Estados Unidos, principalmente os the Charles Thrall (1970, 1982), Joann Vanek (1973, 1978), Christine Bose (1979), e Bose, Philip Bereano e Mary Maloy (1984).

O argumento principal compartilhado por esses estudos que praticamente todas as ocupaes domsticas estereotipadamente masculinas tm sido historicamente eliminadas pelas inovaes tecnolgicas e econmicas, enquanto que as mulheres tm sido amarradas cada vez mais ao trabalho domstico. Isto significa que desde as primeiras inovaes em servios de infra-estrutura, at as mais recentes tecnologias domsticas modernas, as tarefas substitudas tm sido aquelas relacionadas com os servios dos homens.

Trabalhando nessa linha de argumento, Thrall (1982) afirma que os novos produtos so desenvolvidos para apoiar a estrutura familiar dominante no lar; Bose (1979) argumenta que a aquisio de quantidades crescentes de tecnologias do lar aumenta a diviso de trabalho estereotipada dos gneros; Cowan (1983) demonstra que o tempo poupado com a mecanizao dispendido em exigncias de padres mais altos descompensando a vantagem criada pela tecnologia; e Vanek (1978) argumenta que uma "identidade de metier" tem sido criada com o acesso a equipamentos modernos e a correspondente demanda por padres uniformes de trabalho domstico.

Um exemplo desses pontos de vista fornecido pela anlise que Cowan faz do trabalho de lavagem de roupa e da mquina de lavar roupas (1974, 1983). A maior parte da lavagem de roupa das classes mdias era feita em lavanderias comerciais ou por lavadeiras contratadas. Nos Estados Unidos, o advento da mquina de lavar roupas matou ambos os negcios de lavanderias quanto os empregos das lavadeiras depois dos anos de 1920. A lavagem de roupas passou a ser uma tarefa da dona de casa a ser desempenhada dentro de casa. Porque a lavagem de roupa se tornou mais fcil, esta feita mais frequentemente, as pessoas esperam (e se espera delas) usar roupas mais limpas, aumentando os lucros dos fabricantes de sabo. Publicitrios - histricamente uma profisso predominantemente masculina - ajudam a construir a ideologia de limpeza que subjuga as mulheres "intensificao do trabalho domstico". Este exemplo tambm indica a "proletarizao das donas de casa", cuja ocupao mudou de gerentes a operadoras.

Outra ilustrao do poder conservador das tecnologias nos lares fornecida pelo estudo de Thrall (1970, 1982) sobre os efeitos da introduo da mquina de lavar louas e do triturador de lixo na diviso do trabalho domstico. Ele argumenta que seguindo-se a introduo das mquinas de lavar loua, as mulheres passam a dominar a lavao de louas (ou o controle da mquina) deslocando os homens da atividade. Levar o lixo pra fora, o que, segundo Thrall, tende a ser uma tarefa de homem, fica eliminado com a introduo do triturador de lixo.

Existem alguns problemas metodolgicos srios com essas anlises. Elas aambarcam quase que exclusivamente os estratos urbanos de classe mdia. As mudanas histricas e os aspectos relevantes que do os contornos a perodos diferentes so desconsiderados, na medida em que o argumento da intensificao contnua do trabalho domstico forosamente aplicado, sem consideraes sobre o estrato econmico, a regio geogrfica, ou aos diferentes aspectos do mercado de trabalho.

Por exemplo, o estudo de Thrall baseado numa amostra de 99 famlias da classe mdia com renda acima da mdia, vivendo num subrbio de Boston, onde a maioria das donas de casa no trabalhava fora. A anlise de Cowan se centra nas mudanas histricas para a dona de casa de classe mdia que perdeu seus serviais domsticos na dcada de 1920, e passou a fazer ela prpria o trabalho domstico. As comparaes histricas de Vanek sobre o tempo dispendido no trabalho domstico nas dcadas de 1920/30 e de 1960 so baseadas em amostras muito heterogneas.

Emprego, educao, trabalho domstico remunerado, contextos rurais ou urbanos e nveis de renda so aspectos que afetam enormemente as relaes entre trabalho e tecnologia e entre os gneros na diviso domstica do trabalho. Mas, existe uma sobre-generalizao nas descobertas desses estudos. Essas descobertas tm sido reiteradas, sem questionamento, em outros estudos que lhes seguiram, reforando uma aceitao ampla e sem problemas do carter conservador das tecnologias domsticas.

Talvez o maior problema com estes estudos pioneiros americanos justamente a forte referncia que eles tm propiciado para pesquisas futuras. De certa maneira, as tecnologias domsticas se tornaram uma preocupao vazia, uma vez que foi estabelecido, e aceito, que um certo tipo de conspirao patriarcal estava contida na inovao das tecnologias domsticas, as quais acorrentavam as mulheres ao trabalho domstico para sempre. Todavia, esses estudos no explicam com convico porque os domiclios so to impermeveis s influncias tecnolgicas. Ideologias e culturas foram tomadas para contrabalanar possveis determinaes tecnolgicas. Mas essas ideologias e culturas aparecem como enormes categorias monolticas e nenhuma dimenso de conflito e de controle de recursos no espao do lar considerado nesses estudos. Enquanto dada visibilidade s mulheres, os homens permanecem ausentes, exceto como uma categoria abrangente de patriarcas. O foco centrado em preocupaes americanas tambm deixou outras particularidades nacionais sem exame, a despeito dos pretenses de universalidade das explicaes.

A produo desses estudos nos Estados Unidos, desde o final dos anos de 1960 at o incio dos anos de 1980, fazia parte do movimento feminista nascente. Eles se contrapunham a modelos de explicao sociolgica funcionalista tradicionais, e suas correspondentes vises polticas conservadoras, de que a folga das mulheres gerada pelo desenvolvimento das tecnologias domsticas havia deixado espao para ideologias perigosas penetrarem no seio da famlia. Cowan (1976), por exemplo, explicitamente debate com Ogburn e Nimkoff (1955) e Goode (1964), que produziram escritos de influncia sobre a famlia moderna e tecnologia, expressando preocupao com o desmantelamento da famlia tradicional. Sob a luz desses debates, tornara-se importante demonstrar, de um lado, que a tecnologia havia afetado o trabalho domstico mnimamente, que as mulheres estavam mais ocupadas do que antes, e que a tecnologia havia facilitado a manuteno dos modelos familiares em face de mudanas como o emprego de mulheres fora de casa. Por outro lado, tambm existia uma necessidade de mostrar como as mulheres eram a metade sobrecarregada e privada da sociedade.

Apesar desses problemas metodolgicos e investidas tericas de convenincia, a maioria dos estudos sobre tecnologias domsticas nesse grupo so ricos e bem informados, apresentando comentrios agudos e debatendo inteligentemente as perspectivas feministas com as vises funcionalistas do funcionamento da sociedade e do trabalho nos domiclios. Ligaes entre trabalho feminino, tecnologias domsticas e as lidas dos lares so vistas sob uma perspectiva bastante diferente noutro grupo de estudos desenvolvido nos anos de 1980. Estes se centram nos benefcios comparativos entre o acesso a bens de consumo ou a servios de consumo.

Transferncias dos domiclios para o mercado

Os estudos que eu agrupo dentro desta posio contm um conjunto de idias menos homogneo apesar de compartilharem alguns pressupostos bsicos. Nessas anlises os aspectos centrais so o crescimento das oportunidades de emprego das mulheres, e a resultante "economizao" do trabalho domstico.

Modelos dessa linha de trabalho so os estudos de Hilary Silver (1987), Tanis Day (1992), Juliet Schor (1992) e, em certa medida, Jonathan Gershuny (1983, 1992, 1994). A tenso nas vises desses autores respeito da importncia relativa dos bens domsticos, e dos servios de mercado, como soluo para o trabalho domstico, expressada em termos de oportunidades de custo do tempo de trabalho da dona de casa: padres mais altos de trabalho domstico compensam o custo mais alto de mulheres no trabalharem sob pagamento. Isto significa que as exigncias do trabalho domstico so to maiores quanto maior for a disponibilidade de trabalho das mulheres dedicado a esse tipo de trabalho. Portanto, as crescentes oportunidades de emprego feminino aumentariam a demanda por tecnologia domstica eficiente e servios de mercado eficientes para os lares.

Day (1992) argumenta que o valor crescente do trabalho feminino no mercado de trabalho aumenta tambm o valor do seu tempo no lar, oferecendo um incentivo ao incremento da produtividade na produo domstica. Historicamente, o decrscimo da oferta de empregadas/os domsticas/os, e o aumento do custo de compra dos servios domsticos comprados, criou a necessidade de substituir o trabalho humano por tecnologias domsticas. Esses fatores levaram ao uso generalizado de tecnologia nos lares de todas as mulheres independentemente do nvel de renda ou status empregatcio. (Este argumento ecoa o de Vanek (1979) a respeito da criao de uma identidade de mtier das donas de casa e a consequente uniformizao de padres de trabalho domstico). Ainda, Day sugere que at a dcada de 1960 fatores do mercado de trabalho influenciaram as decises dos domiclios de comprarem bens de capital. A partir da dcada de 1970 tem sido a existncia dos bens de capital domiciliares, que tem afetado a vontade das mulheres de entrar na fora de trabalho.

A relao entre trabalho e tecnologia central s preocupaes desta segunda perspectiva terica, mas a diviso de trabalho tradicional entre os gneros percebida como esttica, ou mudando minimamente, em todos os estudos, com a exceo do de Schor (1992).

Silver (1987) mostra que o crescimento da industrializao do trabalho domstico nos Estados Unidos na dcada de 1980 est associado com o crescimento do emprego em indstrias especficas tais como as lavanderias, restaurantes e lanchonetes, cuidados de criana remunerado, servios de consertos e hotis. Para Silver, a alternativa mais eficiente para a reduo do tempo comprometido com o trabalho domstico no advm do uso da tecnologia. Este um ponto de debate com Gershuny (1983) que demonstra a tendncia de maior aumento da produtividade nos domiclios na Inglaterra, em comparao produtividade do setor de servios. Todavia, como argumenta Wajcman (1993) Gershuny s inclui "tarefas de rotina", deixando de lado, por exemplo, cuidados de crianas, e no considera o desempenho de vrias tarefas simultaneamente: comum mulheres cozinhar, passar roupas e cuidar de crianas ao mesmo tempo. O tempo dispendido no trabalho domstico s pode ser reduzido, na viso de Silver, atravs do acesso ao trabalho de outras/os. As mulheres podem ou comprar o tempo de outras pessoas, ou forar outras pessoas, atravs do Estado, a compartilhar as exigncias do trabalho domstico. Ambas essas estratgias implicam em demanda sobre o setor de servios. A tendncia ento a de transferncia do trabalho domstico dos lares privados para o espao pblico do mercado. Trabalho domstico trabalho intensivo e deve ser deslocado para fora dos lares. Mudanas na diviso de gneros do trabalho no so consideradas por Silver. Dado que os homens no fazem trabalho domstico, praticamente impossvel mudar a diviso do trabalho entre os gneros nos domiclios. Melhorias tecnolgicas vo ento afetar o trabalho domstico via inovao no setor de servios.

Para Gershuny (1983), a diviso de gnero do trabalho nos lares no tem nada a ver com economia ou tecnologia, porque ela se relaciona com "modelos de papis" e , em ltima instncia, uma questo moral. A proporo masculina crescente no total do trabalho domstico nos domiclios resulta de as mulheres estarem fazendo menos trabalho domstico, e de um processo de "adaptao tardia" (Gershuny, Godwin e Jones 1994), no qual os ajustamentos dos papis no trabalho acontecem atravs de um processo extensivo de negociaes domiciliares de longo prazo.

Embora Silver e Gershuny compartilhem a viso de que as habilidades das mulheres de lanar mo da reserva de trabalho domstico limitada por comportamentos no-econmicos, eles tm vises opostas com relao ao impacto dos bens de consumo sobre o tempo comprometido com o trabalho domstico. Gershuny diz que as tecnologias domsticas reduzem o tempo dispendido em trabalho domstico; Silver diz que os bens de consumo no liberam tempo, porque o uso e a manuteno demandam tempo, e mesmo o consumo toma tempo. Igualmente, Gershuny argumenta que as esposas trabalhadoras trabalham em meio perodo por causa dos seus compromissos domsticos, subordinando o emprego ao trabalho domstico, enquanto Silver argumenta que o emprego de tempo integral reduz o tempo dispendido no trabalho domstico (esposas em emprego de tempo integral dispendem em trabalho domstico 2/3 do tempo dispendido por esposas que no trabalham ou que trabalham em tempo parcial).

Se o tempo dispendido no trabalho domstico tem sido reduzido com o aumento da participao da mulher no mercado de trabalho, a sociedade americana como um todo est saturada por trabalho, na opinio de Juliet Schor (1992). Em sua viso, as mulheres esto presas a uma tecnologia domstica e a uma cultura de trabalho domstico que ineficiente, consumidora de tempo e onerosa. A causa o baixo custo do trabalho da dona de casa, que dependente da valorizao do tempo de trabalho da mulher no mercado do trabalho, um ponto tambm enfatizado por Day (1992). Na viso de Schor, as famlias "compravam" tanto trabalho domstico porque este era muito barato. Na medida em que a verdadeira oportunidade de custo do trabalho da mulher nos lares no era levada em conta, os padres e os servios escalavam cada vez mais altos. Inversamente, na medida em que a renda ganha pelas mulheres passa a contar, o tempo dispendido no trabalho domstico comea a encolher.

A prpria segregao da diviso tradicional do trabalho entre os gneros tem mantido longas as horas das donas de casa, por causa de consideraes de igualdade dentro das famlias. Esposas tm uma obrigao de trabalhar duro, e os maridos de desejarem os servios que o trabalho de suas esposas propiciam. Quo diferentes seriam as casas, que tipos de tecnologias e servios existiriam disponveis, se o tempo das donas de casa tivesse valores de prmios?

Perspectivas feministas tm afirmado que as mudanas na diviso do trabalho entre os gneros na sociedade, assim como dentro dos lares, essencial para a abolio das hierarquias de gnero existentes. A literatura extensa sobre o trabalho domstico enfatiza que a transformao do trabalho domstico no implica em sua abolio. O uso de reservas de trabalho domstico, ou de servios propiciados pelo mercado, implica superviso e gerenciamento em algum nvel e requer que algum esteja envolvida/o com essas tarefas. Se os homens permanecerem desconectados de seus lares, todas essas tarefas recairo sobre as mulheres. Isto seria fortalecido pelo fato de que o setor de servios, que aumentaria o leque de tarefas oferecidas aos domiclios, estaria empregando uma maioria de mulheres, tal qual o fazem presentemente.

Os argumentos enfatizando as transferncias dos domiclios para o mercado tm levado o debate sobre o impacto das tecnologias domsticas, sobre o trabalho domstico para um terreno muito mais rico do que os estudos do primeiro grupo. Isto se deve enfase sobre o jogo entre os espaos pblico e privado de trabalho e de consumo, a influncia do emprego (masculino e feminino) sobre a diviso domstica de trabalho entre os gneros, e a natureza transiente dos arranjos sociais domsticos. O paradoxo de porqu o trabalho domstico e a diviso de gnero do trabalho em domiclios so resistentes a influncias tecnolgicas aqui respondido em termos dos custos de oportunidade do tempo de trabalho da dona de casa, e da moralidade das obrigaes familiares relacionadas a eles. Solues ao paradoxo so encontradas fora do espao domstico, pela transferncia para o mercado.

Todavia, eu identifico ainda um terceiro conjunto de estudos, os quais argumentam que as tecnologias domsticas podem exercer uma influncia progressista tanto sobre a diviso domstica do trabalho entre os gneros, quanto sobre o tempo devotado ao trabalho domstico.

A influncia progressista da tecnologia

Pesquisas recentes sobre tecnologias domsticas tm alargado o foco sobre o trabalho domstico, lares e mercados, para incluir o desenvolvimento e a fabricao de produtos.

Este terceiro grupo de estudos constitudo de pesquisa europia feita por Cynthia Cockburn e Susan Ormrod (1993), varios estudos na coletnea organizada por Cockburn e Ruza Frst-Dilc (1994) e Danielle Chabaud-Rychter (1995).

Essas pesquisas partem do paradoxo dos primeiros estudos de que o tempo dispendido em trabalho domstico no tem sido reduzido historicamente, a despeito de inovaes tecnolgicas. As causas dessa no-reduo do tempo de trabalho nos domiclios encontram-se, segundo os argumentos, nas estratgias de fabricao e nas relaes de poder patriarcais.

O argumento principal que poucas inovaes tecnolgicas so desenhadas com a inteno de reduzir o tempo de trabalho domstico, e poucas inovaes so desenhadas para mudar o gnero de quem faz trabalho domstico. Pesquisas empricas sobre nove tecnologias domsticas diferentes (cada uma num pas europeu diferente) mostraram que os fabricantes de tecnologias domsticas tm almejado aperfeioar a atividade qual o eletrodomstico est vinculado, ao invs de tornar a atividade mais fcil, mais simples, mais rpida, sem qualificao e sem especializao de gnero. O objetivo aperfeioar o trabalho domstico feminino. Isto porque as posies de poder dos homens nas indstrias de fabricao tm lhes dado escpo para afirmar a diviso tradicional do trabalho entre os gneros, definindo e dando forma ao trabalho da mulher contempornea.

Mulheres e trabalho domstico no so vistos com muito bons olhos por engenheiros de desenho e fabricao de tecnologias domsticas. Por exemplo, no processo de engenharia de desenho foi encontrado que engenheiros de desenho (todos homens) introduziram mulheres nos seus processos de trabalho, por meio de: ou colocando-se a si prprios no lugar da mulher usuria do produto (Chabaud-Rychter 1994), ou engajando mulheres como testadoras, ou contratando mulheres como montadoras enquanto faziam de conta que elas eram donas de casa, ou aplicando e testando os produtos com suas prprias esposas (Gomez 1994). Cockburn e Ormrod (1993) encontraram numa empresa fabricante de fornos de microondas que a nova rea de desenvolvimento do produto era denominada "Cozinha de Teste". Era onde todas as mulheres, economistas domsticas, trabalhavam. Os seus trabalhos eram referidos pelos colegas homens como "cozinha" ou "no-apenas-cozinha". Chabaud-Rychter (1995) na Frana, e Gomez (1994) na Espanha, apresentam evidncias, tambm encontradas em outros estudos (Cockburn e Frst-Dilc 1994), de que os testes de bom funcionamento de vrias tecnologias domsticas foram implementados imaginando uma consumidora mulher que descuidada, atrapalhada, esquecida ou perigosa no uso de eletrodomsticos.

Mas inovaes em desenho e fabricao tambm respondem a mudanas de necessidades sociais e a mudanas das imagens de mulheres. Esses estudos europeus tambm encontraram evidncias de que as tecnologias podem acompanhar uma diviso mais egualitria das relaes de gnero, particularmente uma maior participao dos homens no trabalho domstico. A propsito, um exemplo disso foi encontrado na Inglaterra onde os homens aparecem marginalmente mais envolvidos com a cozinha por causa do forno de microondas (Cockburn e Ormrod 1993). Outro exemplo se refere Finlndia onde os homens aparecem fazendo 10 a 15 por cento mais limpeza com aspirador de p (uma tarefa frequente no pas, como varrer o cho ou passar pano molhado) desde que um novo eletrodomstico foi introduzido (Smeds 1994).

A vida domstica aparece em tenso com os processos de produo dos bens para os domiclios. As gerncias no sabem bem o que fazer quando introduzem habilidades domsticas no processo de desenvolvimento do produto. O estudo do forno de microondas na Inglaterra, feito por Cockburn e Ormrod (1993) mostrou que a cozinha de microonda tomou certas direes e no outras devido a relaes de gnero, e a desenvolvimentos tecnolgicos especficos. As relaes de gnero influenciaram a cozinha de microondas desde o conhecimento culinrio necessrio para a engenharia de microondas, o qual foi obtido das mulheres (como as economistas domsticas associadas com o planejamento do produto, e como um time de "consultoria" assistindo nos esforos de venda), at as demandas por qualidade da comida, especializao culinria e liberdade individual. O potencial tecnolgico para o desenvolvimento do forno de microondas existiu desde 1940 quando a "cavidade magnetrom" foi operada pela primeira vez na Universidade de Birmingham. Mas a tecnologia foi usada pela General Electric para produzir equipamento de radar mais apurado e poderoso para a Gr-Bretanha. Foi provavelmente por volta de 1950 que os primeiros fornos de microondas, para fornecimento comercial de comida (catering), foram produzidos no Japo. O mercado internacional para microondas domsticos produzidos por empresas japonesas, americanas e europias comeou a se expandir em 1970 depois que vrias descobertas novas aperfeioaram o produto para os processos de cozimento.

Estes estudos oferecem evidncias amplas da relao entre os desenvolvimentos tcnicos e as relaes de gnero. No foi possvel produzir o forno de microondas antes de 1940, mas teria sido possvel produz-lo, e torn-lo disponvel para os lares, muito mais cedo do que 1970. Este tambm o caso com vrios outros eletrodomsticos. O triturador de lixo, pesquisado por Suellen Hoy (1985) uma ilustrao: mquinas foram originalmente desenvolvidas em 1923, mas foi apenas com os requerimentos da marinha durante a segunda guerra mundial que novas melhorias tcnicas foram implementadas. Na dcada de 1950, o uso do triturador de lixo se difundiu nos Estados Unidos para contrabalanar epidemias de sade, e desde entao este se tornou um implemento comum nas cozinhas americanas. A fralda descartvel (parte da minha pesquisa no momento) outro exemplo: a necessidade de um produto como este foi inicialmente publicada no Consumers Report americano em 1939, mas foi desenvolvida como uma tecnologia da dcada de 1960. O "problema" da fralda descartvel apenas comeou a ser resolvido quando em 1957 o diretor de desenvolvimento exploratrio da Procter and Gamble dispendeu algum tempo tomando conta do/a neto/a recm-nascido/a e decidiu que deveria haver algum meio de eliminar a fadiga de limpar fraldas de panos.

As trs teoriasOs trs grupos de estudos de tecnologias domsticas vm analisando desde a dcada de 1960, de maneira crescentemente complexa e refinada, a persistncia histrica do largo tempo dispendido no trabalho domstico. Estes estudos tm aberto novas reas de investigao tais como os aspectos emocionais da diviso de gnero do trabalho, as oportunidades de custo do trabalho das mulheres no lar e no mercado de trabalho, e as influncias dos processos de desenvolvimento do produto e da fabricao. Todavia, as trs perspectivas que considero acima no podem ser abraadas simultaneamente.

A perspectiva "conservadora", exemplificada pelo trabalho de Cowan More Work for Mother (Mais Trabalho Pra Me), denuncia o efeito perverso das inovaes tecnolgicas nos domiclios, no contexto de uma ideologia patriarcal dominante, e basicamente desconsidera as mudanas na diviso tradicional do trabalho entre os gneros. Assim, ela incompatvel com a perspectiva "progressista" que antev mudanas possveis em desenvolvimento do produto e fabricao, como respostas a uma diviso de gnero do trabalho modificada, e que tambm v a tecnologia reduzindo o tempo de trabalho domstico das mulheres. Todavia, nessa ltima perspectiva, o papel central atribudo ideologia patriarcal dos fabricantes e engenheiros no permite entender as mudanas de percepo e as mudanas de necessidades que os fabricantes e empregadores em geral tm (ou podem vir a ter) do trabalho de mulheres e de homens. Tampouco possvel compreender o processo em curso das "negociaes adaptativas" sobre a igualdade domstica dos gneros, na conformao dos produtos de mercado. As anlises no do conta de que no processo de "reconstruo patriarcal" as relaes entre os gneros se modificam. Essas falhas so remediadas parcialmente pelas perspectivas do mercado de trabalho dos estudos que focalizam as transferncias entre os domiclios e o mercado, considerando as perspectivas dos empregadores e de mulheres e homens no mercado de trabalho industrial e de servios. Todavia, a perspectiva das transferncias desconsidera as foras dinmicas que atuam sobre o trabalho domstico e a diviso do trabalho domstico nos lares. A diviso do trabalho entre os gneros permanece marginal nas direes tomadas pelas solues ao trabalho domstico. Ento esta perspectiva, apesar de preencher algumas lacunas, no pode ser sustentada simultaneamente tanto com a perspectiva conservadora ou a progressista.

Um dos objetivos do meu trabalho futuro investigar como essas trs perspectivas podem se relacionar entre si numa anlise abrangente de tecnologias domsticas engajada com as questes de mudana social, vida familiar, ideologias, e as necessidades de grupos diferentes de mulheres. A reflexo sobre as implicaes dessas teorias para o caso brasileiro aparece assim como um desafio para esse objetivo.

AS IMPLICAES PARA O BRASIL

Minha preocupao inicial nesse trabalho est endereada s mudanas na hierarquia da diviso tradicional do trabalho entre os gneros. Eu no estou visando no-diferenciao e sim abolio de desigualdades. Esta ltima se coloca em dois nveis: (1) Desigualdades entre homens e mulheres, e (2) Desigualdades entre grupos de mulheres. Numa sociedade de estratificao altamente diferenciada como a brasileira, essa questo das hierarquias importante do ponto de vista da poltica feminista.

Todavia, a questo tambm altamente problemtica. Diz-se que na classe mdia no Brasil as mulheres so vistas como iguais aos homens (Azeredo 1989), e que elas so liberadas do trabalho domstico s expensas da subordinao elas do trabalho das mulheres pobres (Souza 1980) e das mulheres de cor. Por outro lado, mantm-se que nas classes populares as mulheres so diferentes dos homens e servem a eles (veja, por exemplo, Zaluar 1982). Mas as mulheres das clases populares servem as mulheres e os homens das classes mdias e altas. Assim os servios aos homens, prestados pela mulher de classe mdia, aparecem mediados pela mulher da classe popular, "sua" empregada. Nesse contexto da classe mdia, as mulheres no disputam com os homens os servios domsticos. No existe necessidade aparente de se contestar a diviso tradicional de trabalho entre os gneros. A diviso aparentemente simtrica de papis mantm abafados esses conflitos (Cardoso 1983, Bruschini 1990).

A questo da mudana das hierarquias de desigualdades tambm paradoxal. Como argumenta Silver (1987), aqueles que no fazem trabalho domstico no podem estar envolvidos num projeto de mudana da diviso do trabalho entre os gneros nesse mbito.

Quer isso significar que mudanas na diviso tradicional do trabalho entre os gneros s possvel e s interessa s mulheres das classes populares? Se esse o caso, a discusso sobre tecnologias domsticas deveria se restringir aos equipamentos para suprir os domiclios das camadas populares?

As famlias de classes populares e as mulheres nela, tm interesse especial, e necessidade, de reduzir o seu tempo de trabalho em tarefas domsticas (Zaluar 1982). Mas tambm a mulher de classe mdia tem tido necessidade crescente de reduzir o tempo de trabalho domstico em seus domiclios. E por razes diferentes. Para a mulher de classe mdia, as estratgias de reduo do tempo de trabalho dispendido em tarefas domsticas, se orientam por necessidades de liberar o tempo da empregada e para ajudar um pouco a empregada a desempenhar melhor, funes mais nobres como o cuidado de crianas (Ardaillon 1989).

Na minha pesquisa corrente sobre os padres de inovao das tecnologias domsticas e das relaes de gnero na Inglaterra desde 1930 (Silva 1996), eu observo que anncios de emprego para empregadas domsticas em 1920/30 listavam os eletrodomsticos disponveis no domiclio. Igualmente, as propagandas e material publicitrio dos eletrodomsticos enfatizavam tanto que estes ajudariam a manter as empregadas, quanto que seria mais fcil para a dona de casa de classe mdia viver sem as empregadas uma vez que ela possusse os implementos anunciados.

Na introduo desse paper eu estabeleci algumas tendncias gerais entre o desenvolvimento das tecnologias domsticas, o aumento do emprego de mulheres fora do lar (particularmente de mulheres casadas, unidas consensualmente e separadas), e a diminuio do nmero de empregadas domsticas. Mas eu ressalto que no endosso os preceitos da teoria da modernizao e no antevejo o Brasil seguindo as trajetrias de pases mais avanados. Eu reconheo as especificidades nacionais na implementao de tendncias particulares. No tocante ao trabalho da mulher, o elemento de maior originalidade na situao brasileria o desperdcio de tempo, energia e capacidade dessa fora de trabalho.

A perda potencial do auxlio domstico pode parecer assustador para a mulher de classe mdia que trabalha fora e tem criana pequena. Mas tambm uma perda enorme de recursos nacionais manter uma parcela significativa do tempo de trabalho da populao limpando casa, fazendo variedades de comidas em pequena escala, lavando roupas, passando roupas, e desempenhando tarefas mais - ou menos - necessrias para o bem-estar humano, em contextos privados de domiclios de mais alto poder aquisitivo.

Freezers, fornos de microondas, mquinas de lavar pratos, secadoras de roupas, so tecnologias domsticas mais modernas que, em pases de industrializao mais avanada tm sido combinadas com um setor de servios dinmico para suprir as necessidades domsticas dos domiclios. Todavia, encontrei em estudo piloto que realizei em 1994-95 no Brasil, que em domiclios de classe mdia e alta uma prtica comum era usar esses tipos de equipamentos em final de semana, quando a empregada est ausente, ou de a patroa estabelecer vrias regras para o seu uso pela/s empregada/s. Eu poderia ento concluir que no Brasil, seguindo-se as linhas do poder conservador da tecnologia, que discuti anteriormente, as tecnologias no tm impacto positivo sobre o trabalho domstico, e que o padro tradicional de diviso do trabalho entre os gneros tem sido reforado.

claro que existem justificativas para o uso selecionado e privilegiado das tecnologias domsticas nos domiclios de classe mdia e alta. A justificativa mais comum que a habilidade requerida no manuseio do equipamento e o nvel de instruo das empregadas no so compatveis. Mas ento, isso indicaria que as tecnologias domsticas no so desenhadas para serem operadas por aquelas que fazem o trabalho domstico. E essa constatao me remete a compartilhar da posio discutida anteriormente, que a tecnologia pode ter efeitos progressistas quando as inovaes conformam s necessidades e perfis das/os usurias/os. Assim as tecnologias influenciam tanto na diviso do trabalho entre os gneros quanto na eficcia do trabalho domstico.

A situao nos domiclios de classe mdia brasileria demonstra incongruncia: existem equipamentos sub-utilizados e uma "mo-de-obra" que no pode se valer da tecnologia disponvel. Por outro lado, nos domiclios de classes populares, as mquinas so escassas. Nesses domiclios, os eletrodomsticos podem ajudar as mulheres, que fazem trabalho para outras mulheres, a fazerem seus prprios trabalhos domsticos em seus lares. Zaluar (1982) demonstrou que isso desejado por mulheres pobres e necessrio para a boa nutrio e cuidados da famlia.

Mudanas nesse padro aumentariam a demanda de emprego industrial - na fabricao de tecnologias domsticas - e de servios - na oferta pelo mercado de servios domsticos. E o que iria acontecer nos domiclios? A tendncia de desaparecimento dos serviais domsticos se aceleraria e os domiclios teriam que atender s suas prprias necessidades de trabalho domstico e/ou pressionar o estado para oferecer mais servios.

A anlise da perspectiva de transferncia dos domiclios para o mercado que discuti anteriormente parece relevante nesse contexto. A idia que o emprego das mulheres em setores de servios mais produtivo do que o emprego como serviais domsticas, e a partir da oferta de servios os domiclios podem ser parcialmente supridos em suas necessidades de trabalho domstico. Mas, como ressaltei ao criticar essa perspectiva, isso implica que o trabalho de gerenciamento dos domiclios continuar a existir e que a posse de tecnologias domsticas se expanda.

Da perspectiva de transferncia dos domiclios para o mercado, eu ainda acho extremamente pertinente a considerao de que o valor crescente do trabalho feminino no mercado de trabalho tambm aumenta o valor do seu tempo no lar. Apesar de no se poder pensar o trabalho domstico apenas sob uma tica da economia, plausvel concluir que se compra muito trabalho domstico (perfeio, altos padres de limpeza, de culinria, de servios variados) no Brasil porque este muito barato. A oportunidade de custo do trabalho da mulher no mercado de trabalho envolve o tempo dispendido no trabalho domstico.

Eu no imagino que as mulheres de classe mdia e alta, cuja socializao no modelo de ser mulher incorpora o ser patroa (Almeida 1982), possam vivenciar esse processo sem grandes transformaes pessoais, e difcil v-las como agentes desse processo. Todavia, no ser agente traz implicaes para as relaes com os homens dentro de seus lares e fora deles. E tambm das mulheres em geral (das vrias classes e grupos sociais) entre si, e com os homens em geral.

Eu no acredito que as pessoas tomem decises nessa rea da vida domstica racionalmente. As necessidades das pessoas e tambm do mercado mudam, e a prpria introduo e uso das mquinas, assim como o envolvimento de homens e mulheres com o trabalho domstico, muda a percepo das pessoas sobre a sua vida domstica. Isso tambm muda os conflitos de interesse entre os membros da famlia. Enquanto a tecnologia per se tem pouco poder sobre a vida do dia a dia, a qualidade dos equipamentos, o seu uso, os meios de acesso a eles por parte de pessoas e grupos diferentes, combinados com uma perspectiva feminista de desafio da identidade entre mulher e domstico, podem gerar modelos bastante differentes de relaes entre os gneros no espao do lar e na sociedade.

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1 Dados baseados nas tendncias referidas em Lovel 1994.

2 Nesta seo traduzo quase que inteiramente meu paper publicado em 1995.

3 O triturador de lixo pouco usado no Brasil. Apenas nas residncias de classe alta ou mdia/alta com influncia estrangeira, este aparelho tem sido ocasionalmente instalado.

4 Um grupo amostral consiste de dois sub-grupos de mulheres no-empregadas no final da dcada de 1920 e incio da dcada de 1930: um de mais de 800 mulheres da zona rural, das quais 10 por cento tinha ajuda domstica remunerada, e o outro de aproximadamente 700 mulheres de zona urbana de educao universitria, das quais 75 por cento pagava por ajuda domstica numa mdia de 30 horas por semana. Este grupo comparado a outro grupo amostral consistindo de dois sub-grupos de mulheres urbanas em meados da dcada de 1960: cerca de 350 mulheres estavam empregadas e outro igual nmero eram donas de casa em tempo integral.

5 O trabalho de Cowan (1983) e de Vanek (1978) so particularmente importantes nesse aspecto.

6 Nos servios domsticos o emprego das mulheres negras/pardas mais do que trs vezes maior do que o de mulheres brancas. H 32.5% de mulheres negras/pardas e 12.7% de mulheres brancas empregadas em servios domsticos. Fonte: Silva, D F da e Lima, M, (1992), citada por Bento, M.A.S. (1995).