artigo científico sobre a umbanda - autora Lidyane
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A UMBANDA E O RITUAL DA GIRA NO CENTRO ESPÍRITA DE UMBANDA MÃE CASSIANA
Lidyane Mercês Roque Figueirêdo1
RESUMOMuitos não sabem, mas a Umbanda é uma religião genuinamente brasileira; na verdade, é a primeira considerada como tal. Ela é uma religião tão rica em detalhes, crenças e simbologias, que se torna difícil estudá-la como um todo, por isso foi delimitado, neste artigo, um objeto empírico: o Centro Espírita de Umbanda Mãe Cassiana. Os seguidores dessa religião são constantemente alvo de preconceito, principalmente devido à falta de conhecimento que se tem sobre ela. E é justamente o que este artigo se propõe: fazer uma explanação geral sobre a história da Umbanda, suas crenças e seus rituais – mais especificamente o ritual da Gira, dito como o mais importante. Para tanto, foram necessárias muitas visitas de campo, leituras de livros e artigos e entrevistas com alguns umbandistas. Foram utilizados no artigo alguns conceitos como o de micro-poder de Foucault, o de habitus e campo de Bourdieu e o de símbolos de Turner, com o intuito de tornar o objeto mais compreensível. Ao final, poderá depreender que é no ritual da Gira que podemos perceber a manifestação das principais crenças umbandistas e que o preconceito não passa de mera ignorância da sociedade, pois a Umbanda é uma religião envolta de símbolos e significados que a tornam muito rica e quanto mais se aprende sobre ela, mais necessário se faz compreendê-la.
PALAVRAS-CHAVE: Ritual da Gira. Umbanda. Símbolos.
1 INTRODUÇÃO
A Umbanda ainda representa uma incógnita para muitos. Apesar de ser uma religião
que sobrevive por mais de cem anos, muitos mistérios ainda a envolvem. Por outro lado,
muitas informações deturpadas chegam ao conhecimento de algumas pessoas cujas
manifestações de preconceitos são deploráveis.
O objetivo do artigo está direcionado a ampliar o conhecimento dos leitores sobre o
tema em questão, descrevendo um pouco da história dessa religião e algumas considerações
importantes, além de fazer uma descrição densa do ritual da Gira, mostrando algumas de
suas simbologias. Para facilitar os estudos, o campo empírico foi o Centro Espírita de
Umbanda Mãe Cassiana, visto que alguns hábitos podem variar de um templo umbandista a
outro.
Dentro desse contexto, pode também ser observado se, de fato, essa crença é digna
de tantos atos preconceituosos, que a inferioriza, e quais conseqüências essa negação, por
parte de uma parcela da sociedade, pode causar. Observar fatos como esses foram possíveis
1 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará e em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará.
através de visitas de campo ao templo em questão e entrevistas com umbandistas; a teoria
provém da leitura de livros e outros artigos.
Para tornar a interpretação mais viável de entendimento, foi observado entre os
umbandistas seu habitus, conjunto de normas e posturas básicas que são reproduzidas
através de leis, costumes, crenças e valores, dentro do campo religioso. Além disso, tentou-
se entender como se dá as relações de poderes entre os agentes dessa estrutura social, por
meio do conceito de micro-poder de Foucault, assim como a hierarquia que existe no
interior do templo. Outro aspecto que poderá facilitar o entendimento é a análise das
simbologias umbandistas dentro de um contexto – o ritual da Gira –, como defende Turner.
2 BREVE HISTÓRICO SOBRE A UMBANDA E CONSIDERAÇÕES GERAIS
O artigo 1º da Lei 5514/09, de 21 de julho de 2009 do Rio de Janeiro “Declara como
patrimônio imaterial do Estado do Rio de Janeiro a Umbanda, religião genuinamente
brasileira.”
Essa Lei, considerada uma vitória para os umbandistas, aprova a Umbanda como
sendo uma religião brasileira e patrimônio do Estado carioca, remetendo ao seu mito
fundador, datado de 15 de novembro de 1908, que consiste no anúncio que o Caboclo das
Sete Encruzilhadas fez, através do jovem Zélio Fernandino de Moraes, cidadão de Niterói,
Rio de Janeiro.
Zélio de Moraes, nessa data com 17 anos, acometido por uma doença que os médicos
não conseguiram diagnosticar ao certo e curar (uns falavam em paralisia, outros, em
epilepsia), nem os sacerdotes católicos conseguiram esclarecer, foi encaminhado a uma
mesa espírita, na qual começaram a se manifestar diversos espíritos de negros escravos e
indígenas nos médiuns presentes. Esses espíritos, considerados atrasados cultural e
espiritualmente pelos dirigentes kardecistas, eram convidados a se retirar da mesa. Visto que
esses espíritos estavam sendo discriminados por sua cor e classe social, o Caboclo das Sete
Encruzilhadas incorporou no jovem Zélio e proferiu um discurso a favor dessas entidades
(GIUMBELLI, 2002).
O Caboclo das Sete Encruzilhadas prosseguiu dizendo que no dia seguinte se
iniciaria um culto, no qual aquelas entidades (pretos velhos e caboclos) poderiam dar suas
mensagens e cumprir com a missão que o Plano Espiritual lhes confiou: trabalhar.
Determinou também que a principal característica do culto seria a caridade, que seus
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seguidores teriam por base o Evangelho Cristão e como mestre maior Jesus, que a roupa
utilizada pelos aparelhos (ou médiuns) seria predominantemente branca, que todo e qualquer
atendimento seria gratuito e que esta religião se chamaria Umbanda, uma religião que falará
aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre os espíritos encarnados e
desencarnados. Além disso, fundou naquele dia aquela que, nesta narrativa, é descrita como
a primeira tenda de Umbanda da história, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade
(GIUMBELLI, 2002).
Os fatos narrados acima mostram, de maneira geral, o mito de origem ou de
fundação da Umbanda, expressão denominada por Brown (1985, p. 10), o qual é utilizado
por estudiosos ou historiadores quando se referem à história da religião. Apesar disso,
muitos deles formularam outras versões para a fundação, o aparecimento e o surgimento da
religião. Localizar a origem de uma religião no espaço e no tempo condiciona a
interpretação que dela é feita, de suas crenças e de suas práticas. Contudo, para que a
religião nova passasse a existir socialmente, tornando-se distinta no contexto maior, era
necessário demarcar suas fronteiras e determinar suas características, processo que, segundo
Bourdieu (1989), seria viável por meio da “luta das classificações”:
[...] lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos. Com efeito, o que nelas está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de di-visão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo. (BOURDIEU, 1989, p.113).
Estabelecer um consenso a respeito da origem da Umbanda é tão importante quanto
apresentar suas características, visto que essa religião apresenta um sincretismo vasto em
suas práticas, crenças, simbologias e manifestações. Segundo Camargo (1961, p.8-9) “Do
ponto de vista histórico podemos discernir os elementos que integram o sincretismo
umbandista: a) Religiões de origem africana [...] que vieram para o Brasil como escravos; b)
Catolicismo; c) Espiritismo Kardecista; d) Religiões indígenas.”.
A contribuição das religiões africanas se deve ao culto aos Orixás (Ori = Cabeça. Xá
=Senhor), entidades divinas, de elevada envergadura, que se comunicam com o mundo dos
homens por meio de guias espirituais. Devido à pressão que a Igreja e o colonizador
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português exerceram a favor do culto católico, os escravos, vindos da África, se viram
obrigados a identificar os Orixás com os santos católicos (variando de acordo com a região
do país), pois esta foi a única forma encontrada por eles para não desagradar suas
divindades. (CAMARGO, 1961, p. 10).
Assim, Oxalá é identificado com o Cristo, especialmente com a imagem do Senhor do Bonfim. Xangô corresponde a São João Batista e São Jerônimo; Yansã, a Santa Bárbara; Ogum, a São Jorge; Oxossi, a São Sebastião; Nana a “Senhora Sant’Ana. (CAMARGO, 1961, p. 10).
Os Orixás são seres regentes na Umbanda, alguns deles têm grande atuação sobre a
natureza e seus fenômenos. São os Orixás que protegem os seguidores da Umbanda e
transmitem seus ensinamentos a estes por meio dos guias trabalhadores na Umbanda, os
quais se manifestam durante os trabalhos. Desses ensinamentos, três são básicos e contém
em sua essência os padrões básicos para todo homem seguir: fé, caridade e fraternidade.
A contribuição dos índios à Umbanda está agregada às bases e às práticas dos cultos
umbandistas, que serão aprofundados adiante, e a contribuição do Espiritismo e das obras de
Allan Kardec deram à religião a compreensão sobre os fenômenos espirituais que ocorrem
em seus cultos.
A Umbanda possui um sistema de organização hierárquica, o qual coloca cada Orixá
no comando das sucessivas hierarquias de espíritos ou falanges. Camargo (1961, p. 37), diz
que:
Devido à influência espírita temos, assim, um complicado sistema de organização do sacral, que varia enormemente em cada “terreiro”. O esquema geral, entretanto, é o seguinte: 1- a Umbanda subdivide-se em 7 “linhas” e cada uma delas é comandada por um Orixá ou Santo católico, ligado à tradição africanista. 2- cada “linha” se desdobra em legiões, falanges, etc., que nos níveis mais baixos da hierarquia se identificam com os espíritos desencarnados, assumindo imperceptivelmente formas intermediárias nos graus superiores, mais próximas dos heróis nacionais e dos orixás. (CAMARGO, 1961, p. 37).
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Mesmo com mais de 100 anos desde a sua origem, a manifestação religiosa
umbandista ainda é envolvida por um mistério que dificulta o leigo entender seu significado.
A falta de conhecimento sobre a religião, a má compreensão que dela é feita, os poucos
livros publicados a respeito dela, a usurpação que algumas pessoas fazem de suas práticas e
crenças, a insistência em confundir Umbanda com Quimbanda e magia negra, tornaram (e
tornam) a Umbanda entre as manifestações mais cercadas de preconceitos e alvo de
avaliações injustas (SANTOS, 2005), evidenciando o crime de intolerância religiosa;
infelizmente ainda praticado no Brasil, mesmo possuindo um Estado laico.
Há muito que se esclarecer a respeito.
3 CENTRO ESPÍRITA DE UMBANDA MÃE CASSIANA
Como dito anteriormente, para aprofundar os estudos sobre as características das
práticas e crenças umbandistas, fez-se necessária a pesquisa de campo em um centro de
Umbanda específico, já que aquelas práticas podem se diferenciar de um templo para outro,
sem desmerecer nenhum deles.
O templo em questão é o Centro Espírita de Umbanda Mãe Cassiana, localizado na
Rua Visconde do Rio Branco, número 2656 (Fortaleza - Ceará), cujo pai de santo dirigente é
Virgílio Fernandes de Melo Neto, mais conhecido como Babalorixá Virgílio de Obaluaê.
Fazem parte do centro outros pais de santo, que contribuem com a organização da casa: Mãe
Sanny, Mãe Vânia, Mãe Eliza, Pai Reginaldo, Mãe Aldina, Mãe Cleman e Mãe Argentina.
Os demais freqüentadores da casa distribuem-se entre filhos de santo e consulentes. Estes
são os que frequentam a casa, sem necessariamente serem filhos de santo, e que
normalmente buscam pelo atendimento de caridade.
O nome do templo não foi escolhido ao acaso. A casa é denominada por Centro,
porque, além das práticas ritualísticas, outras atividades são executadas, como um dos filhos
da casa afirma “É centro porque hoje lá não é só mais um terreiro. Ele foi registrado como
centro porque existem outros trabalhos na casa: de doação, de caridade...”. O termo Espírita
expressa a formação da religião umbandista no mundo espiritual, no qual o Espiritismo
contribuiu para o estudo dos fenômenos espirituais que estão presentes nos cultos. O termo
Umbanda, certamente, refere-se à religião que é praticada na casa. Por fim, Mãe Cassiana é
a entidade espiritual que gere a casa. Costumeiramente, ouve-se a denominação terreiro para
se referir à casa. O mesmo filho da casa explica “Terreiro é um termo caducado pelos
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escravos. Os rituais eram cultuados na terra, debaixo das árvores.” Mesmo que no centro de
Umbanda em estudo os rituais não sejam praticados na terra, a designação persiste em
respeito àqueles que inicialmente se utilizaram dessas práticas ritualísticas: os escravos
negros.
O templo pesquisado funciona há seis anos, todavia o pai de santo dirigente –
Babalorixá Virgílio de Obaluaê – já trabalhou em outros endereços, uma vez que é
umbandista há vinte e um anos; destes, há quinze anos como pai de santo. O número de
filhos de santo que frequentam a casa é, em média, trinta. Há uma relativa impossibilidade
de saber, ao certo, quantos consulentes frequentam a casa, devido à volubilidade dos
mesmos.
A referência do centro como casa, além de ser denominação também dada pelos
próprios freqüentadores, fica mais clara quando se observa seu aspecto físico – de fato, é a
casa em que o pai de santo reside – e o convívio familiar que existe nela. As denominações
Pai de santo e Mãe de santo atribuem um cargo a alguém que adquiriu experiência e
maturidade suficientes para tal; contudo, essa denominação vai além de uma mera atribuição
de cargo: observa-se também a força simbólica que essas denominações expressam. Os
filhos de santo da casa os respeitam pelo conhecimento que têm e os tratam como se, de
fato, fossem realmente seus pais. A partir dessa observação, pode-se depreender que há
relações de poderes, os quais se exercem entre pais e filhos de santo, inerentes ao
funcionamento do centro.
Neste contexto, observa-se a análise que Foucault faz sobre esses poderes, suas
relações e como eles se exercem. Foucault defende que o poder em si não possui existência
própria, mas ele pode ser perceptível através das relações de forças no interior da estrutura
social:
O interesse da análise é justamente que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. E esse caráter relacional do poder implica que
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as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de força. (MACHADO, p. XIV, 1985).
Não há, portanto, analogamente a Foucault, submissão dos filhos de santo aos pais de
santo, devido a seu poder; há na verdade relações de poderes entre eles. Foucault vai além:
ele afirma que o poder atinge a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e o
situa ao nível do próprio corpo social, penetrando na vida cotidiana e sendo caracterizado
por ele como micro-poder ou sub-poder. Com isso, ele quer dizer que os poderes se exercem
em níveis variados e em pontos diferentes da rede social. (MACHADO, 1985). No objeto
empírico, esses micro-poderes são percebidos não só entre pais e filhos de santo; mas
também entre os próprios pais de santo entre si e os filhos de santo entre si.
Assim, Foucault dissocia esses micro-poderes ao seu aspecto negativo e destrutivo,
como comumente é pensado. Ele procura depreender o aspecto positivo, transformador e
construtor desses micro-poderes:
O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo. Não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva. O que lhe interessa basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. (MACHADO, p. XVI, 1985).
Dessa forma, analisando-se os micro-poderes entre os agentes sociais do objeto
empírico é possível perceber que essas relações de força constroem e modelam suas ações,
seus corpos, a fim de que a sua produção – suas atividades na casa, os trabalhos, a caridade
– seja mais eficaz. É o que Foucault diz “O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos
do poder, oferece-se a novas formas de saber.” (FOUCAULT, p. 132, 1987).
Como foi afirmado acima, a Umbanda possui um sistema de organização hierárquica
baseada nas linhagens, as quais classificam os espíritos em sete linhas. Essa divisão pode
divergir de um templo para outro. No caso, do centro em estudo, as linhas que o organizam
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são: Mar, Mata, Astro, Exú, Mestre, Erê e Preto Velho. Estas, por sua vez, se subdividem
em falanges ou legiões de trabalhadores, os quais funcionam como um campo vibratório no
qual atuam os Orixás. Por exemplo, na linha da Mata, há índios, caboclos e boiadeiros, por
meio dos quais o Orixá responsável por essa linha – no caso, Oxóssi – irá atuar.
Similarmente ao Catolicismo, a Umbanda possui leis e normas que orientam as
condutas dos seus seguidores. Diferentemente daquele que possui os dez mandamentos, esta
possui sete. Eles também podem variar de um templo a outro. No Centro Espírita de
Umbanda Mãe Cassiana, os sete mandamentos são:
1. Não fazer aos nossos irmãos o que não desejamos que a nós seja feito.
2. Não cobiçar de forma alguma o que pertence aos outros.
3. Estar sempre pronto a dar socorro aos necessitados.
4. Não falar mal de ninguém, nem fazer difamações e criticar as ações alheias.
5. Agir sempre honestamente cumprindo o dever e as obrigações embora seja
necessário ir até ao sacrifício.
6. Evitar as más companhias sejam quais forem.
7. Embora não siga a doutrinação, devemos dar o máximo de respeito às demais
religiões e crenças.
Observa-se uma semelhança entre os mandamentos da Umbanda com alguns do
Catolicismo. Por exemplo, o primeiro mandamento umbandista assemelhasse ao primeiro
católico, o qual diz “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”;
assim como o segundo mandamento umbandista reflete-se em três mandamentos católicos,
são eles: “Não roubar”, “Não desejar a mulher do próximo” e “Não cobiçar as coisas
alheias”.
Além desses mandamentos, há uma pequena passagem bíblica – Mt 26, 41 – que
expressa uma espécie de lema da casa: “Vigiai e Orai”. Esta é uma expressão que resume os
mandamentos umbandistas, por transparecer a necessidade de sempre permanecer vigilante
em relação aos atos e pensamentos, e orar para que eles sejam de acordo com o que as leis
umbandistas determinam. Os atos de vigiar e orar consistem numa busca constante e
cotidiana para umbandistas, objetivando seguir os ensinamentos de Deus e evitando pecar.
Como foi mencionado, na casa não se executam apenas as práticas ritualísticas, mas
também trabalhos que se propõem à caridade. Durante a semana, pelas manhãs e pelas
tardes, a entidade dirigente – Mãe Cassiana – é incorporada pelo pai de santo dirigente e faz
seus atendimentos; segunda e terça a noite, há atendimento das entidades denominadas de
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pretos velhos, que são incorporados por médiuns da casa. Esses atendimentos são
direcionados aos consulentes – o que não quer dizer que não se estendam aos filhos da casa
–, pessoas que normalmente buscam ajuda, para melhorar sua vida física e/ou espiritual. Por
isso, esses atendimentos são comumente denominados de cura, uma vez que as entidades,
além de dar ensinamentos, tratam das obsessões, que, segundo os umbandistas, são
perseguições de espíritos desencarnados aos espíritos encarnados, por vingança de vidas
passadas, que causam a estes desde doenças mentais graves, vícios – drogas, bebidas
alcoólicas – a doenças físicas. Além desses trabalhos de caridade, o principal ritual da casa,
a Gira – a qual será descrita adiante –, ocorre todas as quintas-feiras à noite, e a participação
nele se restringe apenas aos filhos da casa, podendo os consulentes e os filhos de outros
templos apenas assisti-lo.
O Centro Espírita de Umbanda Mãe Cassiana constitui aquilo que Bourdieu
denomina campo, que em sua especificidade possui poder e saber, fundados em capitais
específicos.
Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital)... (BOURDIEU, 1992, p. 72).
Nesse caso, fala-se em campo religioso, o qual funciona por meio de características
que lhe são próprias: com regras e modos de sentir, pensar e agir que se reproduzem como
capitais específicos (econômico, cultural, social e simbólico) e vão moldando o
comportamento básico de seus agentes. Dentro desse campo, há uma relação de forças entre
aqueles que possuem maior volume de capitais e os que possuem menor volume. A
quantidade e o volume de capitais que cada agente social detém, determina sua posição
dentro do campo. Contudo, Bourdieu fala que os campos não possuem fronteiras
estritamente delimitadas, ou seja, eles não são espaços autônomos. Ele defende que há uma
articulação entre os campos, isto é, uma interpenetração entre eles. Assim, o campo religioso
não deve ser visto individualmente, mas permeando entre outros campos, como o
econômico, político, artístico... (BONNEWITZ, 2003).
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4 O RITUAL DA GIRA
O ritual da Gira pode ser descrito por delimitações de começo, meio e fim. Além
disso, a preparação antes do início do ritual e o comportamento após ele acabar são tão
importantes quanto o rito em si, cabendo até as denominações pré-ritualísticas e pós-
ritualísticas.
As posturas tomadas pelos agentes desse campo religioso no decorrer do ritual, bem
como seus valores, constituem aquilo que Bourdieu chama de habitus: normas e condutas
básicas que são reproduzidas através de leis, costumes, crenças, inculcados individual ou
coletivamente nos agentes que compõem esse campo. Para Bourdieu, a noção de habitus
consiste num:
Sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 1972, p. 175).
O habitus, portanto, ao mesmo tempo em que estrutura os agentes, é estruturado por
eles. É ele quem conforma e orienta a ação do sujeito – no caso o umbandista – e, na medida
em que ele é produto das relações sociais, tende a assegurar a reprodução dessas mesmas
relações objetivas que o estruturaram. (ORTIZ, 1994)
Cada agente, quer saiba ou não, quer queira ou não, é produtor e reprodutor de sentido objetivo porque suas ações e suas obras são produto de um modus operandi do qual ele não é produtor e do qual ele não possui domínio consciente; as ações encerram, pois, uma ‘intenção objetiva’, como diria a escolástica, que ultrapassa sempre as intenções conscientes. (Id., ibid., p. 182)
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A interiorização, por parte dos umbandistas, dos valores, das normas e dos princípios
sociais que regem as práticas ritualísticas da Gira assegura, dessa maneira, a adequação de
duas ações à realidade do campo religioso que dele fazem parte.
Essas práticas e normas constituintes do habitus umbandistas podem ser observadas
mais nitidamente ao longo do ritual, que ocorre impreterivelmente às quintas-feiras de todas
as semanas, a partir das 19h, no Centro Espírita de Umbanda Mãe Cassiana.
Ao longo desse ritual, percebe-se o quão rico de símbolos ele é. Para Turner, os
símbolos não estão restritos a objetos, mas também podem ser gestos, relações e atividades.
Eles só existem porque são um consenso geral e sua interpretação deve ser como elementos
dinâmicos, motores da ação por meio da carga de emoções e valores sociais. Os símbolos
devem ser analisados – o que torna mais compreensível – dentro de um contexto – o da
ação; relacionando-os a outros eventos. (TURNER, 2005). Neste caso, procura-se
compreender alguns símbolos umbandistas dentro do ritual da Gira.
O processo pré-ritualístico tem início bem antes das 19h, quando os filhos da casa
chegam. Ao adentrarem ao centro, todos eles precisam tomar banho com ervas, com o
intuito de purificar o corpo, que, segundo a crença, está carregado de energias negativas
provenientes dos espaços pelos quais cada um passou durante o dia. Ao fim do banho, cada
filho da casa põe as vestes apropriadas à cerimônia. Estas vestes são predominantemente de
cor branca; para as mulheres, saias cumpridas, podendo ou não ser amplas e superpostas e
blusa; para os homens, normalmente, calça folgada e camisa ou avental, para o pai de santo.
Ainda quanto à vestimenta, as cores podem ser vistas nas roupas dos pais de santo da casa.
A seguir, pode-se dizer que eles estão dignos de entrar no terreiro, uma vez que estão
purificados e vestidos corretamente. Contudo, para pisar no terreiro, é necessário tirar o
calçado. Estar descalço, além de significar humildade e simplicidade – remetendo aos
negros escravizados –, facilita a circulação de energias dentro do terreiro, sejam elas
positivas ou negativas; pelo mesmo motivo, deve-se evitar cruzar os dedos, braços ou
pernas.
A entrada no terreiro é acompanhada, normalmente, por um sinal de cruz feito com
os dedos indicador e médio no chão. Em seguida, cada médium se dirige à “ponta de mesa”
– local onde se encontram os itens de trabalho, necessários à realização do ritual – para fazer
a limpeza de sua guia; esta é um colar que representa o Orixá – como os umbandistas dizem,
o “pai de cabeça” – ao qual cada médium pertence e que funciona como uma proteção ao
seu dono. Essa limpeza da guia é realizada pelo próprio médium, por meio de um líquido de
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odor agradável – devido à sua composição ser de ervas; com o intuito de descarregar as
energias contidas nela.
Feita essa outra purificação, o médium dirige-se para Saravá o Congá, espécie de
altar centralmente localizado no terreiro, onde estão presente velas e imagens de alguns
santos católicos que representam os Orixás e das principais entidades da casa, inclusive e
principalmente a imagem da Mãe Cassiana.
Posteriormente, cada médium espera o ritual começar sentado no terreiro, muitas
vezes pitando o cachimbo, em prece, buscando concentração necessária para o ritual que
está prestes a iniciar.
O cachimbo é um objeto magístico bastante significativo para os umbandistas.
Segundo um dos filhos da casa, ele é um “defumador ambulante manipulável”, ou seja,
objeto que tem como significado marcante a manipulação das energias do ambiente, com o
intuito de promover o equilíbrio destas, além de ser mais um elemento de proteção. Vale
lembrar que é a fumaça, originada do cachimbo, que contém esse poder manipulável, uma
vez que a entidade faz uma limpeza enérgica das pessoas que são atendidas em dia de “cura”
– ou mesmo no dia da Gira – e do ambiente, agindo sobre a energia do vento.
Muitas vezes, alguns médiuns se reúnem no terreiro e rezam o terço, à espera do
ritual começar. O início deste dá-se quando um dos pais de santo da casa toca um sino,
sinalizando que todos devem estar a postos, para abrir a Gira. Normalmente, os homens
ficam dispostos na lateral direita do terreiro, ao passo que as mulheres, dispõem-se na lateral
esquerda; o pai de santo dirigente localiza-se centralmente, próximo ao Congá; em um dos
cantos do terreiro, localizam-se os dois atabaques – tambores – e o Ogã, nome dado ao
tambozeiro; na “ponta de mesa”, as cambones ficam a espera do início do ritual.
Cambones são médiuns que não incorporam e que são responsáveis por servir as
entidades e manter a organização do ambiente. Depois dos pais de santo, elas são os
elementos mais essenciais da Gira, uma vez que são elas que, segundo um filho da casa,
“dão sustentação a Gira”.
Quando todos estão dispostos em seus lugares, inicia-se a defumação. Esta consiste
na queima de ervas, cuja fumaça produzida possui um odor característico forte, com o
intuito fazer uma limpeza de todo o centro, desagregando as cargas negativas acopladas ao
espaço e ao corpo físico. A defumação é feita por um dos pais de santo, acompanhada por
um ponto – música – adequado a situação e ocorre sempre dos fundos à frente da casa.
Nesse processo, são defumados cada canto do terreiro, cada médium, cada visitante-
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expectador e cada cômodo da casa. Quando a defumação é feita em cada médium, este faz
um movimento com as mãos, simulando pegar a fumaça e a leva até a cabeça, ao mesmo
tempo em que gira em torno de si – isto consiste na limpeza do corpo físico.
Em seguida, o pai de santo dirigente reza um Pai Nosso, dá a Gira como aberta e
inicia um ponto cantado, o qual todos acompanham, juntamente com o som dos tambores. A
partir de então, vários outros pontos são cantados, conforme a natureza da Gira, ao mesmo
tempo em que os médiuns dançam no terreiro e os expectadores acompanham os cânticos.
Durante o canto desses pontos, acompanhados pelo ritmo dos atabaques, os médiuns – ou
aparelhos, ou “cavalos” – são tomados pelas entidades, sacudindo o corpo bruscamente,
girando ao redor de si e entrando em transe. Em pouco tempo, várias entidades – entre
pretos velhos, caboclos, oguns, sereias, princesas – tomam o corpo de alguns médiuns; e, à
medida que elas são incorporadas, os demais médiuns fazem reverências a elas com as
mãos, saudando-as, ou com a testa, encostado-a no chão, em respeito às essas entidades
espiritualmente mais evoluídas.
No que as entidades vão sendo incorporadas, as cambones começam a servi-las, seja
com cachimbo, seja com água cristalina, seja com nangô – nome dado pelos umbandistas ao
café sem açúcar. Segundo a crença umbandista, essas entidades baixam em terra para
efetuar seus trabalhos, fazer curas e gerar bem-estar aos médiuns e aos expectadores. Estes,
por sua vez, buscam mentalizar seus pedidos, seus problemas, suas angústias, a fim de que
aquelas entidades possam, de fato, efetivar seus trabalhos.
Os trabalhos são efetuados ao longo, em média, de duas horas e, aos poucos, as
entidades vão desincorporando e os médiuns voltando a si. Vai-se, portanto, finalizando a
Gira, até que o último médium – antes do pai de santo dirigente – desincorpore. O pai de
santo dirigente é, então, o último a desincorporar. Ele dá como encerrada a Gira e finaliza
com outro Pai Nosso, rezado por todos de mãos dadas. Ouve-se, depois, uma salva de
palmas como uma manifestação de felicitação pelos trabalhos que foram feitos.
No processo pós-ritualístico, os pais de santo da casa dispõem-se um ao lado do
outro e os filhos de santo formam uma fila para que cada um seja abraçado e abençoado por
cada pai de santo.
Assim, concluem-se os trabalhos oficiais do dia e todos são prontamente autorizados
a se encaminharem para suas devidas residências.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Umbanda possui uma vasta riqueza de minúcias. Leituras e visitas de campo são
essenciais para compreendê-la apenas superficialmente; contudo, são suficientes para notar
quão desmerecidas são as injúrias feitas ao seu respeito. Primeiramente, porque crenças,
sejam elas religiosas ou não, são dignas de respeito; o convívio em sociedade exige esse
comportamento. Além disso, a partir do estudo, vê-se que ninguém comete crime a praticá-
la; inclusive, os cultos umbandistas são legalizados.
6 BIBLIOGRAFIA
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