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A pesquisa tem como objeto estudo realizado entre 2003 e 2005, envolvendo uma pesquisa com 133 comunicadores organizacionais, tendo como pauta a possibilidade da transparência e da neutralidade nas comunicações dentro das organizações e suas questões éticas. No intuito de um recorte específico, decidimos trabalhar as questões éticas tangenciando as perspectivas epistemológicas com os discursos dos responsáveis pela divulgação e manutenção das normas e dos valores nas organizações. Os resultados dessas entrevistas revelaram discursos divergentes entre a prática do comunicador organizacional e os fundamentos teóricos de sua formação. Associado a um discurso ético-identitário, encontramos uma sistemática referência a dois tipos de valores: transparência e verdade. Baseado em dados empíricos, este artigo traça uma reflexão filosófica e sociológica acerca do discurso ético utilizado nas organizações, retratando o conteúdo dos valores propagados por esses.

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Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 151-172, jan./jun. 2006 151

O VALOR NO COMUNICADORORGANIZACIONAL: TANGÊNCIASÉTICAS E EPISTEMOLÓGICASClóvis de Barros Filho*

Arthur Meucci**

Resumo: A pesquisa tem como objeto estudo realizado entre 2003 e 2005,envolvendo uma pesquisa com 133 comunicadores organizacionais, tendocomo pauta a possibilidade da transparência e da neutralidade nascomunicações dentro das organizações e suas questões éticas. No intuitode um recorte específico, decidimos trabalhar as questões éticastangenciando as perspectivas epistemológicas com os discursos dosresponsáveis pela divulgação e manutenção das normas e dos valores nasorganizações. Os resultados dessas entrevistas revelaram discursosdivergentes entre a prática do comunicador organizacional e osfundamentos teóricos de sua formação. Associado a um discurso ético-identitário, encontramos uma sistemática referência a dois tipos de valores:transparência e verdade. Baseado em dados empíricos, este artigo traçauma reflexão filosófica e sociológica acerca do discurso ético utilizado nasorganizações, retratando o conteúdo dos valores propagados por esses.Palavras-chave: comunicação organizacional; epistemologia; ética;transparência; verdade.

* Professor de Ética em Relações Públicas na Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Programa deMestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), epesquisador no Espaço Ética (EE-EPP). [email protected]** Mestrando em filosofia e pesquisador no Núcleo de História e Filosofia da Ciência da Universidade de SãoPaulo (USP), professor de filosofia no Colégio Santa Amália e pesquisador no Espaço Ética (EE-EPP)[email protected]

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Abstract: This paper discusses a piece of research carried through between2003 and 2005, involving a survey with 133 organizational researcherson the topic of the possibility of transparency and neutrality incommunications within organizations, and their ethical questions. In orderto provide specific focus, we decided to work on ethical questionstangencing the episthemological perspectives with the speech of thoseresponsible for divulging and maintaining norms and values within theorganizations. The results of these interviews reveal diverging kinds ofspeech. There seems to be clear differences between the practice of theorganizational communicator and the theoretical foundations of his/herformation. We have found sistematic reference to two types of valuesassociated with their ethical-identitary speech: Transparency and Truth.Based on empirical data, the present article presents a philosophical andsociological reflexion on the ethical speech used within organizations,focusing on the content of values which underly them.Key words: organizational communications; episthemology; ethics;transparency; truth.

“O mundo é minha representação”: sentença sempre presente nos debatesepistemológicos sobre a possibilidade de um conhecimento qualquer do mundo,pelo menos a partir do século XIX – “Verdade para todo ser vivo pensante.” Omundo, para o sujeito que nele vive e que o contempla ininterruptamente é, ou sópode ser, sua própria representação, singular e única como são as trajetórias, osencontros e as percepções, indissociável do ser que representa e do ato de representar.Matéria-prima semiótica e, portanto, sempre significada nas relações e naintersubjetividade. Primeiro passo para os mais recentes estudos fenomenológicos,herdeiro da filosofia de Kant, Schopenhauer a revisita quanto às relações entre sujeitoe objeto, a coisa-em-si, inapreensível ao homem, só é para esse um fenômeno, umareconstrução operada pelo próprio sujeito; ou seja, algo subjetivo – o mundo passaa ser diferente para cada um.Foi Schopenhauer quem levou essa reflexão a uma forma mais acabada. Suafilosofia alargou os horizontes do conhecimento que o homem tem sobre o mundoe sobre sua própria “realidade”. Denuncia a natureza das relações entre o mundo eas representações que o têm por objeto, reflexão inspiradora de pensamentosconsagrados como os de Nietzsche, Husserl, Freud, Sartre e tantos outros ainda emvias de consagração. O presente capítulo propõe uma tangência dessas assertivascom alguns discursos teóricos em circulação no que se convencionou chamar “campoda comunicação”, especialmente o da comunicação organizacional.Mas o que um pensamento tão consolidado desde o século XIX, e tãohabitual, tem a nos dizer hoje? O que a comunicação tem a aprender com opensamento de Schopenhauer, entre outros? De fato, a fenomenologia pode nos

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ajudar, afinal, a representação singular do mundo pressupõe uma percepção tambémúnica e irrepetível. O mundo que não se deixa flagrar na sua integralidade se converteem fenômenos para um ser que percebe. Outro observador, outros pontos de vista,outros flagrantes e fenômenos. Mundo único. Mundo de cada um e para cada um.O retorno a Berkeley também elucida. E não pouco. Afinal, o ser, desde sua pujantefilosofia, é só o que dele se percebe: ser percebido. “Esse é percipi.”1O que algo tão óbvio tem a nos ensinar sobre as práticas de comunicaçãoorganizacional? O que todos esses filósofos têm a dizer aos relações públicas, jornalistas,assessores de imprensa, publicitários, ou a qualquer outro profissional que trabalhanessa área? O que justificaria a um aluno, ou a quem atua no campo, ler estas reflexões?E aos que trabalham em Compliance? Teríamos algo a lhes dizer? A resposta é simples:desvendar as artimanhas dos discursos morais e identitários no campo das comunicaçõesorganizacionais; mostrar os discursos éticos que têm como objetivo se pautar sobre atemática da transparência e das ações desinteressadas, para denunciar o interesse dasações desinteressadas, para identificar a refração da transparência; a opacidade seletivada casa de vidro, o ocultar pudico do kimono aberto.2 Enfim, tocar na ferida dasjustificações. Além disso, para um leitor privilegiado, fora dos prejuízos cartesianos,oferecemos um outro assunto: uma outra percepção.Não há aqui pretensões explícitas de um diálogo filosófico. O presente ensaiopropõe uma tangência dessas assertivas com a ética na comunicação organizacional,com discursos de dever-ser, de natureza moral, com juízos de valor sobre a práticado comunicador na organização.Num determinado mundo social de produção de saberes aplicados, as doutrinasse reproduzem, e as metáforas se repetem. Assim, a casa de vidro, a livre circulação, aneutralidade, a imparcialidade e a transparência são expressões recorrentes na fala deum comunicador organizacional. Normas para quem não pode deformar ou opinar;para quem deve limitar-se a informar e a permitir que os distintos públicos saibamo que realmente acontece na organização; a mostrar a empresa tal como ela é: normaspara definir um fazer profissional, fragmentos de um discurso identitário.Por isso, toda dúvida filosófica sobre a possibilidade de conhecer o mundo talcomo ele é enriquece o debate sobre a possibilidade – convertida no campo dacomunicação em exigência ética – de relatar esse mundo tal como ele é. Essapossibilidade teórica encontra respaldo em certa argumentação filosófica: o realismo.Para os que dela se servem, o agente do conhecimento crê que as pesquisas e ashipóteses, certas ou erradas, delimitam a realidade. Nessa postura, o agente doconhecimento crê que as pesquisas e as hipóteses, acertando ou errando, delimitam1 Latim: Ser é ser percebido.2 Metáforas utilizadas por especialistas para ilustrar os procedimentos práticos da transparência na organização.

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a realidade. Acredita que os universais, os conceitos, as idéias, os gêneros, as teorias sãoentidades reais, algo que existe na natureza das coisas, ou na mente. A origemetimológica da palavra realismo está no substantivo grego rex (coisa), pois significa oestudo da coisa.Em outras palavras, a ciência avança na direção de uma realidade que podeser circunscrita ou não. No dizer de um de seus representantes, Karl Popper, quandoas hipóteses se confirmam, elas “corroboram” a idéia que se tem de realidade. (1975,p. 275-311). E mesmo quando desmentidas, permitem um avanço na busca daverdade, pela identificação de nossos erros. Confirmações e desmentidos aperfeiçoam,portanto, nossa visão de mundo. Permitem a “descoberta” científica, ideal, realista,que desvenda a realidade. A designação “descoberta” científica retrata o ideal realistaque visa a desvendar a realidade. Tira o véu que a esconde. Mostra a verdade paratodos. Assim, para os realistas, apesar de as leis e os enunciados científicos nãochegarem à verdade, tendem a dela se aproximar. Essa é uma visão de mundocompartilhada por muitos dos filósofos modernos,3 e por alguns contemporâneoscomo os marxistas4 e os popperianos.A outra postura ante o conhecimento é o nominalismo, principalmente ocontemporâneo. Nessa corrente, a ciência não leva os homens ao conhecimento dascoisas mesmas. Para o nominalismo, o conceito, bem como os relatos sobre a realidade,são puros nomes, um flatus vocis.5 As leis científicas são encaradas pura e simplesmentecomo uma tentativa objetiva de se descrever as causalidades entre os fenômenos,abandonando a idéia de realidade e, principalmente, do conhecimento da coisa-em-si.Consideram o conhecimento adquirido subjetivo, porém inscrito num objetivismopossibilitado pelo social. Para céticos, positivistas, alguns neokantianos, empiristaslógicos e outros paradigmas originados dessas correntes, o mundo não teria umaverdade ou um valor em si e por si; as leis científicas possuiriam um mero usoinstrumental, e a crença de que essas leis, teorias ou conceitos existam em si éconsiderada uma atitude metafísica, em que o sujeito passa por um processo defetichismo das leis que concebe, tornando as leis da física, da química, da sociologia ede outros campos existentes, como objetos que existiriam na realidade ou na mente.3 Os filósofos modernos a que nos referimos são tanto intelectualistas quanto empiristas, entre os séculos XVII eXVIII, até Kant. Uma geração que vai de Bacon e Descartes até Leibniz e Berkeley, tinha como crença apossibilidade de se chegar à verdade por meio de um conhecimento certo, indubitável, por meio dos experimentos(empiristas), ou de um sistema dedutivo eficaz (intelectualistas). Opositores do ceticismo, essa posição vigoraráaté o aparecimento das críticas de Hume e do desdobramento da filosofia de Kant. (WESTFALL, R. S., Theconstruction of modern science. Cambridge: University Press, 1971).4 Tomamos por marxistas aqueles que seguem o programa de pesquisa instituído por Marx. Excluem-se osdenominados “marxistas analíticos” que, em seu núcleo, compartilham do positivismo, rejeitando assim aspretensões realistas, bem como a dialética. Além disso, possuem um sistema voltado ao indivíduo e não às forçasde produção ou classes sociais.5 Do latim: pura “emissão fonética”.

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Seria muita pretensão querer resolver essa querela neste ensaio. Afinal, não cabenum trabalho sobre as comunicações organizacionais tentar findar mais de trezentosanos de debates filosóficos. Por isso mesmo nos prendemos à sondagem da possibilidadede uma comunicação transparente, imparcial, que não altere ou não deforme arealidade. Mesmo da perspectiva do pressuposto metateórico realista, nem esse campo,nem outro que conhecemos, pode nos oferecer um contato direto com a realidadecomo quer a maioria dos comunicadores. Não seria possível informar sem deformar.Isso se deve nem tanto ao fato de se mostrar a realidade de forma homogênea, mas aofato de que o sujeito informado não apreende nele mesmo, muito menos a informaçãonela mesma. O ser humano reconstrói, re-elabora, representa.Nossa análise se pauta nas informações obtidas nos últimos dois anos depesquisa na área. Diversas pesquisas realizadas com 133 ComunicadoresOrganizacionais (CO), envolvendo administradores, relações públicas, jornalistas epublicitários constituem nossa base empírica. Foram analisadas desde as práticas degerência e assessoria de imprensa até o Compliance Office.6 Em entrevistas abertas,semi-estruturadas, pesquisamos os agentes do campo e seus pretendentes,7 ampliandoassim o universo amostral e os resultados referentes às nossas últimas pesquisas como campo de relações públicas. No intuito de garantir a integridade de nossosentrevistados e possibilitar melhor riqueza de detalhes, guardaremos o sigilo quantoaos seus nomes. O único estímulo pautado na entrevista era o próprio objeto dapesquisa, a possibilidade da transparência e da neutralidade e suas questões éticas.Os resultados dessas entrevistas revelaram discursos sobre o dever-ser do CO– deontologia –, bem como os seus fundamentos teleológicos – suas finalidades.Além disso, percebemos como os discursos morais e a práxis desse profissionalconstituem sua identidade. Numa visão institucional, percebemos que essa é aprincipal função do Compliance Office quando o assunto é a identidade – interna eexterna – da empresa.A existência dessas categorias revela a semelhança das propostas dosprofissionais entrevistados a respeito de suas atividades. Apesar das diferentesperspectivas que jornalistas, relações públicas, publicitários e administradores têmdeste campo, as semelhanças e questões levantadas nos autorizam a apontar umaidentidade do CO, isto é, um discurso definidor de suas singularidades, relativamentecompartilhado.6 O Compliance Office é um departamento, dentro de uma instituição, que tem como função monitorar suasações e negócios. Além disso, tenta assegurar que suas regras e valores sejam respeitados. O termo compliancetem origem no verbo inglês to comply, que significa agir de acordo com uma regra.7 Alunos de graduação em Administração e Comunicação que se manifestaram dispostos a trabalhar no campo daCO. Nesse universo encontram-se alunos da USP, ESPM e Cásper Líbero. Demos preferência aos que estagiavamna área.

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XERIFES DA MORAL: A ÉTICA COMO DEFINIDORA DA IDENTIDADE DO CO“Mas, afinal, o que é Comunicação Organizacional?” Indagação trivial e sempredeslegitimadora. Para o profissional da área, formado para solucionar problemasconcretos sobre a relação da empresa e suas infinitas representações possíveis, essaquestão pode parecer um enigma. Para estudantes e professores, o constrangimentonão é menor. Como dar aula, ou mesmo freqüentar um curso ou uma especialização,do que não se sabe exatamente o que é? Um conceito indiscutível parece se tornaruma exigência, uma fórmula lógica que ofereça recursos para se definir o que é e oque não é; uma fronteira facilmente identificável entre o dentro e o fora, uma unidadeconceitual, como denuncia Wittgenstein; uma idéia abstrata, como pregava Locke;uma idéia como a de um triângulo abstrato,8 não percebido, nunca visto, mas quese “encaixa” em qualquer tipo de triângulo particular, como o isósceles, o escaleno,etc. Procura-se idéia equivalente para o CO. Mas qual é a dificuldade? Se essa carênciaconstrange e afeta tantos envolvidos, por que permanece?O Wittgenstein das Investigações filosóficas, atualizando Berkley, começa a nosesclarecer. A tal idéia abstrata, enquanto unidade conceitual, não existe. (WITTGENSTEIN,1988, p. 31). O que permite construir um conceito é a constatação de certas ocorrênciassingulares, particulares e seu agrupamento. Mas o que permitiria a um observador agruparocorrências que são o que são, isto é, singulares, irrepetíveis e desvinculadas de qualqueroutra? É o que Wittgenstein denomina semelhanças de família (p. 39): signo constituídode uma estrutura que liga estruturas aparentadas entre si. “O que nós percebemos echamamos de ‘frase’ e ‘linguagem’ não é a unidade formal que eu represento, mas umafamília de estruturas mais ou menos aparentadas entre si.” (p. 46).No caso de CO, como em todas as outras profissões, o que a define é seu fazerprofissional, suas estratégias de comunicação e organização. Um fazer que se objetivaem discurso, discurso sobre si. Cuja origem é social. Um discurso que o profissionalaprende no próprio universo que freqüenta, no qual trabalha: um discurso identitárioprofissional.Dessa forma, para Wittgenstein, os conceitos nunca são definitivos. Percebemosque sua construção depende de interesses em conflito, de discursos em interação, derelações de poder. A aparente estabilidade de alguns conceitos é, portanto, além daeficiência no que tange à semelhança de família, também indissociável de uma relativamanutenção de certa relação de forças no interior do universo social que os propõem.Assim, alguns desses universos se convertem em comunidades de sentido. Nessas, asassertivas serão tanto mais indiscutíveis quanto menos perceptíveis forem os mecanismosinternos de dominação. Luta social pela imposição do conceito legítimo, pela identificação

8 Veja-se LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 152.○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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das ocorrências mais pertinentes a constituir conceito e pelas aproximações maisadequadas para constituir a semelhança de família que se deseja. O melhor exemploentre os COs é o discurso da informação, da transparência e da ética.Quando um profissional de CO se identifica, ele obviamente não descreveuma essência. Não traz consigo uma regra de conjunto que determina seupertencimento aos COs. Sua estratégia de discriminação profissional passa porreferências de sua práxis profissional, o que ele realmente faz. E, como pudemosconstatar, no caso dos COs, seu fazer está quase sempre associado a uma ética, a umdever-ser profissional. Assim, em seus discursos,meu nome é XXX, e trabalho no mercado de capitais. No meu dia-a-dia tenhocontato com outros bancos. Então eu acho que essa experiência, troca de idéias comestes, vai dar para se comparar em termos de ética com o que os outros fazem, e como que a gente faz.9

Ou ainda,Meu nome é XXX, e trabalho no setor de comunicação da indústria. Fui formadapela Cásper Líbero, em 1982. A nossa principal função aqui é garantir a trans-parência nas comunicações da empresa e para os nossos clientes. Garantir que todomundo fale, e que não se esconda nada. Fazer como o papel que produzimos, sem“rasuras ou manchas”. 10

A metáfora da transparência, recorrente nesse discurso, como regradeontológica, aproxima – ou mesmo identifica – o espaço social com o mundo doespaço físico natural. Produzem uma simples comparação. O problema é que mesmoo dito espaço físico é fabricado dentro de um espaço social. Espaço, tempo,causalidade, todos esses conceitos presentes no discurso da física que não existemrealmente na natureza. Emmanuel Kant mostrou como essas concepções são dadasa priori na mente do indivíduo, ou seja, são postas pelo indivíduo sobre a realidade.Não existem em si. O fenômeno que vemos na natureza já é em si uma representação;ao percebê-lo atribuímos a ele elementos espaciais e temporais, categorias, bemcomo um valor. Todos esses recursos, que também constroem a lógica datransparência, são forjados no social.Se transparência, imparcialidade, neutralidade e verdade são recursos paracriar uma identidade profissional, como essas se dão? Como num discurso sobredeterminada práxis usam-se idéias e valores, e não, propriamente a prática? Marxnos deu uma primeira pista. Na cultura ocidental valoriza-se o intelecto em9 Profissional de CO trabalha no Compliance Officer. Entrevista concedida em 12/7/05.10Profissional de CO trabalha no departamento de comunicação. Entrevista concedida em 1º./7/05.

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detrimento do trabalho, a idéia em detrimento da práxis. “As idéias não podemjamais levar além de uma fase antiga do mundo [...]. Além disso, as idéias nadapodem realizar. Para realizar as idéias, são necessários homens que ponham afuncionar uma força prática.” (MARX; ENGELS, 2001, p.32).Há uma ideologia por detrás da socialização que privilegia o ócio ao labor.Desde o Gênesis, onde encontramos o trabalho como castigo pelo pecado, passandopor Aristóteles, que ligou a nobreza à gradativa ausência de esforços, consolidando-se em Hegel, que postula a idéia como motivo último do trabalho, a cultura humanase convence de que uma idéia ou valor é mais importante do que a cria. (POLITZERet al., 1978, p. 170-183). O ideal é considerado mais importante do que a revolução.Imerso nessa cultura, para o CO os ideais éticos são mais importantes do que suaprópria prática. Eis o objeto de nossa análise. Sem mergulhar numa visão marxista,trataremos tanto da transparência nas comunicações organizacionais quanto doque eles entendem por verdade.

PRIMEIRA LEI: “NÃO INFRINGIRÁS A REGRA DA TRANSPARÊNCIA.”Dez anos atrás ninguém pensava em ser idôneo. Transparência... não existia esseconceito que hoje existe, e a preocupação que hoje existe de “vamos ser sérios”, “vamosesclarecer sobre o produto”, “vamos ser transparentes”, “vamos fazer um SAC” nãoexistia dez anos atrás. Acho que isto... o comportamento das pessoas foi mudando, osvalores foram mudando e dentro [do banco] também o conceito de ética.11

Ética e transparência são comentadas exaustivamente pelos profissionais de COquando falam sobre sua práxis. Seu discurso de autodefinição. Artifício pelo qual eleconstrói a identidade num jogo de associação, de semelhança de família. Raramenteele situa seu discurso enquanto ideologia em conflito com outras. Define-se comocanal ou vidro, instância neutra. Para muitos dominantes do campo, “[...] guardiãoda comunicação nas empresas, o profissional de Relações Públicas deve assegurar alivre circulação de informações, criando canais de comunicação eficientes e rápidos”.12O caso dos Relações Públicas é bem interessante. O código de ética dosprofissionais de RRPP – sistema normativo pertencente ao campo da ComunicaçãoOrganizacional – também determina que o exercício profissional garanta atransparência nas empresas. Reza seu artigo quarto: “O profissional de RelaçõesPúblicas deve empenhar-se para criar estruturas e canais de comunicação que11 Profissional de CO, trabalha no Compliance Officer. Entrevista concedida em 12/7/2005.12 Profissional de comunicação organizacional como Relações Públicas e gerente de comunicação da Philips naAmérica Latina, nossa entrevistada em 15/10/2003.

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favoreçam o diálogo e a livre circulação de informações.”13 Essa norma é retomadano art. 2º sob as Responsabilidades Gerais. Como vemos:Artigo 2º – Ao profissional de relações públicas é vedadod) Disseminar informações falsas ou enganosas ou permitir a difusão de notícias quenão possam ser comprovadas por meio de fatos conhecidos e demonstráveis.e) Admitir práticas que possam levar a corromper ou a comprometer a integridadedos canais de comunicação ou o exercício da profissão.f ) Divulgar informações inverídicas da organização que representa.

Mas o que deve transparecer? Notícias que podem ser corroboradas pelo real.Uma comunicação íntegra, informações verídicas, e nada que possa comprometero exercício do RRPP. Favorecer o diálogo e a discussão entre os componentes queformam a organização com a qual ele trabalha. Como todo espaço social, umaempresa é constituída por relações: ações em relação. Se a transparência dessas precisaser garantida é porque são, pelo menos em parte, opacas, pouco ou nada visíveis.Sem a ação de um CO ético, algumas ações em uma empresa são mais nítidas doque outras. Como observa nosso entrevistado,14 “a transparência é uma coisa quenão se dá sozinha”.A questão da transparência não se limita, portanto, somente aos canais internose externos da empresa. Tomemos como exemplo alguns profissionais de ComplianceOfficer. Ao se perguntar sobre um exemplo típico de transparência que envolve umainstituição, como num banco, uma supervisora vê esse conceito de outra forma:mais complexa.Aumentar uma tarifa e o cliente não ser avisado, por exemplo. Pegá-lo de surpresacom o valor de débito em conta corrente... Acho que, antes de aumentar, o clientedeve ser comunicado com dez dias de antecedência. Até tem uma questão legal que oBanco Central exige. Qualquer tarifa de conta corrente o cliente deve ser avisadocom trinta dias de antecedência. É assim que obtemos a transparência. Além disso, obanco deve explicar o porquê desse aumento. É não surpreender o cliente, deixando-o satisfeito com nosso serviço.15

Eis outra perspectiva da transparência. A questão da transparência nasorganizações pode ser vista de muitas formas e costuma variar conforme a formaçãodo profissional, o campo a que pertence, a área onde atua e sua posição dentro daorganização. A formação em administração ou em algum ramo da comunicaçãoajuda nesse processo, bem como a organização onde trabalha. Para mostrar essa13 Disponível em: http://www.conferp.org.br . Acessado em: 12/11/2005.14 Profissional de RRPP e professor de Ética e Legislação. Entrevista concedida em 5/11/03.15 Profissional de CO trabalha no Compliance Officer. Entrevista concedida em 12/7/05.

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afirmação, citaremos dois casos. O primeiro é um CO formado em RRPP,entrevistado no Banco (A).16 O segundo, formado em Propaganda, trabalha noBanco (B). Seguem-se os relatos na ordem.Banco (A)No relacionamento, acho que a palavra que vem, que pode fechar perfeitamente,porque é totalmente ligada à questão da ética, no relacionamento, é a transparência.Em qualquer coisa que o banco faça, que eu busque, que eu ofereça, e qualquer formade comunicação de alguma coisa, a comunicação vendedora de algum produto, ou aoperação de alguma coisa dentro do banco, que dá acesso ao cliente, eu acho que oprincipal é a transparência.17

Banco (B)Então, tem a transparência. Este é um produto complicado de vender. Dependemuito da situação dos negócios que envolvem. No caso do empréstimo doaposentado, é um exemplo de como a coisa é complicada de se passar. Temos devender um empréstimo de 3,5% de juros, sendo que o anunciado é a partir de 1,7%.Sabemos que temos de trabalhar o assistente de telemarketing com base na propa-ganda. A pessoa procura 1,7%, empurramos 3,5%, sendo que, na verdade, ela acabapagando 7,01%. A Hebe fez a parte dela, agora o atendente tem de mostrar que1,7% são para pagamentos em 3 vezes, e que mais do que isso é 3,5%. Tem de ter estapostura de transparência. Mas ele não pode deixar a pessoa perceber que, com astaxas adicionais que o banco coloca, ele fica na casa dos 7%.18

Observando as duas situações apresentadas, percebemos as diversas perspectivassobre a transparência. Uma palavra com vários significados e interpretações. Umsimples signo que envolve uma tensão conflituosa de interpretações, de valores.Num mesmo campo (comunicação organizacional em bancos), um mesmo valor(transparência), com diversas interpretações (uma virtude ou um produto).Voltemos inicialmente à questão: por que as relações não são naturalmentetransparentes? Por que diferentes perspectivas e valores? A resposta a essas questõestambém depende da perspectiva da qual se enxerga o mundo, seus parâmetros, ospressupostos metateóricos utilizados para interpretar a realidade. Weltanschauung(representação/visão de mundo), como diriam os estudiosos da teoria doconhecimento. Depende de como olhamos para a realidade. Hoje várias perspectivassão oferecidas para explicar determinado fenômeno. Depende, somente, de como oleitor enxerga.16Para promover a integridade de nossos entrevistados, manteremos sigilo quanto às instituições.17Profissional de CO trabalha no Compliance Officer. Entrevista concedida em 1º./7/05.18Profissional de CO, supervisora da área de marketing. Entrevista concedida em 3/9/05.

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Ao encarar o mundo como representação, não estamos buscando o mundocomo ele realmente é, mas como se apresenta a nós. Fenômenos reconstruídos pelossujeitos que operam. Reconstruções que atrapalham o processo de representação. Umareconstrução dos fatos socialmente aceita. Mas essa reconstrução, por ser social, podese dar de muitos modos. Podemos ver a questão da transparência pelo viés funcionalista,marxista tradicional, marxista analítico, organicista, estruturalista (com suas vertentes),etc. Não todos, mas uma boa parte desses programas de pesquisa pode explicar essefenômeno, e muitos outros, de maneira satisfatória. Cada um com sua visão darealidade. Com suas próprias perguntas, com seus métodos e soluções.Adotaremos uma dessas inúmeras posturas, não necessariamente melhor oupior do que as outras. Como toda representação que tentamos fazer do mundo,temos de começar com uma pergunta. A pergunta revela o modo como iremosentender a realidade. Quais os parâmetros que vamos atribuir aos fenômenos embusca de um determinado sentido. Optamos inicialmente por procurar a gênesepor detrás das ações, a genética das estruturas sociais. Privilegiar a causa das açõesem detrimento dos efeitos. Postura legitimada por sociólogos como Pierre Bourdieu.Então perguntamos: a quem interessa a transparência? A quem interessa defini-la? A quem interessa defendê-la? Os canais de comunicação, os diálogos, as transações,as informações, tudo isso envolve relações. Relações que, segundo determinadaperspectiva, estão em luta, porque essas se estruturam em qualquer espaço, emtorno de objetos de luta. Esses troféus, por sua vez, mais ou menos raros, sempreensejam conflitos. Assim, toda empresa é mais do que simplesmente um espaçofuncional de produção de bens ou de prestação de serviços. É também um espaçode conflito. Seus integrantes não querem, necessariamente, ao agir, atingir objetivoscomuns. Não lutam pela eficácia do sistema, mas pela satisfação de seus própriosapetites. Sem atos interessados não haveria troféus nem campos sociais.Nessa perspectiva, muitos dos discursos do profissional de CO seriaminverídicos. O discurso de formação acadêmica, e de práxis profissional, camuflaconflitos e interesses que estão em jogo no dia-a-dia da organização. A visão de umadeterminada ordem social, que visaria a uma competição entre agentes em vez deum conflito inerente às práticas sociais, seria outra perspectiva, com outrospressupostos, como geralmente é utilizado pelo profissional da área.Na postura que adotamos, qual a resposta para que o comunicador não deixetransparecer os conflitos? É simples. Nessa arena de apetites excludentes em que seconverte o espaço da empresa, ninguém gostaria de ver seus interesses revelados.Comprometeria suas estratégias para obtenção do poder. A segunda, baseada narevelação das relações e ações estratégicas de seus participantes, pressuporia, a princípio,uma ação reveladora desinteressada, comprometida com uma ética pura, descarnalizada,imune aos afetos e comprometida com o Bem. Pressupõe que na ação de informar osinteresses de outrem não se esconderiam os interesses do próprio CO.

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A ética do CO, ao menos a preconizada pelo seu código, supõe a possibilidadede uma denúncia imparcial, neutra e desinteressada. Mesmo que existisse esse agenteasséptico, suas revelações – porque existem e produzem efeitos – participariamnecessariamente da relação de forças específica ao espaço. Ao fazer isso, o campo daCO tenta inscrever as normas éticas numa perspectiva a-histórica, dando a aparênciade uma evidência natural e universal. É isso o que chamamos amnésia da gênese.21 Éfazer com que os parâmetros éticos escondam uma lógica histórica por detrás desua criação, usando, nesse caso, o pretexto da imparcialidade e da neutralidade. Porisso, revelar o que se esconde é desnudar as causas de sua criação, a lógica em que osparâmetros éticos se inscrevem dentro do ambiente organizacional.Principalmente, atuando junto à diretoria para garantir que as decisões de interessesdos funcionários sejam informadas a eles com transparência e rapidez. Este é um dosmaiores desafios do profissional de RRPP junto ao público interno.20

Perguntamos, nessa declaração, se outros interesses, diferentes dosfuncionários, também sofrem o processo de transparência. Como os dos diretores,ou dos clientes da organização, por exemplo. Melhor do que isso: os funcionáriostêm interesses comuns? Quem define, e como define, os interesses de todos osfuncionários? A quem interessa reificar os trabalhadores? Ao sindicato? Aos patrões?Mesmo na manifestação singular de cada proletário, a quem interessa categorizaros discursos? A quem interessa elaborar as categorias de interpretação de seusanseios? É possível igualar os afetos analisando as manifestações encontradas nacaixinha de sugestões?A transparência pressuporia não só revelar tudo, mas também revelar para todos.O termo democracia, muitas vezes mencionado pelos entrevistados, marca determinadocaráter ideológico. Num processo de semelhança de família, o profissional de COtenta associar a sua práxis como coerente com a idéia legítima do sistema democrático.Passa a ser o xerife legítimo que garante os ideais democráticos de liberdade, igualdadee fraternidade dentro da organização, portador de uma virtude universal, socialmenteaceita. Assim, destacam os profissionais. “Acredito que o profissional de comunicaçãoorganizacional tem de prezar em primeira instância pela democratização dasinformações. Prezar pela clareza está ligado à ética.”21

19 Bourdieu explica o efeito da amnésia da gênese, como algo que “favorece, neste domínio como nos outros, oacordo imediato entre o ‘subjetivo’ e o ‘objetivo’, entre as disposições e as posições, entre as antecipações e ashipóteses”. As estruturas sociais da economia. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 18.20 Profissional de CO atua como RRPP na gerência de comunicação. Entrevista concedida em 15/10/03.21 Profissional de CO. Entrevista concedida em 20/10/03.

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Assim, como no ideal democrático de Rousseau,22 é preciso que cada umrevele seus desejos, a fim de se chegar numa “Vontade Geral”. Como nossosprofissionais revelam,Eu acho que principalmente numa relação comercial, numa relação pessoal, euespero que a pessoa diga o que ela pensa. Numa relação comercial, que se informesobre os interesses da empresa para com o cliente.23

Esse discurso nos faz esquecer a reflexão sobre o processo de definição eprodução da mesma. Processo de escolha, de valoração, de definição de importâncias.Assim, sentencia uma analista:Em minha opinião, o profissional deve gerenciar as informações, garantindo atransparência mesmo em casos polêmicos. Gerenciar é definir importâncias. Saber oque é relevante para a imagem da empresa e o que não é.24

Como dissemos anteriormente, o mundo não possui valor em si. Somentereconstruções deste mundo, representações operadas pelo sujeito, atribuem determinadosvalores aos fenômenos. Em outras palavras, as coisas do mundo têm valor para quem asconsidera. Para um sujeito que deseja, na medida do que o social ensinou a desejar. Boasporque agradam, más porque desagradam. Atribuir valor permite hierarquizar, separaro mais importante do menos importante, sempre subjetivamente. Opaco travestido detransparente. Bom e mau travestido de bem e mal.Como observa nosso analista de comunicação empresarial:[...] garantir a transparência é atuar de forma ética. Ética é algo que deve ser levado asério em qualquer profissão e na vida pessoal. É agir de acordo com os princípios evalores nos quais realmente acreditamos.25

Acreditar “realmente” em alguns valores implica desacreditar em outros.Hierarquiza, atribui importância a certos critérios de apreciação da conduta emdetrimento de outros. Ora, essa discriminação entre bons e maus valores ou entremelhores e piores pressupõe escolha, decisão, ação sobre a realidade, o que éincompatível com o caráter inerte, vítreo da transparência.22A idéia de que a democracia é o melhor sistema de governo, pois é baseada na manifestação dos desejos maisparticulares de cada indivíduo, tem sua origem doutrinária em Rousseau. O conceito de Vontade Geral expressaessa operação que, para ele, é a única forma legítima de se estabelecer qualquer contrato entre os homens. Docontrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 37.23Profissional de CO trabalha no Serviço de Atendimento ao Cliente. Entrevista concedida em 12/7/05.24Profissional de CO é analista de comunicação empresarial. Entrevista concedida em 3/11/03.25Ibidem.

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Assim, a seleção das informações pressupõe uma atividade de hierarquizaçãoa partir de critérios definidos pelo profissional e, portanto, incompatível com osatributos de “transparência” em regra aludidos. Essa incompatibilidade parece nãoconstranger nossos entrevistados, sequer a percebem. Isso porque o valor dasinformações é considerado imanente, apenas constatado por aquele que com elastrabalha. Como observam alguns COs em sua práxis,[...] atualmente cuido da compilação e fornecimento da parte mais relevante dessasinformações, passando-as posteriormente a nossa assessoria. Não cabe a mim decidirsobre o que é importante. Tenho me empenhado em imprimir um ritmo de clareza,transparência e objetividade em todas elas.26

Assim discursam nossos xerifes: valorar para hierarquizar; categorizar;“Respeitar as coisas como todos sabem que ela são”. Selecionar “o mais relevante.”;“O que realmente interessa.”; “Não ludibriar o cliente.”; “Deixar transparentes osinteresses da organização.”; “Ter uma postura neutra.” A moral do discurso quetem a transparência como sustentação atinge seu ápice com a conclusão inevitável:o CO deve dizer a verdade (mais um mandamento presente nos Códigos de Éticadesses profissionais).

SEGUNDA LEI: “FALARÁS A VERDADE. SOMENTEA VERDADE. NADA MAIS DO QUE A VERDADE.”– Eu anuncio a verdade. A propaganda diz respeito à verdade. Ele é o chocolate maisgostoso. Mais puro. Tão barato quanto os concorrentes. Eu vendo, sem dúvida, amelhor opção do mercado. O melhor chocolate para todas as horas.Pesquisador: – E o chocolate da Nestlé? Este publicitário mente?– Não, não. Ele até passa a verdade. Os chocolates da Nestlé são os mais vendidos noBrasil, e também dão prêmios.27

A verdade é mesmo um tema duro para a filosofia. Com um leque tãogrande de uso e significado, a verdade passou a ser um tema ultradebatido emtodas as áreas do intelecto humano. Assunto para a lógica, para a ciência, para aepistemologia, para a moral, e até para a estética.28 Mas, afinal, o que é a verdade?Como consegui-la? Como ensiná-la? Seria realmente possível obter a verdade?26 Profissional de CO diretor do departamento de marketing. Entrevista em 26/10/03.27 Profissional de CO publicitário responsável pela parte de criação e divulgação. Entrevista em 27/10/05.28 Tomamos o conceito de estética no sentido contemporâneo da Crítica do juízo: dos tipos de valores que abordama conduta humana, como o belo, o bem, o feio, o mal, o sublime, o verdadeiro, o correto, etc.

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Essas respostas dependem de um contexto e do tipo de pergunta. O conceito deverdade é extremamente amplo, com usos específicos nas diversas áreas doconhecimento. Para a lógica, por exemplo, a sentença “Há um elefante de duastoneladas dirigindo um fusca amarelo-gema, neste momento, na Marginal Tietê”pode ser considerada verdadeira. Por mais que saibamos que elefantes nãoentrariam num fusca, e que muito menos sabem dirigir, essa frase contém umcaráter lógico que pode ser verificado.Para a lógica, toda sentença, passível de verificação, pode ser consideradaverdadeira. Poderíamos ir até a Marginal Tietê e conferir se o elefante está ou não lácom o fusquinha. Já a teoria da criação do universo pelo Big Bang pode serconsiderada falsa. Qual o motivo? Não podemos constatar se houve ou não um BigBang. Invertendo a situação, no dia-a-dia, seria diferente. Se uma pessoa diz existirum elefante dirigindo um fusca amarelo, você provavelmente dirá que ela estámentindo. E se um cientista fala da teoria do Big Bang, você ponderará sobre averacidade de sua explicação. Vai aceitá-la sem questionar. O que houve nessas duassituações? O que aconteceu com o conceito de verdade?Por essas considerações, e outras, não podemos ter uma postura rígida sobreo conceito de verdade. Muito menos com seu critério. Pressupor algo dessa naturezaseria uma postura dogmática, consciência essa ausente em muitos profissionais,inclusive nos COs. Tal empreendimento há muito é criticado pela filosofia edenunciado por inúmeros filósofos,Supondo-se que a verdade seja feminina – e não é fundada a suspeita de que todos osfilósofos, enquanto dogmáticos, entendem pouco de mulheres? Que a espantosaseriedade, a indiscrição delicada com que até agora estavam acostumados a afrontar averdade não eram meios pouco adequados para cativar uma mulher? O que há decerto é que essa não se deixou cativar – e os dogmáticos de toda a espécie voltaram-setristemente frente a nós e desencorajaram-se. (NIETZSCHE, 1999, p. 5).

Seguindo o pressuposto anterior, tendemos a perguntar o que se considera “averdade”? Ela é possível? E a quem interessa determinar o que é a verdade? Algunspoderiam argumentar que esta é uma trilha sombria. Pouco clara. Muito especulativae impregnada de teorias de complô. Provavelmente seja. Porém, não é de todoabsurda. Esse caminho é passível de consideração ao analisarmos alguns discursosde dominantes do campo. O exemplo que podemos citar é o discurso de um“veterano” em CO. Um respeitável assessor de imprensa, que nos passa certasegurança em abordar essa perspectiva:Basicamente um bom assessor de impressa tem de passar as informações necessáriasque um jornalista precisa ter para escrever a matéria. Evitar deixar questões emaberto. O sucesso, em momentos de crise, é sempre conduzir uma polêmica para a

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qual se tenha uma verdade incontestável no final, e assim garantir a transparência. Évender algo que se tem. Assim garantimos a verdade.29

Partindo do pressuposto teórico em questão, podemos dizer que o discursode parte dos profissionais de CO combina, ora cínica ora ingenuamente, duas análisesdificilmente aproximáveis: a verdade como relação entre o que é dito (relato) esobre o que se diz (objeto relatado) – presentes no discurso da transparência, daneutralidade, da casa de vidro, e a verdade como relação entre o que é dito (relato)e quem diz (porta-voz) – discurso do agenciamento, do gatekeeper, da conveniência,da melhor imagem, etc.A declaração que segue aponta para essa duplicidade. Deixa claro o paradoxopresente em boa parte dos discursos desses profissionais no que tange ao conceitode verdade, termo que participa de suas construções identitárias, de seu discurso dedefinição e dos problemas práticos que o envolvem:[...] essa é uma pergunta difícil de responder (se o discurso do RRPP apenas reflete oque a empresa é ou participa da sua definição) se formos usar somente a verdade. Vejaque os profissionais de comunicação de empresas devem seguir o caminho da ética eda transparência, sim e sempre.30

A análise dos dois discursos confunde num primeiro momento. O primeiro dizter consciência em se forjar a verdade. O segundo declara que a identidade de um CO(no caso, o RRPP) se cruza com o conceito de verdade. E esse conceito está intimamenteligado com a questão da “transparência”. Esse último relato seria fruto de cinismo oude ingenuidade? Ou a diferença reside no fato de o primeiro ser um jornalista quetrabalha com assessoria, e o segundo um relações públicas que trabalha com marketing?Com quem o publicitário que vende chocolate, citado no início desta parte, tenderiaa concordar? Qual é a face do que chamamos organização, que reúne administradorese diferentes tipos de comunicador, trabalhando em sintonia, mas com discursosambíguos sobre a verdade? Parafraseando Wittgenstein: Não pense, mas veja!Tomemos um outro caminho, neste imenso labirinto que são as concepções demundo, no que tange à nossa questão. E se pensarmos que, em vez de um recursoidentitário, o discurso da transparência, e principalmente o da verdade, seja umdiscurso que vise a sua autoproteção? Um meio pelo qual o CO tente expressarconfiança, dada a sua possibilidade de mentir e de manipular? Afinal, poderíamosargumentar que as pessoas tendem muito mais a desconfiar do outro em vez deaceitar prontamente o que lhe é dito. Será que a maioria das pessoas realmenteacredita em tudo o que um CO diz? Será que de “guardião da moral” o CO não se29Profissional de CO, jornalista e assessor de imprensa. Entrevista em 1º./7/05.30Profissional de CO trabalha em departamento de marketing. Entrevista em 6/11/03.

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encontra na posição de “suspeito”? Assim como as pessoas não acreditam emassessores de imprensa quando esses defendem uma empresa de acusações, ou empublicitários que divulgam produtos miraculosos, os funcionários de umaorganização também não acreditam em cartazes com dizeres “O maior bem daempresa são vocês (funcionários)”. Boa parte dos homens possui e exerce a faculdadede desconfiar. Por isso não é totalmente passiva a esse tipo de mensagem.“Temos de garantir a confiança para nossos funcionários e clientes”,31 diznosso profissional, que ainda completa: “Mais difícil do que garantir a idoneidadeé convencer os outros de que a possuímos.” Muitos entrevistados consideram que atática que a organização busca não é vender a verdade, e sim uma garantia de nãoludibriar acionistas, funcionários e clientes. Mas existiria realmente uma diferençaentre vender a verdade ou a garantia de não se mentir? Apesar da aparente igualdadelógica contida nessas proposições, é óbvio que numa visão semântica há muitadiferença. E nem precisamos explicar, pois o bom senso mostrará ao leitor que seperguntar. Porém, vale relembrar que a pergunta que se faz determina os meiospelos quais você enxergará o mundo.Como outro profissional observa, a questão da verdade passa a ser algo quesitua o comunicador dentro de uma determinada organização. Comunicar,transparência e verdade. É essa a ordem de apresentação inicial do profissional quandofala sobre si. Algo que define seu fazer. Informar, divulgar e outras questões práticasmuitas vezes passam a ser secundárias quando esse profissional tenta se definir.[...] a verdade é sempre o melhor caminho. Nunca se deve mentir. Dizer o que não é.A diferença está na forma de comunicar e é justamente para auxiliar neste processo,encontrar a melhor forma de dizer a verdade, que as empresas contratam pro-fissionais de comunicação.32

Percebemos, ao analisar, que o profissional não deixa muito claro seu real papelna empresa. As empresas podem mentir ou omitir. Porém, para se autopoliciarem,elas instauram um “superego”. Nesse caso, um comunicador. Mas qual é o seu interesse?O que nos garante que o comunicador é pago para desmascarar os enganos da empresaque recebe? Com todas essas inquietações, transportamos nossa discussão para umâmbito relativo.A “verdade” à qual se referem tanto o administrador quanto o comunicador,é vista de diversos ângulos e objetivos, como se a verdade pertencesse a um jogo.Nesse caso, o jogo do campo das COs, o que constitui um campo. Jogo e campoque, por vezes, constituem uma illusio. Essa implica a adesão e o respeito a regras do31 Profissional de CO trabalha no Compliance Officer. Entrevista concedida em 1º./7/05.32 Profissional de RRPP atua em comunicação empresarial. Entrevista concedida em 3/11/2003.

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campo que são interiorizadas. Regras de classificação e de agir sobre o mundo. Issoexplica por que discursos tão dissonantes entre os COs, no que diz respeito à“transparência” e principalmente à “verdade”, participam da negação e ao mesmotempo da constituição do jogo e do campo. A “verdade” pode ser vista como motorde um movimento “dialético”. Um componente dinâmico do campo. Podemosencontrar a comparação entre a “verdade” e o “jogo” nas considerações de Gadamersobre o conceito de verdade. Para ele, a “verdade” participa de um esquema que nãodeve ser visto no âmbito das subjetividades, mas numa mecânica que engloba seus“jogadores”, guiando-os para uma ilusão que ela (a verdade) ajuda a criar.Por isso vale a pena recorrer aqui [sobre a verdade] às nossas constatações sobre aessência do jogo, segundo as quais o comportamento do jogador não deve serentendido como um comportamento de subjetividade, já que é, antes, o próprio jogoque o joga, na medida em que inclui em si os jogadores e se converte desse modo noverdadeiro subjectum do movimento lúdico. (GADAMER, 1997, p. 707).

Nos discursos dos profissionais, encontramos relação com o que foi esclarecidona introdução deste capítulo. Entre as estratégias desse “jogo” está fazer o conceito deverdade convergir com o conceito de realidade. Postura realista. Procuramos a verdade,e a verdade só pode ser encontrada por meio da transparência. E a transparência,obviamente, desnuda o real. Para esses comunicadores, o real tal como ele é. Comobons realistas, estipulam que um dos critérios de verdade é a obtenção da realidade.Fatos e verdade passam a ter correlação. Na perspectiva de se definir, ou na outra, de seproteger, a verdade aparece correlacionada com “o que é”, com as “coisas”, os “fatos”.Quando o CO fala sobre sua práxis, a definição do espaço (tida como realidade)é tarefa fundamental. Não é outro o discurso-padrão dos COs. A organização é arealidade que deve ser mostrada aos diversos públicos. Como destaca outroentrevistado,nas empresas do grupo CPFL existe um Código de Ética que orienta as nossas ações,inclusive prescrevendo, para a área de comunicação, a rigorosa obrigatoriedade detransparência nos nossos relacionamentos com diversos públicos. É preciso quenossos públicos saibam o que a empresa realmente é.33

Saber a coisa como ela realmente é corresponde a uma tentativa de se procurara coisa-em-si. A origem de todos os fenômenos. Comunicar a empresa como ela é,sem nenhum aporte científico, é de um realismo medíocre, pois nem o mais ingênuodos realistas aceitaria isso. A declaração nos remete, de um lado, às condiçõessubjetivas de qualquer conhecimento. Mesmo um realista típico, como um marxista,33 Profissional de CO, RRPP do grupo CPFL. Entrevista em 26/10/03.○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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dirá que a verdade que deve ser mostrada é a participação da organização nas forçasde produção. Tomará como verdade os meios pelos quais as empresas obtêm amais-valia, os processos pelos quais o trabalhador se aliena do produto que produz,bem como retratará a luta de classes entre os donos da empresa e seus operários. Issoé a empresa como ela é. Porém, muito do que ele descobrir não será por meio de umasimples descrição da empresa, como fazem os comunicadores. As verdades são tidascomo implícitas, e por isso não são diretamente visíveis. O apelo ao descritivismoremeteria a um positivismo, que negaria de imediato a pretensão de relatar outracoisa que não sejam fenômenos singulares. Qualquer que seja o caminho, não sechegará à “verdade” proposta inicialmente pelos profissionais de CO.Há um outro tipo de discurso no campo da CO. Diz respeito à construção daimagem que o comunicador faz da empresa, e não à própria. Nesse sentido, o CO semostra consciente do processo que opera. Para esses COs, a maior preocupação é que osdiversos públicos possam ter da empresa uma imagem inadequada, ou incorreta daorganização, incompatível com “a imagem que se procura construir”. Isso pressupõeduas coisas: de um lado, que haja da empresa uma imagem correta que deve ser retratadatal como ela é. De outro, que haja uma representação construída que queira se instituirou manter. Em qualquer dos dois casos, o CO deve, assim, controlar os efeitos dasmensagens que buscam definir a empresa. Esse deve construir ou manter sua imagem.A representação de um espaço social, como uma organização, não é umaconstrução discursiva completamente apartada de determinada realidade. Pelocontrário. Toda imposição de uma representação será tanto mais possível quantomaior for seu grau de adequação às condições objetivas de existência. Essa adequaçãode um determinado real, que garante eficácia na imposição desta ou daquelarepresentação, não deve ser tomada como correspondência ou identidade. Essaeventual identidade entre o mundo real e o mundo representado eliminaria infinitasoutras representações possíveis do mesmo “real” e descaracterizaria toda definição,categorização ou classificação como uma atividade social e, portanto, ideológica.Inseparável, portanto, a eventual transparência do trabalho do CO na denúnciaininterrupta de estratégias de luta no interior do espaço de suas atribuições.Essas estratégias, que visam a atender a determinados interesses, não buscamesclarecer o real conflito de interesses entre a organização e seus funcionários ouclientes. A busca pela “verdade” feita pelo CO desconsidera em grande medida osconflitos de interesses na organização. Não deixa claros seus interesses. Porém, issonão passa despercebido por aqueles que lidam com o banco. Num mesmo grupofocal com COs, outros funcionários do mesmo banco retratam sua visão da profissãoe da organização, diferente dos COs.Eu sou XXXX. Sou gerente de crédito do Asset Management. Eu não sei se você sabe,o Asset é a área de gestão de recursos de clientes, então acho que o meu foco seria

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mais a questão da segregação de interesses. O conflito de interesses entre o que é bompara o cliente e o que é interessante para o banco.34

Se acompanharmos o relato de outros gerentes, ou de outros funcionários,veremos que as questões ligadas aos reais interesses da organização não serão levadasem consideração. Se a regra que eles pregam fosse cumprida à risca, deveriam assegurarque a transparência desvendasse interesses, estratégias, objetos de luta específicos decada espaço e seus processos de socialização. Se o CO é transparente no que concerneaos conflitos sociais, ele tem de ser opaco em relação à missão da empresa. Se étransparente quanto à missão da empresa, será necessariamente opaco em relaçãoaos seus conflitos. Temos aqui um possível relato do real. Relato esse ignorado pelamaioria dos COs. É nesse processo que o conceito de ética e de verdade, no campo,não mais se relacionam. Constatação de interesses que não passa despercebida entreos funcionários da empresa.Meu nome é XXXX, sou gerente regional da Aimoré Investimentos, da financeira, elido diretamente também com a área comercial. Eu sinto que hoje em dia a ética éinversamente proporcional ao aumento da competitividade interna e externa, ebastante na área comercial.35

A verdade, como mostramos, está circunscrita num processo dinâmico queenvolve todos os agentes de uma organização. Ela ora envolve os espaços, as relações,determinados fatos, mas raramente os reais interesses em questão. Compreender oque se chama verdade não é irrealizável. Muito menos simples. Entender o que osvários profissionais de comunicação, que trabalham com CO, entendem por verdade– mesmo que discordantes – só se torna possível dentro de um contexto no qual sejoga o jogo do campo e da organização. Os interesses em questão só se revelam apartir dos sentidos que os agentes atribuem dentro do campo em questão. Eis averdade escorregando por entre os dedos.Portanto, a compreensão é um jogo, não no sentido de que aquele que compreendese reserve a si mesmo como num jogo e se abstenha de tomar uma posição vinculantefrente às pretensões que são colocadas. [...] Aquele que compreende já está sempreincluído num acontecimento, em virtude do qual se fez valer o que tem sentido(GADAMER, 1997, p. 708).

Dada a forma como conduzimos nossa reflexão acerca da comunicaçãoorganizacional, ficam ao leitor vários tipos de conclusão sobre este capítulo. Osdiscursos e análises contidos neste trabalho evidenciam, de um lado, possíveis34Gerente de Crédito do banco trabalha na gestão de recursos ao cliente. Entrevista em 12/7/05.35Gerente de Investimentos e consultor de RH da empresa. Entrevista em 17/7/05.

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estratégias identitárias dos COs. De outra perspectiva, a proteção de uma credibilidadeno que diz respeito às suas práticas profissionais. Afinal, os COs não gozam da mesmacredibilidade socialmente atribuída a outros agentes da comunicação, como osjornalistas, por exemplo, muito menos da dos administradores de empresas em geral.Vimos que qualquer que seja a perspectiva da ciência, realista ou nominalista, odiscurso da transparência – usado em larga escala pelos profissionais e acadêmicos daAdministração e Comunicação – é impraticável, e teoricamente inviável. Analisando asentrevistas, percebemos que os discursos sobre transparência, ou imparcialidade, sãoinseparáveis dos espaços sociais no qual são concebidos, assim como o conceito de verdade.Sobre a “verdade” difundida pelo CO, vimos que, inicialmente, em seus discursos,o conceito de verdade corresponde ao de realidade. Essa, como vimos na primeira parte,é inatingível como se propõe. A verdade passa a ser caracterizada como um jogo, onde seestá em relação com os demais agentes da organização. Cada conceito encontra-se ligadoa um processo que não é de todo subjetivo, mas que respeita as regras e os movimentosque a organização toma. Respeita as regras do campo em questão.

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