Artigo da novela viver a vida (enecult)

15
NÓS SOMOS VANGUARDA MEU AMOR...!”: REPRESENTAÇÃO DE UM PERSONAGEM NÃO-HETEROSSEXUAL NA TELENOVELA VIVER A VIDA Danilo Nascimento dos Santos 1 Resumo: Este artigo analisa o personagem Osmar, interpretado por Marcelo Valle, na telenovela Viver a vida, exibida pela Rede Globo. Osmar é bissexual, mas a sua bissexualidade só é revelada na última semana da novela: descobre-se que o personagem mantinha um relacionamento homossexual. O tratamento dado a sua bissexualidade foi banal. Contudo, o personagem apresenta um elemento que questiona a heteronormatividade: a formação de um relacionamento não-monogâmico, o trio Osmar, Alice e Narciso. Palavras-chave: bissexualidade, teoria queer, heteronormatividade Os corpos representam o campo da construção de saberes, do cruzamento de desejos e da constituição das subjetividades. Sabemos bem que essas construções não se dão de maneira pacífica, pois os jogos de poder estão fortemente envolvidos na composição dos saberes sobre os corpos e na composição das identidades sexuais e de gêneros. A mídia tem um importante papel na constituição dessas identidades, pois “[...] a representação produzida por uma telenovela não é simplesmente uma reprodução da realidade, mas também uma ação que deseja e provoca reações pelo fato de ter sido realizada de determinada maneira.” (COLLING e BARBOSA, 2008, p.3). Dessa forma, torna-se essencial a análise de personagens que compõem as telenovelas da Rede Globo, programas líderes em audiência entre as emissoras nacionais. É exatamente pelo alcance nacional e pela influência da Rede Globo na realidade social é que analiso neste artigo a representação do personagem Osmar, vivido por Marcelo Valle, na telenovela Viver a vida, de Manoel Carlos, exibida na Rede Globo entre 2009 e 2010, no horário das 21 horas. Como apoio teórico para análise, 1 Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Faz parte do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS), vinculado ao Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), orientado pelo professor Dr. Leandro Colling. Email: [email protected]

description

Análise de personagens da telenovela Viver a Vida transmitida pela Rede Globo.

Transcript of Artigo da novela viver a vida (enecult)

“NÓS SOMOS VANGUARDA MEU AMOR...!”: REPRESENTAÇÃO DE

UM PERSONAGEM NÃO-HETEROSSEXUAL NA TELENOVELA VIVER A

VIDA

Danilo Nascimento dos Santos1

Resumo: Este artigo analisa o personagem Osmar, interpretado por Marcelo Valle, na

telenovela Viver a vida, exibida pela Rede Globo. Osmar é bissexual, mas a sua

bissexualidade só é revelada na última semana da novela: descobre-se que o

personagem mantinha um relacionamento homossexual. O tratamento dado a sua

bissexualidade foi banal. Contudo, o personagem apresenta um elemento que questiona

a heteronormatividade: a formação de um relacionamento não-monogâmico, o trio

Osmar, Alice e Narciso.

Palavras-chave: bissexualidade, teoria queer, heteronormatividade

Os corpos representam o campo da construção de saberes, do cruzamento de

desejos e da constituição das subjetividades. Sabemos bem que essas construções não se

dão de maneira pacífica, pois os jogos de poder estão fortemente envolvidos na

composição dos saberes sobre os corpos e na composição das identidades sexuais e de

gêneros. A mídia tem um importante papel na constituição dessas identidades, pois “[...]

a representação produzida por uma telenovela não é simplesmente uma reprodução da

realidade, mas também uma ação que deseja e provoca reações pelo fato de ter sido

realizada de determinada maneira.” (COLLING e BARBOSA, 2008, p.3). Dessa forma,

torna-se essencial a análise de personagens que compõem as telenovelas da Rede Globo,

programas líderes em audiência entre as emissoras nacionais.

É exatamente pelo alcance nacional e pela influência da Rede Globo na

realidade social é que analiso neste artigo a representação do personagem Osmar, vivido

por Marcelo Valle, na telenovela Viver a vida, de Manoel Carlos, exibida na Rede

Globo entre 2009 e 2010, no horário das 21 horas. Como apoio teórico para análise,

1 Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia

(UFBA). Faz parte do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS), vinculado ao Centro de Estudos

Multidisciplinares em Cultura (CULT), orientado pelo professor Dr. Leandro Colling. Email:

[email protected]

faço uso da teoria queer, explicitando alguns conceitos, entre eles, a

heteronormatividade.

A metodologia utilizada na produção do artigo foi criada a partir da revisão e

atualização de outras metodologias de pesquisa. Colling (2008)2 criou a metodologia

aplicada nesta análise, que objetiva estudar os personagens não-heterossexuais presentes

nas telenovelas da Rede Globo. Este artigo faz parte de uma pesquisa maior, financiada

pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, realizada coletivamente pelo

grupo de pesquisadores do CUS (Cultura e Sexualidade), vinculado ao CULT (Centro

de Estudos Multidisciplinares em Cultura), órgão complementar da UFBA

(Universidade Federal da Bahia). Os itens em negrito compõem os aspectos que estão

sendo analisados em todas as telenovelas pesquisadas pelo grupo.

Análise

Dados gerais do produto

Título: Viver a vida

Direção Geral: Jayme Monjardim e Fabrício Mamberti

Direção: Teresa Lampreia, Frederico Mayrink, Luciano Sabino, Leonardo Nogueira,

Adriano Melo e Maria Rodrigues.

Autor: Manoel Carlos

Elenco principal: Taís Araújo (Helena), José Mayer (Marcos), Lília Cabral (Teresa),

Thiago Lacerda (Bruno), Alinne Moraes (Luciana), Mateus Solano (Miguel/Jorge) e

Giovanna Antonelli (Dora).

Elenco mais diretamente ligado com a temática não-heterossexual: Marcelo Valle

(Osmar), Lorenzo Martin (Narciso) e Maria Luisa Mendonça (Alice)

Tempo de exibição: de 14 de setembro de 2009 a 14 de maio de 2010. A novela teve

209 capítulos e foi exibida no horário das 21 horas.

Resumo do enredo:

A novela Viver a vida tem como tema central a superação dos problemas que,

por diversos motivos, acabam atingindo um indivíduo ao longo de sua vida. O enredo

gira em torno da supermodelo Helena (Taís Araújo). Boa parte da produção versa sobre

o mundo da moda, no qual o personagem analisado neste artigo está inserido.

A supermodelo parece ser um obstáculo para o sucesso tão almejado por

Luciana (aspirante à modelo que sonha chegar ao mesmo status de Helena). Com isso,

2 A metodologia desta pesquisa, criada por Leandro Colling, nasce a partir dos estudos de Moreno (2001)

e Peret (2005).

Luciana só vive implicando com Helena, e sobra para Osmar (produtor que organiza os

desfiles) apartar as brigas das modelos e dar conselhos sobre a vida profissional de cada

uma.

Depois de algum tempo, de desenvolvida a trama da novela, Osmar conhece

Alice, uma das melhores amigas de Helena, com que mantém uma relação

heterossexual. Alice, então, no final da novela, mais precisamente na última semana,

descobre que Osmar mantém uma relação homossexual com Narciso (a quem o

produtor chama de seu “sobrinho”). Osmar, Alice e Narciso formam, então, um trio.

Aspectos estáveis dos personagens não heterossexuais

“Posição do personagem no enredo: se é principal, coadjuvante, se faz ponta,

figuração, citada ou recorrida.” (Moreno, 2001, p.167)

Osmar é um personagem secundário (coadjuvante) dentro da trama. Ele tece

pequenas ações em torno das personagens principais (Helena e Luciana) e não tem

grande importância na novela.

Além disso, Osmar permanece pouco tempo em cena. Sua vida social se resume

em seu trabalho e nas pessoas que, de alguma forma, trabalham e convivem com ele.

“Contexto social do personagem: a que classe ele pertence” (Moreno, 2001, p.167)

Osmar aparenta ser de classe alta. Seu desenvolvimento profissional, a maneira

de se vestir, os lugares que frequenta, inclusive as pessoas com que se relaciona, estão

ligados aos padrões de classe alta.

Cor: Osmar é branco, assim como a maioria dos que compõem o elenco principal da

novela. A exceção fica por conta de Taís Araújo, apontada como primeira negra a

ocupar o posto de protagonista em uma telenovela da Globo no horário das oito. Além

de ser a primeira Helena3 negra.

Profissão: Osmar é produtor de moda e organiza os desfiles que acontecem na novela.

Aspectos da linguagem utilizada e da composição geral do personagem

3 “Helena” é um personagem recursivo nas tramas de Manoel Carlos. As “Helenas de Manoel Carlos”,

que antecederam a Helena (vivida por Taís Araújo) eram sempre brancas.

Gestualidade

Tipos de gestualidade:

1) Estereotipada, com gestual explícito que caracteriza de forma debochada e

desrespeitosa à personagem não-heterossexual;

2) Gestualidade típica de alguns sujeitos queer, especialmente os adeptos de

um comportamento/estética camp;

3) Não estereotipada (gestual considerado “normal” e “natural”, sem

indicação de que a personagem é homossexual, lésbica, travesti

transformista, transexual, transgênero, intersexo ou bissexual, e inscrito

dentro de um comportamento considerado heterossexual).

Osmar apresenta uma gestualidade não estereotipada (resultado 3), considerada

normal dentro da trama.

O tratamento dado a bissexualidade de Osmar é dúbio: a transgressão do

personagem não é total, e o afeto entre ele e outro personagem do mesmo sexo não vai

além de um abraço ou da insinuação de uma homoafetividade. Sobre a bissexualidade,

Seffner (apud CAVALCANTI, 2010, p.81) aponta para o que poderia ser um dos

motivos dessa representação dúbia:

[...] indivíduos bissexuais passam muitas vezes despercebidos,

invisíveis numa representação e significação onde se faz proibido discordar

de uma lógica binária e polarizada. Em nossa cultura a representação

majoritária da sexualidade se organiza a partir de dois pólos bem marcados, a

heterossexualidade e a homossexualidade, e a cada pólo correspondem

identidades bem definidas, quais sejam, os heterossexuais e os homossexuais.

Outro motivo é que a narrativa homo e ou bissexual foi “acoplada perto do fim

da telenovela, não se constituindo como ameaça para o núcleo heterocêntrico.”

(OLIVEIRA, Antônio Eduardo de, 2002, p.166). Esse também pode ser um motivo para

o não tratamento da bissexualidade de Osmar, exatamente para que o relacionamento

entre Osmar e Narciso não desestabilizasse o desenvolver da narrativa heterocêntrica.

Osmar em algumas cenas absorve para si um comportamento feminilizado,

apesar de ser considerado “normal” dentro da trama, ele chegou a se referir aos homens

como “bofe”, suas melhores (se não todas) amigas são mulheres. Quando participa das

conversas com as mulheres não se apresenta como um diferencial para elas. Embora sua

gestualidade não seja queer, ou totalmente transgressiva, Osmar apresenta um elemento

bastante importante para questionarmos a heteronormatividade: a formação de um trio.

A heteronormatividade é um conceito que vem sendo trabalhado em diversos

estudos sobre sexualidade, nos estudos gays e lésbicos, e mais recentemente nos estudos

de gênero, especialmente os vinculados com a teoria queer. Numa interpretação mais

redutiva podemos considerar a heteronormatividade como sendo a heterossexualidade

como norma. Pino (apud BARBOSA, 2010, p. 03) define a heteronormatividade como

o “enquadramento de todas as relações – mesmo as supostamente inaceitáveis entre

pessoas do mesmo sexo – em binarismos de gênero que organiza as suas práticas, atos e

desejos a partir do modelo do casal heterossexual reprodutivo [..]”.

O trio formado em Viver a vida rompe com a matriz binária heteronormativa

porque não se encaixa nesse sistema. Nesse sentido, o trio se mostra bastante

transgressor. Contudo, deixa a desejar em diversas outras possibilidades.

A heteronormatividade, de certo, é um mal-estar na sociedade. Isso porque a

norma heterossexual termina por segregar as sexualidades que não são hegemônicas. As

normas que norteiam a heterossexualidade servem para reiterar a própria

heterossexualidade, tanto para dizer que ela “existe” como para dizer que as outras

identidades sexuais “não podem existir”. Um desafio que devemos colocar em ação é a

desconstrução dos discursos que tradicionalmente “envolveram” a heterossexualidade

colocando-a numa “zona de conforto” do inquestionável e do indiscutível, do normal e

do natural.

“Subgestualidade: compreende o vestuário, maquiagem e adereços

utilizados/usados pela personagem” (Moreno, 2001, p. 167)

Um aspecto que de algum modo subverte as normas de gênero é o vestuário do

personagem. Osmar, na maior parte da novela, usa camisas cor de rosa. O rosa é uma

cor tradicionalmente ligada ao feminino, uma cor que transmite sensibilidade. A cor é

um dos artifícios usados na delimitação dos gêneros masculino e feminino. Tal que,

desde criança, em nossa cultura ocidental, é transmitida a idéia de que o “azul é para

meninos” e o “rosa para meninas”. Osmar provoca um deslocamento ao usar a cor rosa

como um fator dominante em seu vestuário.

O estilo de vestir do personagem não muda ao longo da novela. Em geral, usa

camisas sociais em modelo 3/4, cintos simples e calças jeans. Apresenta, através de seu

vestuário, um aspecto de jovialidade.

Características gerais da personalidade da personagem

Análise de sequências: “É um recurso para detalhar mais as ações de um filme (em

nosso caso a telenovela) e explicitar o seu conteúdo de forma minuciosa, como

diante de uma lente de aumento” (Moreno, 2001, p. 168)

Analiso aqui duas sequências que se mostram essenciais no que tange ao

tratamento dado à bissexualidade do personagem. O tratamento banaliza, acima de tudo,

a bissexualidade de Osmar, pois a mesma só é revelada na última semana da novela, não

dando margens para tratar a sua bissexualidade. Contudo, ao abordar o relacionamento a

três, a novela se mostra mais distante do ideal de monogamia compulsória.

Primeira sequência

No capítulo 207, Alice e Osmar estão deitados na cama (na casa do produtor)

depois de terem passado a noite juntos (há a insinuação de que os dois fariam sexo). As

carícias, incluindo aí o beijo, entre Alice e Osmar são veiculadas, porém, a relação entre

Osmar e Narciso (o Narcisinho) passa totalmente despercebida aos olhos dos

espectadores. O contato físico não passa do toque (o abraço) e ou troca de olhares.

A formação do casal heterossexual Osmar e Alice acontecera há cerca de dois

meses do fim da novela, enquanto que o relacionamento entre Osmar e Narciso só vem

ao ar na última semana. Vale salientar que já houve a especulação sobre a possível

homossexualidade de Osmar na novela por parte da personagem Alice: Numa “roda de

amigas”, estão Alice, Luciana e Helena. Alice pergunta para Luciana se ela acha que

Osmar é gay, Luciana demonstra dúvidas. Helena fala que já viu “Osmar com mulher”.

Já Luciana coloca e provoca dúvida ao falar que já ouviu falar “sobre um garoto” (essa

alusão é clara ao personagem Narciso).

Nessa cena, Alice se surpreende com a chegada de Narcisinho à casa de Osmar.

O produtor apresenta Narciso à Alice como sendo o seu sobrinho. O relacionamento

entre Osmar e Narciso é simplesmente invisibilizado.

(Osmar e Alice estão deitados na cama; A campainha toca).

Alice: Anjinho, tão... Tão tocando a campainha. (Osmar se mexe)

Alice: Amor vai lá, acorda Osmar. (Osmar se revira na cama e põe o travesseiro

na cabeça... Ele resmunga para Alice).

Alice: Eu não tô acreditando que é eu que vou abrir a porta. (Levanta-se e vai

atender a campainha).

(A campainha continua tocando)

Alice: Já vaííí... Calma! (Abre a porta)

Narciso: É..., dá licença minha querida... Eu esqueci as chaves. (Invade a sala

de estar)

(Neste momento Alice fica sem entender a situação e olha para Narciso com ar

de desconfiança).

Narciso: Ó lá, pode cair a casa que ele nem se mexe. (Aponta para Osmar que

está na cama, deitado)

Alice: Você nem se apresentou, eu abri a porta pra você... Eu não sei nem quem

você é. (Osmar se levanta da cama)

Osmar: Oi amor! (Refere-se a Narciso)

Narciso: Oi amor!

Osmar: Chegou?

(Alice olha para os dois sem entender a situação)

Narciso: Eu esqueci as chaves... Cansei de tocar a campainha!

Osmar: Ahhh... Desculpe! Vocês não se conhecem ainda né?

Alice: Não. (Movimentando a cabeça)

Osmar: Alice esse é o... é o Narcisinho... meu sobrinho. (Mostra um sorriso)

Alice: Seu sobrinho?

Osmar: É

Osmar: Narcisinho essa é a Alice... né linda ela? (Fala no ouvido de

Narcisinho)

(Alice olha para os dois e ri. Narcisinho acena com os dedos).

Narciso: Um charme. (Comenta com Osmar, referindo-se à Alice).

Alice: Obrigada! (Diz envergonhada e sorri)

(Osmar anda na direção de Alice e a beija na boca)

Osmar: Vamos tomar café?

Alice: Humhum... Deixa comigo que eu faço. (Alegre, vai em direção à cozinha)

A cena se encerra com os três indo para a cozinha. Vale ressaltar que o beijo tão

esperado entre Osmar e Narciso não acontece na cena descrita acima, e muito menos em

toda a novela (ou no fim desta). A partir desse momento, a bissexualidade de Osmar é

compartilhada entre Osmar, Alice e Narciso.

Já no capítulo 208, a bissexualidade de Osmar é exposta para outras pessoas. Em

uma cena, na produtora de moda, estão Osmar, Alice, Renata (Bárbara Paz) e o seu

namorado Felipe (Rodrigo Hilbert), conversando sobre o futuro de Renata como

modelo.

Osmar: Muito melhor Renata... Ô que susto que você me deu hoje, hein!

Renata: Desculpa!

Alice: Recaída é falta de imaginação, lembra sempre disso... Você é uma

modelo, é uma artista também... e uma artista não pode se repetir. Concorda?

Felipe: É, isso não vai mais acontecer Alice.

Osmar: Eu acho ótimo que não aconteça..., aliás, presta atenção vocês dois

numa coisa: Eu continuo batalhando pra vocês contratos internacionais. (Todos riem)

Osmar: Só que não pintou nada até agora.

Osmar: Agora Renatinha, pelo amor de Deus, não ache que isso é uma crise,

entendeu?... Que ninguém mais gosta de você... Você não precisa mais ser insegura, as

pausas fazem parte do jogo.

Alice: Tá ouvindo isso Renata?

Renata: Ouvi

Renata: E Petra, hein? Vai rolar? Ou não vai rolar? (Bate palmas e grita, os

outros riem)

Renata: Vai rolar? Quero saber se vai rolar...

Osmar: Olha, pode ser que role, a gente tem esse projeto aqui na produtora...

Será que vocês ficam afim de encarar essa viagem para o deserto? (E aponta para

Renata e Felipe)

Felipe: Ah, Eu adoro essa viagem, seria ótimo voltar pra lá..., aliás, tem umas

escaladas inacreditáveis.

Renata: Hum... Só de pensar da água na boca... Ah, chefinho vai, descola essa

viagem...

Felipe: Por favor!

Osmar: Ah, não depende só de mim, agora eu posso garantir: se rolar vocês dois

tão dentro, tá?

(Felipe e Renata festejam)

Renata: Vem cá... A Helena não vai aparecer aqui hoje não? Hein, Osmar? Tô

querendo pegar umas dicas com ela.

(Alice e Osmar trocam carícias)

Renata: Tô um pouco insegura com umas fotos que vou fazer, tô querendo uns

conselhos.

Osmar: Renatinha, a Helena tá com um problema sério de família: o Benê, o

marido da Sandrinha, foi assassinado na favela.

Felipe: Que é isso cara!

Renata: Gente, não acredito!

Felipe: Que barra pesada!

Renata: Helena falou tanto que o cara tava tentando ficar longe do crime.

Alice: E tava mesmo, tinha até arrumado um emprego..., mas... Os bandidos não

perdoaram né? Quando ele voltou pra favela foi morto numa emboscada.

Renata: Tadinha da Sandrinha meu Deus... Ficar com aquele menino pequeno.

Osmar: Ainda bem que ela não tá sozinha, que ela tem a família inteira pra

apoiar... A Helena é uma irmã maravilhosa... Tá todo mundo lá já em Búzios.

Renata: Tô com pena dessa criança criada sem pai... Eu sei o que é isso, eu não

tive pai.

Felipe: É, mas você teve sorte, né? A tua mãe vale como um pai.

Renata: Minha mãe e você, que me salvou, que salva todos os dias.

(Renata beija Felipe e sorri)

Felipe: Nossa! Que declaração, depois dessa eu acho melhor agente ir pra casa

que Dona Silvia tá esperando.

Renata: Hum...?

Felipe: É, e tem uma surpresinha pra você.

Renata: Pra mim?

(Felipe confirma)

Felipe: Pra você. E vocês também tão convidados. (Aponta para Alice e Osmar)

(Neste momento Narciso entra no escritório da produtora).

Narciso: Oi gente!

Osmar: Ah, deixa eu apresentar pra vocês o meu sobrinho... Esse é o Narciso.

Alice: Ah, eu acho “Narcisinho” mais bonito.

Osmar: Amor tudo bem... Então, Narcisinho... Você tá sempre certa.

Osmar: Narcisinho, esse é o Felipe, essa é a Renata. Eles são os novos modelos

daqui da produtora... São todos estrelas.

Narciso: E aí Renata? Tá melhor?

Renata: Humhum (Responde a Narciso)

Narciso: Que bom!

Felipe: Bom! Então vamos todos lá pra casa, né?... A gente faz uma comida

portuguesa em homenagem a nossa viagem.

Osmar: Olha Felipe não vai dar... A gente... A gente tem um compromisso... Né

amor?

(Osmar dá as mãos a Alice)

Alice: Humhum... Com certeza... Imperdível!

Renata: Vocês dois agora são uma dupla? (Aponta para Alice e Osmar)

Alice: Uma dupla não... Um trio, porque o Narcisinho aderiu.

(Todos trocam olhares e riem)

Segunda sequência

No capítulo 209 (último da novela) Osmar, Alice e Narciso vão à uma festa de

casamento juntos, como um trio.

Helena: Gente eu não acredito que eu vou ser madrinha dessas meninas.

Bruno: Por que com essa história toda vocês não seguem?... Não Alice?...

Vamos lá Alice.

Alice: Eu?...Se ainda permitissem casamento a três (sentada na cadeira, de

costas para Narciso e Osmar, puxa a gravata dos dois mostrando que está referindo-se

a eles).

Osmar: Nós somos vanguarda meu amor...! Mas quem viver verá... Um monte

de trio casado oficialmente por aí.

(Todos riem)

Tanto na primeira quanto na segunda sequência o casamento formado “por três

pessoas” é bem aceito na novela. Osmar, Alice e Narciso não sofrem nenhum tipo de

preconceito pela forma com que vivem o relacionamento não-monogâmico.

Interessante que a telenovela tratou de um assunto que vem sendo, aos poucos,

uma das bandeiras centrais de determinados movimento sociais. Enquanto o movimento

LGBT deseja o casamento monogâmico, surgem propostas de grupos como o Poliamor

e a Rede Relações Livres (RLI), de Porto Alegre. Sobre essas propostas Barbosa (2010)

afirma:

Abrangente e difuso, o Poliamor tem diferentes modos de ativismo,

o que não permite qualquer generalização sobre sua atuação, mas está

presente em seu discurso a defesa do casamento entre mais de duas pessoas e

a prática da polifidelidade [grifos da autora]. A RLI se opõe a conjugalidade,

a exclusividade (sexual e afetiva), e defende a autonomia das pessoas para

terem quantas relações quiserem, sem necessidade de autorização de seus

parceiros e sem o estabelecimento de hierarquias entre as relações [...].

(BARBOSA, 2010, p.03)

Esse não é o primeiro trio em telenovelas da Rede Globo. A novela Duas caras

(ver Colling e Barbosa, 2008) também apresentou um trio formado por dois homens e

uma mulher (Bernardinho, Heraldo e Dália). As diferenças (e ou similaridades) entre os

dois trios são perceptíveis: o personagem analisado da novela Duas caras (Bernardinho)

era gay assumido. Já Osmar ocultou por muito tempo sua relação com Narciso, que só

foi ao ar de maneira banal.

Bernardinho, assim como foi insinuado a Osmar, transava com a mulher do trio,

contudo, o sexo entre os homens não acontecia (não havia nem a sugestão de relação

sexual entre Osmar e Narciso). O trio Bernardinho, Dália e Heraldo, em um momento

da trama, sofre discriminação (violência física e simbólica) por causa da relação a três.

Com Osmar, Narciso e Alice a reação das pessoas é diferente, as pessoas com quem o

trio convive parecem aceitar a união a três. Apesar de que, numa passagem de Viver a

vida, a personagem Helena especula sobre a formação do trio e, ao falar de Narciso, ela

“desmunheca”.

Em Duas caras, a união a três é demonizada por alguns personagens. Além

disso, não foi permitido nenhum afeto em público e a relação não-monogâmica de

Bernardinho, Dália e Heraldo foi qualificada como uma falta de respeito aos outros

moradores da comunidade.

Aspectos sobre a sexualidade e gênero do personagem

A personagem se apresenta (assumisse verbalmente) como: gay, lésbica, travesti,

transformista, transexual, transgênero, intersexo, bissexual.

Osmar assume primeiramente um relacionamento heterossexual: entre ele e

Alice (uma das amigas de Helena). Apenas no final da novela é que a bissexualidade do

personagem é revelada. Ele assume um relacionamento bissexual formando um trio:

Osmar, Alice e Narciso (apresentado como sendo o seu sobrinho) e algumas poucas

pessoas tomam conhecimento desse relacionamento. Vale enfatizar que Osmar não diz

verbalmente que é bissexual, mas pode se inferir isso através do relacionamento que ele

forma: com um homem e uma mulher.

Esse relacionamento nos abre um leque de possibilidades: “A possibilidade de se

relacionar com ambos os sexos não faz da bissexualidade uma prática4 [grifos meus]

menos legítima. Ao contrário, demonstra o quanto nossas vivências e experiências são

diversas e plurais”. (CAVALCANTI, Camila Dias, 2010, p.82)

Em que ponto da narrativa fica claro que o personagem é bissexual?

A bissexualidade de Osmar só foi levada ao ar na última semana da novela e não

foi problematizada.

Como se dá a performatividade de gênero? Que normas ou conjunto de normas o

personagem reitera e/ou reforça?

Cabe a nós pesquisadores, antes de qualquer coisa, promovermos o

questionamento e debates sobre saberes universais que, mediados, controlados e

retificados por determinadas instâncias regulatórias, tentam nos definir/categorizar.

A performatividade de gênero trata, antes de tudo, sobre o conjunto de normas

que norteiam a construção dos corpos e sujeitos dentro de um determinado padrão.

Questionado no programa Pop Tevê sobre a orientação sexual do personagem

que iria interpretar, Marcelo Valle disse que teceria o personagem Osmar sem

“trejeitos” (aspas minhas), independente da orientação sexual. Sabemos, pois, que,

mesmo sendo a intenção do ator tentar mover o personagem sem influência de

estereótipos, as influências desses últimos na construção das identidades sexuais e de

gênero são imperantes.

Resumo conclusivo e redutor sobre a representação dos não-heterossexuais nas

telenovelas

Resultado 1: forte carga de estereótipos e outras características que contribuem

para a reduplicação dos preconceitos e da homofobia;

Resultado 2: caracteriza os personagens com alguns elementos da comunidade

queer, constrói um tratamento humanístico e contribui para o combate aos

preconceitos e a homofobia;

4 Em algum momento esse termo prática me fez refletir sobre o sentido da palavra nesse contexto. A

bissexualidade não se resume a prática, é também uma identidade sexual possível e legítima, com grande

poder de subversão. É o que acontece com relação ao trio Osmar, Alice e Narciso.

Resultado 3: caracteriza os personagens não-heterossexuais dentro de um modelo

heteronormativo que contribui para a reduplicação dos preconceitos e da

homofobia;

Resultado 4: caracteriza os personagens não-heterossexuais dentro de um modelo

heteronormativo, mas constrói um tratamento humanístico e contribui para o

combate aos preconceitos e a homofobia;

Resultado 5: indica uma representação dúbia e produz dúvida sobre o tratamento

dado.

As categorias homem, mulher, criança, etc., são marcadas de noções, de

significados compartilhados e escolhidos como padrões, em que qualquer

manifestação/representação social que se afaste da norma previamente estabelecida

termina por ser reconhecida como desviante, sofrendo posteriormente as “devidas”

conseqüências: estigmatização, violência física e simbólica, dentre outros. Um grande

problema que ainda precisamos vencer é a questão do binarismo: homem-mulher;

heterossexual-homossexual, uma lógica que, por muitas vezes, difere da realidade social

de cada sujeito. Os binarismos seguem uma lógica cartesiana em que se cria um lado

positivo e negativo para as coisas: um promovendo a exclusão e ou estigmatização do

outro.

Em se tratando da heterossexualidade e da homossexualidade, por exemplo,

podemos perceber que os dois comportam-se como um esquema binário: ao

heterossexual (características consideradas legitimas, normais e positivas), ao

homossexual (características consideradas opostas, anormais, ilegítimas e negativas).

A bissexualidade contribui para se pensar uma realidade que difere do esquema

binário: heterossexual/homossexual. E mesmo sendo uma identificação que se reproduz

dentro do esquema binário sexual: homossexual ou heterossexual (a depender do

momento/situação), abre caminho para se pensar uma realidade social múltipla, para

além da norma heterossexual. A bissexualidade representa uma das múltiplas realidades

que possuímos.

Um relacionamento em trio também foge a noção de casal da família nuclear

(que termina por reiterar normas heterossexuais). Para Osmar, não há um momento

heterossexual ou um momento homossexual: há os dois ao mesmo tempo. O

personagem apresenta também outra maneira de viver a sua bissexualidade, que rompe

com a idéia do casal tradicional “logicamente legitimo”: homem - mulher, ambos

heterossexuais. Ao invés de viver um casal tradicional na novela, Osmar, Alice, e

Narciso formam um trio e desestabilizam os padrões de gênero tão latentes em nossa

sociedade.

Apesar de tratar o personagem mais distante de alguns padrões heteronormativos

e, portanto, mais próximo de uma “linguagem do corpo” e performatividade queer, a

novela peca por não tratar devidamente a bissexualidade do personagem, mostrando-a

apenas no final da novela, o que gera dubiedade e dúvidas no tratamento dado ao

personagem (ver resultado 5). Ainda assim, é dado a Osmar um tratamento humanístico,

pois ele não é tratado como um ser abjeto na trama. Vale enfatizar que o tratamento

distanciado da bissexualidade do personagem não contribui para o combate a

homofobia.

A forma com que Osmar vive o relacionamento não-monogâmico demonstra o

quanto a teoria queer é ampla e inclusiva, e não se reduz apenas a identidades sexuais.

Contudo, esse elemento transgressor de normas, a formação do trio, poderia ser mais

explorado e desenvolvido na trama.

É por isso que queer não se “pretende” apenas como uma sexualidade

alternativa, mas sim como todo um conjunto de práticas subversivas (como é o caso do

relacionamento entre Osmar, Alice e Narciso) que se propõe a questionar a

heterossexualidade como norma. @s(as/os) queer questionam também a noção de

identidades essenciais e fixas, pois “as identidades estão sempre se construindo, elas são

instáveis e, portanto, passíveis de transformação” (LOURO, 1997. p.27), para se

organizar em torno de identidades plurais, que estão em fluxo e que se constroem

diariamente.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Mônica. Questões para o debate sobre a heteronormatividade nas relações

afetivas: Um estudo de caso sobre a Rede Relações Livres. In: Fazendo Gênero 9, 2010,

Florianópolis. Anais Eletrônicos... Florianópolis: UFSC, 2010. Disponível em

http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278265380_ARQUIVO_monica_

barbosa_FG9.pdf. Acesso em: 10 de março de 2011.

CAVALCANTI, Camila Dias. Práticas bissexuais: Uma nova identidade ou uma nova

diferença? Polêmica, v.9, n. 1, p. 79-83, janeiro/março 2010. Revista Eletrônica...

Disponível em:

<http://www.polemica.uerj.br/ojs/index.php/polemica/article/viewFile/10/12>. Acesso

em: 10 de março de 2011.

COLLING, Leandro e BARBOSA, Caio. A representação da homossexualidade na

telenovela Duas Caras. Texto apresentado no IV Congresso da Abeh, realizado de 9 a

12 de setembro de 2008, na Universidade de São Paulo, em São Paulo. Disponível em:

<http://www.culturaesociedade.com/cus/index.php?option=com_content&view=article

&id=55&Itemid=56>. Acesso em: 10 de março de 2011.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. 18ª Ed. Rio de

Janeiro: Edições Graal, 2007.

LOURO, Guacira Lopes. A emergência do gênero. In: Gênero, sexualidade e educação:

Uma perspectiva pós-estruturalista / Guacira Lopes Louro – Petrópolis, RJ: Vozes,

1997.

LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexualidade, o “normal”, o “diferente” e o

“excêntrico”. In: Corpo, gênero e sexualidade. Petrópolis, RJ. Vozes, 2003

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer.

Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

Memória Globo. Telenovela: Viver a Vida. Disponível em

http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273276119,00.html.

Acesso em: 07 de fevereiro de 2011.

OLIVERA, Antonio Eduardo de. Narrativas e Homoerotismo. In: SANTOS, Rick e

GARCIA, Wilton (orgs.). A escrita de Adé perspectivas teóricas dos estudos gays e

lésbicas no Brasil. São Paulo, Xamã, 2002, p. 163 a 170

SANTOS, Ana Cristina. Heteroqueers contra a heteronormatividade: Notas para uma

teoria queer inclusiva. Disponível em

http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/223_Oficina_do_CES_239_Nov2005.pdf.

Acesso em: 10 de março de 2011.

Síntese de capítulos: Viver a Vida. Disponível em

http://viveravida.globo.com/Novela/Viveravida/Capitulos/0,,17523,00.html. Acesso em:

24 de fevereiro de 2011.

SWAIN, Tânia Navarro. Heterogênero: “Uma categoria útil de análise”. Educar,

Curitiba, n°35, p.23-26, 2009. Editora UFPR. Disponível em

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

40602009000300003&lang=pt. Acesso em: 17 de março de 2011.

Teledramaturgia: Viver a Vida. Disponível em:

http://www.teledramaturgia.com.br/tele/viveravida.asp. Acesso em: 07 de fevereiro de

2011.

"Viver a Vida": ator Marcelo Valle fala sobre a bissexualidade de Osmar. Disponível

em http://www.universomix.info/wp/tv/viver-a-vida-ator-marcelo-valle-fala-sobre-a-

bissexualidade-de-osmar/; http://televisao.uol.com.br/ultimas-

noticias/2009/10/19/ult4244u4084.jhtm. Acesso em: 07 de fevereiro de 2011