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163 Manifestações dermatológicas em pacientes portadores do Vírus da Hepatite C ANA CAROLINA MARTINS SERRA 1 , BÁRBARA SANTANA D´AVILA MELO 1 , MARGARETI YUMI OKAWA UNO 2 , LUNA AZULAY ABULAFIA 3 , CLÁUDIO GUSMÃO FIGUEIREDO-MENDES 4 Resumo Desde a descoberta do vírus da hepatite C (VHC), em 1989, a hepatite C passou a ganhar especial relevância entre as causas de doença hepática crônica no mundo. Estima-se que aproximadamente 3% da população mundial estejam infectados pelo vírus da hepatite C, o que representa cerca de 170 milhões de indivíduos com infecção crônica e sob risco de desenvolver as complicações da doença¹. Trata-se, portanto, de um dos maiores problemas de saúde pública enfrentados mundialmente². A infecção pelo VHC está associada a um amplo espectro de manifestações clínicas: hepáticas, sistêmicas e cutâneas. As manifestações cutâneas são muitas vezes os primeiros sinais da infecção pelo VHC. Os médicos devem estar atentos a estas manifestações, pois o diagnóstico precoce é importante para o sucesso terapêutico. Deve-se suspeitar de contaminação pelo VHC em pacientes que apresentem: crioglobulinemia mista, liquen plano, livedo reticular, poliarterite nodosa, porfiria cutânea tarda, prurido e urticária crônica³. Unitermos: Hepatite C, Crioglobulinemia Mista, Liquen Plano, Livedo Reticular, Poliarterite Nodosa, Porfiria Cutânea Tarda, Prurido, Urticária Crônica. Summary Since the discovery of hepatitis C virus (HCV) in 1989, hepatitis C has been gaining special importance among the causes of chronic liver disease worldwide. It is estimated that approximately 3% of world population are infected with hepatitis C, which represents about 170 million people chronically infected and at risk of developing complications of the disease ¹. It is therefore a major public health problems facing the world². HCV infection is associated with a broad spectrum of clinical manifestations: liver, skin and systemic. Cutaneous manifestations are often the first signs of HCV infection. Physicians should be aware of these manifestations, because early diagnosis is important for successful treatment. Should be suspected of contamination by HCV in patients who have: mixed cryoglobulinemia, lichen planus, livedoreticularis, polyarteritisnodosa, porphyria cutaneatarda, pruritus and chronic urticaria ³. Keywords: Hepatitis C, Cryoglobulinemia Mixed, Lichen Plan, Reticular Livedo, Polyarteritisnodosa, Porphyria Cutaneatarda, Pruritus, Chronic Urticaria. 1. Residente de Clínica Médica da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. 2. Mestrado em Clínica Médica / Hepatologia em andamento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Chefe da Enfermaria do Serviço de Hepatologia Dr. Figueiredo- Mendes do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. 3. Doutora em Dermatologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Preceptora do Curso de Pós-graduação em Dermatologia do Instituto de Dermatologia Professor Rubem David Azulay da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 4. Doutor em Gastroenterologia / Hepatologia pela Universidade Federal de São Paulo. Chefe do Serviço de Hepatologia Dr. Figueiredo-Mendes do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Endereço para correspondência: Dr. Cláudio Gusmão Figueiredo-Mendes. Serviço de Hepatologia Dr. Figueiredo-Mendes da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Rua Santa Luzia, 206 - Castelo - 22030-042 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. E-mail: claudiofigueiredomendes@ gmail.com - Recebido em: 28/07/2011. Aprovação em: 14/10/2011. Dermatologic Manifestations in Patients with Hepatitis C Virus: Review Article. Artigo de Revisão GED gastroenterol. endosc.dig. 2011: 30(4):163-167 30(4):163-167

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163

Manifestações dermatológicas em pacientes portadores do Vírus da Hepatite C

ANA CAROLINA MARTINS SERRA1, BÁRBARA SANTANA D´AVILA MELO

1, MARGARETI YUMI OKAWA UNO2, LUNA AZULAY ABULAFIA

3,

CLÁUDIO GUSMÃO FIGUEIREDO-MENDES4

Resumo

Desde a descoberta do vírus da hepatite C (VHC), em

1989, a hepatite C passou a ganhar especial relevância

entre as causas de doença hepática crônica no mundo.

Estima-se que aproximadamente 3% da população

mundial estejam infectados pelo vírus da hepatite C,

o que representa cerca de 170 milhões de indivíduos

com infecção crônica e sob risco de desenvolver as

complicações da doença¹. Trata-se, portanto, de um

dos maiores problemas de saúde pública enfrentados

mundialmente². A infecção pelo VHC está associada a

um amplo espectro de manifestações clínicas: hepáticas,

sistêmicas e cutâneas. As manifestações cutâneas são

muitas vezes os primeiros sinais da infecção pelo VHC.

Os médicos devem estar atentos a estas manifestações,

pois o diagnóstico precoce é importante para o sucesso

terapêutico. Deve-se suspeitar de contaminação pelo

VHC em pacientes que apresentem: crioglobulinemia

mista, liquen plano, livedo reticular, poliarterite nodosa,

porfi ria cutânea tarda, prurido e urticária crônica³.

Unitermos: Hepatite C, Crioglobulinemia Mista, Liquen

Plano, Livedo Reticular, Poliarterite Nodosa, Porfi ria

Cutânea Tarda, Prurido, Urticária Crônica.

Summary

Since the discovery of hepatitis C virus (HCV) in 1989,

hepatitis C has been gaining special importance among

the causes of chronic liver disease worldwide. It is

estimated that approximately 3% of world population

are infected with hepatitis C, which represents about

170 million people chronically infected and at risk of

developing complications of the disease ¹. It is therefore

a major public health problems facing the world². HCV

infection is associated with a broad spectrum of clinical

manifestations: liver, skin and systemic. Cutaneous

manifestations are often the fi rst signs of HCV infection.

Physicians should be aware of these manifestations,

because early diagnosis is important for successful

treatment. Should be suspected of contamination by

HCV in patients who have: mixed cryoglobulinemia,

lichen planus, livedoreticularis, polyarteritisnodosa,

porphyria cutaneatarda, pruritus and chronic urticaria ³.

Keywords: Hepatitis C, Cryoglobulinemia Mixed,

Lichen Plan, Reticular Livedo, Polyarteritisnodosa,

Porphyria Cutaneatarda, Pruritus, Chronic Urticaria.

1. Residente de Clínica Médica da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. 2. Mestrado em Clínica Médica / Hepatologia

em andamento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Chefe da Enfermaria do Serviço de Hepatologia Dr. Figueiredo-

Mendes do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. 3. Doutora em Dermatologia pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Preceptora do Curso de Pós-graduação em Dermatologia do Instituto de Dermatologia Professor

Rubem David Azulay da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

4. Doutor em Gastroenterologia / Hepatologia pela Universidade Federal de São Paulo. Chefe do Serviço de Hepatologia

Dr. Figueiredo-Mendes do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Endereço para correspondência: Dr. Cláudio Gusmão Figueiredo-Mendes. Serviço de Hepatologia Dr. Figueiredo-Mendes da Santa Casa da Misericórdia do

Rio de Janeiro. Rua Santa Luzia, 206 - Castelo - 22030-042 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. E-mail: claudiofi gueiredomendes@

gmail.com - Recebido em: 28/07/2011. Aprovação em: 14/10/2011.

Dermatologic Manifestations in Patients with Hepatitis C Virus: Review

Article.

Artigo de Revisão

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Manifestações dermatológicas em pacientes portadores do Vírus da Hepatite C

GED gastroenterol. endosc.dig. 2011: 30(4):163-167

Introdução

O vírus da hepatite C é um vírus RNA da família Flaviviridae

e foi inicialmente isolado no soro de uma pessoa com hepa-

tite não-A, não-B, em 1989, por Choo et al. Em 1992, foi

desenvolvido o primeiro teste para identifi cação do anticorpo

contra o VHC (anti-HCV), proporcionando maior segurança

em transfusões sanguíneas1. Habitualmente, a hepatite C

é diagnosticada em sua fase crônica. Como os sintomas

são inespecífi cos, a doença pode evoluir durante décadas

sem diagnóstico: na maior parte das vezes, o diagnóstico

específi co ocorre após teste sorológico de rotina ou mesmo

na doação de sangue1,4. Isso remete à importância da

suspeição clínica por toda a equipe multiprofi ssional, além

do aumento da oferta de diagnóstico sorológico, especial-

mente às populações vulneráveis ao VHC1.

Em relação à provável via de transmissão dos casos noti-

fi cados, observa-se que as maiores proporções de casos

estão relacionadas ao uso de drogas (18%), à transfusão de

sangue e/ou hemoderivados (16%) e à transmissão sexual

(9%), com elevado percentual de ignorados (43%). Atual-

mente, destacam-se como importantes formas de trans-

missão do VHC o compartilhamento de equipamentos para

uso de drogas, confecção de tatuagens e colocação de

piercing, além de objetos de uso pessoal, tais como lâminas

para barbear ou depilar, escovas de dente e instrumentos

para pedicure e manicure1,3.

As evidências que demonstram a associação da infecção

crônica pelo VHC com o desenvolvimento de cirrose e

carcinoma hepatocelular (CHC) reforçam a necessidade

da identifi cação precoce da doença e do tratamento dos

pacientes com risco para complicações relacionadas ao

VHC, com fi nalidade de redução da morbidade e mortali-

dade1. A infecção pelo VHC pode ser associada a um amplo

espectro de manifestações sistêmicas, não somente hepá-

ticas, mas também extra-hepáticas. Muitas destas manifes-

tações estão representadas nas anormalidades encontradas

na pele de pacientes portadores de VHC. Assim, deve-se

vislumbrar a infecção pelo VHC como uma desordem que

pode afetar vários órgãos e sistemas, e não somente como

uma doença restrita ao fígado3.

Dermatoses Relacionadas ao VHC

Várias manifestações dermatológicas têm sido descritas em

associação com a infecção crônica pelo VHC. Algumas, pela

maior frequência, serão discutidas.

Crioglobulinemia Mista (CM)As crioglobulinas são imunoglobulinas que precipitam reversi-

velmente no frio. A causa é idiopática em um terço dos casos.

No restante, associa-se a múltiplas doenças como macroglo-

bulinemias, linfomas, mieloma múltiplo, neoplasias malignas,

colagenoses e infecções como leishmaniose visceral, malária,

hanseníase e doenças hepáticas crônicas5.

A associação entre crioglobulinemia mista e VHC foi descrita

pela primeira vez em 1990, por Pascual et al 6. A presença

de crioglobulinemia associada ao VHC é detectada em 30 a

50% dos pacientes1. É mandatória a pesquisa do vírus C em

pacientes que ainda não tenham a etiologia esclarecida na

crioglobulinemia essencial7.

CM é uma desordem imunomediada caracterizada clinica-

mente por púrpura, artralgia, astenia e por envolvimento de

vários órgãos, levando a alterações hepáticas, glomerulone-

frite, neuropatia periférica e vasculite generalizada. É mais

frequente em infecções de longa data pelo VHC, pacientes

com idade mais avançada e do sexo feminino3. Na maioria

dos indivíduos, a crioglobulinemia é assintomática; contudo,

cerca de 5% dos infectados podem ter sintomas que denotam

uma doença com potencial evolutivo se não for tratada1.

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A. C. M. SERRA, B. S. D´A. MELO, M. Y. O. UNO, L. A. ABULAFIA, C. G. FIGUEIREDO-MENDES

GED gastroenterol. endosc.dig. 2011: 30(4):163-167

As manifestações dermatológicas são petéquias e equi-

moses, particularmente em membros inferiores. Somente em

um terço dos pacientes surge após exposição ao frio. Outros

sinais são fenômeno de Raynaud, acrocianose, livedo reti-

cular, vasculite leucocitoclástica, ulcerações e gangrenas5,8.

(Figuras 1, 2 e 3). O tratamento efetivo da infecção pelo VHC

resolve a manifestação cutânea7.

Líquen PlanoDoença infl amatória de etiologia desconhecida, compro-

metendo a pele, os anexos e as mucosas, caracterizada

por lesões papulosas muito típicas. A palavra líquen vem

do grego e signifi ca pápula. Possui maior frequência após

terceira década de vida9.

A infecção por VHC só começou a ser considerada possível

agente etiológico de líquen plano quando as sorologias para

VHC se tornaram disponíveis, em 1990. O primeiro caso de

paciente com líquen plano confi rmado por biópsia e hepa-

tite ativa por VHC foi descrito na França, em 1912. Entre-

tanto, alguns autores questionam o fato de que na reali-

dade a relação é fortuita, ocorrendo pela alta prevalência da

hepatite C e não verdadeiramente pela associação líquen

plano - hepatite C. Este ainda é um tema em debate.

O mecanismo pelo qual o VHC induz o líquen plano é

desconhecido, porém está possivelmente relacionado à

replicação viral nos linfócitos. O VHC é encontrado mais

frequentemente em pacientes que apresentam líquen

plano generalizado, líquen plano de mucosa (princi-

palmente variante erosiva) e líquen plano de duração

crônica2,3. Estudos recentes demonstram que o aumento

da frequência do alelo HLA- DR6 tem sido relatada em

pacientes italianos com VHC associada a líquen oral10.

A lesão fundamental é pápula, poligonal, facetada, brilhante,

tendo na superfície pontos ou estrias esbranquiçadas

(estrias de Wickham, que se tornam mais evidentes quando

úmidas), e às vezes, discreta descamação. Localizam-se

preferencialmente, na face fl exora dos antebraços, mas

podem ser encontradas nos membros, tronco, couro cabe-

ludo, genitália e mucosas9.

Livedo ReticularLivedo reticular constitui um padrão de reação cutânea de

descoloração cianótica ou eritemato-cianótica, que assume

um aspecto rendilhado, decorrente de diferentes condições

clínicas e patológicas11. Pode ser: fi siológico, idiopático,

congênito ou secundário a infecções crônicas com hepatite

C, doenças do colágeno, síndrome de Sneddon, infecções

crônicas, oclusão intravascular, linfomas e aterosclerose12.

Poliartrite Nodosa (PAN)PAN é uma vasculite que acomete artérias de médio e

pequeno calibre. Os sítios mais frequentemente atingidos

são coração, rins, músculos, vasos mesentéricos e vasa

nervorum dos nervos periféricos13.

É uma doença relativamente rara, com uma prevalência na

população geral de cerca de seis por 100.000 pessoas.

É mais comum nos homens entre os 40 e os 60 anos, com

uma proporção cerca de 2:1 em relação às mulheres13,14.

O quadro clínico é variável, sendo usualmente constituído

por sintomas constitucionais como febre, mal-estar, perda

de peso e artralgias14,15. Algumas associações estão bem

estabelecidas, como as hepatites B e C, febre do Mediter-

râneo, doenças infl amatórias intestinais, lúpus eritematoso

sistêmico e leucemia pilosa14.

A PAN é uma condição desencadeada por imunocomplexos

associados ao VHC. Pacientes com PAN e VHC possuem

mais manifestações sistêmicas do que aqueles que apre-

sentam apenas PAN. Pacientes com os dois quadros asso-

ciados apresentam com maior frequência: neuropatias,

hipertensão, cefaleia, isquemia abdominal dolorosa, distúr-

bios renais e hepáticos3.

Entre as manifestações cutâneas, a principal é a “púrpura

palpável”, podendo ocorrer outras como: livedo reticular,

úlceras grandes, nódulos subcutâneos e raramente infarto

digital14,15.

Frente a um paciente com suspeita clínica de PAN, deve-se

proceder à avaliação do acometimento sistêmico, pesqui-

sando possível etiologia através da anamnese (drogas e

infecções) e exame físico completo. Solicitar ASLO, PPD,

sorologia para vírus hepatite B e C. O seguimento do

doente deve ser a cada 6-12 meses15. O prognóstico é

grave e varia se for apenas manifestação cutânea exclusiva

ou sistêmica14.

Porfi ria Cutânea Tarda (PCT)As porfi rias correspondem a um grupo de doenças meta-

bólicas raras, ocasionadas pela anormalidade, herdada ou

adquirida, de enzimas cruciais na biossíntese do heme.

Consequentemente há um acúmulo exagerado e aumen-

tado da excreção de porfi rinas e seus precursores. A cada

tipo de porfi ria é associado um defeito enzimático especí-

fi co16.

A porfi ria cutânea tarda é a forma mais comum de porfi ria

e de maior interesse dermatológico, sendo decorrente da

defi ciência congênita ou adquirida da enzima uroporfobi-

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linogênio III descarboxilase, com acúmulo de uro e copro-

porfi rinas urinárias e isocoproporfi rinas nas fezes16. Nas

formas hereditárias da doença há diminuição desta enzima

em todos os tecidos; já na forma adquirida, a diminuição da

enzima é restrita ao fígado3. A PCT pode ser desencadeada

por infecções virais, como a hepatite C, sendo observada

em 62% a 82% dos pacientes com infecção pelo VHC.

O mecanismo pelo qual este vírus induz a PCT é desconhe-

cido, porém são propostos quatro possíveis mecanismos

pelos quais isto acontece: (1) a diminuição intracelular

da concentração de glutation e o aumento do estresse

oxidativo; (2) diminuição da atividade da uroporfi rinogênio

descarboxilase; (3) elevação do ferro hepatocelular; e (4)

defi ciência na produção do inibidor da uroporfi rinogênio

descarboxilase. O aumento do uroporfi rinogênio tipo I na

pele estimula a síntese de colágeno que pode resultar

em lesões com características esclerodérmicas em alguns

pacientes3. Sugere-se ainda, em estudos recentes, uma

relação com mutação do gene H63D17.

Como a PCT pode ser a primeira indicação de infecção

pelo VHC, é importante sua investigação em todos os

doentes18.

Clinicamente observa-se surgimento de vesículas e bolhas,

seguidas por erosão e crostas em áreas de traumatismo

e de superfícies fotoexpostas (principalmente dorso das

mãos e face - Figuras 4 e 5). As lesões evoluem lentamente

para cura, deixando cicatrizes atrófi cas, milia e hiperpig-

mentação pós-infl amatória. Fragilidade cutânea acentuada

pode ser verifi cada nessas áreas. A fotossensibilidade é

característica marcante. Certa sazonalidade é observada,

com piora nos meses de verão. Placas esclerodermi-

formes, semelhantes, clínica e histologicamente à morfeia,

podem ocorrer em áreas fotoexpostas ou não. Eventual-

mente, essas placas podem calcifi car e, mesmo, fi stulizar.

Outros aspectos encontrados são hipo e hiperpigmentação

moteada, sufusão eritematopurpúrica periorbitária e hiper-

tricose não virilizante, principalmente em regiões genianas

e têmporas16.

PCT é uma doença que pode estar associada além da hepa-

tite C, à hepatite B, alcoolismo, hemocromatose, infecção

pelo HIV, citomegalovirose, talassemia beta, insufi ciência

renal, CHC, diabetes mellitus, lúpus eritematoso sistêmico

e doenças hematológicas malignas16.

Além dos dados clínicos, o diagnóstico é confi rmado

pelo exame histopatológico, imunofl uorescência direta e

aumento das uroporfi rinas I e III e coproporfi rinas nas fezes.

A urina é vermelha pelo aumento de excreção de uro e

coproporfi rinas. O exame de urina com lâmpada de Wood

é útil. O tratamento consiste na identifi cação e remoção do

fator desencadeante.

A fotoproteção é outra medida de suma importância no

manuseio da fotossensibilidade. As fl ebotomias de repetição

são o tratamento de escolha para as formas não compli-

cadas de PCT. Outra opção terapêutica é a cloroquina em

doses baixas (125mg duas vezes por semana), associada

ou não a fl ebotomias16.

Prurido Prurido pode ser uma manifestação clínica do VHC. Possui

duas causas teóricas: um agente pruridogênico (sais

biliares) que não possa ser eliminado pelo fígado e/ou uma

anormalidade no metabolismo dos opioides centrais. O

prurido tende a ser generalizado, migratório, não associado

com nenhuma lesão cutânea específi ca, e não melhora com

a coçadura da pele (Figura 6). Tipicamente é mais intenso

nas mãos e pés, e à noite, nas áreas comprimidas pela

roupa. O tratamento é baseado na doença de base18.

Figura 4 Figura 5 Figura 6

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Urticária CrônicaErupção caracterizada pelo súbito aparecimento de urticas,

pápulas edematosas, de duração efêmera e extremamente

pruriginosa. A urtica é produzida por liberação de media-

dores, principalmente histamina de mastócitos, localizados

em torno de vasos da derme19. É dita crônica quando

persiste por mais de seis semanas e deve ser avaliada

pesquisa para hepatite C18.

Conclusão

O clínico deve estar atento à possibilidade da infecção

pelo vírus da hepatite C quando diante de alguns quadros

dermatológicos, permitindo assim que, pelo exame atento,

cheguemos ao diagnóstico da infecção permitindo trata-

mento e sobretudo interrupção da cadeia de transmissão

da hepatite C.

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