ARTIGO Ecovilas Verso Final
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Felippe Rodrigo Souza Silva, Juliana Mattos de Freitas
Instituto de Geociências – UFRJ
[email protected], [email protected]
Reflexões sobre desenvolvimento sustentável em ecovilas: uma abordagem
geográfica a partir do conceito de sustentabilidade multidimensional
INTRODUÇÃO, OBJETIVOS e METODOLOGIA
O presente artigo propõe-se a introduzir uma reflexão sobre o significado do
movimento das ecovilas no mundo contemporâneo a partir de uma abordagem
geográfica que procurará destacar a importância capital da concepção multidimensional
da sustentabilidade para uma melhor compreensão acerca do tema.
Para Jorge (2008), existe uma dificuldade em se situar
historicamente a fundação das primeiras ecovilas, já que muitos dos
assentamentos pioneiros foram criados quando se nem existia tal
definição. De acordo com Dawson (2005 apud CAMPANI, 2011), o conceito de
ecovila foi primeiramente utilizado de forma ampla pelo movimento ativista alemão
anti-nuclear, durante a década de 1980. Rainho (2006), também tratando da origem e
evolução histórica das ecovilas, destaca o papel fundamental do movimento
arquitetônico cohousing como um dos principais influenciadores da concepção das
ecovilas, sobretudo no que diz respeito ao aspecto da convivência em comunidade. A
autora aponta os arquitetos dinamarqueses Hildur e Ross Jackson como importantes
personagens da história do movimento das ecovilas e sua expansão pelo mundo. Em
1987, eles fundaram, na Dinamarca, a Associação Gaia Trust com o propósito de
financiar o movimento das ecovilas, organizando encontros de ecovilas de todo o
mundo e vislumbrando a criação de uma rede mundial de ecovilas (JACKSON, 1998
apud RAINHO, 2006).
No entanto, somente em 1991 o conceito de ecovila é pela primeira vez
internacionalmente difundido. Na ocasião, os jornalistas Robert e Diane Gilman, por
meio de um relatório, encomendado pela organização Gaia Trust da Dinamarca,
intitulado “Ecovilas e Comunidades Sustentáveis”, cunham o termo “ecovila”
definindo-o como “um assentamento completo, de escala humana, onde as atividades
estão harmoniosamente integradas ao mundo natural, que sustenta o desenvolvimento
humano saudável para continuar indefinidamente no futuro” (CAMPANI, 2011;
RAINHO, 2006).
Com a Conferência de Findhorn, um encontro entre comunidades sustentáveis
financiado pela Gaia Trust, na Escócia, em 1995, o conceito de ecovila é melhor
sistematizado e popularizado. A conferência fundou a Rede Global de Ecovilas, a GEN
(Global Ecovillage Network), dando maior visibilidade, organização e oficialização ao
movimento (CAMPANI, 2011; CUNHA, 2010; RAINHO, 2006). Para Campani (2011)
este foi um marco fundamental para a criação de um movimento das ecovilas que
fizesse frente, sob bases sustentáveis, aos desafios impostos à criação e expansão de
experiências comunitárias.
Trata-se, portanto, de comunidades intencionais, autônomas e sustentáveis,
baseadas num modelo ecológico que focaliza a integração das questões culturais e
socioeconômicas como parte de um processo de crescimento espiritual compartilhado.
Tomando como legado muito dos ideais e das práticas comunitárias e coletivistas
desenvolvidas ao longo da história, especialmente das experiências realizadas por
grupos alternativos nas décadas de 1960 e 1970, as ecovilas despontam como um dos
mais notáveis movimentos autônomos pela sustentabilidade no mundo contemporâneo,
estando presente em diversos países, inclusive no Brasil. Elas surgem, assim, a partir de
uma confluência dos ideais de diversos movimentos sociais e ambientais, como o
hippie, o ativismo ambiental, o cohousing, dentre outros.
Buscando uma maior compreensão do significado das ecovilas enquanto
movimento autônomo sustentável no contexto da crise ambiental contemporânea, a
abordagem deste artigo pautar-se-á em torno de duas questões centrais: (a) no que
consistem estas comunidades intencionais e (b) como se encontram geograficamente
distribuídas e organizadas no mundo atual. À primeira questão corresponderá nosso
objetivo geral, concernente, sobretudo, à primeira parte deste artigo, que procurará
realizar uma breve revisão bibliográfica sobre o conceito de ecovila, situando-o dentro
do rol de conceitos fundamentalmente ligados à sua concepção – é o caso da
permacultura e da sustentabilidade. À segunda questão liga-se nosso objetivo específico
de destacar importantes inferências do mapa global das ecovilas e suas redes
internacionais e nacionais de organização, assunto a ser tratado na segunda parte.
Para o alcance dos objetivos propostos (geral e específicos) foi realizada uma
pesquisa preliminar, durante os últimos oito meses, na qual foram levantadas
informações da mídia (noticiários, revistas e documentários) e, principalmente, fontes
da literatura científica nacional e internacional diretamente relacionadas ao assunto.
Esses dados e informações foram posteriormente reunidos e sistematizados em
função das questões centrais destacadas e da operacionalização das categorias analíticas
que ora consideramos serem as mais adequadas para o alcance de nossos objetivos.
Trata-se da sustentabilidade multidimensional, tal como proposta por Sachs (2008); e do
binômio território-zona – território-rede, apresentado por Souza (1995) e Haesbaert
(2002), que serão oportunamente discutidas em maior detalhe.
1. ENTENDENDO AS ECOVILAS A PARTIR DE CONCEITOS NELAS
CENTRAIS: A SUSTENTABILIDADE E A PERMACULTURA
Antes de passarmos à análise geográfica do movimento das ecovilas
propriamente dita é indispensável que tenhamos uma ideia bastante precisa acerca do
que consistem essas comunidades intencionais, bem como, do papel fundamental que os
ideais e as práticas da permacultura e da sustentabilidade assumem em sua concepção.
Para isso, uma revisão bibliográfica que, ao mesmo tempo, analise o significado e as
correspondências desses três conceitos, esclarecendo a função crucial que as técnicas de
permacultura e o ideal de sustentabilidade representam para o modo de vida dos
ecovileiros, torna-se imprescindível.
A partir da definição pioneira de ecovilas proposta pelos Gilman em 1991,
outras propostas conceituais foram desenvolvidas ao longo das décadas seguintes. Uma
das mais conhecidas é a da própria GEN (2012), segundo a qual, as ecovilas são
“comunidades rurais ou urbanas de pessoas, que buscam integrar um ambiente social
assegurador com um estilo de vida de baixo impacto ecológico”, unificando, para isso,
vários aspectos do projeto ecológico, tais como a permacultura, construções de baixo
impacto ambiental, produção verde, energia alternativa, práticas de fortalecimento das
relações comunitárias, dentre outros.
Segundo o IPEMA (2012), ecovilas são agrupamentos humanos que buscam a
autossustentabilidade e o baixo impacto ambiental. De acordo com este instituto, as ecovilas
possuem, em geral, entre 20 e 3.000 pessoas, sendo normalmente gerenciadas por um
conselho responsável pela gestão participativa e pela tomada de decisões que permitam o
desenvolvimento orgânico dos projetos e atividades comunitárias. Promovendo a
descentralização das necessidades como uma solução viável para se atingir mais facilmente
estes objetivos, a ideia central das ecovilas “é, de acordo com os princípios da permacultura,
criar vilas autossuficientes, gerando trabalho, conforto, vida social, saúde, educação, e com
o mínimo impacto ambiental” (ibidem).
Svenson (2002 apud JORGE, 2008 e SANTOS JR, 2006), por sua vez, entende as
ecovilas como comunidades de pessoas que se esforçam por levar uma vida
em harmonia consigo mesmas, com os outros seres vivos e com a
Terra. Na visão da autora, estas comunidades possuem o propósito de
combinar um ambiente sociocultural sustentável com um estilo de
vida de baixo impacto. Dessa forma, a ecovila, enquanto estrutura
societária inovadora, vai além da atual dicotomia entre
assentamentos rurais e urbanos, representando um modelo
amplamente aplicável para o planejamento e reorganização dos
assentamentos humanos no século XXI.
A proposta de modo de vida comunitário das ecovilas é o da “Hipótese Gaia”,
segundo a qual o planeta Terra e seus seres vivos constituem um grande complexo vivo,
um sistema único e auto-regulável. Entre os ecovileiros essa vivência apoia-se num tripé
holístico de “colas”: A comunidade, a ecologia e a espiritualidade (BROGNA, s.d.).
Enquanto assentamentos comunitários sustentáveis e intencionais
elas podem ainda ser definidas em função de seus princípios e
necessidades básicas, alguns dos quais apontados por Bueno (s.d.).
Segundo o autor, uma das necessidades mais importantes de uma
ecovila é a água, devendo os ecovileiros encontrar uma solução local
para o fornecimento desse recurso vital, reciclando e reutilizando as
águas servidas. Além deste, outros princípios básicos de uma ecovila
são: a criação de sistemas não poluentes e renováveis de energia;
gestão do lixo; fornecimento e produção sustentável de alimento;
construções com materiais retirados do local; condições de trabalho
em harmonia com o meio ambiente; prioridade de transporte coletivo
e não poluente; e convívio social.
Assim, na compreensão do conceito e de sua evolução, diversas
tentativas de definição foram e podem ser feitas. Em todas, porém,
prevalece uma visão comunitária, integrada, sustentável e plural
(JORGE, 2008; SANTOS JR, 2006). Além disso, outro denominador
comum que também se evidencia nas proposições conceituais é o
entendimento de que a ecovila não pode ser pensada de forma
indissociável da sustentabilidade e da permacultura, termos
fortemente vinculados e que em grande parte consubstanciam-se.
Segundo a GEN (2012), as ecovilas em sua busca permanente
pela manutenção da sustentabilidade possuem quatro dimensões
fundamentais: a dimensão social, a dimensão ecológica, a dimensão
cultural/espiritual e a dimensão econômica. Nesta ótica, comunidade
significa: reconhecer e se relacionar com os outros, compartilhar
recursos comuns e prestar auxílio mútuo, promover indefinidamente
a educação, incentivar a unidade através do respeito às diferenças,
promover a expressão cultural, dentre outros aspectos comunitários.
Ecologia significa: apoio à produção de alimentos orgânicos, criação
de casas de materiais adaptados ao meio ambiente, utilização de
sistemas integrados de energias renováveis, preservação da
qualidade da água, solo e ar através de energia limpa e gestão de
resíduos, além, é claro, da proteção incondicional à biodiversidade.
Vitalidade cultural e espiritual significa, dentre outros aspectos:
criatividade, expressão artística, atividades culturais, rituais e
celebrações coletivamente compartilhados; senso de comunidade e
apoio mútuo, respeito e apoio à espiritualidade em suas múltiplas
manifestações, além da compreensão da interdependência de todos
os elementos da vida na Terra, capaz de colocar a comunidade em
relação ao todo. E, finalmente, vitalidade econômica significa
distribuir e investir os recursos o mais equitativamente possível por
todos os membros e estruturas da comunidade.
A nosso ver, essa visão da GEN corrobora a viabilidade e
pertinência da perspectiva multidimensional de sustentabilidade
proposta por Ignacy Sachs, enquanto ferramenta conceitual de
investigação, para a compreensão dos níveis de sustentabilidade dos
processos e atividades inerentes à realidade concreta das ecovilas.
Sachs (2002) apresenta o conceito de sustentabilidade como
composto de seis dimensões: a social, a ambiental/ecológica, a
cultural, a territorial, a econômica e a política (nacional e
internacional). Cada dimensão define-se em função de determinados
critérios, chamados pelo autor de “critérios de sustentabilidade”.
Tomaremos aqui as cinco primeiras como as dimensões mais
relevantes para a discussão do desenvolvimento sustentável no
contexto do movimento das ecovilas.
Sendo assim, na visão de Sachs, a dimensão social visa
permanentemente ao cumprimento de critérios como: o alcance de
um patamar razoável de homogeneidade social, distribuição de renda
justa, emprego pleno e/ou autônomo com qualidade de vida decente
e a igualdade no acesso aos recursos e serviços sociais. A dimensão
cultural segue como critérios: o equilíbrio entre respeito à tradição e a
inovação, a capacidade de autonomia para a elaboração de um
projeto nacional integrado e endógeno, assim como, a autoconfiança
combinada com a abertura para o mundo. Como critérios básicos da
dimensão ambiental/ecológica temos: a preservação do potencial do
capital natural na produção de recursos renováveis, a limitação do
uso de recursos não-renováveis e o respeito e realce a capacidade de
autodepuração dos ecossistemas. A dimensão territorial da
sustentabilidade, por sua vez, tem em vista configurações urbanas e
rurais balanceadas (procurando eliminar das inclinações urbanas nas
alocações do investimento público), a melhoria do ambiente urbano,
a superação das disparidades inter-regionais e a concretização de
estratégias de desenvolvimento ambientalmente seguras para áreas
ecologicamente frágeis. E, por fim, a sustentabilidade econômica
inclui como critérios: um desenvolvimento intersetorial equilibrado,
segurança alimentar, capacidade de modernização contínua dos
instrumentos de produção, razoável nível de autonomia científica e
tecnológica, além da inserção soberana na economia internacional. A
partir da identificação dessas dimensões, Sachs, vê o
desenvolvimento sustentável como uma realidade dinâmica e
integrada em permanente mudança, numa perspectiva metodológica
bastante compatível, portanto, à análise da sustentabilidade em
ecovilas.
Finalmente, vamos encontrar a base técnica da
sustentabilidade em ecovilas nos princípios da permacultura.
Literalmente, pode-se definir a permacultura como cultura permanente. O conceito
foi desenvolvido no fim dos anos 70 pelos australianos David Holmgren e Bill
Mollison, referindo-se à criação e desenvolvimento de pequenos sistemas produtivos
organicamente integrados (formado por elementos como a ecocasa, o entorno, as
pessoas, etc.), de modo a responder harmonicamente às necessidades humanas básicas.
Com base na cooperação entre homem e a natureza, o princípio fundamental da
permacultura é respeitar a sabedoria da natureza – observar e copiar a natureza em seus
ciclos. Nesse sentido, o cooperativismo torna-se o caminho natural praticado e
incentivado pela permacultura não somente entre as pessoas, mas também entre todos os
elos da paisagem, formando redes de apoio mutuo (IPEMA, 2012). A permacultura não
enfoca, portanto, somente o aspecto físico do ambiente, demonstrando que, além deste,
também se faz necessário a consideração de aspectos social, econômico, cultural e
espiritual.
Segundo Bueno (s.d.) a permacultura se caracteriza por projetos que se utilizam
de métodos ecologicamente saudáveis e economicamente viáveis para responder a essas
necessidades básicas, buscando a autossuficiência a longo prazo, sem explorar nem
poluir o meio ambiente. São três os princípios da permacultura segundo Mollison
(1991): 1 - Os elementos do terreno devem se posicionar de modo que se auxiliem
mutuamente; 2 - Cada elemento deve executar várias funções, como o caso de uma
cerca de vegetais que pode servir de alimento, quebra-vento, habitat para pequenos
animais, dentre outras funções; e 3 - Toda função essencial, como o abastecimento de
água e energia, deve ser apoiada por dois ou mais elementos, por exemplo, o
aquecimento solar de água pode ser substituído pela serpentina do fogão à lenha ou pela
energia elétrica.
Sob a lógica dos princípios da permacultura entende-se que ela vai além de um
conceito de prática agrícola sustentável, integrando os elementos disponíveis, como
solo, água, vento, animais, resíduos, edificações, dentre outros, de modo que a relação
entre estes seja sustentável. Dessa maneira, a Permacultura corresponde a um sistema
holístico de planejamento, pautado em um conjunto de tecnologias ambientais que
englobam agricultura orgânico-ecológica, economia, ética, sistemas de captação e
tratamento de água, tecnologia solar e bioarquitetura (BROGNA, s.d.). Base do desenho
urbano de uma ecovila (design), a permacultura vale-se de todos os recursos
disponíveis, fazendo uso da maior quantidade de maneiras possíveis de se aproveitar
cada elemento presente na composição ambiental do espaço.
2. AS ECOVILAS NO MUNDO
Pretende-se, neste ponto, realizar um balanço geral da distribuição geográfica
das ecovilas no mundo contemporâneo, bem como, uma breve explanação acerca dos
meios através dos quais elas tem se organizado e articulado nacional e
internacionalmente.
O mapa das principais ecovilas do mundo fornecido pela GEN (fig. 1) é de suma
importância nesse sentido, pois oferece uma imagem bastante realista da expansão e
presença do movimento das ecovilas a nível mundial. Importantes observações podem
ser dele inferidas. O que se destaca em primeiro lugar é uma larga distribuição dessas
comunidades, que marcam presença em todos os continentes habitados do planeta,
porém, com notável concentração e maior abundância na Europa e na América do
Norte, regiões pioneiras do movimento. Outro aspecto importante é que elas se
localizam em regiões de biomas bastante diferenciados, o que demonstra o grande
empenho dessas comunidades em se adaptarem a características ambientais de grande
diversidade. Da mesma forma, observa-se que distribuição mundial das ecovilas se dá
em meio a países de condições políticas, socioeconômicas e culturais também muito
Fig. 1 – Distribuição geográfica das principais ecovilas do mundo e regiões de atividade da ENA (em azul), GEN-Europa/Africa/Middle East (em bege) e GENOA (em verde). Fonte: Global Ecovillage Network (GEN, 2012).
diversos o que, de certa forma, sugere a grande variedade de valores, ideais e ideologias
mediante os quais a dimensão cultural/espiritual dessas comunidades pode ser
engendrada.
Atualmente existem cerca de 15.000 ecovilas em todo o mundo filiadas à GEN e
suas “sub-redes” de amplitude regional, somando cerca de um milhão de moradores
(RAINHO, 2006; OLIVEIRA e PASQUALETTO, 2010; BROGNA, s.d.). Criada em
1995, a GEN é uma confederação mundial de pessoas e comunidades que se encontram
para compartilhar ideias e inovações no âmbito tecnológico, ambiental, cultural e
educacional (RAINHO, 2006). Ela tem como propostas: sustentar e encorajar o
crescimento de assentamentos sustentáveis em todo o mundo, aproximar as ecovilas
para facilitar a troca de informações, coordenar projetos relacionados a esses
assentamentos, além de construir redes de ecovilas nacionais e internacionais que
possam se tornar autônomas futuramente.
A partir da fundação da GEN foram sendo criadas, ao longo dos anos e em
parceria com ela, redes de comunidades sustentáveis a nível continental e nacional em
todo o mundo para a troca de informação e experiência acerca do modo de vida
sustentável. Integram-se à GEN três grandes organizações regionais ou “GEN Regions”
(GEN, 2012), todas de amplitude continental: a Rede de Ecovilas das Américas (ENA,
Ecovillages Network of Americas), que engloba todo o continente americano; a GEN-
Europe/Africa/Middle East, abarcando além do continente europeu, a África, grande
parte do Oriente Médio e a Rússia; e a GENOA (Global Ecovillage Network – Oceania
e Asia), que compreende ecovilas da Indochina, do leste asiático e da Oceania (fig. 1).
Atualmente a GEN está apoiando o surgimento da GEN-Africa e da CASA (Consejo de
Asentamientos Sustentables de las Américas) como redes independentes, a fim de tornar
mais visível e compacto o impressionante e dinâmico trabalho que já vem sendo feito na
África e na América do Sul (ibidem).
Das três organizações regionais da GEN a ENA é a que merece maior destaque
para a compreensão dos reflexos do movimento das ecovilas no Brasil. A ENA é criada
em 1997 visando englobar todas as comunidades do continente americano.
Vislumbrando “um mundo com diversas culturas, todos vivendo unidos e criando
comunidades em harmonia entre si e com a Terra, enquanto satisfazem às necessidades
das futuras gerações”, a ENA tem como missão “engajar todas as pessoas das Américas
em comum trabalho e enfoque para juntos fazermos uma transformação global em
assentamentos humanos em direção ecologicamente,economicamente e culturalmente
sustentável” (ENA, 2012). Assim como a GEN e suas demais organizações regionais, a
ENA também propõe o estreitamento de relações entre as ecovilas para a troca de
informações procurando fomentar o desenvolvimento sustentável, bem como, o
fortalecer o enraizamento dos membros da comunidade (RAINHO, 2006).
Dessa forma, a ENA vem desde a sua criação incentivando e integrando
organizações nacionais de ecovilas como a ENA-Brasil, a rede de ecovilas brasileiras.
Criada no início da década de 1990, a ENA-Brasil é um secretariado da ENA
representante das ecovilas nacionais que possui redes regionais de ecovilas espalhadas
por todo o país conectando-se entre si para a troca de tecnologias ambientais e
informações (RAINHO, 2006). Configura-se, assim, como “uma rede que interconecta
aqueles e aquelas que buscam uma reconexão com a Teia da Vida através da
cooperação, do compartilhar e da troca em todos os níveis”, congregando pessoas,
grupos, tribos, instituições e ecovilas que acreditem na possibilidade da transformação e
em um modo de vida que suporte a evolução do planeta e de todas as formas de vida,
inclusive as que estão por vir e honrando as que já se foram (BUENO, s.d.). Segundo
dados recentes da ENA e da GEN (apud BROGNA, s.d.), existem no Brasil pelo menos
30 comunidades que vivem como ecovilas, muitas das quais ainda em fase de
consolidação. De acordo com Brogna (s.d.), suas características mais marcantes são as
heranças de algumas comunidades hippies e comunidades religiosas como as budistas,
que servem de ponte entre espiritualidade e natureza. Além disso, muitas delas se
encontram nas regiões de entorno imediato urbano e raramente em meio urbano, criando
uma imagem mista de cidade-campo (ibidem).
Ao articularem as ecovilas sob unidades regionais de apoio político-
administrativo e tecnológico visando o fortalecimento da união, cooperação e
solidariedade dessas comunidades entre si, as redes de ecovilas integradas em suas
diferenciadas escalas (global, supra-nacional, nacional e regional) podem ser facilmente
apreendidas pela lógica dos territórios-zona e dos territórios-rede segundo os níveis de
análise, tal como os concebem Souza (1995) e Haesbaert (2002).
Partindo da concepção de território como “um espaço definido e delimitado por
e a partir de relações de poder”, Souza (1995) aponta a evidência da interação e mesmo
inseparabilidade das categorias território e rede. Em função da escala geográfica
considerada este autor demonstra que os territórios podem assumir formas de
manifestação ora mais zonal (pressupondo uma contiguidade espacial), ora mais
reticular (não havendo contiguidade espacial, mas sim a articulação entre pontos ou
“nós” por linhas ou “arcos”, correspondentes a fluxos de bens, pessoas ou informações
que e interligam e “costuram” os nós), mas esta dinâmica só pode ser satisfatoriamente
compreendida na perspectiva do binômio território-rede como categorias analíticas
indissociáveis (HAESBAERT, 2002). Trata-se do que Souza, assim como Haesbaert
(ibidem) e outros autores, designa como territórios-rede (ou territórios descontínuos) e
territórios-zona (ou territórios contínuos):
A esse território em rede ou território-rede propõe o autor do presente artigo chamar de território
descontínuo. Trata-se, essa ponte conceitual, ao mesmo tempo de uma ponte entre escalas ou
níveis de análise: o território descontínuo associa-se a um nível de tratamento onde, aparecendo
os nós como pontos adimensionais, não se coloca evidentemente a questão de investigar a
estrutura interna desses nós, ao passo que, à escala do território contínuo [ou “território-zona”],
que é uma superfície e não um ponto, a estrutura espacial interna precisa ser considerada. Ocorre
que, como cada nó de um território descontínuo é, concretamente e à luz de outra escala de
análise, uma figura bidimensional, um espaço, ele mesmo um território [...], temos que cada
território descontínuo é, na realidade, uma rede a articular dois ou mais territórios contínuos
(SOUZA, 1995).
Transpondo estas considerações conceituais para a realidade das ecovilas,
percebe-se que a uma escala local o município autônomo em sua extensão sobre uma
pequena área corresponde prontamente a um território-zona. Por outro lado, no interior
das unidades regionais de ecovilas em suas variadas escalas (intra-nacional, nacional,
supra-nacional/continental e global), percebe-se a conexão entre um grupo de ecovilas,
cada vez maior conforme a amplitude de escala, que agora passam a ser vistas como
“nós” interligados por “linhas” ativadas por fluxos de energia, informação, idéias e
recursos que na perspectiva da autogestão e de autogoverno dessas comunidades tendem
a se distribuir visando o aprofundamento e a manutenção da sustentabilidade em suas
múltiplas dimensões.
Servindo-se de variados veículos de comunicação de massa, especialmente a
internet, o movimento das ecovilas não apenas pôde se tornar mais integrado regional e
globalmente, como também contribuiu decisivamente para a divulgação de suas ideias
para um número cada vez maior de pessoas, dando início a uma forte onda de criação de
novas ecovilas nas últimas décadas (SANTOS JR, 2006).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A breve análise do movimento das ecovilas em seu significado conceitual e
expressão geográfica que acaba de ser apresentada permite-nos destacar algumas
importantes observações finais que servirão de ponto de partida para etapas posteriores
dessa pesquisa.
Historicamente, as ecovilas nascem no cerne do próprio
movimento ambientalista, como modelo alternativo à busca de
assentamentos humanos sustentáveis, reproduzindo conceitos,
valores e tecnologias que se reúnem numa prática constante de
mudanças de nossos hábitos, comportamentos e crenças. Seu
movimento evidencia, por conseguinte, a urgente necessidade de
uma mudança radical de paradigma da relação homem-meio. Esta
deve consolidar uma forma de pensamento holística que vá além do
racionalismo newtoniano-cartesiano e que respeite a diferença e a
diversidade, tendo a sustentabilidade como parâmetro fundador.
Geograficamente, elas demonstram uma grande versatilidade
em suas organizações locais e em suas relações articuladas entre si
em diversos níveis (nacional, regional, mundial), compondo um
verdadeiro território-rede de resistência pela sustentabilidade. Com
efeito, não existe uma ecovila igual à outra, modificando-se
amplamente o desenho sócio-espacial dessas comunidades tanto do
ponto e vista ecológico, como comunitário e cultural/espiritual. Porém,
a despeito da multiplicidade de influências e filosofias e das diversas formas de
estruturação física e organizacional que lhes servem de base, as ecovilas partilham
princípios comuns de comunitarismo e de sustentabilidade: a unidade do movimento das
ecovilas encontra-se justamente no fato delas serem, ao mesmo tempo, comunidades
intencionais e sustentáveis.
Ademais, embora não se possa estipular uma organização sócio-espacial
“padrão” comum a todas as ecovilas, alguns elementos básicos componentes de sua
estruturação (habitações, cozinha comunitária, área social, agrofloresta, centro de
reciclagem, horta, reservatório de água, áreas verdes, etc.) e alguns fatores essenciais
elucidadores da localização e distribuição geográfica dessas comunidades (vontade e
capacidade organizativa do grupo inicial, disponibilidade de terrenos ecológica e
financeiramente viáveis para instalação, possibilidades de aproveitamento econômico a
longo prazo para a sustentação material da comunidade) podem ser identificados. Estes
serão objetos de investigação em etapas posteriores dessa pesquisa, apresentando-se
desde já como peças importantes na elaboração de um possível modelo explicativo da
geografia das ecovilas.
Por fim, é preciso ainda enfatizar que, diante da crise ambiental e demais crises
contemporâneas (social, econômica, cultural, espacial, etc.) e conforme atestam
variados autores, o movimento das ecovilas notabiliza-se pelas respostas concretas que
tem realizado no sentido de se criar assentamentos humanos compatíveis com o bem-
estar comunitário e com o meio ambiente. Nesse contexto, as ecovilas representam
verdadeiros modelos de assentamentos comunitários alicerçados em modos de vida
sustentáveis, despertando o interesse no desenvolvimento de pesquisas sobre a
sustentabilidade e inspirando a emergência de novos paradigmas de interação das
sociedades com a natureza.
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