ARTIGO Ecovilas Verso Final

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Felippe Rodrigo Souza Silva, Juliana Mattos de Freitas Instituto de Geociências – UFRJ [email protected], [email protected] Reflexões sobre desenvolvimento sustentável em ecovilas: uma abordagem geográfica a partir do conceito de sustentabilidade multidimensional INTRODUÇÃO, OBJETIVOS e METODOLOGIA O presente artigo propõe-se a introduzir uma reflexão sobre o significado do movimento das ecovilas no mundo contemporâneo a partir de uma abordagem geográfica que procurará destacar a importância capital da concepção multidimensional da sustentabilidade para uma melhor compreensão acerca do tema. Para Jorge (2008), existe uma dificuldade em se situar historicamente a fundação das primeiras ecovilas, já que muitos dos assentamentos pioneiros foram criados quando se nem existia tal definição. De acordo com Dawson (2005 apud CAMPANI, 2011), o conceito de ecovila foi primeiramente utilizado de forma ampla pelo movimento ativista alemão anti-nuclear, durante a década de 1980. Rainho (2006), também tratando da origem e evolução histórica das ecovilas, destaca o papel fundamental do movimento arquitetônico cohousing como um dos principais influenciadores da concepção das ecovilas, sobretudo no que diz respeito ao aspecto da convivência em comunidade. A autora aponta os arquitetos dinamarqueses Hildur e Ross

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Felippe Rodrigo Souza Silva, Juliana Mattos de Freitas

Instituto de Geociências – UFRJ

[email protected][email protected]

Reflexões sobre desenvolvimento sustentável em ecovilas: uma abordagem

geográfica a partir do conceito de sustentabilidade multidimensional

INTRODUÇÃO, OBJETIVOS e METODOLOGIA

O presente artigo propõe-se a introduzir uma reflexão sobre o significado do

movimento das ecovilas no mundo contemporâneo a partir de uma abordagem

geográfica que procurará destacar a importância capital da concepção multidimensional

da sustentabilidade para uma melhor compreensão acerca do tema.

Para Jorge (2008), existe uma dificuldade em se situar

historicamente a fundação das primeiras ecovilas, já que muitos dos

assentamentos pioneiros foram criados quando se nem existia tal

definição. De acordo com Dawson (2005 apud CAMPANI, 2011), o conceito de

ecovila foi primeiramente utilizado de forma ampla pelo movimento ativista alemão

anti-nuclear, durante a década de 1980. Rainho (2006), também tratando da origem e

evolução histórica das ecovilas, destaca o papel fundamental do movimento

arquitetônico cohousing como um dos principais influenciadores da concepção das

ecovilas, sobretudo no que diz respeito ao aspecto da convivência em comunidade. A

autora aponta os arquitetos dinamarqueses Hildur e Ross Jackson como importantes

personagens da história do movimento das ecovilas e sua expansão pelo mundo. Em

1987, eles fundaram, na Dinamarca, a Associação Gaia Trust com o propósito de

financiar o movimento das ecovilas, organizando encontros de ecovilas de todo o

mundo e vislumbrando a criação de uma rede mundial de ecovilas (JACKSON, 1998

apud RAINHO, 2006).

No entanto, somente em 1991 o conceito de ecovila é pela primeira vez

internacionalmente difundido. Na ocasião, os jornalistas Robert e Diane Gilman, por

meio de um relatório, encomendado pela organização Gaia Trust da Dinamarca,

intitulado “Ecovilas e Comunidades Sustentáveis”, cunham o termo “ecovila”

definindo-o como “um assentamento completo, de escala humana, onde as atividades

estão harmoniosamente integradas ao mundo natural, que sustenta o desenvolvimento

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humano saudável para continuar indefinidamente no futuro” (CAMPANI, 2011;

RAINHO, 2006).

Com a Conferência de Findhorn, um encontro entre comunidades sustentáveis

financiado pela Gaia Trust, na Escócia, em 1995, o conceito de ecovila é melhor

sistematizado e popularizado. A conferência fundou a Rede Global de Ecovilas, a GEN

(Global Ecovillage Network), dando maior visibilidade, organização e oficialização ao

movimento (CAMPANI, 2011; CUNHA, 2010; RAINHO, 2006). Para Campani (2011)

este foi um marco fundamental para a criação de um movimento das ecovilas que

fizesse frente, sob bases sustentáveis, aos desafios impostos à criação e expansão de

experiências comunitárias.

Trata-se, portanto, de comunidades intencionais, autônomas e sustentáveis,

baseadas num modelo ecológico que focaliza a integração das questões culturais e

socioeconômicas como parte de um processo de crescimento espiritual compartilhado.

Tomando como legado muito dos ideais e das práticas comunitárias e coletivistas

desenvolvidas ao longo da história, especialmente das experiências realizadas por

grupos alternativos nas décadas de 1960 e 1970, as ecovilas despontam como um dos

mais notáveis movimentos autônomos pela sustentabilidade no mundo contemporâneo,

estando presente em diversos países, inclusive no Brasil. Elas surgem, assim, a partir de

uma confluência dos ideais de diversos movimentos sociais e ambientais, como o

hippie, o ativismo ambiental, o cohousing, dentre outros.

Buscando uma maior compreensão do significado das ecovilas enquanto

movimento autônomo sustentável no contexto da crise ambiental contemporânea, a

abordagem deste artigo pautar-se-á em torno de duas questões centrais: (a) no que

consistem estas comunidades intencionais e (b) como se encontram geograficamente

distribuídas e organizadas no mundo atual. À primeira questão corresponderá nosso

objetivo geral, concernente, sobretudo, à primeira parte deste artigo, que procurará

realizar uma breve revisão bibliográfica sobre o conceito de ecovila, situando-o dentro

do rol de conceitos fundamentalmente ligados à sua concepção – é o caso da

permacultura e da sustentabilidade. À segunda questão liga-se nosso objetivo específico

de destacar importantes inferências do mapa global das ecovilas e suas redes

internacionais e nacionais de organização, assunto a ser tratado na segunda parte.

Para o alcance dos objetivos propostos (geral e específicos) foi realizada uma

pesquisa preliminar, durante os últimos oito meses, na qual foram levantadas

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informações da mídia (noticiários, revistas e documentários) e, principalmente, fontes

da literatura científica nacional e internacional diretamente relacionadas ao assunto.

Esses dados e informações foram posteriormente reunidos e sistematizados em

função das questões centrais destacadas e da operacionalização das categorias analíticas

que ora consideramos serem as mais adequadas para o alcance de nossos objetivos.

Trata-se da sustentabilidade multidimensional, tal como proposta por Sachs (2008); e do

binômio território-zona – território-rede, apresentado por Souza (1995) e Haesbaert

(2002), que serão oportunamente discutidas em maior detalhe.

1. ENTENDENDO AS ECOVILAS A PARTIR DE CONCEITOS NELAS

CENTRAIS: A SUSTENTABILIDADE E A PERMACULTURA

Antes de passarmos à análise geográfica do movimento das ecovilas

propriamente dita é indispensável que tenhamos uma ideia bastante precisa acerca do

que consistem essas comunidades intencionais, bem como, do papel fundamental que os

ideais e as práticas da permacultura e da sustentabilidade assumem em sua concepção.

Para isso, uma revisão bibliográfica que, ao mesmo tempo, analise o significado e as

correspondências desses três conceitos, esclarecendo a função crucial que as técnicas de

permacultura e o ideal de sustentabilidade representam para o modo de vida dos

ecovileiros, torna-se imprescindível.

A partir da definição pioneira de ecovilas proposta pelos Gilman em 1991,

outras propostas conceituais foram desenvolvidas ao longo das décadas seguintes. Uma

das mais conhecidas é a da própria GEN (2012), segundo a qual, as ecovilas são

“comunidades rurais ou urbanas de pessoas, que buscam integrar um ambiente social

assegurador com um estilo de vida de baixo impacto ecológico”, unificando, para isso,

vários aspectos do projeto ecológico, tais como a permacultura, construções de baixo

impacto ambiental, produção verde, energia alternativa, práticas de fortalecimento das

relações comunitárias, dentre outros.

Segundo o IPEMA (2012), ecovilas são agrupamentos humanos que buscam a

autossustentabilidade e o baixo impacto ambiental. De acordo com este instituto, as ecovilas

possuem, em geral, entre 20 e 3.000 pessoas, sendo normalmente gerenciadas por um

conselho responsável pela gestão participativa e pela tomada de decisões que permitam o

desenvolvimento orgânico dos projetos e atividades comunitárias. Promovendo a

descentralização das necessidades como uma solução viável para se atingir mais facilmente

estes objetivos, a ideia central das ecovilas “é, de acordo com os princípios da permacultura,

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criar vilas autossuficientes, gerando trabalho, conforto, vida social, saúde, educação, e com

o mínimo impacto ambiental” (ibidem).

Svenson (2002 apud JORGE, 2008 e SANTOS JR, 2006), por sua vez, entende as

ecovilas como comunidades de pessoas que se esforçam por levar uma vida

em harmonia consigo mesmas, com os outros seres vivos e com a

Terra. Na visão da autora, estas comunidades possuem o propósito de

combinar um ambiente sociocultural sustentável com um estilo de

vida de baixo impacto. Dessa forma, a ecovila, enquanto estrutura

societária inovadora, vai além da atual dicotomia entre

assentamentos rurais e urbanos, representando um modelo

amplamente aplicável para o planejamento e reorganização dos

assentamentos humanos no século XXI.

A proposta de modo de vida comunitário das ecovilas é o da “Hipótese Gaia”,

segundo a qual o planeta Terra e seus seres vivos constituem um grande complexo vivo,

um sistema único e auto-regulável. Entre os ecovileiros essa vivência apoia-se num tripé

holístico de “colas”: A comunidade, a ecologia e a espiritualidade (BROGNA, s.d.).

Enquanto assentamentos comunitários sustentáveis e intencionais

elas podem ainda ser definidas em função de seus princípios e

necessidades básicas, alguns dos quais apontados por Bueno (s.d.).

Segundo o autor, uma das necessidades mais importantes de uma

ecovila é a água, devendo os ecovileiros encontrar uma solução local

para o fornecimento desse recurso vital, reciclando e reutilizando as

águas servidas. Além deste, outros princípios básicos de uma ecovila

são: a criação de sistemas não poluentes e renováveis de energia;

gestão do lixo; fornecimento e produção sustentável de alimento;

construções com materiais retirados do local; condições de trabalho

em harmonia com o meio ambiente; prioridade de transporte coletivo

e não poluente; e convívio social.

Assim, na compreensão do conceito e de sua evolução, diversas

tentativas de definição foram e podem ser feitas. Em todas, porém,

prevalece uma visão comunitária, integrada, sustentável e plural

(JORGE, 2008; SANTOS JR, 2006). Além disso, outro denominador

comum que também se evidencia nas proposições conceituais é o

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entendimento de que a ecovila não pode ser pensada de forma

indissociável da sustentabilidade e da permacultura, termos

fortemente vinculados e que em grande parte consubstanciam-se.

Segundo a GEN (2012), as ecovilas em sua busca permanente

pela manutenção da sustentabilidade possuem quatro dimensões

fundamentais: a dimensão social, a dimensão ecológica, a dimensão

cultural/espiritual e a dimensão econômica. Nesta ótica, comunidade

significa: reconhecer e se relacionar com os outros, compartilhar

recursos comuns e prestar auxílio mútuo, promover indefinidamente

a educação, incentivar a unidade através do respeito às diferenças,

promover a expressão cultural, dentre outros aspectos comunitários.

Ecologia significa: apoio à produção de alimentos orgânicos, criação

de casas de materiais adaptados ao meio ambiente, utilização de

sistemas integrados de energias renováveis, preservação da

qualidade da água, solo e ar através de energia limpa e gestão de

resíduos, além, é claro, da proteção incondicional à biodiversidade.

Vitalidade cultural e espiritual significa, dentre outros aspectos:

criatividade, expressão artística, atividades culturais, rituais e

celebrações coletivamente compartilhados; senso de comunidade e

apoio mútuo, respeito e apoio à espiritualidade em suas múltiplas

manifestações, além da compreensão da interdependência de todos

os elementos da vida na Terra, capaz de colocar a comunidade em

relação ao todo. E, finalmente, vitalidade econômica significa

distribuir e investir os recursos o mais equitativamente possível por

todos os membros e estruturas da comunidade.

A nosso ver, essa visão da GEN corrobora a viabilidade e

pertinência da perspectiva multidimensional de sustentabilidade

proposta por Ignacy Sachs, enquanto ferramenta conceitual de

investigação, para a compreensão dos níveis de sustentabilidade dos

processos e atividades inerentes à realidade concreta das ecovilas.

Sachs (2002) apresenta o conceito de sustentabilidade como

composto de seis dimensões: a social, a ambiental/ecológica, a

cultural, a territorial, a econômica e a política (nacional e

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internacional). Cada dimensão define-se em função de determinados

critérios, chamados pelo autor de “critérios de sustentabilidade”.

Tomaremos aqui as cinco primeiras como as dimensões mais

relevantes para a discussão do desenvolvimento sustentável no

contexto do movimento das ecovilas.

Sendo assim, na visão de Sachs, a dimensão social visa

permanentemente ao cumprimento de critérios como: o alcance de

um patamar razoável de homogeneidade social, distribuição de renda

justa, emprego pleno e/ou autônomo com qualidade de vida decente

e a igualdade no acesso aos recursos e serviços sociais. A dimensão

cultural segue como critérios: o equilíbrio entre respeito à tradição e a

inovação, a capacidade de autonomia para a elaboração de um

projeto nacional integrado e endógeno, assim como, a autoconfiança

combinada com a abertura para o mundo. Como critérios básicos da

dimensão ambiental/ecológica temos: a preservação do potencial do

capital natural na produção de recursos renováveis, a limitação do

uso de recursos não-renováveis e o respeito e realce a capacidade de

autodepuração dos ecossistemas. A dimensão territorial da

sustentabilidade, por sua vez, tem em vista configurações urbanas e

rurais balanceadas (procurando eliminar das inclinações urbanas nas

alocações do investimento público), a melhoria do ambiente urbano,

a superação das disparidades inter-regionais e a concretização de

estratégias de desenvolvimento ambientalmente seguras para áreas

ecologicamente frágeis. E, por fim, a sustentabilidade econômica

inclui como critérios: um desenvolvimento intersetorial equilibrado,

segurança alimentar, capacidade de modernização contínua dos

instrumentos de produção, razoável nível de autonomia científica e

tecnológica, além da inserção soberana na economia internacional. A

partir da identificação dessas dimensões, Sachs, vê o

desenvolvimento sustentável como uma realidade dinâmica e

integrada em permanente mudança, numa perspectiva metodológica

bastante compatível, portanto, à análise da sustentabilidade em

ecovilas.

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Finalmente, vamos encontrar a base técnica da

sustentabilidade em ecovilas nos princípios da permacultura.

Literalmente, pode-se definir a permacultura como cultura permanente. O conceito

foi desenvolvido no fim dos anos 70 pelos australianos David Holmgren e Bill

Mollison, referindo-se à criação e desenvolvimento de pequenos sistemas produtivos

organicamente integrados (formado por elementos como a ecocasa, o entorno, as

pessoas, etc.), de modo a responder harmonicamente às necessidades humanas básicas.

Com base na cooperação entre homem e a natureza, o princípio fundamental da

permacultura é respeitar a sabedoria da natureza – observar e copiar a natureza em seus

ciclos. Nesse sentido, o cooperativismo torna-se o caminho natural praticado e

incentivado pela permacultura não somente entre as pessoas, mas também entre todos os

elos da paisagem, formando redes de apoio mutuo (IPEMA, 2012). A permacultura não

enfoca, portanto, somente o aspecto físico do ambiente, demonstrando que, além deste,

também se faz necessário a consideração de aspectos social, econômico, cultural e

espiritual.

Segundo Bueno (s.d.) a permacultura se caracteriza por projetos que se utilizam

de métodos ecologicamente saudáveis e economicamente viáveis para responder a essas

necessidades básicas, buscando a autossuficiência a longo prazo, sem explorar nem

poluir o meio ambiente.  São três os princípios da permacultura segundo Mollison

(1991): 1 - Os elementos do terreno devem se posicionar de modo que se auxiliem

mutuamente; 2 - Cada elemento deve executar várias funções, como o caso de uma

cerca de vegetais que pode servir de alimento, quebra-vento, habitat para pequenos

animais, dentre outras funções; e 3 - Toda função essencial, como o abastecimento de

água e energia, deve ser apoiada por dois ou mais elementos, por exemplo, o

aquecimento solar de água pode ser substituído pela serpentina do fogão à lenha ou pela

energia elétrica.

Sob a lógica dos princípios da permacultura entende-se que ela vai além de um

conceito de prática agrícola sustentável, integrando os elementos disponíveis, como

solo, água, vento, animais, resíduos, edificações, dentre outros, de modo que a relação

entre estes seja sustentável. Dessa maneira, a Permacultura corresponde a um sistema

holístico de planejamento, pautado em um conjunto de tecnologias ambientais que

englobam agricultura orgânico-ecológica, economia, ética, sistemas de captação e

tratamento de água, tecnologia solar e bioarquitetura (BROGNA, s.d.). Base do desenho

urbano de uma ecovila (design), a permacultura vale-se de todos os recursos

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disponíveis, fazendo uso da maior quantidade de maneiras possíveis de se aproveitar

cada elemento presente na composição ambiental do espaço.

2. AS ECOVILAS NO MUNDO

Pretende-se, neste ponto, realizar um balanço geral da distribuição geográfica

das ecovilas no mundo contemporâneo, bem como, uma breve explanação acerca dos

meios através dos quais elas tem se organizado e articulado nacional e

internacionalmente.

O mapa das principais ecovilas do mundo fornecido pela GEN (fig. 1) é de suma

importância nesse sentido, pois oferece uma imagem bastante realista da expansão e

presença do movimento das ecovilas a nível mundial. Importantes observações podem

ser dele inferidas. O que se destaca em primeiro lugar é uma larga distribuição dessas

comunidades, que marcam presença em todos os continentes habitados do planeta,

porém, com notável concentração e maior abundância na Europa e na América do

Norte, regiões pioneiras do movimento. Outro aspecto importante é que elas se

localizam em regiões de biomas bastante diferenciados, o que demonstra o grande

empenho dessas comunidades em se adaptarem a características ambientais de grande

diversidade. Da mesma forma, observa-se que distribuição mundial das ecovilas se dá

em meio a países de condições políticas, socioeconômicas e culturais também muito

Fig. 1 – Distribuição geográfica das principais ecovilas do mundo e regiões de atividade da ENA (em azul), GEN-Europa/Africa/Middle East (em bege) e GENOA (em verde). Fonte: Global Ecovillage Network (GEN, 2012).

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diversos o que, de certa forma, sugere a grande variedade de valores, ideais e ideologias

mediante os quais a dimensão cultural/espiritual dessas comunidades pode ser

engendrada.

Atualmente existem cerca de 15.000 ecovilas em todo o mundo filiadas à GEN e

suas “sub-redes” de amplitude regional, somando cerca de um milhão de moradores

(RAINHO, 2006; OLIVEIRA e PASQUALETTO, 2010; BROGNA, s.d.). Criada em

1995, a GEN é uma confederação mundial de pessoas e comunidades que se encontram

para compartilhar ideias e inovações no âmbito tecnológico, ambiental, cultural e

educacional (RAINHO, 2006). Ela tem como propostas: sustentar e encorajar o

crescimento de assentamentos sustentáveis em todo o mundo, aproximar as ecovilas

para facilitar a troca de informações, coordenar projetos relacionados a esses

assentamentos, além de construir redes de ecovilas nacionais e internacionais que

possam se tornar autônomas futuramente.

A partir da fundação da GEN foram sendo criadas, ao longo dos anos e em

parceria com ela, redes de comunidades sustentáveis a nível continental e nacional em

todo o mundo para a troca de informação e experiência acerca do modo de vida

sustentável. Integram-se à GEN três grandes organizações regionais ou “GEN Regions”

(GEN, 2012), todas de amplitude continental: a Rede de Ecovilas das Américas (ENA,

Ecovillages Network of Americas), que engloba todo o continente americano; a GEN-

Europe/Africa/Middle East, abarcando além do continente europeu, a África, grande

parte do Oriente Médio e a Rússia; e a GENOA (Global Ecovillage Network – Oceania

e Asia), que compreende ecovilas da Indochina, do leste asiático e da Oceania (fig. 1).

Atualmente a GEN está apoiando o surgimento da GEN-Africa e da CASA (Consejo de

Asentamientos Sustentables de las Américas) como redes independentes, a fim de tornar

mais visível e compacto o impressionante e dinâmico trabalho que já vem sendo feito na

África e na América do Sul (ibidem).

Das três organizações regionais da GEN a ENA é a que merece maior destaque

para a compreensão dos reflexos do movimento das ecovilas no Brasil. A ENA é criada

em 1997 visando englobar todas as comunidades do continente americano.

Vislumbrando “um mundo com diversas culturas, todos vivendo unidos e criando

comunidades em harmonia entre si e com a Terra, enquanto satisfazem às necessidades

das futuras gerações”, a ENA tem como missão “engajar todas as pessoas das Américas

em comum trabalho e enfoque para juntos fazermos uma transformação global em

assentamentos humanos em direção ecologicamente,economicamente e culturalmente

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sustentável” (ENA, 2012). Assim como a GEN e suas demais organizações regionais, a

ENA também propõe o estreitamento de relações entre as ecovilas para a troca de

informações procurando fomentar o desenvolvimento sustentável, bem como, o

fortalecer o enraizamento dos membros da comunidade (RAINHO, 2006).

Dessa forma, a ENA vem desde a sua criação incentivando e integrando

organizações nacionais de ecovilas como a ENA-Brasil, a rede de ecovilas brasileiras.

Criada no início da década de 1990, a ENA-Brasil é um secretariado da ENA

representante das ecovilas nacionais que possui redes regionais de ecovilas espalhadas

por todo o país conectando-se entre si para a troca de tecnologias ambientais e

informações (RAINHO, 2006). Configura-se, assim, como “uma rede que interconecta

aqueles e aquelas que buscam uma reconexão com a Teia da Vida através da

cooperação, do compartilhar e da troca em todos os níveis”, congregando pessoas,

grupos, tribos, instituições e ecovilas que acreditem na possibilidade da transformação e

em um modo de vida que suporte a evolução do planeta e de todas as formas de vida,

inclusive as que estão por vir e honrando as que já se foram (BUENO, s.d.). Segundo

dados recentes da ENA e da GEN (apud BROGNA, s.d.), existem no Brasil pelo menos

30 comunidades que vivem como ecovilas, muitas das quais ainda em fase de

consolidação. De acordo com Brogna (s.d.), suas características mais marcantes são as

heranças de algumas comunidades hippies e comunidades religiosas como as budistas,

que servem de ponte entre espiritualidade e natureza. Além disso, muitas delas se

encontram nas regiões de entorno imediato urbano e raramente em meio urbano, criando

uma imagem mista de cidade-campo (ibidem).

Ao articularem as ecovilas sob unidades regionais de apoio político-

administrativo e tecnológico visando o fortalecimento da união, cooperação e

solidariedade dessas comunidades entre si, as redes de ecovilas integradas em suas

diferenciadas escalas (global, supra-nacional, nacional e regional) podem ser facilmente

apreendidas pela lógica dos territórios-zona e dos territórios-rede segundo os níveis de

análise, tal como os concebem Souza (1995) e Haesbaert (2002).

Partindo da concepção de território como “um espaço definido e delimitado por

e a partir de relações de poder”, Souza (1995) aponta a evidência da interação e mesmo

inseparabilidade das categorias território e rede. Em função da escala geográfica

considerada este autor demonstra que os territórios podem assumir formas de

manifestação ora mais zonal (pressupondo uma contiguidade espacial), ora mais

reticular (não havendo contiguidade espacial, mas sim a articulação entre pontos ou

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“nós” por linhas ou “arcos”, correspondentes a fluxos de bens, pessoas ou informações

que e interligam e “costuram” os nós), mas esta dinâmica só pode ser satisfatoriamente

compreendida na perspectiva do binômio território-rede como categorias analíticas

indissociáveis (HAESBAERT, 2002). Trata-se do que Souza, assim como Haesbaert

(ibidem) e outros autores, designa como territórios-rede (ou territórios descontínuos) e

territórios-zona (ou territórios contínuos):

A esse território em rede ou território-rede propõe o autor do presente artigo chamar de território

descontínuo. Trata-se, essa ponte conceitual, ao mesmo tempo de uma ponte entre escalas ou

níveis de análise: o território descontínuo associa-se a um nível de tratamento onde, aparecendo

os nós como pontos adimensionais, não se coloca evidentemente a questão de investigar a

estrutura interna desses nós, ao passo que, à escala do território contínuo [ou “território-zona”],

que é uma superfície e não um ponto, a estrutura espacial interna precisa ser considerada. Ocorre

que, como cada nó de um território descontínuo é, concretamente e à luz de outra escala de

análise, uma figura bidimensional, um espaço, ele mesmo um território [...], temos que cada

território descontínuo é, na realidade, uma rede a articular dois ou mais territórios contínuos

(SOUZA, 1995).

Transpondo estas considerações conceituais para a realidade das ecovilas,

percebe-se que a uma escala local o município autônomo em sua extensão sobre uma

pequena área corresponde prontamente a um território-zona. Por outro lado, no interior

das unidades regionais de ecovilas em suas variadas escalas (intra-nacional, nacional,

supra-nacional/continental e global), percebe-se a conexão entre um grupo de ecovilas,

cada vez maior conforme a amplitude de escala, que agora passam a ser vistas como

“nós” interligados por “linhas” ativadas por fluxos de energia, informação, idéias e

recursos que na perspectiva da autogestão e de autogoverno dessas comunidades tendem

a se distribuir visando o aprofundamento e a manutenção da sustentabilidade em suas

múltiplas dimensões.

Servindo-se de variados veículos de comunicação de massa, especialmente a

internet, o movimento das ecovilas não apenas pôde se tornar mais integrado regional e

globalmente, como também contribuiu decisivamente para a divulgação de suas ideias

para um número cada vez maior de pessoas, dando início a uma forte onda de criação de

novas ecovilas nas últimas décadas (SANTOS JR, 2006).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A breve análise do movimento das ecovilas em seu significado conceitual e

expressão geográfica que acaba de ser apresentada permite-nos destacar algumas

importantes observações finais que servirão de ponto de partida para etapas posteriores

dessa pesquisa.

Historicamente, as ecovilas nascem no cerne do próprio

movimento ambientalista, como modelo alternativo à busca de

assentamentos humanos sustentáveis, reproduzindo conceitos,

valores e tecnologias que se reúnem numa prática constante de

mudanças de nossos hábitos, comportamentos e crenças. Seu

movimento evidencia, por conseguinte, a urgente necessidade de

uma mudança radical de paradigma da relação homem-meio. Esta

deve consolidar uma forma de pensamento holística que vá além do

racionalismo newtoniano-cartesiano e que respeite a diferença e a

diversidade, tendo a sustentabilidade como parâmetro fundador.

Geograficamente, elas demonstram uma grande versatilidade

em suas organizações locais e em suas relações articuladas entre si

em diversos níveis (nacional, regional, mundial), compondo um

verdadeiro território-rede de resistência pela sustentabilidade. Com

efeito, não existe uma ecovila igual à outra, modificando-se

amplamente o desenho sócio-espacial dessas comunidades tanto do

ponto e vista ecológico, como comunitário e cultural/espiritual. Porém,

a despeito da multiplicidade de influências e filosofias e das diversas formas de

estruturação física e organizacional que lhes servem de base, as ecovilas partilham

princípios comuns de comunitarismo e de sustentabilidade: a unidade do movimento das

ecovilas encontra-se justamente no fato delas serem, ao mesmo tempo, comunidades

intencionais e sustentáveis.

Ademais, embora não se possa estipular uma organização sócio-espacial

“padrão” comum a todas as ecovilas, alguns elementos básicos componentes de sua

estruturação (habitações, cozinha comunitária, área social, agrofloresta, centro de

reciclagem, horta, reservatório de água, áreas verdes, etc.) e alguns fatores essenciais

elucidadores da localização e distribuição geográfica dessas comunidades (vontade e

capacidade organizativa do grupo inicial, disponibilidade de terrenos ecológica e

financeiramente viáveis para instalação, possibilidades de aproveitamento econômico a

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longo prazo para a sustentação material da comunidade) podem ser identificados. Estes

serão objetos de investigação em etapas posteriores dessa pesquisa, apresentando-se

desde já como peças importantes na elaboração de um possível modelo explicativo da

geografia das ecovilas.

Por fim, é preciso ainda enfatizar que, diante da crise ambiental e demais crises

contemporâneas (social, econômica, cultural, espacial, etc.) e conforme atestam

variados autores, o movimento das ecovilas notabiliza-se pelas respostas concretas que

tem realizado no sentido de se criar assentamentos humanos compatíveis com o bem-

estar comunitário e com o meio ambiente. Nesse contexto, as ecovilas representam

verdadeiros modelos de assentamentos comunitários alicerçados em modos de vida

sustentáveis, despertando o interesse no desenvolvimento de pesquisas sobre a

sustentabilidade e inspirando a emergência de novos paradigmas de interação das

sociedades com a natureza.

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