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FACULDADE DE ENSINO SUPERIOR DA PARAÍBA – FESP CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO FERNANDO RODRIGO MROSKOWSKI O CONCEITO DE JUSTIÇA NAS OBRAS “O QUE É JUSTIÇA?” E “A ILUSÃO DA JUSTIÇA” DE HANS KELSEN JOÃO PESSOA 2013

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FACULDADE DE ENSINO SUPERIOR DA PARAÍBA – FESP

CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

FERNANDO RODRIGO MROSKOWSKI

O CONCEITO DE JUSTIÇA NAS OBRAS “O QUE É JUSTIÇA?” E “A

ILUSÃO DA JUSTIÇA” DE HANS KELSEN

JOÃO PESSOA

2013

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FERNANDO RODRIGO MROSKOWSKI

O CONCEITO DE JUSTIÇA NAS OBRAS “O QUE É JUSTIÇA?” E “A

ILUSÃO DA JUSTIÇA” DE HANS KELSEN

Trabalho de Conclusão de Curso -TCC- em forma de artigo apresentado à Faculdade de Ensino Superior da Paraíba - FESP – do Curso de Graduação em Direito para atender a exigência parcial para o grau de Bacharel em direito. Área de Concentração: Filosofia do Direito Orientador: Prof. Dr. Flamarion Tavares Leite

João Pessoa

2013

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M939c Mroskowski, Fernando Rodrigo

O conceito de justiça nas obras “o que é justiça?” e “a ilusão da justiça” de Hans Kelsen. / Fernando Rodrigo Mroskowski. – João Pessoa, 2013.

19f. Orientador: Prof. Dr. Flamarion Tavares Leite Artigo (Graduação em Direito) Faculdade de Ensino Superior da

Paraíba – FESP.

1. Hans Kelsen 2. Justiça 3. Conceito 4. Definição 5. Impossibilidade I. Título.

BC/FESP CDU: 340.11(043)

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FERNANDO RODRIGO MROSKOWSKI

O CONCEITO DE JUSTIÇA NAS OBRAS “O QUE É JUSTIÇA?” E “A

ILUSÃO DA JUSTIÇA” DE HANS KELSEN

Trabalho de Conclusão de Curso –TCC- apresentado à Banca Examinadora de Artigos Científicos da Faculdade de Ensino Superior da Paraíba – FESP, como exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________ Prof. Dr. Flamarion Tavares Leite

Orientador

_________________________________ Membro da Banca Examinadora

_________________________________ Membro da Banca Examinadora

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O CONCEITO DE JUSTIÇA NAS OBRAS “O QUE É JUSTIÇA?” E “A

ILUSÃO DA JUSTIÇA” DE HANS KELSEN

FERNANDO RODRIGO MROSKOWSKI *

RESUMO

Este projeto de pesquisa tem como foco estudar o conceito de justiça nas obras “O que é justiça” e “A ilusão da justiça” de Hans Kelsen. Optou-se por aprofundar esse tema por considerar que tais obras possuem valor histórico e relevância elevada sobre o tema “justiça”, procurando-se fazer uma abordagem no conceito de justiça a partir dos resultados obtidos pelo autor dessas obras. Cumpre aqui destacar que a riqueza dos argumentos presentes nelas é de uma profundidade tamanha, que se torna impossível a um estudante de direito manter-se inerte após ter contato com as ideias do autor. Os argumentos de Kelsen, e suas várias formas de contextualizar a “justiça” proporciona uma inquietude no leitor, capaz de despertar o interesse cada vez maior na busca do conceito de justiça, motivando-o a pesquisar com profundidade essa temática. Ocorre que esse conceito, no desenvolver do pensamento de Hans Kelsen, pode provocar confusões ainda maiores na cabeça dos buscadores da justiça e, diante de tal observação, surge uma inquietude ainda maior: será que esse estudo chegará a uma resposta ou a um conceito de justiça capaz de satisfazer nossas buscas?

Palavras chave: Hans Kelsen. Justiça. Conceito. Definição. Impossibilidade.

1 INTRODUÇÃO

O que é Justiça?

Ao ingressar no curso de Direito, acreditei que essa pergunta, aparentemente simples,

seria facilmente respondida. Lembro-me de que, na recepção dos novatos, o Reitor da

Universidade explanou que nós, estudantes de Direito, nunca saberíamos exatamente o que é a

Justiça, e essa manifestação, naquele momento, caiu como um desafio. Passei então, grande

parte do Curso a procurar tal resposta.

Ao deparar-me com as obras O que é Justiça? e A Ilusão da Justiça, de Hans Kelsen,

acreditei que ali encontraria a resposta pra esse dilema.

* Graduando em Direito pela Faculdade de Ensino Superior da Paraíba – FESP. E-mail:

[email protected]

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Diante da realidade de que o presente TCC possui uma limitação de no máximo 20

páginas, cheguei a um momento de angústia, pois sintetizar os ensinamentos sobre a justiça

exigiria muito desprendimento e capacidade que por vezes acreditei não possuir.

Ao pesquisar a “justiça”, sinto que procedi com injustiça ao escolher tal tema, pois a

grandiosidade de sua essência requereria um pesquisador melhor preparado. O que mais

frustra é a sensação de não ter chegado ao fim, é a sensação de não ter encontrado a resposta

que procurei, e por isso fica a sensação de que o estudo ficou incompleto, deixou a desejar.

A metodologia foi desenvolvida em forma de pesquisa bibliográfica e a escolha

dessas duas obras simplesmente ocorreu porque nelas Kelsen faz uma investigação acerca da

história do pensamento humano. Portanto, a intenção foi travar um diálogo com Hans Kelsen

que também travou um diálogo com as mais brilhantes mentes da história da humanidade e,

por isso, considero Kelsen uma das mentes mais brilhantes de todos os tempos e, apesar de a

pesquisa ter se limitado a apenas duas obras, vale frisar que essas obras trataram de procurar

compilar tudo o que foi pensado acerca da Justiça.

A riqueza dessas obras é tamanha. Tanto que os esforços foram concentrados quase

que exclusivamente no tema Justiça, que é nosso foco. Por isso, maiores explicações sobre

Estado, Política e até mesmo Direito, tiveram que ser deixados de lado, uma vez que

extrapolariam a nossa limitação de produção.

Por fim, inicio o presente trabalho com a sensação de que, tal qual Sócrates, “só sei

que nada sei”.

2 O QUE É JUSTIÇA?

O que é justiça?

Já no início da obra O que é Justiça?, Kelsen demonstra e procura sensibilizar para a

intensidade da Justiça, pois, no decorrer de toda a história, essa é uma questão que pairou

sobre as mais pensativas mentes da humanidade, que, em vão, buscaram responder o que

permanece sem resposta.

É apresentado a nós que o homem justo é aquele que se comporta de forma a

respeitar uma ordem dada como justa. Nasce então, uma cadeia de questionamentos que

passam a ser intermináveis, pois, questiona-se o que é uma ordem justa? E chega-se à resposta

de que justa é uma ordem que contente a todos, mas contentar a todos é fazer com que todos

alcancem a felicidade.

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Chega-se então na definição de que o anseio por justiça é o eterno anseio do homem

por felicidade. Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade

dentro da sociedade. Justiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem social.

Nesse sentido Platão identifica justiça à felicidade quando afirma que só o justo é

feliz e o injusto infeliz. 1

Mantendo então, a ideia inicial de que nasce uma reação em cadeia, necessariamente,

surgirá o questionamento “o que é felicidade”? e, já que a felicidade é algo subjetivo, é

inevitável que a felicidade de um entre em conflito com a felicidade do outro, por exemplo, o

amor é fonte tanto de felicidade como de infelicidade, pois se dois homens amam a mesma

mulher, e ela só pode ficar com um deles, logo a felicidade de um, necessariamente

corresponderá à infelicidade de outro, e um dos homens, certamente acreditará sofrer uma

justiça por parte desta amada mulher.

Por isso, a felicidade de forma coletiva, ou seja, uma ordem social onde todos sejam

felizes é praticamente impossível.

Em O que é Justiça?, Kelsen nos apresenta o caso de dois homens que disputam o

cargo para comandante, ambos possuem exatamente a mesma qualificação técnica, porem, um

deles será escolhido devido a sua aparência, por seu físico e traços aparentarem uma

personalidade forte. O outro é baixo e inexpressivo em termos de aparência. Devido a isso,

caso o primeiro seja escolhido, certamente o segundo acreditará ser vítima de uma grande

injustiça, pois a natureza concedeu-lhe poucos atrativos. Por isso, pode-se afirmar que a

natureza não é justa, na medida em que dá saúde a alguns e doença a outros.

Chega-se à conclusão de que onde não há conflito de interesses não há necessidade

de justiça. O conflito de interesses surge quando um interesse só pode ser satisfeito à custa de

outro. E os interesses correspondem geralmente a juízos de valor, determinados por fatores

emocionais e subjetivos.

3 HIERARQUIA DE VALORES

A hierarquia de valores dá-se de forma a contemplar os anseios internos de cada

pessoa, por exemplo, há quem entenda que a vida humana de cada indivíduo é o valor maior,

porém, há quem considere que o interesse e a honra da nação é o bem maior.

1 KELSEN, Hans. O que é justiça? 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.2.

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A discussão entre os valores torna-se patente quando são contrapostos valores como

a liberdade e a vida. Por exemplo, uma pessoa aprisionada em um local onde a fuga é

impossível, surge a questão sobre o suicídio ser eticamente aceitável, logo, se o valor maior

for a liberdade, aí podemos concluir que o suicídio é uma solução legítima, porém, se a vida

for o valor maior, então, é aceitável que se permaneça aprisionado e com vida.

4 JUSTIÇA COMO UM PROBLEMA DE JUSTIFICAÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO

O critério de justiça e verdade não é proporcional um ao outro, ou seja, por exemplo,

por muito tempo acreditou-se que o sol girava em torno da terra, e mesmo todos acreditando,

isso não correspondia à verdade.

Na sociedade primitiva, um princípio inteiramente justo era a responsabilidade

coletiva, por exemplo, nas mortes por vingança, enquanto, na sociedade moderna a

responsabilidade é individual.

A necessidade de justificação absoluta parece ser mais forte que qualquer reflexão

racional, por isso o homem busca na religião ou na metafísica essa justificação e é por esse

motivo que, para Kelsen, as inúmeras teorias de justiça apresentadas desde tempos imemoriais

até os dias de hoje se deixem reduzir facilmente a dois tipos básicos: um metafísico religioso

e outro racionalista ou, pseudo-realista, como prefere Kelsen.

5 AS FÓRMULAS VAZIAS DA JUSTIÇA

Conceder a cada um aquilo que é seu. Essa formula foi aceita por muitos pensadores

importantes, principalmente filósofos do Direito. É fácil demonstrar que é totalmente vazia,

pois a questão decisiva – o que realmente cada um pode considerar como “seu” – permanece

sem resposta.

Por isso, o principio “a cada um aquilo que é seu” só é aplicável se o que pertence a

cada um for previamente definido.

O mesmo se aplica àquele princípio que talvez seja mais frequentemente apresentado

como a essência da justiça. O bem paga-se com o bem, o mal com o mal. Trata-se do

principio da retaliação.

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Segundo Marx, de acordo com a análise de Kelsen2, igualdade verdadeira e, portanto,

justiça verdadeira, somente poderá ser concretizada numa economia comunista, onde vale o

axioma: de cada um conforme suas capacidades, a cada um conforme suas necessidades.

Kelsen expõe um pedaço do pensamento de Kant que prevê “aja somente de acordo

com a máxima que você possa desejar que se transforme em lei geral”3. Em outras palavras: o

comportamento humano é bom ou justo se for determinado por normas que o homem, ao agir,

pode ou deve esperar que sejam obrigatórias para todos. Mas quais são essas normas que

podemos ou devemos esperar que sejam genericamente obrigatórias? É essa a questão

decisiva da justiça; e a ela não é dada resposta.

As ideias de Kant, para Kelsen, são fórmulas vazias, que correspondem à moral

tradicional e do direito positivo de sua época.

6 ABSOLUTISMO E RELATIVISMO

Considerando que existe sempre um juízo de valor contrário, conclui-se que justiça

absoluta é um ideal irracional, pois, do ponto de vista do conhecimento racional, existem

somente interesses humanos, portanto, conflitos de interesses.

Vejamos o que nos conta Kelsen4:

Iniciei esse ensaio com a questão: o que é justiça? Agora, ao final, estou absolutamente ciente de não te-la respondido. A meu favor, como desculpa, está o fato de que me encontro nesse sentido em ótima companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.

7 A IDEIA DE JUSTIÇA NAS SAGRADAS ESCRITURAS

As sagradas escrituras, amplamente investigadas pelo olhar acurado de Kelsen,

trazem-nos inúmeras tentativas de explicar a justiça. Kelsen visitou minuciosamente o Velho

e o Novo Testamento e pôde vislumbrar passagens que demonstram modificações na forma de

ver a justiça, bem como, grandes contradições na letra das sagradas escrituras.

2 Op. Cit., p. 16. 3 Op. Cit., p. 19. 4 Op. Cit., p. 25.

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Um dos elementos mais importantes da religião cristã é a ideia de que a justiça é uma

qualidade essencial de Deus. Como Deus é o absoluto, sua justiça deve ser absoluta.

Surge uma análise crítica de Kelsen de difícil exposição. Ele levanta a ideia de que se

Deus é onipotente, nada pode acontecer contra ou sem o seu desejo, logo, como pode a

onipotência de Deus ser compatível com a sua justiça se, efetivamente existe a injustiça, ou

seja, uma vez que deus é absolutamente justo e onipotente, conclui-se que a injustiça não

poderia existir, ou existiria somente por sua vontade.

Como Deus existe, a justiça absoluta existe, e, assim como deve acreditar na

existência de Deus, embora não seja capaz de compreender sua natureza, o homem deve

acreditar na existência da justiça absoluta, embora não possa saber o que ela realmente

significa. A justiça é um mistério – um dos muitos mistérios – da fé.

O direito positivado nas escrituras entra em permanente confronto com o dia a dia da

vida dos personagens bíblicos, insta abrir um parêntese a fim de expor que a letra da lei

positivada nas escrituras, em verdade é oriunda do mais divino direito natural, uma vez que

seus editores positivaram a lei através de inspiração divina, ou seja, estavam eles legitimados

por deus para editar respectivas leis e, desta forma, as escrituras transmitem formas de

condutas que estão em oposição ao sentimento de justiça dos cristãos modernos, bem como,

contradizem a própria conduta de muitos que viveram naquela época.

Transmite-se ensinamentos sobre temas cotidianos, como poligamia, escravidão e

vingança de sangue, Lameque casou-se com duas mulheres (Genesis 4, 19); Abraão, Isaac e

Jacó tinham cada um, mais de uma esposa; o Deuteronômio 21, 15, refere-se ao fato de um

homem ter mais de duas esposas como a uma relação legalmente reconhecida. Não apenas no

Antigo, mas também no Novo Testamento, a escravidão é reconhecida como uma instituição

legal e justa. No Levítico 25, 6, a escravidão é apresentada como ordenada por Javé, ou pelo

menos não incompatível com a lei que transmitiu no Monte Sinai por meio de Moisés. O

Êxodo 21, 2 ss. demonstra que não era legítimo escravizar mesmo um israelita e que era

permitido vender a própria filha como escrava. Na epístola que Paulo escreveu a Filemon a

respeito do escravo Onéssimo, que fugiu e foi reconduzido ao amo pelo apóstolo, este

absolutamente não nega a justiça da instituição; na sua Carta aos Efesios (6, 5-9), até mesmo

declarou ser a obrigação do escravo para com seu amo um dever sagrado, cujo cumprimento é

também um dever para com Deus.5

5 Op. Cit., p. 29.

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De mais a mais, aos olhos de Kelsen, as escrituras apresentam flagrantes

contradições, vejamos algumas: Sara, mulher de Abraão, é sua meia-irmã, filha de seu pai

(Genesis 20, 12). Mas no Levítico (18, 9; 20,17) e no Deuteronômio (27,12), a relação sexual

de um homem com sua meia-irmã é absolutamente proibida e um grande pecado. Jacó casou-

se com duas irmãs (Genesis 29, 1 ss.); mas no Levítico está escrito: “não tomarás como

esposa a irmã de tua mulher...”.6

Quanto ao divórcio, o Deuteronômio, que se apresenta como um ato de legislação

divina contém a regra: quando um homem tomar uma mulher e casar-se com ela, se acontecer

que ela não o agrade, porque encontrou nela alguma indecência, poderá escrever-lhe um ato

de divórcio e, colocando-o em sua mão, pode despedi-la de sua casa. E quando ela deixar a

sua casa poderá casar-se com outro homem (Deuteronômio 24, 1 ss.). Porém, quando os

fariseus perguntaram a Jesus se era legítimo divorciar-se de sua esposa, Jesus respondeu que

marido e mulher “tornar-se-ão um, de modo que não mais sejam dois, mas um. O que Deus

uniu, portanto, que o homem não separe”.7

Diante das premissas acima, percebe-se que Jesus no Novo Testamento apresenta

uma orientação, em relação ao divórcio, mais conservadora do que o Antigo Testamento.

E não é apenas na questão do divórcio que fica gritante que a nova doutrina do

direito, apresentada por Jesus, representa uma espécie de revogação e até mesmo

desobediência às antigas leis, até então, positivadas no Velho Testamento. Jesus surge como

um legislador natural, apresentando revogações e novas orientações de conduta, sempre,

frisando tratar-se do Reino de Deus na Terra.

Numa análise desprendida do Velho Testamento, pode-se vislumbrar a Justiça como

sinônimo de “vingança”, e essa vingança é apresentada pelo próprio Deus (Javé), que aplica a

sua justiça de forma ampla, permanente e onipotente, tanto em vida, quanto na morte. Lança

pragas e doenças sobre aqueles que o contrariam. Tem na vingança a aplicação direta de sua

justiça por retribuição, e de forma até mesmo questionável, pois pune culpados e inocentes,

como vemos no livro de Ezequiel (21, 1 s.) onde disse à pecaminosa Israel: “vede, estou

contra vós, e desembainharei minha espada e cortarei de vós o justo e o pecador igualmente”.8

Logo, diante de tal análise da conjuntura da aplicação da Justiça de Javé no Antigo

Testamento, podemos concluir que a Justiça absoluta não chega nem perto de ser aplicada de

forma padronizada, pois, as punições (retribuição) aplicam-se de forma, por vezes,

6 Op. Cit., p. 31.

7 Id. ibid.

8 Op. Cit., p. 32.

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desproporcional e foge da razoabilidade e até mesmo extrapola os limites do compreensível,

pois pune, inclusive, os inocentes.

Importante frisar que o Deus Javé aparece como o operador absoluto da Justiça, pois

ele é o Legislador, sendo considerado o chefe do Estado (relembrando que o Direito Positivo

do povo judeu é idêntico à justiça divina), em Êxodo 15, 18 fala-se ‘javé reinará pra sempre e

sempre” e é chamado de “Deus de Israel” em várias passagens, como (Números 23, 21;

Deuteronômio 33, 5; Isaías 44, 6). É também o Julgador. Conta-se, em Números (15, 32 ss), a

história de um homem que estava recolhendo lenha no sábado. Ele foi levado à Moises e

Aarão: “então Javé disse a Moisés: ‘O homem deve ser apedrejado por toda a comunidade

fora do acampamento’. Então toda a comunidade levou-o para fora do acampamento e

apedrejou-o até a morte. Por ser ele, reconhecido como um Deus de vingança,

necessariamente, ele é um Deus que julga, como nos mostram os Salmos (91, 1 ss.) “ó javé,

Deus vingador, refulge! Ergue-te, ó juiz da Terra”. E não acaba por aí, Javé também aparece

na condição expressa de testemunha, em Sofonias (3, 8) fala-se do dia do julgamento como o

dia em que Javé se erguerá “como testemunha” e, em Malaquias (3, 5) Deus diz: “eu me

aproximarei de vós para o julgamento e serei uma testemunha alerta contra os feiticeiros e

adúlteros”. 9

Por fim, na condição de Legislador, Juiz e Testemunha, sua onipotência não encontra

qualquer óbice à efetivação de sua ordem jurídica, aplicando-a da forma que lhe for

conveniente a fim de concretizar a Justiça por ele criada e administrada.

Nunca é demais lembrar que a justiça aplicada por Javé, segue os parâmetros do

Direito Primitivo, tendo seu alicerce nos princípios da retribuição, pois, qualquer evento

temido pelo homem primitivo era interpretado como punição, da mesma forma, ocorria no

Velho Testamento, e do contrário, qualquer evento desejado era recebido com uma

recompensa. Logo, concretiza-se nitidamente a lógica da justiça da retribuição que, em suma,

prevê “pagar o bem com o bem, e o mal, com o mal” e, diante desse princípio, deve-se aceitar

os acontecimentos sempre abalizados pela justiça pois, qualquer evento deve ser aceito como

merecido e justo, sendo que o mal é recompensa do mal praticado, e o bem é recompensa pela

boa conduta.

A aplicação da punição pode não ser aplicada diretamente por Deus, como prevê a

famosa Lei de Talião (jus talionis) com o histórico bordão “vida por vida, olho por olho,

9 Op. Cit., p. 35.

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dente por dente, mão por mão, pé por pé” exposto em Deuteronômio 19, 19 ss., este princípio,

que fala por si só, também está exposto no Êxodo (21, 23-25) e Levítico (24, 19-21).10

A fim de finalizar essa onda de ideias, parece válido trazer a lume que a lei da

retribuição não isenta nem mesmo os animais, pois no livro de Êxodo (21, 28) está positivado

que se um boi matar um homem ou uma mulher, o boi deve ser apedrejado até a morte, mas a

sua carne não deve ser comida”11. Certamente, para muitos de nós, essa passagem parece

engraçada, porém, a meu ver, representa o anseio pela formulação de leis, é o encantamento

com a positivação do direito, prever, prescrever regras de conduta, positivar e concretizar a

aplicação do direito. Portanto, é possível enriquecer a imaginação e procurar vislumbrar o

“encanto” que a formulação do direito exerceu nas mentes responsáveis por elaborá-lo.

Diferente da Justiça de Javé (Deus) positivado no antigo testamento surge, no Novo

Testamento a Nova Justiça de Jesus, na qual apresenta a rejeição ao princípio da retribuição e

que busca se concentrar numa Nova justiça, baseada no Amor e no Perdão.

Baseia seus mandamentos na retribuição do bem, de forma que visa desqualificar a

“vingança”, justiça com as próprias mãos, de modo que procura implantar a justiça através do

amor e do perdão, ficando isso visivelmente explanado no Sermão da Montanha, quando

Jesus expressamente se opõe à velha justiça do Direito Positivo e diz: “ouviste o que foi dito:

‘olho por olho, dente por dente’. Mas eu vos digo: se te baterem na face direita, oferece a

outra face...(Mateus 5, 38 s.).12

Basicamente a doutrina de Jesus traduz na realização da justiça plena em outro

mundo, após a morte, chegando mesmo a manifestar na parábola do homem rico e do pobre

Lázaro (Lucas 16, 19 s.) que o homem rico sofreu atormentações após a morte, e o pobre

Lázaro foi carregado pelos anjos, recebendo uma espécie de glória. Porém, tal afirmação de

Jesus se dá pelo simples fato de contrapor a riqueza e a pobreza, pois nenhuma acusação há

contra os personagens da parábola, apenas um é rico e outro é pobre.13

O conflito mais evidente entre o ensinamento de Jesus e a lei judaica está no

mandamento de não mais julgar outras pessoas, e a passagem mais marcante e famosa dessa

ideia é aquela em que lhe trazem uma mulher surpreendida em adultério, e de acordo com a

lei, lhe cabia a pena de apedrejamento, entretanto Jesus contraria a lei, confronta a todos e

lança o desafio: “quem não tiver pecado entre vós, que lhe atire a primeira pedra”.

10

Op. Cit., p. 43. 11

Op. Cit., p. 40. 12

Op. Cit., p. 45. 13

Op. Cit., p. 52.

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Existe, portanto, nos ensinamentos de Jesus a ideia de inversão, e fala-se de uma

forma de Justiça sem maiores explicações, por exemplo, em Marcos (10, 31) é exposto que

“muitos que são os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, e esse

princípio da inversão vai muito além, conforme exposto por Kelsen em O que é justiça?14,

vejamos:

Bem aventurados sois vós, que sois pobres, pois o reino de Deus é vosso! Bem aventurados sois vós que tendes fome, pois sereis saciados!” “Mas, ai de vós, que sois ricos, pois tivestes vosso conforto! Ai de vós, que agora tendes muito o que comer, pois tereis fome!..”

E ainda, em João 9, 39, Jesus vai de encontro ao próprio mandamento da doutrina do

amor e do perdão quando diz: “vim a esse mundo para julgar os homens, para que os que não

enxergam enxerguem e os que enxergam fiquem cegos”15. Tais afirmações despertam a

dúvida, pois, procura-se um sentido do porquê da aplicação dessa forma de “justiça”, e não se

chega a nenhuma conclusão, pois a punição se dá pelo simples fato de uns serem ricos, ou

enxergarem. Não há de fato a punição por condutas desabonadoras.

Por fim, Jesus procurou ensinar sobre a justiça, mas também, não conseguiu seguir

um raciocínio padronizado, único e coerente, devido a contradições em seus próprios

ensinamentos. Arrematamos a ideia de Justiça em Jesus, com a afirmação de que ele se

considerava o juiz do mundo, isso se confirma em João 5, 22, quando afirma “o pai não julga

ninguém, ele confiou o julgamento inteiramente ao filho”16, portanto a Justiça de Jesus, além

de não apresentar um conceito definitivo, vacilou entre a Velha Justiça do Direito Positivo

judaico, da retribuição, e a Nova Justiça do amor e do perdão.

Após Jesus, surgiu o apóstolo Paulo, importante expoente da doutrina de Jesus, e ele

apresentou seu conceito de justiça da seguinte forma: “Agora a lei não mais se aplica a nós”

(Romanos 7, 6); “o homem não é tornado justo por fazer o que a lei ordena mas pela fé em

Jesus Cristo.” 17

Paulo ensina que a justiça se faz pela fé em Jesus Cristo, e isso, independe das

atitudes ou condutas que o homem possa exercer e, portanto, deixa uma lacuna totalmente

impreenchível, pois em nada afirma definitivamente o que é Justiça e muito menos transmite

um conceito do que ela seja, mas uma ideia de Paulo é certa, que não é seguindo a lei que se

14

Op. Cit., p. 63 15

Id. Ibid. 16

Op. Cit., p. 70. 17

Op. Cit., p. 71.

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torna justo, mas sim, pela fé. Por isso, Paulo deixa claro que é contra a Lei positivada, e

procura engrandecer o seu entendimento do Direito Natural proveniente de Jesus.

Entretanto, a contradição é amiga inseparável do apóstolo em análise. Vale frisar que

o próprio Paulo, que pregava que a justiça nascia com a fé em Jesus, contrariou os

ensinamentos deste, o que de certa forma, nos leva a crer que dentro da sua própria tese, Paulo

era injusto, pois, a título de exemplo, Jesus ordenou que seus discípulos não aceitassem e nem

carregassem dinheiro, mas Paulo fez coletas organizadas de dinheiro para o “povo de Deus”, e

ainda, Jesus proclamou a renúncia à profissão, para não trabalhar, para não satisfazer as

necessidades do corpo, pois Deus cuidará da pessoa, e contrário a isso, Paulo ensinou: “se

alguém recusar-se a trabalhar, não lhe dês comida” (Tessalonicenses, 3, 10).18

O apóstolo Paulo, representa uma verdadeira contradição humana, pois ao mesmo

tempo em que prega a ineficiência das leis frente à justiça da fé, ele mesmo, apresenta-se

como um verdadeiro amante do Direito Positivo, pois expõe que toda autoridade existe sob a

permissão de Deus, e afirma que quem resiste às autoridade está resistindo a Deus. Desta

feita, coloca que se deve obediência às autoridades Romanas, que pra Jesus representavam o

Império de Satanás.

Em Romanos 3, 5 s., Paulo também se entrega ao conceito de que Justiça é castigo,

pois em sua Epístola aos Hebreus (12, 6), Paulo refere-se a uma passagem no livro dos

Provérbios (3, 11), “Javé castiga quem ele ama”, de forma que o próprio Paulo se pergunta se

“é errado em Deus infligir castigo?” e ele mesmo se responde que sim, “pois, então, como ele

poderia julgar o mundo?”.19

Por fim, em Paulo, conclui-se também, que não apresenta resposta para o que é

justiça ou qual o conceito dela, de forma que, apenas existe uma justiça humana, relativa,

idêntica ao direito positivo, e outra justiça divina, absoluta, que é o segredo da fé.

8 A JUSTIÇA PLATÔNICA

É importante trazer à baila a explanação que Kelsen nos traz, ao adentrar na mente de

Platão e sugar deste sua visão aprofundada de justiça20:

Na epistola VII, Platão declara não poder existir um conhecimento abstrato, somente uma espécie de visão do Bem absoluto, e que essa visão se realiza por meio de uma vivencia mística, concedida a poucos e somente por graça divina; seria impossível,

18

Op. Cit., p. 72. 19

Op. Cit., p. 75. 20

Op. Cit., p. 12.

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no entanto, descrever o objeto dessa visão mística, ou seja, o Bem absoluto, com palavras do linguajar humano. Devido a isso, não pode haver resposta à questão da justiça, já que justiça é um mistério que Deus – se é que o faz – confia a uns poucos escolhidos, e que continuará sendo segredo destes, pois eles não conseguem transmiti-lo aos outros.

A obra A ilusão da Justiça é dedicada basicamente à memória de Platão, o que

poderia nos levar a crer que Kelsen possuía grande reverencia ao filósofo grego, porém, na

prática isso não acontece, pois apesar de dedicar extensiva pesquisa ao pensamento platônico,

Kelsen, em várias passagens, considera os argumentos de Platão como sendo vazios e ocos.

O centro do pensamento platônico sobre a justiça baseia-se na crença de que a alma

será punida ou recompensada pelo mal ou pelo bem praticado em vida. Assemelha-se e muito

na crença religiosa da retribuição.

Em suma, o pensamento platônico sobre a justiça anda de mãos dadas com seu

pensamento acerca da existência da alma, e Platão inclusive não apresenta distinção entre uma

e outra, uma vez que acredita ser a alma imortal, e aquilo que por ventura o corpo físico não

receba a retribuição pelas atitudes ainda em vida, neste mundo, certamente, essa retribuição

virá em outro mundo, onde a alma é imortal.

Uma das mais marcantes teses sobre a justiça está exposta em Górgias21, no qual se

expressa que é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la, e que é melhor submeter-se à

punição jurídica do que escapar dela. É exposto que a punição serve para aperfeiçoar a alma,

curando-a, tal qual a medicina cura a doença.

A crença de que a justiça é a retribuição no outro mundo acompanha a obra de Platão

até a sua morte, portanto, ele se apegou a essa questão, e de forma insatisfatória, não foi capaz

de conceituar a questão do que é justiça, e apenas, com a fórmula da retribuição ele parece

revelar a função do Direito positivo, que meramente vincula o mal do delito ao mal da sanção

aplicada e assim, não oferece nenhuma resposta à questão da natureza da justiça.

Entretanto, a afirmação de que é melhor sofrer uma injustiça do que praticá-la fica

sem maiores explicações, ou seja, não é explicado de forma satisfatória o porque dessa

afirmação, caindo apenas na teoria de que quem pratica injustiça é infeliz e quem é justo é

feliz.

Poderíamos supor que essa infelicidade (do injusto), seria fruto da punição em outro

mundo, mas, Platão ao transmitir essa ideia parece estar se referindo mesmo à vida neste

mundo, e não no mundo do além.

21

Platão, Górgias, “Apud” Kelsen, Op. Cit., p. 98.

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Na obra A República22, Platão associa a ideia de justiça à ideia de Bem, de forma que

o bem passa a ser reconhecido como a essência da justiça, porém, o que é realmente o bem

não fica esclarecido em sua obra, pois o bem também é postergado para algo além desse

mundo e nos sobra, por fim, o entendimento vazio de que o justo é o que é justo e o bem é o

bem.

Quando analisamos Platão aos olhos de Kelsen, vemos que o primeiro, sob a

influência dos pensamentos socráticos, apresenta análises conceituais inteiramente

insuficientes, e quando analisa, na Apologia a Sócrates, a questão de que é ruim cometer

injustiça e desobedecer a quem é melhor que nós, essa ideia não vai além disso e apenas diz

que o injusto é injusto.

Ainda na obra A República23, Platão tenta definir a virtude da justiça afirmando que

cada um deve fazer a sua parte, porém, a parte que compete exatamente a cada um é de cunho

subjetivo de forma que habita mais no plano das ideias do que no mundo real.

Seguindo ainda a teoria da retribuição, Platão afirma que justo é dar a cada um o que

lhe cabe, de forma, inclusive a beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos, pois o amigo é

bom e o inimigo é mau, eis, então, o princípio da retribuição.

Kelsen acalma o animo dos buscadores da justiça quando expõe que em determinado

diálogo entre Sócrates e Platão acerca da justiça, Sócrates expos afirmações vazias de que

justiça é forma e injustiça é fraqueza, o justo é feliz e o injusto infeliz, no passo que, mais

adiante, Sócrates, por não chegar a uma conclusão definitiva sobre sua explanação acaba por

encerrar a conversa dizendo “para mim, a conclusão dessa conversa é que absolutamente nada

sei”24. Por fim, a verdadeira questão, acerca da essência da justiça, sequer teria sido discutida.

Para Platão, o Estado é uma alma em macrocosmo, e por isso, acredita que o direito

positivo imposto pelo estado é legítimo, e os cidadãos devem obediência às leis e às

autoridades que estão à frente do Estado.

Diante dessa ideia de Platão, conclui-se que o filósofo vê o Estado como instituição

legítima para aplicar o direito em vida, ao corpo dos cidadãos e, portanto, o cidadão justo para

Platão é também aquele que cumpre as leis e obedece às autoridades estatais, o que torna

Platão um sujeito peculiar e vem aceitar o direito positivo, aplicado aqui neste mundo, e o

direito natural a ser aplicado na alma, em outro mundo.

22

Platão, A República, “Apud” Kelsen, Op. Cit., p. 100. 23

Platão, A República, “Apud” KELSEN, Hans. A ilusão da justiça. 4ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p275. 24

Op. Cit., p. 282.

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Em sua última obra, Platão ainda tenta um derradeiro ensaio de definir e conceituar o

que é a justiça, nas leis, Platão identifica a justiça com a igualdade, de forma que define a

igualdade como algo proporcional, onde nem todos recebem o mesmo, mas sim, o que lhe é

cabido ou devido, ao maior concede mais, e ao menor, concede menos e, Kelsen não aceita

essa ideia como sendo uma solução, mas sim, apenas, novamente a colocação do problema da

justiça.

De todo o pensamento de Platão, conclui-se que para o filósofo, a justiça é algo de

outro mundo, não cabendo ao ser humano, enquanto corpo físico alcançá-la ou conhecê-la.

Kelsen, na obra A Ilusão da Justiça, arremata, e não poupa as palavras, e de forma

enfática, expõe25:

Então, o que é verdadeiramente o bem, que, em algum sentido, contém também a justiça? Esta a pergunta capital, que, irrespondida, faz de quase todos os diálogos de Platão fragmentos incompletos, e, de seus esforços, meros questionamentos sem solução, tão somente pontos de partida sem qualquer conclusão.

9 A DOUTRINA DA JUSTIÇA DE ARISTÓTELES

Kelsen considera que a ética de Aristóteles é outro significativo exemplo da tentativa

infrutífera de definir o conceito de justiça absoluta através de um método racional e científico,

através do famoso método do meio-termo, mesótes, onde a virtude é o meio termo entre dois

extremos, ou seja, dois vícios, um extremo representa o excesso e o outro a escassez, por

exemplo, a extremidade do excesso pode representar a valentia, enquanto, a escassez deste,

representa a covardia, e por aí vai, onde, pra Aristóteles, a virtude está ao centro.

Porém, a teoria da mesótes, não encontra respaldo para ser aplicada à justiça, pois,

para Aristóteles, justo é o meio-termo entre praticar o injusto e sofrer o injusto. Assim, se a

virtude é o meio termo entre dois vícios, não faz sentido nem mesmo como metáfora, pois o

injusto que se pratica e o injusto que se sofre não são absolutamente dois vícios ou males; são

um único e mesmo injusto, que um pratica contra outro e, consequentemente, que outro sofre.

E a justiça é, simplesmente, o oposto desse injusto. A questão decisiva – o que é injusto – não

é respondida através da fórmula da mesótes.

25

Op. Cit., 2008, p. 446.

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Na obra Ética26, Aristóteles almeja um sistema de virtudes humanas, e entre as mais

variadas virtudes, considera que a justiça é a principal das virtudes, chamando-a de “a virtude

perfeita”.

E para Aristóteles, a justiça está em conformidade com o direito positivo, no passo

que ele afirma que o violador da lei é injusto e o homem respeitador da lei é justo, e o termo

justo, é aplicado às coisas que produzem ou preservem a felicidade, portanto, para Aristóteles,

a justiça está ligada à felicidade e frisa que a felicidade deve ser vista como a felicidade de

todos, ou de uma classe dominante.

Kelsen ao analisar Aristóteles, nos traz a ideia da retribuição, e que a retribuição seja

considerada um princípio da justiça pode ser explicado pelo fato de ela ter origem em um dos

instintos mais primitivos do homem, o desejo de vingança. Porém, o filósofo apresenta uma

objeção à regra do “igual por igual”, na medida em que acredita que o princípio de justiça, ou

seja, a relação entre mérito e recompensa, crime e punição, não é a igualdade, mas sim, a

proporcionalidade.

Para Kelsen, Aristóteles crê ser impossível uma relação e igualdade entre a punição e

o crime, por isso, expõe que deve ao menos existir uma forma de punir o crime numa medida

proporcional.

Mas isso é a apresentação de mais um problema, sem a solução e, portanto, a questão

decisiva quanto ao que é justiça permanece sem resposta, tendo apenas uma pseudo-resposta

que cai na velha fórmula vazia do “a cada um o que é seu”.

No livro VIII da Etica27, Aristóteles traz uma ideia nova do que pode ser a justiça,

surgindo então que a Justiça é a Paz, pois onde a paz prevalece, não há necessidade de Justiça,

e de fato, um mundo de paz, pode ser considerado um mundo buscado por todos, e por isso,

apenas reforço o questionamento se “a Justiça traria um mundo de paz, ou se a Paz é que

traria um mundo de Justiça”, por fim, é mais uma utopia trazida à tona, pois, um mundo de

paz teria que ser construído pelas pessoas que vivem em comunidade, e isso, já seria o maior

empecilho, uma vez que as pessoas possuem interesses distintos e distintos são os seus juízos

de valores, bem como, discute-se ainda, se o ser humano é bom ou mau por natureza.

26

Aristóteles, Ética, “Apud” Kelsen, Op. Cit. 2001, p. 115. 27

Aristóteles, Ética, “Apud” Kelsen, Op. Cit., p. 131.

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10 A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL PERANTE O TRIBUNAL DA CIÊNCIA

O estudo que Kelsen faz sobre alguns pensadores requer uma análise rápida, pois o

cerne da questão dessa obra é o Conceito de Justiça, e ao visitar esses nobres pensadores,

Kelsen vasculhou em suma, suas ideias e pensamentos sobre a organização do Estado e da

Política, que mesmo possuindo grande relevância para o pensamento jurídico, iria requerer

um trabalho à parte, de forma que foge da nossa busca exata pelo conceito de justiça.

Ainda assim, encontrou-se pequenas passagens que procuravam versar sobre a

justiça em si.

A doutrina do Direito natural tenta fornecer uma solução definitiva para o eterno

problema da justiça, de modo que a natureza é tida como o supremo legislador, sendo provida

de vontades e de inteligência a qual o ser humano deve obediência.

Na visão de Hobbes e Pufendorf28, o Direito natural é proveniente de Deus, sendo

desta forma um Direito eterno e imutável, contrário ao que ocorre com o Direito positivo que

é criado por homens e por isso é uma ordem temporária e mutável, por isso, ao Direito natural

é vinculado o caráter religioso, e, portanto, perante o tribunal da ciência, o direito natural

chega a ser desqualificado, pois foi a ciência moderna que buscou emancipar a interpretação

da natureza dos acontecimentos sociais.

Hobbes29 afirma que não cabe ao indivíduo, mas ao Estado, através de seu governo,

decidir o que exige a lei da natureza, e isso é o mesmo que dizer que se um indivíduo

considera uma regra do Direito positivo contrária ao Direito natural, não é a opinião do

indivíduo que é válida, mas sim, prevalece a opinião da autoridade competente do Estado.

A despeito da ideia da doutrina do Direito natural “a cada um o seu”, Pufendorf30

afirma que o Direito positivo deve determinar o que pertence a cada um.

11 DA TEORIA PURA DO DIREITO NA OBRA “O QUE É JUSTIÇA?”

Kelsen mostra-se conformado, mesmo em sua própria teoria, em saber que a questão

da justiça é uma questão ainda não respondida: “desde que a humanidade pensa, as mentes

28

Op. Cit., p. 142. 29

Op. Cit., p. 148. 30

Id. Ibid.

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mais ilustres tem lutado para elaborar uma ordem para responder à questão da justiça.

Contudo, essa questão está tão longe de ser respondida como sempre esteve” 31.

A Teoria Pura do Direito procura descobrir a natureza do próprio direito, trata-se de

pensamento capitaneado pelo próprio Kelsen, é chamada “pura” porque procura excluir da

cognição do Direito positivo todos os elementos que sejam estranhos a esse.

Porém, ao analisarmos na passagem do livro O que é Justiça? que trata da Teoria

Pura do Direito, em busca de algum conceito referente à Justiça, encontramos a seguinte

passagem, que nos cai como um balde de água fria32:

Mas a Teoria Pura do Direito simplesmente declara-se incompetente para responder tanto à questão de ser dado Direito justo ou não como à questão mais fundamental do que constitui a justiça. A Teoria Pura do Direito – uma ciência – não pode responder a essas questões porque elas absolutamente não podem ser respondidas cientificamente.

Para Kelsen, justiça e direito devem ser considerados dois conceitos diferentes e,

portanto, o juízo de que algo é legal ou ilegal deve ser distinguido do juízo de que algo é justo

ou injusto, pois o direito (positivo) é dado de forma institucional, ele é criado, e por isso,

sempre estará exposto à dúvida se tal direito é justo ou não, vejamos mais um pouco de seus

pensamentos33:

Não existe, e não pode existir, um critério objetivo de justiça porque a afirmação de que algo é justo ou injusto é um juízo de valor que se refere a um fim absoluto, e esses juízos de valor são, pela sua própria natureza, de caráter subjetivo porque baseados em elementos emocionais de nossa mente, em nossos sentimentos e desejos. (...). E como os homens diferem muito quanto a seus sentimentos, suas ideias de justiça são muito diferentes. Esse é o motivo por que, apesar das tentativas dos mais ilustres pensadores da humanidade de resolver o problema da justiça, não apenas não existe concordância, mas o mais apaixonado antagonismo ao responderem à pergunta sobre o que é justo.

O trecho exposto acima possui uma profundidade perene e pode representar a ideia

mais próxima do que seja a justiça, pois traduz, em suma, que a justiça é um sentimento.

E em verdade, quantas vezes, vemos passeatas e manifestações onde as pessoas

querem justiça, e friamente, podemos analisar que elas buscam simplesmente que o

delinquente seja “oficialmente” reconhecido como o autor do delito, mesmo, não reparando o

dano cometido, basta, que ele seja punido, e isso irá tranquilizar as pessoas que passarão a

“sentir” que a justiça foi feita.

31

Op. Cit., p. 234. 32

Op. Cit., p. 262. 33

Op. Cit., p. 293.

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Portanto, é digno reconhecer que a ideia de que a justiça é um sentimento, e embora

não reflita um conceito em si, deve ser respeitado como algo a ser alvo de maiores reflexões,

pois de fato existe, em muitos casos, um “sentimento” coletivo, muitas vezes quase unânime

e, mesmo tratando-se de “sentimentos de ocasião” trazidos por momentos midiáticos ou

isolados, habita no âmago das pessoas esse sentimento de justiça que existe independente das

influências externas.

12 CONCLUSÃO

Ao iniciar o presente estudo, iniciei-o com a sensação socrática de que o que eu sabia

era que nada sabia, e agora, após degustar e dialogar longamente com Hans Kelsen, concluo o

presente trabalho com a sensação ainda mais concreta de que realmente “só sei que nada sei”.

A falta de uma conclusão definitiva sobre o que é a Justiça, e os mais variados

conceitos que simplesmente nos fazem andar em círculos, atrás sempre de uma resposta que

nos leva a outra pergunta e assim infinitamente, nos planta um sentimento de frustração, um

sentimento de algo incompleto, por não encontrar a resposta que foi procurada.

Mas vale frisar que, por falar em sentimento, a passagem que mais me atraiu foi

justamente que a Justiça pode ser um Sentimento, e é isso que sinto agora, sinto-me justo

comigo mesmo por ter me proposto a desafiar o tema estudado, e ao mesmo tempo, sinto-me

injusto por não ter avançado nessa questão, e freado no mesmo ponto onde Kelsen freou, e

também, por repetidas vezes, assumiu na obra que encontrar a justiça e conceituá-la

plenamente não lhe era possível.

Saio dessa luta relembrando a teoria platônica de que a justiça é um mistério de

Deus, que só é revelada a poucos por graça divina, e que Deus, se é que o faz, confia a poucos

escolhidos.

Por isso, concluo no sentido de afirmar que não fui um desses escolhidos para

receber a graça divina de conhecer o mistério da justiça, mas pelo menos, saio dessa pesquisa

com a busca ainda viva, e a certeza de que continuarei procurando e interessando-me em

encontrar, pois, na condição de futuro operador do Direito, tenho o ideal de ser, sim, um

futuro operador da Justiça.

Por isso, a busca pela justiça é eterna e permanente.

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THE CONCEPT OF JUSTICE IN THE WORKS “WHAT IS JUSTICE” AND “JUSTICE ILLUSION” BY HANS KELSEN

ABSTRACT

This research project focuses on studying the concept of justice in the works “what is justice” and “justice illusion” by Hans Kelsen. We chose to try to deepen this theme because we consider these works have a historical value of high relevance to the subject “justice”. We will seek to make an approach to the concept of justice sweeping the mind of the author of these works. It is important to highlight that the richness of the arguments in these works is so deep that it is impossible for a law student to remain inert after having contact with the content that is tattooed on the ideas of this remarkable author. Kelsen’s arguments, together with his various ways of contextualizing “justice”, provide such a restlessness in the reader that is capable of awakening an ever increasing interest in the pursuit for the concept of what justice is, motivating us to search this theme in depth. It happens that this concept, during the development of Hans Kelsen’s thinking, may cause even greater confusion in the mind of the justice seekers, and, before such observation, an even bigger restlessness arises: will this study come to an answer or justice concept capable of satisfying our search? Key-Words: Hans Kelsen. Justice. Concept. Definition. Impossibility.

REFERÊNCIAS

KELSEN, Hans. A ilusão da justiça. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

–––––. O que é justiça? 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.