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Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, 1993, p. 62-77.

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ESSA GENTE DO RIO...os intelectuais cariocas e o modernismo*

Angela de Castro Gomes

O que são as vaidades, meu Deus!Essa gente do Rio nunca perdoará

S.P. ter tocado o sino.Não falo de você. Você já não é do

Rio. Você é como eu: do Brasil.

Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeiraem 18 de abril de 1925.

Este texto, que se propõe ser uma reflexão preliminar sobre o perfil da intelectualidadecarioca nas décadas de 20 e 30, parte de duas premissas básicas. A primeira, conforme aafirmação de Mário de Andrade, é de que não se trata de saber quem tocou o sino domovimento modernista que marcou o período. Foi São Paulo, é claro! A segunda segue asindicações de Manuel Bandeira que, no autobiográfico Itinerário de Pasárgada, narra como,em 1936, acabou se envolvendo na organização de antologias poéticas por força e vontade doministro Gustavo Capanema. Segundo Bandeira, "o grande ministro" queria que ele resumisseem cinco antologias a melhor poesia do Brasil. Mais de dez anos após a Semana de ArteModerna, "o carioca" Bandeira aceita ocupar-se dos românticos (o Romantismo celebrava seucentenário) e dos parnasianos. Declina do estudo da poesia colonial, que estaria muito melhornas mãos de Sérgio Buarque de Holanda, e do simbolismo, sugerindo o nome de AndradeMuricy, e conclui: "o modernismo era cumbuca onde eu, macaco velho, não me atrevia ameter, já não digo a mão, mas sequer a primeira falange do dedo mindinho".1 Ou seja, estasreflexões não pretendem tomar stricto sensu o movimento modernista como seu objeto. Seriapor demais arriscado, mesmo considerando-se que não se trataria nunca de analisá-lo sob aótica literária.

O objetivo mais amplo deste texto é procurar conhecer o espaço e o clima em que semoviam os intelectuais do Rio durante cerca de duas décadas cruciais para a culturabrasileira. Neste sentido, o modernismo está sendo entendido como um movimento de idéiasrenovadoras que estabelece fortes conexões entre arte e política, e que é caracterizado poruma grande heterogeneidade. Assim, não se deseja "concentrá-lo" em seu marco simbólico - aSemana de 22 -, nem tratá-lo de forma unívoca e com contornos bem delimitados. Do pontode vista que este estudo privilegia, o modernismo é um movimento de idéias que circula pelos * Nota: Este artigo constitui a primeira reflexão de um projeto de investigação que comecei a desenvolver naUFF em 1991, através do curso "Arte e política no Rio dos anos 20 e 30", com os alunos Lia Calabre Azevedo,Maria Marta Martins de Araújo e Tânia Pacheco. Tal projeto, que terá continuidade, certamente aprofundará etestará melhor algumas das idéias aqui enunciadas.

1 Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada, em Poesia completa e prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1983,p. 84.

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principais núcleos urbanos do país desde a segunda metade dos anos 10, assumindocaracterísticas cada vez mais diferenciadas com o passar das décadas de 20 e 30. Contudo,como adverte Jacques Julliard, as idéias não "circulam" elas mesmas pelas ruas; elas estãosendo portadas por homens que fazem parte de grupos sociais organizados.2 E precisamenteesta perspectiva que orienta os objetivos específicos e as hipóteses desta reflexão.

Assim, trata-se de localizar um certo conjunto de intelectuais na paisagem ideológicado período, observando as conexões e deslocamentos tecidos numa rede relacional maior.Dito de outra forma, o objetivo é situar o "lugar social" dos intelectuais do Rio e testar suasvinculações com intelectuais de outros estados - São Paulo em especial -, no momento em queo modernismo se definia e desenvolvia como movimento de idéias. Nossa hipótese é que ummelhor conhecimento da maneira como essa intelectualidade se organizava e produzia, podeiluminar questões como a de um certo obscurecimento do modernismo no Rio, como se nestacidade ele tivesse sofrido um "desvio", uma "descaracterização". Desta forma, o texto procurareinserir os intelectuais "cariocas" no itinerário modernista, considerando algumas condiçõesparticulares à produção cultural desta cidade.

São conhecidas as interpretações que trabalham com as razões que distinguiriam asidentidades das cidades do Rio e de São Paulo e que, em particular, ressaltam o caráter decidade capital, marcada pela presença do Estado e do comércio, versus o caráter de cidadedominada pela produção e pelo ethos do mercado.3 Sem abandonar estas contribuições, masrelativizando a dicotomia, o que se deseja agregar como questão para reflexão são elementosque dizem respeito à dinâmica do próprio meio intelectual carioca. A proposta do texto éconsiderar a importância de tradições intelectuais -tanto no nível organizacional, quanto devalores estéticos e políticos -, que marcam a cidade do Rio de Janeiro e que têm a sua história.Sob tal ótica, as características que singularizariam as "idéias modernistas" no Rioprecisariam ser analisadas à luz das referências da cidade, em sentido mais amplo, e do"pequeno mundo" dos intelectuais, em sentido mais estrito. Neste último caso, são três assugestões que levantamos para teste e maiores explorações.

O Rio de Janeiro convivia, desde fins do século XIX, com duas presençasfundamentais em termos de referências para o mundo intelectual: a Academia Brasileira deLetras e o "grupo boêmio" da rua do Ouvidor. Tais referências, embora possam parecerexcludentes e basicamente conflitantes, não o eram, havendo coabitação e complementaridadeentre elas. A terceira presença data dos anos 20 e relaciona-se com o forte e militantemovimento católico que se organiza na cidade sob os auspícios de dom Sebastião Leme.Dirigido em particular para as elites, e com destaque para os intelectuais, o movimento tinhacomo grande figura na luta pelas conversões Jackson de Figueiredo, ele mesmo boêmio elíder de grande retórica. Academia, boemia e catolicidade - esta última materializada epotencializada posteriormente pela figura do crítico literário Tristão de Ataíde - conjugam-se,não sem tensões, neste mundo intelectual das décadas de 20 e 30.

1 - O "pequeno mundo": tradição e sociabilidade

2 Jacques Julliard, citado por Jean-François Sirinelli em "Les intellectuels", in René Remond, Pour une histoirepolitique, Paris, Ed. du Seuil, 1988, p. 226.3 Os textos mais específicos e importantes a esse respeito são: José Murilo de Carvalho, "Aspectos históricos dopré-modernismo brasileiro", em Sobre o pré-modernismo, Rio de Janeiro, FCRB, 1988, e Maria Alice Rezendede Carvalho, "Letras, sociedade e política: imagens do Rio de Janeiro", BIB, nº 20, Rio de Janeiro, 1985.

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Alguns instrumentos analíticos serão particularmente úteis a este estudo que seenquadra no que hoje se denomina uma história dos intelectuais.4 Antes de tudo, a próprianoção de intelectual, de contornos fluidos e que se transforma com o tempo, indicandodificuldades que se traduzem na impossibilidade de uma definição rígida. A opção, no caso,foi adotar uma concepção mais restrita de intelectual, privilegiando a idéia do produtor debens simbólicos envolvido direta ou indiretamente na arena política, o que caracteriza umnúmero bem mais limitado de indivíduos: un petit monde étroit, na fórmula de Jean PaulSartre.5

Este "pequeno mundo", especializado nos processos de criação e transmissão cultural,está sempre referido a uma tradição intelectual ou como seu herdeiro ou como seu filhopródigo. Ou seja, quer por vinculação, quer por ruptura, os intelectuais estão sempre ligadosao patrimônio de seus antecessores, ao "estoque" de trabalhos que integra o manancialsimbólico que irão sustentar ou transformar com maior ou menor intensidade. A noção detradição intelectual, portanto, está aqui sendo considerada como indispensável a essa reflexão,além de estar sendo postulada como uma base e até um estímulo à criatividade e não comoum obstáculo à mudanças.6 Nesta perspectiva, há uma relação necessária entre trabalhointelectual e tradição, sendo que uma tradição se reforça justamente ao modificar-se, aoampliar a linhagem dos que dela se alimentam por convergência ou oposição. Segundo Shils éa repetição e não a mudança que assinala a decadência de uma tradição intelectual.

Mas, se as tradições têm uma nítida dimensão simbólica, têm igualmente umadimensão organizacional: elas se "institucionalizam" em uma variedade de loci de diferentesnaturezas. Conhecer um certo meio intelectual em determinado momento e espaço implicaobrigatoriamente conhecer esta dimensão organizacional, que não é aleatória aos significadoscontidos em uma dada interpretação da realidade social. A linguagem mais corrente utiliza otermo "rede" para definir os vínculos que reúnem o "pequeno mundo" intelectual. A históriados intelectuais vem consagrando o uso da noção de sociabilidade.

Instrumento analítico e/ou categoria histórica, a sociabilidade será aqui tratadatambém em sentido mais estrito: como um conjunto de formas de conviver com os pares,como um "domínio intermediário" entre a família e a comunidade cívica obrigatória. As redesde sociabilidade são entendidas assim como formando um "grupo permanente ou temporário,qualquer que seja seu grau de institucionalização, no qual se escolha participar."7

4 Jean-François Sirinelli, "Le hasard ou la necessité? une histoire en chantier: 1'histoire des intellectuels",Vingtième Siècle: Rêvue d'Histoire, n° 9, jan-mai, 1986.5 Idem, p. 103.6 A relação dos intelectuais com a tradição, bem como a noção de tradição intelectual estão desenvolvidas nostextos de Eisenstadt, "Intellectuals and tradition" e E. Shils, "Intellectuals, tradition and the tradition ofintellectuals: some preliminary considerations", em Daedalus, v. 101, nº 2, Spring 1972. Sobre as relações entretradição e modernismo há o instigante texto de Silviano Santiago, "A permanência do discurso da tradição noModernismo", em Nas malhas da letra, São Paulo, Cia. das Letras, 1989.7 A noção de sociabilidade aqui considerada toma como referencial o trabalho de Maurice Agulhon, em especial,seu livro Penitents et francs-maçons de l'ancienne Provence, Paris, Fayard, 1968. Segundo este autor asociabilidade teria um duplo sentido. Um mais amplo, envolvendo formas mais gerais de relações sociais, e ummais restrito, referido a formas específicas de convivência com os pares. Para Agulhon a "sociabilidademoderna" data do século XIX e é um fenômeno político ligado às idéias de civilização e de democracia própriasao contexto da época. Sociabilidade é vida social organizada, e as associações as mais diversas são sua formaprivilegiada. Ver Maurice Agulhon, "Depoimento", em Pierre Nora (org), Ensaios de ego-história, Lisboa,Difel, 1989, e Michel Trebitsch, "Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme", em Cahiers L'IHTP, nº20, mai 1992. Esta noção tem larga tradição sociológica, sendo os nomes de Weber e Simmel os maisdestacados.

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Trabalhar com o meio intelectual é procurar mapear um espaço que a noção desociabilidade reveste de um duplo sentido. O primeiro, contido na idéia de rede, remete àsestruturas organizacionais da sociabilidade através de múltiplas e diferentes formas que sealteram com o tempo, mas que têm como ponto nodal o fato de se constituírem nos loci deaprendizagem e trocas intelectuais. Salões, cafés, casas editoras, academias, escolas, revistas,manifestos e mesmo a correspondência de intelectuais são lugares preciosos para a análise domovimento de fermentação e circulação de idéias. Como se formam e sobre que elementos seestruturam são questões que, quando respondidas, muito podem esclarecer a respeito davitalidade de um conjunto de idéias e de sua transformação em idéias hegemônicas no meiointelectual mais amplo e até na sociedade. A postulação de Agulhon de que a sociabilidademoderna é política em seu senso amplo, fica potencializada para o exame do meio intelectuale das relações entre idéias e ideologias políticas.

A segunda acepção dessa noção está como que secretada nas redes que estruturam asrelações entre os intelectuais. Ela é constituída pelo que a literatura chama de "microclimas"que caracterizariam estes "pequenos mundos" em particular. Ou seja, se o espaço dasociabilidade é "geográfico", é também "afetivo", nele se podendo e devendo recortar não sóvínculos de amizade/cumplicidade e de hostilidade/rivalidade, como também a marca de umacerta sensibilidade produzida e cimentada por evento, personalidade ou grupo especiais.

Na terminologia de Sirinelli, trata-se de um "ecossistema" onde amores, ódios, ideais eilusões perdidas se chocam, fazendo parte da organização da vida relacional.

2 - Rio e São Paulo: o que são as vaidades!

Em um antológico Programa legal, Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães, doishumoristas "modernos", elegeram o tema das relações entre Rio e São Paulo. A abertura doprograma não deixava dúvidas quanto ao seu curso. Rio e São Paulo eram absolutamenteiguais: eles se odiavam.

Como humor é coisa séria e como este texto irá também trabalhar com intelectuais quefazem humor e fazem do humor "a prova dos nove", é bom pensar com cuidado na moraldesta fórmula lapidar e em seus antecendentes.

Quanto aos antecedentes, não creio que seja equivocado situá-los nos idos de 1920,sobretudo na verdadeira campanha que uma coluna do Correio Paulistano então movia"contra" a cidade do Rio de Janeiro. Alguns artigos já se ocuparam deste debate, pedagógicopara as reflexões aqui desenvolvidas.8 O ponto que, neste caso, interessa ressaltar é o daexistência de uma rede de relações entre os intelectuais do Rio e de São Paulo que omovimento modernista não interrompe e que pode ser detectada com sucesso, apesar doobscurecimento que os meios intelectuais cariocas sofreram por força do destaquenaturalmente dado a São Paulo.

Como desdobramento deste ponto, segue-se outro que qualifica e ilumina o primeiro.As redes de sociabilidade que se tecem no meio intelectual, como de resto a própriasolidariedade social, estão fundadas em elementos difíceis de circunscrever, mas quecomportam tanto a amizade e a simpatia como a rivalidade e o ciúme. Desta forma, não éexclusivo do meio intelectual o paradoxo de que na base da solidariedade/sociabilidade está oconflito e a competição.

8 Quero ressaltar o artigo de Monica Pimenta Velloso, "A cidade voyeur: o Rio de Janeiro visto pelospaulistas...", Revista do Rio de Janeiro, Niterói, UFF, v. 1, nº 4, 1986.

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Desta forma, a proposta deste texto é pensar as relações entre intelectuais paulistas ecariocas como existentes e pertencentes a um circuito onde, além da amizade, a rivalidadetem papel chave para a organização da vida intelectual e política. Não se trata, portanto, dedescartar ou minimizar tal competição, mas de integrá-la na rede mais ampla das idéiasmodernistas que começam a circular de forma mais acentuada no Brasil desde a segundametade dos anos 10.

Um movimento renovador nas artes iniciou-se portanto, "cronologicamente", antes daprópria constituição do termo `modernista", sendo integrado por intelectuais que, inclusive,poderiam discordar das idéias `modernistas", inicialmente chamadas também de "futuristas".9

Além disso, o modernismo, se teve um ponto-chave de união, posteriormente cindiu-se nosmodernismos de vários grupos de intelectuais, cada vez mais distanciados entre si. A Semanade Arte Moderna, de fevereiro de 1922, tem assim, para além de um sentido simbólico, umefeito normativo, ao reunir homens e textos em torno de uma designação. A Semana funcionacomo um evento fundador para toda uma geração `modernista", cuja lógica não é a da idadetout court (embora esta seja uma variável a ser considerada), mas a do compartilhamento deuma experiência, de um "tempo dos inícios". Para os que trabalham com a noção desociabilidade, um evento fundador, ao marcar uma geração, delimita os contornos de um meiointelectual, mesmo que a evolução posterior de seus integrantes siga caminhos muitodiferenciados. Aliás esta é uma rica estratégia de análise para a história dos intelectuais.

No caso específico que estamos considerando, a Semana passa a se vincular com omovimento modernista, cuja identidade cresce, permitindo também o crescimento das críticase de abertas oposições. Mas o debate renovador começara antes e não exigira a definiçãodesta autodesignação, o que, sob a ótica que queremos destacar, permitiu o envolvimento deintelectuais filiados a tradições "anteriores", isto é, intelectuais que não teriam na Semana o"seu" evento fundador.

No Rio, o melhor exemplo do que estamos sustentando talvez seja o do grupo boêmiode Emílio Menezes que, com Bastos Tigre, editava a revista D. Quixote e reunia em torno desi humoristas e caricaturistas. Emílio Menezes é admirado por Oswald de Andrade, que o levaa São Paulo para realizar as então chamadas "Conferências ilustradas", acompanhado pelocaricaturista Mendes Fradique. O sucesso da dupla é enorme, perante uma assistência quereúne o meio intelectual da cidade, desde os mais jovens, até os mais consagrados, comoMonteiro Lobato.10

Emílio Menezes e Mendes Fradique, como muitos outros, vinculam-se à tradiçãomundana da cidade, que data do século XIX e tem na rua do Ouvidor e depois na avenidaCentral suas artérias de circulação principais. Humoristas, poetas e romancistasdeslocavam-se por confeitarias, livrarias e redações de jornais formando grupos que podiamreunir nomes de grande prestígio - como Olavo Bilac e Coelho Neto - até nomes de jovensprincipiantes e recém-chegados, como o próprio Madeira de Freitas/Mendes Fradique.11

Este mundo boêmio que possuía seu ethos e formas de expressão intelectual é omesmo que abastece a Academia Brasileira de Letras e que igualmente procura formar outrasassociações que rompam com seu monopólio de consagração. Tal é o caso da Sociedade

9 Em 1921, na revista carioca Fon-Fon, Sérgio Buarque de Holanda escreve artigo onde diz que os "futuristas"de São Paulo não se prendem a Marinetti (Fon-Fon - 10.12.1921). Silviano Santiago observa a contradição entreo futurismo europeu e o modernismo brasileiro pela valorização do nacional em política e do primitivismo emarte, claros já em 1924 (op. cit., p. 107).10 Sobre a boemia carioca ver o livro de Isabel Lustosa, Brasil pelo método confuso: humor e boemia emMendes de Fradique, Rio de Janeiro, Bertrand, 1993, cap. I e II.11 Sobre esses loci de sociabilidade ver o Calhiers L'IIITP, n° 20, já citado.

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Brasileira dos Homens de Letras de 1915, de vida efêmera. Com certeza, é com a referênciadeste circuito de sociabilidade intelectual que se organiza o Salão dos Humoristas, onde DiCavalcanti expõe em 1916, antes de se transferir para S. Paulo e conhecer Oswald e Mário deAndrade.12

Mas este Rio tem também os seus salões ligados a outros nomes, dentre os quais cabedestacar Ribeiro Couto e Ronald de Carvalho. E na casa deste último e com as presenças deManuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Osvaldo Orico e Austregésilo de Ataíde, queMário de Andrade fará a leitura de Paulicéia Desvairada em 1921. Como este episódio podeser lido como um paradigma das relações entre intelectuais do Rio e São Paulo da época, valea pena observá-lo de várias óticas.

Hélios, como assinava Menotti del Picchia em sua coluna no Correio Paulistano,descreve nestes termos essa viagem para o Rio:

Os paulistas, renovando as façanhas dos seus maiores, reeditam, no século dagasolina, a epopéia das 'bandeiras'. Desta feita não partem elas para o sertãoínvio e incerto, amarelo de lezírias, erriçado de setas. Os bandeirantes de hojecompram um leito noturno de luxo e seguem, refestelados numa poltrona`poolman', ardorosos e minazes, rumo da Capital Federal. Anteontem partiupara o Rio a primeira `bandeira futurista'. Mário Moraes de Andrade - o papado novo Credo - Oswald de Andrade, o bispo, e Armando Pamplona, oapóstolo, foram arrostar o perigo de todas as lanças (...).(...) A façanha é ousada! (...) a 'bandeira' futurista terá que afrontar osmegatérios, os bizontes, as renas da literatura pátria, toda a faunaantediluviana, que ainda vive,, por um milagroso anacronismo...13

Já Manuel Bandeira, a quem se destinava em especial a leitura de Mário14 - admiradorque era de Carnaval, publicado em 1919-narra de outra forma o encontro e seusdesdobramentos:

Em 1921 veio Mário ao Rio e foi então que fiz conhecimento pessoal com oautor de Paulicéia Desvairada (...). Não sei que impressão teria recebido daPaulicéia, se a houvesse lido em vez de a ouvir da boca do poeta. Mário diziaadmiravelmente os seus poemas (...). (...) senti de pronto a força do poeta e emmuita coisa que escrevi depois reconhecia a marca deixada por ele no meumodo de sentir e exprimir a poesia. Foi, me parece, a última grande influênciaque recebi (...). Grande influência, repito, e de que eu tinha então claraconsciência (...). O encontroem casa de Ronald de Carvalho prolongou-senuma amizade que se fortaleceu através de assídua correspondência. Duranteanos nenhum dos dois não escrevia poema que não submetesse à crítica do

12 A organização dos Salões de Humor ou dos Humoristas mereceria por si só um estudo, pois é sem dúvida umlugar de sociabilidade esclarecedor para as características da produção da intelectualidade carioca nos anos 10 e20.13 Hélios, "Abandeira futurista", Correio Paulistano, 22.10.1922, citado por Mário da Silva Brito, História domodernismo brasileiro; antecendentes da Semana de Arte Moderna, 4ª ed., Rio de Janeiro, Civ. Brasileira,1974, p. 316-7.14 "(...) quando fui ao Rio ler Paulicéia, fui ler pro homem que tinha escrito Os Sapos, Debussy e A Sereia deLenau, palavra. Os outros... basta dizer que não tinha lido ainda Ronald nem Álvaro Moreira". Carta de Máriode Andrade a Manuel Bandeira em 1925, citada por Tania Pacheco, Orfeu extático entre as metrópoles: acorrespondência de Mário de. Andrade a Manuel Bundeira, Rio de Janeiro, UFF, 1993 (mimeo). As referênciasa esta correspondência, bem como à sua importância como lugar de sociabilidade entre cariocas e paulistas,devem-se basicamente a este trabalho.

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outro, e creio que esta dupla corrente de juízos muito serviu à depuração denossos versos.15

A rivalidade intelectual e política, sem dúvida existente, não se exercitava sem o debatee não impedia o desenvolvimento de sólidas "amizades intelectuais"; uma sensibilidadeformada por afetividade e cumplicidade de projetos. O exemplo da correspondência entreMário de Andrade e Manuel Bandeira é ilustrativo da importância deste lugar desociabilidade que prolongava os encontros dos salões, das viagens e dos festivais,constituindo-se como no cotidiano da vivência intelectual, em distinção a seus momentosmais extraordinários.

Contudo, a imagem da "bandeira" paulista, construída por Hélios, tem a sua razão deser. O Rio era o espaço da Academia e dos parnasianos e simbolistas, contra os quais essabandeira investia duramente. Viajar para a Capital Federal era mesmo cutucar a onça da"cultura estabelecida", mesmo porque as vinculações dos intelectuais cariocas às tradições desua cidade eram complexas e, se não excluíam desafios e conflitos, não comportavam a"radicalidade" paulista. Provavelmente, é esse tipo de relação que impede o comparecimentode Manuel Bandeira e Ribeiro Couto à Semana em 1922. O ataque frontal movido aosparnasianos e simbolistas, esta ruptura total que envolvia o evento não era compartilhada poresses dois intelectuais "mais velhos" e com outras marcas, não fosse o próprio Ribeiro Coutoum amante dos simbolistas.

O Rio era, enfim, a cidade para a qual retornava Graça Aranha, no mesmo ano de 1921,com sua Estética da vida. Intelectual consagrado da Academia, tendo sido amigo de Machadode Assis, vem disposto a "liderar os moços" e é por eles recebido com interesse. Tanto que,em 1922, Klaxon - primeira revista modernista - organiza um número para homenageá-lo.Significativamente, tanto Ribeiro Couto quanto Manuel Bandeira, ambos ausentes da Semana,recusam-se a colaborar, o que suscita o esclarecedor comentário de Mário de Andrade:

A propósito do Graça continuo a achar que tu e o Couto não tiveram razão emnão homenagear o homem. Compreendes: por mais que êle se ponha na nossafrente (...) as datas estão aí. E as obras. Agora o que ninguém negará é aimportância dele prá viabilidade do movimento, e o valor pessoal dele. Elógico: mesmo que o Graça não existisse nós continuaríamos modernistas eoutros viriam atrás de nós, mas ele trouxe mais facilidade e maior rapidez pránossa implantação. Hoje nós somos. Se o Graça não existisse, seríamos só pránós e já somos prá quase toda gente.16

Extremamente vaidoso, segundo o juízo de vários e diferentes modernistas, GraçaAranha era uma liderança incontestável ou, sem dúvida, ele assim se julgava e se posicionava,o que se reforçará após seu famoso discurso de rompimento com a ABL em junho de 1924:"Espírito moderno". A proximidade da Academia e a presença de Graça teriam peso para essageração modernista carioca que tecia seus laços com os paulistas com certos cuidados. O anode 1924 é, neste calendário de contatos, um ano muito especial, pois além do alvoroço naAcademia, organizou-se no Rio uma revista modernista cujo papel era dar continuidade àKlaxon, extinta em janeiro. Sérgio Buarque de Holanda fora o representante da Klaxon naCapital Federal, o que é perfeitamente compreensível em face das suas relações com os

15 Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada, op. cit., p. 62-3.16 Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, s. d., 1922-1924.

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paulistas desde os inícios da década.17 Foi, portanto, Sérgio, juntamente com Prudente deMoraes, neto, que se encarregou de conduzir o legado modernista, com a pronta aprovação deMário de Andrade, consultado por carta. Mesmo antes de a revista estar formada, ascolaborações chegavam de São Paulo e importantes apoios eram conseguidos no Rio. Umdeles é justamente o de Graça Aranha que, num encontro boêmio à porta da Casa Carvalho -café conhecido entre os intelectuais -, "resolve" as dúvidas de Prudente e Sérgio. A revista sechamaria Estética, e ele próprio escreveria seu artigo de apresentação. Conforme narraPrudente, não havia como, nem por que recusar tanta solidariedade: "Valeu a pena. Era aomenos um nome de imenso prestígio a nos acobertar a aventura."18

Estética nasce, assim, sem um artigo-programa de seus editores e com a presença"excessiva" de Graça Aranha. Este, na verdade, acaba por se aborrecer com a independênciados moços da revista que chegaram a pensarem publicar artigo seu fora da primeira página. Oque são as vaidades ... Mas, a ausência de 1924 é sanada em 1974, quando da publicação daedição facsimilada da revista. Nela, Pedro Dantas - pseudônimo de Prudente - explica osentido do periódico que teria vida efêmera: apenas três números.

Órgão nacional do movimento modernista, em sua segunda fase, Estéticapropusera-se duas metas principais: apresentar o modernismo antes em seustrabalhos de reconstrução que de demolição, deixando implícitas ou emsegundo plano as contestações dos valores superados; e exercer a crítica domovimento de que participava, partindo do pressuposto de que só o própriomodernismo tinha condições para discutir e criticar suas proposições e suasobras, tão completa era fora dos seus quadros, a incompreensão das suastécnicas e dos seus fins.19

Em setembro de 1924, o Rio, através de Estética, torna-se o centro simbólico dolegado modernista, mas, e este é o ponto a ressaltar, em uma segunda fase: de reconstrução ecrítica interna. A bibliografia que trata do movimento modernista quer sob a ótica literária,quer sociológica, já consagrou a idéia desta sucessão de tempos, e da importância destasegunda fase para os vínculos do movimento artístico com o movimento político deconstrução de uma identidade nacional.20 Não é difícil compreender o lugar estratégico desteano, bastando para tanto algumas indicações sobre a cronologia do movimento. Em 1924,além do discurso de Graça radicalizando o confronto com a Academia, até então existentemas não frontal, Oswald de Andrade publica no Correio da Manhã, também no Rio, seu"Manifesto da Poesia PauBrasil", lançando também o livro Memórias sentimentais de JoãoMiramar. Os "arraiais modernistas" agitam-se, atestando que a "Semana" já estava "bemgorda":

Em São Paulo a Exposição de Lasar Segall é xingada de `Futurista" e causapolêmicas. Menotti del Picchia dá pelo Correio Paulistano o seu "Manifesto

17 Sérgio Buarque de Holanda, em 1924 com 22 anos, já possuía um razoável trânsito entre a intelectualidadepaulista, tendo escrito no Correio Paulistano ainda em 1920.18 Estética: 1924/1925, edição facsimilada; apresentação de Pedro Dantas, Rio de Janeiro, Gernasa, 1974. Sobrea revista ver Maria Marta Martins de Araújo, Uma 'Estética' modernista no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, UFF,1993, (mimeo). No seu artigo Graça Aranha escreveu que os "chefes desta revista, jovens de vinte anos,colocaram-se esteticamente para impávidos modernizar, nacionalizar, universalizar o espírito brasileiro".19 Idem.20 Dois textos podem ser citados em especial: João Luiz Lafetâ, "Estética e ideologia: o modernismo em 1930",Argumento, Rio de Janeiro, Paz e Terra, ano 1, n° 2, 1973, e Eduardo Jardim, "Modernismo revisitado", EstudosHistóricos, São Paulo, Vértice, nº 2, 1988.

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Anti-Pau-Brasil" e publica na Novíssima poemas de Cendrars. A semana santaleva Mário, Oswald, Tarsila e a patota de São Paulo em viagem a Minas: vãomostrar ao francês Cendrars o Brasil primitivo e acabam descobrindo atradição no interior.21

O segundo tempo modernista é, desta perspectiva, não só o momento de"reconstrução" e "debate", como o momento de explicitação maior das distinções entre seusintegrantes, até então movidos pelo combate ao "passado" parnasiano e simbolistamaterializado na Academia e em seu "outro", paradoxalmente complementar, a boemiacarioca. Mas talvez ainda seja possível agregar a este segundo tempo modernista uma outradimensão. Ele seria o momento onde uma disjunção fundamental começa a caracterizar ocurso do movimento. De um lado, porque é a partir deste período que as idéias modernistasestão circulando muito mais e mais facilmente pela sociedade, na medida mesmo em que"seus" intelectuais e "sua" produção começam a ser reconhecidos como uma contribuiçãopolêmica, mas fundamental. Passado o momento inicial da propaganda, agressiva ebarulhenta, tratase de avançar mais lenta e profundamente.

Seguindo indicações de Sirinelli,22 estamos sugerindo a possibilidade de ler nestesegundo tempo modernista a transformação de um "microclima" intelectual em um conjuntode idéias mais influentes no interior da República das Letras, o que aponta também para umaassimilação maior pela sociedade, em função, inclusive, da conjuntura política desta segundametade da década.

Contudo, se as idéias modernistas encontram nesse momento um "meio deaclimatação" favorável, ultrapassando os limites estreitos do "pequeno mundo" intelectual, étambém neste segundo tempo que estas mesmas idéias começam a ser "digeridas" por este"pequeno mundo", donde o seu processo de multi-facetamento e a preocupação e missão dosmodernistas realizarem, eles mesmos, a crítica de sua produção. Ou seja, por um outro lado,as idéias modernistas que se divulgavam sofriam complexo processo de transformaçãointerna, produzindo-se como que um gap entre o ritmo e os conteúdos do debate interno e o"ar do tempo" político-social mais amplo. Em um outro sentido, este gap se traduzia numacerta superposição das idéias modernistas do "primeiro tempo" - que ganham o "grandemundo" - com as do "segundo tempo" - que se gestam e se enfrentam no `pequeno mundo"-,domínio das disputas simbólicas, mais do que das disputas políticas.

Voltando ao ano de 1924 e voltando também aos "cuidados" de Manuel Bandeira eRibeiro Couto em seus contatos tanto com a Semana quanto com Graça Aranha, pode-seentender melhor a passagem da carta de Mário ao amigo "Manu", já em fins desse "ano dagraça":

O que eu faço, e talvez já reparaste nisso, é uma distinção entre modernos emodernistas.(...) Toda reação traz exageros. Eu tive porque fui reacionáriocontra o simbolismo. Hoje não sou. Não sou mais modernista. Mas soumoderno, como você. Hoje eu já posso dizer que sou também um descendentedo simbolismo. O moderno evoluciona. Está certo nisso. O que também não

21 Mário de Camarinha da Silva, "Glossário de homens e coisas de Estética (1924/1925)", Estética, ediçãofacsimilada, op.cit., p. XIX. Lasar Segall radicara-se no Brasil em 1923 e Novíssima, revista dirigida porCassiano Ricardo, organizara-se em dezembro deste mesmo ano. Sobre as relações do modernismo com atradição ver o texto de Silviano Santiago já citado.22 Jean-François Sirinelli, "Les intellectuels", op. cit., p. 228-30.

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impede que os modernistas tenham descoberto suas coisas e que se não fossemeles muito moderno de hoje estaria bom e rijo passadista. Não é isso mesmo?23

3 - Os tempos e lugares heróicos e não tão heróicos do modernismo no Rio.

Em 1942, na célebre Conferência do Itamarati, Mário de Andrade nos fornece umavívida evocação do que era a rede de sociabilidade modernista e de como os intelectuaiscirculavam pelo país e, assim, faziam circular suas idéias. O modernismo era feito dedeslocamentos no espaço, no tempo, na mente. O modernismo era feito por cada um e pelosgrupos que se formavam e articulavam.

Salões, festivais, bailes célebres, semanas passadas em grupo nas fazendasopulentas, semanas-santas pelas cidades velhas de Minas, viagens peloAmazonas, pelo Nordeste, chegadas à Bahia, passeios constantes ao passadopaulista, Sorocaba, Parnavaí, Itu...(...). Doutrinários, na ebridez de mil e umateorias, salvando o Brasil, inventando o mundo, na verdade tudo consumindo, ea nós mesmos, no cultivo amargo, quase delirante do prazer.24

Em 1952, Prudente de Moraes, neto, em entrevista ao Diário Carioca também fez suaevocação do que chama "os tempos heróicos" do modernismo no Rio. O ano de referência é ode 1924 e o amigo é Sérgio Buarque de Holanda: "(...) freqüentávamos reuniões semanais: àsterças-feiras do Ronald de Carvalho; às sextas-feiras, do Guilherme de Almeida, e ainda asreuniões em casa do Renato de Almeida".25 Mas além destes, havia ainda "o maisfreqüentado" de todos os salões, o do casal Álvaro e Eugenia Moreira - e havia também oscafés da rua Laura Araújo -a então "grande artéria intelectual do Rio". E, inclusive, num dosrestaurantes que se tornarão famosos como ponto de encontro de intelectuais - o RestauranteReis - que podemos encontrar alguns outros nomes do que se pode chamar o grupo demodernistas cariocas.

Correndo o risco do excesso de citações, mas cedendo a palavra a quem de direito, éManuel Bandeira que traduz o vínculo profundo entre sensibilidade e sociabilidadeintelectual.

Libertinagem contém os poemas que escrevi de 1924 a 1930 - os anos de maiorforça e calor do movimento modernista. Não admira pois que seja entre osmeus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo. Issotodo mundo pode ver. O que no entanto poucos verão é que muita coisa que aliparece modernismo, não era senão o espírito do grupo alegre de meuscompanheiros diários naquele tempo: Jaime Ovalle, Dante Milano, OsvaldoCosta, Geraldo Barroso do Amaral. Se não tivesse convivido com eles, decertonão teria escrito, apesar de todo o modernismo, versos como os de 'Mangue',Na Boca', 'Macumba de Pai Zusé', 'Noturno da Rua da Lapa' etc.26

É também neste tempo que a revista ilustrada Para Todos cede suas páginas aosmodernistas e que o jornal A Noite, em 1925 dirigido por Viriato Correia, abre espaço em sua 23 Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira em 20.11.1924, citada por Tania Pacheco, op.cit. (grifosmeus).24 Idem.25 Maria Marta Martins Araújo, op. cit.26 Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada, op. cit., p. 76-7.

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primeira página para o "Mês Modernista". Segundo Bandeira, "a coisa tinha sido arranjada"por Oswald, mas quem dirigiu a iniciativa foi Mário, que se encarregou de indicar oscolaboradores: Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Milliet, Prudente de Moraes, neto,Martins de Almeida e ele próprio. Essa participação -"o primeiro dinheiro que me rendeu aliteratura" -se traduziu, por exemplo, na crônica Bife à moda da casa, "nosso prato deresistência no Restaurante Reis. (...) entrava de um tudo: era uma mixórdia que entupia.Assim a minha colaboração (...)"27

Em junho de 1925, Estética não mais existia, e o legado de Klaxon passaria paraMinas e para Drummond com A Revista, que viverá de julho desse ano a janeiro de 1926,quando é substituída pela paulista Terra Roxa e outras terras, até o mês de setembro. Comose vê, as articulações se fazem e as revistas se sucedem. Já em 1927, circulavam Verde deCataguazes e Festa, do Rio, formada por uma "gente séria", no dizer de Mário de Andrade.

A "gente séria" de Festa permite incursão a tema pouco freqüentado, como o é aprópria revista, provavelmente tanto por suas características literárias28 quanto por suascaracterísticas sociológicas. Festa, de longa duração para os padrões das revistas jámencionadas, é publicada até maio de 1935 e está ligada à influência do grupo católico doCentro Dom Vital, primeiro sob a liderança de Jackson de Figueiredo e a seguir de AlceuAmoroso Lima.

O Rio, neste aspecto, diferencia-se de outras cidades pela força adquirida pelomovimento católico, dirigido, desde 1922, especialmente a uma elite intelectual capaz deexercer influência na sociedade e na política do país. Jackson de Figueiredo, iniciado na rodaboêmia que se desfazia em inícios dos anos 20, é o grande agente das conversões. Se Máriode Andrade é o papa e articulador de uma rede de intelectuais modernistas, Jackson deFigueiredo é o grande apóstolo de outra rede que também tece seus laços com oespiritualismo da tradição simbolista. Ambos trabalharão incessantemente através de revistas,contatos pessoais e de correspondência. O melhor exemplo no circuito católico talvez seja odas cartas entre Jackson e Alceu.29

O papel de Mário como elo capital na organização da intelectualidade modernista ésobejamente ressaltado, o que só vem potencializar a visibilidade do movimento em SãoPaulo. Uma outra sugestão deste texto que trabalha com o Rio, é destacar a presença e ainfluência da figura de Alceu Amoroso Lima, tanto antes, quanto depois de sua conversão, em1928, como figura de referência para o curso das idéias `modernistas" e "modernas". Opróprio Mário de Andrade em sua correspondência com Manuel Bandeira - seu equivalenteintelectual mais próximo no Rio - revela o cuidado com que eram lidas as críticas de Tristão eas reações de desdém, de raiva e de admiração e respeito com que eram comentadas.30

As características e a atuação destes dois intelectuais - Bandeira e Alceu em muitopoderiam esclarecer o tipo de percepção que o "modernismo carioca" vem suscitando. Alceu,porque sua centralidade adviria justamente da força de sua crítica ao movimento modernista 27 Idem, p. 77.28 Silviano Santiago, ao referir-se ao grupo Festa - "que teve certa notoriedade na década de 30 no Rio deJaneiro " - faz as seguintes considerações: "O grupo 'Festa' tinha uma proposta de discurso de tradição domodernismo, mas no fundo era uma proposta de falsa tradição porque se tratava de um neo-simbolismo" (op.cit., p. 101).29 Maurício José F. da Cunha, Jackson de Figueiredo: trajetória intelectual, intimidade e geração, Niterói, UFF,1992 (dissertação de mestrado em história).30 Sobre a importância de Tristão de Ataíde nessa correspondência ver Tania Pacheco, op. cit. Vale a citação:"Você, creio que já pôs reparo que tenho uma bruta duma ternura pelo Tristão. Tenho mesmo. Acho ele bom deverdade. Às vezes é pau porém é um sujeito sério como o diabo, muito bem intencionado e esse me parece quetem mesmo cultura e não é casquinha só" (Carta de 27.11.1927).

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ocupado, segundo ele, principalmente em destruir valores estéticos -e de seus vínculos com aproposta conservadora mas nem por isso menos transformadora - da Igreja Católica. Bandeira,porque, de acordo com Tristão, não é homem de movimento, mas sim de personalidade.

A "gente séria" de Festa, Alceu, Bandeira, e muitos dos intelectuais dos "temposheróicos", atravessa os conturbados anos iniciais da década que se inaugura com umarevolução, a de 1930. O clima político de grande instabilidade estimula o debate cultural esobretudo as opções ideológicas de inúmeros intelectuais que vão aderir mais ou menosexplicitamente ao integralismo de Plínio Salgado; às propostas da Aliança NacionalLibertadora e do Partido Comunista; às vertentes autoritárias, católicas ou não; à defesa de umideário liberal reformado; e a uma variedade de posicionamentos dispostos em um complexocampo de possibilidades teóricas e práticas.

O Rio de Janeiro torna-se, durante os anos em que Vargas controla o poder, umacidade de referência inequívoca para todo o país. O modernismo vive então tempos não tãoheróicos, até mesmo porque toda a vida intelectual brasileira sofrerá o impacto da criação doMinistério da Educação e Cultura e, em especial, da gestão do ministro Gustavo Capanema(1934-1945). Este ministério ocupa um lugar muito especial enquanto agente de articulaçãode iniciativas que envolvem intelectuais das mais diversas tendências estéticas e políticas.

Tendo ganho a sede de um ministério, o Rio não perdeu a sede da Academia e tambémnão deixou de abrigar uma série de outros lugares de sociabilidade intelectual. Se desde osanos 10 há registros de tentativas de organização de sociedades alternativas à Academia, osanos 30 nos oferecem vários exemplos, atestando a importância destes experimentos para acirculação dos intelectuais da cidade e do país. Um pequeno trecho do livro de "boasmemórias" de Álvaro Moreira, rememorando espirituosamente o circuito intelectual cariocapor volta de 1934, é bem um exemplo do que se quer caracterizar.

Há a Academia propriamente dita. Há a Academia Carioca. Há a Federação dasAcademias de Letras. Há a Fundação Graça Aranha. Há a Sociedade FelipeD'Oliveira. Há o Pen Club. Há também, o consultório de Jorge de Lima. CadaAcademia tem quarenta membros, incompletos em geral, porque a morteimplica com essa dezena. A Fundação retém oito companheiros, menosPeregrino Junior, que não pode mais. A Sociedade, entre ausentes e presentes,conserva quinze. O Pen espera que os brasileiros cumpram com o seu dever. Oconsultório abre a porta a todas as compreensões. (...) Nas Academias se tomachá. Na Fundação, laranjada. Na Sociedade, café. No Pen, o que quiser. Noconsultório, injeções. As Academias, a Fundação, a Sociedade, o Pendistribuem prêmios em dinheiro. O consultório, não. Mas dá direito a umtelescópio. Pelo telescópio, de bolso vazio, os escritores e os artistas vêem aFavela, a Guanabara, Niterói e, com alguma teimosia, o céu ...31

A Sociedade Felipe d'Oliveira, mencionada e integrada por Álvaro Moreira,organizou-se em agosto de 1933 e, em maio de 1934, lançou seu boletim/revista - LanternaVerde - um dos mais duradouros periódicos para os padrões da época. Será editado até julhode 1944, portanto cerca de dez anos, embora sofrendo alguns percalços.32 A trajetória desta

31 Álvaro Moreira, As amargas, não... (lembranças), Rio de Janeiro, Ed. Lux, 1955, citado por Lia Calabre deAzevedo, A Sociedade, Felipe d'Oliveira e a Lanterna Verde, Rio de Janeiro, UFF, 1993, (mimeo).32 Sobre este periódico ver, além do texto acima citado, o trabalho de Roselis Oliveira de Napoli, LanternaVerde e o modernismo, São Paulo, IEB/USP, 1970.

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Sociedade é extremamente pedagógica, quando se assume a perspectiva da sociabilidadeintelectual.

Em primeiro lugar, o momento de criação e o patrono da Sociedade. Felipe d'Oliveira,ou melhor, Felipe Daudt d'Oliveira, era um jovem poeta simbolista, grande amigo de ÁlvaroMoreira e Ronald de Carvalho, considerado um "modernista" após a publicação do livrointitulado Lanterna Verde. Gaúcho de nascimento, carioca por vivência intelectual e paulistapor vinculação política, Felipe d'Oliveira, por seu envolvimento com a Constitucionalista, temque se exilar na Europa, onde morre prematura e tragicamente. Um perfil de herói político eintelectual e uma família rica, cuja grande figura era o empresário João Daudt d'Oliveira.Morto Felipe e com o país em clima de instalação da Constituinte, forma-se a Sociedade,cujos estatutos não deixam dúvidas quanto ao papel da família Daudt e quanto à ambição doprojeto de mecenato intelectua1.33

Composta por quinze membros vitalícios, nomeados no estatuto, dela farão partemuitos dos mais conhecidos intelectuais cariocas. Além de Álvaro Moreira e Ronald deCarvalho, já mencionados, Augusto F. Schmidt, Ribeiro Couto, Renato de Almeida, RodrigoOtávio Filho, Otávio Tarquinio de Souza e um pouco depois destes, Alceu Amoroso Lima,Manuel Bandeira e Afonso Arinos de Melo Franco. Além dos literatos, os contatos políticosde José de Freitas Vale, João Neves da Fontoura e Assis Chateaubriand. Uma composiçãopara não deixar dúvidas que a Sociedade tinha um projeto nacional - muita divulgação esócios correspondentes em várias capitais -, conforme convinha a um grupo que se queriareferência da intelectualidade brasileira e não apenas da carioca.

Formada como as academias, a Sociedade preenchia suas vagas por eleições, salvo ado sócio João Daudt d'Oliveira, substituído por seu filho ou descendente. Esta ressalva,prevista em artigo do estatuto, deixa claro o papel da família que é, sem dúvida, afinanciadora da Sociedade, uma vez que não há qualquer menção a fontes de recursos e nemmesmo anúncios publicitários na Lanterna Verde.

Não tendo os problemas financeiros tão comuns às iniciativas deste teor, a SociedadeFelipe d'Oliveira, além da publicação de Lanterna Verde, ocupa-se de uma série de outrasatividades, todas destinadas ao incentivo da produção intelectual, entendida como artística ecientífica. Desta forma, previa-se a edição de autores brasileiros e da produção do patrono, oque a casa editora Schmidt em boa medida faria. Ofereciam-se prêmios e viagens deaperfeiçoamento; organizavam-se conferências, que eram publicadas na revista,34 e,sobretudo, concedia-se um prêmio anual de literatura que se torna conhecido por seu valorfinanceiro e simbólico. Para se ter uma idéia mais precisa do que tal prêmio significava, odepoimento de Manuel Bandeira é primoroso.

O ano de 1937 me trouxe o primeiro provento material que me valeu a poesia:os 5.000 cruzeiros do prêmio da Sociedade Felipe d'Oliveira, da qual vim afazer parte em 1942. Parece incrível, mas é verdade: aos 51 anos, nunca eu viraaté aquela data tanto dinheiro em minha mão. Por isso, maior alvoroço me

33 Os comentários que se seguem têm como referência básica o texto de Lia Azevedo.Silviano Santiago assim se refere a Lanterna Verde: "Ao contrário da maioria das revistas de direita queconhecemos, a citada Lanterna Verde abriga generosamente em suas páginas autores de esquerda, ainda quepoucos." ("Fechado para balanço (sessenta anos de modernismo)", em Nas malhas da letra, op. cit., p. 78).Neste texto não se procura uma caracterização política dos grupos e periódicos, mas é interessante pensar nosvínculos dessa revista com a Revolução Constitucionalista de 1932, através do culto a seu patrono semprelembrado como mártir.34 Realizam conferências para a Sociedade Mário de Andrade, Gilberto Freire, Alceu Amoroso Lima, JoãoNeves da Fontoura, Afonso Arinos de Melo Franco e Francisco Campos, por exemplo.

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causaram aqueles cinco contos do que os cinqüenta que me vieram depois, em1946, como prêmio atribuído pelo Instituto Brasileiro de Educação e Cultura.35

Ao lado de Bandeira foram escolhidos Gilberto Freire (1934), Vinícius de Moraes(1935), Lúcia Miguel Pereira (1936), Raquel de Queiroz (1939), José Lins do Rego (1941),Graciliano Ramos (1942) e Lúcio Cardoso (1943). Um elenco que excluía os sócios porprincípio e que causava, anualmente, um grande número de comentários na imprensa, emespecial nas colunas e suplementos literários. Um deles se tornaria famoso, por integrar ojornal oficioso do Estado Novo - A Manhã dirigido por Cassiano Ricardo. Autores e Livros,organizado por Múcio Leão a partir de 1941 e perdurando até setembro de 1945, tem comoobjetivo principal a produção e divulgação de uma verdadeira galeria de intelectuais dahistória cultural do país.

Já se perdia de vista, então, os tempos de luta do modernismo e a conferência deMário de Andrade, em 1942, no Itamarati, é bem um marco saudoso dessa distância. AAcademia, símbolo do passadismo, não era mais tão passadista, nem seus sucedâneos tãoalternativos. Compreende-se bem as razões de tantas transformações e por isso é possívelencerrar esta reflexão com a palavra de Manuel Bandeira:

Em 1940, aberta uma vaga na Academia de Letras (...), fui visitado por trêsamigos acadêmicos - Ribeiro Couto, Múcio Leão e Cassiano Ricardo, quevinham me convidar a que me apresentasse candidato. (...) Só que pedi doisdias para tomar uma decisão. De fato, não havia em mim preconceitoantiacadêmico. Sempre me pareceu que os que atacam a Academia exageramenormemente o que possa haver de força conservadora numa Academia. (...)Que poderia eu ter contra ela, (...) se a vira já acolher os três patrocinadores daminha candidatura, dois dos quais haviam assumido posição saliente nomovimento modernista? E não foram só esses: na Academia já estavam, antesdeles, Alceu Amoroso Lima e Guilherme de Almeida, este um dos promotoresda famigerada Semana de Arte Moderna, aquele um dos carregadoresentusiastas de Graça Aranha na tarde de 19 de junho de 1924. Que poderia euter contra a Academia que em 38 premiara Cecília Meireles pelo seu livroViagem, tão fora dos cânones acadêmicos(...). Os reacionários da Academiasão uns velhinhos amáveis que não fazem mal a ninguém: querem é sossego.Como eu.36

Por tudo que viemos sugerindo neste texto, talvez seja possível encaminhar a idéia deque o Rio de Janeiro foi mais moderno que modernista, sem deixar, contudo, de abrigardebates e toda uma diversificada produção artística que alterou e revigorou sua própriatradição intelectual. Neste sentido, destaca-se a figura de Manuel Bandeira e destacam-setambém os intelectuais católicos que lutaram "contra" e "dentro" deste movimento estética epoliticamente renovador. E evidente que qualquer conclusão mais refinada sobre o temanecessita de um trabalho em profundidade com os vários periódicos e sociedades do período.Tal trabalho, longo e difícil, ainda está por ser feito, e só ele nos permitirá avançar comsegurança no mapeamento das idéias que permeiam uma tão delicada rede de sociabilidade.

35 Manuel Bandeira, Itinerário de Parságada, op. cit., p. 84-5.36 Idem, p. 86-7.

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(Recebido para publicação em maio de 1993)

Angela de Castro Gomes é pesquisadora do CPDOC/FGV e professora de história da UFF.