Artigo Judicialização - Ran Hirschl

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O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo* Ran Hirschl** 1. Introdução Nas últimas décadas, o mundo testemunhou uma profunda transferência de poder de instituições representativas para tribunais, tanto domésticos, quanto su- pranacionais. O conceito de supremacia constitucional — que há muito tempo é um pilar central da ordem política norte-americana 1 — é hoje compartilhado, de uma maneira ou de outra, por mais de 100 países ao redor do mundo. Diversos regimes pós-autoritários no antigo Bloco Oriental, no sul da Europa, na América Latina e na Ásia rapidamente adotaram princípios do constitucionalismo moder- no durante suas transições para a democracia. Até mesmo países como o Canadá, Israel, Reino Unido e Nova Zelândia — há pouco tempo descritos como os últi- mos bastiões da soberania parlamentar no estilo Westminster 2 — gradualmente embarcaram na onda global rumo à constitucionalização. A imprensa cobre quase * Publicado originalmente como “The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide”, Fordham Law Review, v. 75, n. 2, 2006. Traduzido por Diego Werneck Arguelhes e Pedro Jimenez Cantisano. ** Professor de ciência política e direito, Universidade de Toronto. 1 N. do T. Traduzimos a expressão “American” por “norte-americana(o)”. 2 N. do T. No original, “Westminster-style parliamentary democracy”. O autor está se referindo a um mo- delo de democracia parlamentarista majoritária, na qual o governo é completamente ocupado pelo partido vencedor das eleições. O exemplo paradigmático é o Reino Unido, cujo Parlamento se reúne no Palácio de Westminster.

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Judicialização - Ran Hirschl

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  • O novo constitucionalismo e a judicializao da poltica pura no mundo*

    Ran Hirschl**

    1. Introduo

    Nas ltimas dcadas, o mundo testemunhou uma profunda transferncia de poder de instituies representativas para tribunais, tanto domsticos, quanto su-pranacionais. O conceito de supremacia constitucional que h muito tempo um pilar central da ordem poltica norte-americana1 hoje compartilhado, de uma maneira ou de outra, por mais de 100 pases ao redor do mundo. Diversos regimes ps-autoritrios no antigo Bloco Oriental, no sul da Europa, na Amrica Latina e na sia rapidamente adotaram princpios do constitucionalismo moder-no durante suas transies para a democracia. At mesmo pases como o Canad, Israel, Reino Unido e Nova Zelndia h pouco tempo descritos como os lti-mos basties da soberania parlamentar no estilo Westminster2 gradualmente embarcaram na onda global rumo constitucionalizao. A imprensa cobre quase

    * Publicado originalmente como The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide, Fordham Law Review, v. 75, n. 2, 2006. Traduzido por Diego Werneck Arguelhes e Pedro Jimenez Cantisano.** Professor de cincia poltica e direito, Universidade de Toronto.1 N. do T. Traduzimos a expresso American por norte-americana(o).2 N. do T. No original, Westminster-style parliamentary democracy. O autor est se referindo a um mo-delo de democracia parlamentarista majoritria, na qual o governo completamente ocupado pelo partido vencedor das eleies. O exemplo paradigmtico o Reino Unido, cujo Parlamento se rene no Palcio de Westminster.

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    diariamente questes como processos de constitucionalizao na Unio Europeia (UE) e no Iraque, julgamentos de ditadores depostos perante tribunais internacio-nais e a tomada de importantes decises constitucionais nos Estados Unidos, na Alemanha e na frica do Sul.

    Uma das principais manifestaes dessa tendncia tem sido a judicializao da poltica o recurso cada vez maior a tribunais e a meios judiciais para o en-frentamento de importantes dilemas morais, questes de poltica pblica e con-trovrsias polticas. Com recm-adquiridos mecanismos de controle de constitu-cionalidade, tribunais superiores ao redor do mundo tm sido frequentemente chamados a resolver uma srie de problemas da extenso das liberdades de culto religioso e de expresso, dos direitos igualdade e privacidade e da liber-dade de reproduo, a polticas pblicas relacionadas justia criminal, pro-priedade, ao comrcio, educao, imigrao, ao trabalho e proteo ambien-tal. Manchetes sensacionalistas sobre decises judiciais importantes a respeito de temas controversos casamento entre pessoas do mesmo sexo, limites para o financiamento de campanhas e aes afirmativas, para dar apenas alguns exem-plos tornaram-se fenmeno comum. Isso est evidente nos Estados Unidos, onde o legado do controle de constitucionalidade acabou de atingir seu bicente-nrio. Aqui, os tribunais esto h muito tempo exercendo um papel significativo

    na elaborao de polticas pblicas. Mas est igualmente evidente em democra-cias constitucionais mais jovens, que s estabeleceram mecanismos de controle de constitucionalidade nas ltimas dcadas. Enquanto isso, tribunais internacionais se tornaram o locus central de coordenao de polticas pblicas em nveis global e regional, de assuntos comerciais e monetrios a condies de trabalho e regula-mentaes ambientais.

    Entretanto, a crescente importncia poltica dos tribunais tem no apenas se tornado mais abrangente, mas tambm se expandido em escopo, transfor-mando-se assim em um fenmeno diverso, multifacetado, que vai muito alm do conceito que se tornou corrente de elaborao de polticas pblicas por juzes, por meio de decises sobre direitos e da remarcao judicial das fronteiras entre rgos do Estado. A judicializao da poltica agora inclui a transferncia massiva, para os tribunais, de algumas das mais centrais e pol-micas controvrsias polticas em que uma democracia pode se envolver. Lem-bremo-nos de episdios como o resultado das eleies presidenciais de 2000 nos Estados Unidos, a nova ordem constitucional na frica do Sul, o lugar da Alemanha na Unio Europeia, a guerra na Chechnia, a poltica econmica na Argentina, o regime de bem-estar social na Hungria, o golpe de Estado militar liderado por Pervez Musharraf no Paquisto, dilemas de justia transicional na Amrica Latina ps-autoritria e na Europa ps-comunista, a natureza secular

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    do sistema poltico turco, a definio fundamental de Israel como um Estado judeu e democrtico, ou o futuro poltico de Quebec e da federao cana-dense: todos esses e muitos outros problemas polticos altamente controversos foram articulados como problemas constitucionais. E isso tem sido acompa-nhado pela suposio de que os tribunais e no os polticos, nem a prpria populao seriam os fruns apropriados para a tomada dessas cruciais de-cises. Para resumir, e parafraseando a observao de Alexis de Tocqueville (1961) sobre os Estados Unidos, no h no mundo do novo constitucionalismo quase nenhum dilema de poltica pblica ou desacordo poltico que no se torne, cedo ou tarde, um problema judicial.

    Apesar da crescente prevalncia desse fenmeno, o discurso acadmico so-bre a judicializao da poltica ao redor do mundo permanece surpreendente-mente superficial. Com poucas e notveis excees,3 a judicializao da poltica habitualmente tratada de maneira muito pouco refinada, como um resultado na-tural da prevalncia do discurso dos direitos fundamentais. s vezes, a judicia-lizao da poltica confundida com uma verso genrica do ativismo judicial, prestando-se pouca ou nenhuma ateno diferena entre atribuir aos tribunais a definio do escopo do direito a um julgamento justo, por exemplo, e confiar

    a eles a soluo de delicadas questes de identidade coletiva que se encontram no corao dos processos de construo da nao. Neste artigo, procuro mapear os contornos do segundo aspecto da judicializao, que poderamos chamar de judicializao da megapoltica ou da poltica pura. Comeo distinguindo trs categorias abrangentes de judicializao: a disseminao de discursos, jarges, regras e procedimentos jurdicos na esfera poltica e nos fruns e processos de elaborao de polticas pblicas; a judicializao da elaborao de polticas p-blicas pelas formas comuns de controle judicial de constitucionalidade de leis e atos da administrao pblica; e a judicializao da poltica pura a trans-ferncia, para os tribunais, de assuntos cuja natureza e significado so claramen-te polticos, incluindo importantes debates sobre a legitimidade de regimes e identidades coletivas que definem (e muitas vezes dividem) comunidades intei-ras. Em seguida, procuro ilustrar as caractersticas que distinguem o ltimo tipo de judicializao com exemplos da jurisprudncia poltica de cortes e tribunais ao redor do mundo. Na ltima parte, procuro mostrar a importncia do apoio da esfera poltica como condio necessria para a judicializao da poltica pura. Estes exemplos sugerem que o direito constitucional , de fato, uma forma de poltica por outros meios.

    3 Ver Tate e Vallinder (1995); Hirschl (2004); Sieder et al. (2005); Shapiro e Sweet (2002); Ferejohn, (2002); Hirschl (2002); Pildes (2004).

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    2. As trs faces da poltica judicializada

    Judicializao da poltica um termo guarda-chuva, comumente usado para abranger o que, na verdade, so trs processos inter-relacionados. De forma mais abstrata, a judicializao da poltica se refere disseminao de discursos, jarges, regras e processos jurdicos na esfera poltica e nos fruns e processos de elaborao de polticas pblicas. A predominncia do discurso jurdico e a popula-rizao do jargo jurdico so evidentes em praticamente todos os aspectos da vida moderna. Talvez a melhor ilustrao dessa predominncia seja a subordinao, em comunidades modernas organizadas como estados de direito, de quase todo frum decisrio a normas e procedimentos quase judiciais. Temas que antes eram negociados de maneira informal ou no judicial, agora so dominados por regras e procedimentos jurdicos.4

    Esse tipo de judicializao inseparvel do fenmeno da captura das rela-es sociais e da cultura popular e da expropriao dos conflitos sociais por parte do direito. Origina-se da crescente complexidade e contingncia das sociedades modernas,5 ou da criao e expanso do estado de bem-estar social moderno e suas numerosas agncias reguladoras. Algumas anlises do rpido crescimento da judicializao no mbito judicial supranacional a descrevem como uma respos-ta institucional inevitvel aos complexos problemas de coordenao gerados pela necessidade sistmica, em uma era de mercados econmicos convergentes, de se adotar normas jurdicas e regulamentaes administrativas padronizadas entre os estados-membros desses mercados.6

    Outros aspectos deste tipo de juridificao da vida moderna foram iden-tificados pelos primeiros socilogos do direito por exemplo, a tese de Henry Maine sobre a passagem do status ao contrato,7 ou a nfase dada por Max Weber ao surgimento de um sistema jurdico formal, claro e racional, nas sociedades oci-dentais.8 Os advogados so os mais importantes agentes desse tipo de judiciali-zao orgnica. De acordo com Emile Durkheim, por exemplo, o direito reflete a diviso do trabalho e a solidariedade interpessoal em evoluo em uma dada so-ciedade.9 Em sociedades primitivas, argumenta Durkheim, a diviso do trabalho entre as pessoas era menos desenvolvida e os vnculos sociais eram mais fortes. Assim, o direito formal no era necessrio. Em sociedades mais desenvolvidas, o grau de especializao maior e h uma diviso do trabalho mais clara entre as

    4 Ver Sieder (2005).5 Ver Luhmann (1985). 6 Ver Sweet e Brunell (1998) e Sweet (2000).7 Maine (2001).8 Ver Weber (1968). 9 Ver Durkheim (1964).

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    pessoas, acompanhada de menor coeso social. O contrato, em vez do status ou do escambo, torna-se a principal forma de troca entre as pessoas. O aparato esta-tal deve agora assegurar o cumprimento dos contratos e estabelecer as condies externas para seu uso. Uma classe especial de pessoas os advogados surge para negociar e litigar essas relaes contratuais mais complexas e cada vez mais presentes na sociedade moderna.

    O segundo, e mais concreto, aspecto da judicializao da poltica a expan-so da competncia de tribunais e juzes quanto definio de polticas pbli-cas, principalmente por meio de decises envolvendo direitos constitucionais e da remarcao judicial dos limites entre rgos do estado (separao de poderes, federalismo). A cada semana, alguma corte suprema em algum lugar do mundo anuncia uma deciso importante sobre o escopo da proteo a direitos constitu-cionais ou sobre os limites dos poderes Legislativo e Executivo. Os casos mais comuns envolvem liberdades civis clssicas. So primordialmente sobre garantias de devido processo legal na esfera criminal ou sobre aspectos variados dos direitos privacidade e igualdade formal todos eles no sentido de expandir e reforar as fronteiras da proteo constitucional esfera individual, geralmente tida como ameaada pela longa e invasiva mo da regulao estatal.10

    Talvez a face mais evidente da judicializao da elaborao de polticas p-blicas por meio de decises sobre direitos fundamentais possa ser encontrada no mbito da justia processual.11 Em muitos pases alinhados ao novo constituciona-lismo, casos de devido processo penal representam 2/3 do universo total de casos envolvendo direitos nos tribunais constitucionais.12 A prevalncia do direito ao devido processo legal tambm evidente nos casos envolvendo a adoo de pro-cedimentos legais mais flexibilizados no combate ao terrorismo. Em 1999, a Su-prema Corte de Israel baniu o uso da tortura em interrogatrios conduzidos pelo Servio Geral de Segurana Israelense.13 Em 2002, o Conselho Constitucional do Peru anulou o julgamento secreto, por um tribunal militar, de lderes do movimen-to rebelde maosta Sendero Luminoso.14 A Cmara dos Lordes declarou inconsti-tucional a legislao britnica sobre o estado de emergncia ps-11 de setembro.15

    10 Hirschl, 2004:103-118.11 N. do T. No original, procedural justice. Hirschl refere-se aqui s decises judiciais que examinam a correo de procedimentos estatais nos quais o cidado parte, em qualquer rea do direito. No entan-to, optou-se por evitar o termo procedimental que, como qualificativo de justia, poderia causar confuso com a ideia de concepes procedimentais de justia.12 Hirschl, 2004:103-118.13 Ver HCJ 5100/94. Pub. comm. against torture. Isr. v. State of Isr, IsrSC, v. 53, n. 4, p. 817, 836, 838, 340, 1999.14 Retrial for Peru shining path rebel, BBC News, 21 nov. 2002. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2006.15 Ver A and others v. Secy of State for the Home Dept, X and another v. Secy of State for the Home Dept, (2004) UKHL 56, (2005) 2 W.L.R. 87.

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    Na recente deciso Hamdan v. Rumsfeld, a Suprema Corte dos EUA suprimiu os tribunais militares do governo Bush na Baa de Guantnamo.16

    Enquanto o primeiro tipo de judicializao pode ser descrito como judiciali-zao das relaes sociais, a judicializao do segundo tipo enfoca principalmen-te a justia processual e a equidade formal em processos decisrios. Na medida em que muitas vezes iniciada por pessoas comuns invocando direitos para se opor a polticas, decises e prticas do Estado, pode tambm ser descrita como judicia-lizao vinda de baixo. Como sugerido por Charles Epp, o impacto da adoo de catlogos de direitos fundamentais pode ser limitado pela impossibilidade de os indivduos invocarem efetivamente esses direitos por meio de litigncia estratgi-ca.17, 18. Assim, listas de direitos fundamentais importam na medida em que haja uma estrutura de suporte mobilizao jurdica um nexo de organizaes da sociedade civil, advogados, faculdades de direito, agncias governamentais exe-cutivas e servios de assistncia jurdica que promovam esses direitos. Em outras palavras, se, por um lado, a positivao no texto constitucional condio neces-sria para a proteo efetiva de direitos e liberdades; por outro, certamente no condio suficiente. A capacidade desses dispositivos de semear mudanas sociais em uma comunidade depende da existncia de uma estrutura de suporte mobi-lizao jurdica da sociedade civil e, de forma mais geral, de condies sociocultu-rais adequadas a essa judicializao vinda de baixo.

    A mobilizao jurdica vinda de baixo favorecida pela frequente crena de que direitos judicialmente protegidos operam como foras autoimplementveis de mudana social isto , foras que no dependem das restries a que todo poder poltico est sujeito. Essa crena tem hoje um status quase sagrado no debate pblico. O mito dos direitos, como denominado por Stuart Scheingold, procura chamar a nossa ateno para o contraste entre o carter aberto dos procedimentos judiciais e as barganhas secretas dos grupos de interesse na esfera poltica, refor-ando assim a imagem de integridade e incorruptibilidade do processo judicial.19 O objetivo, claro, tornar mais atrante o uso de solues legais e constitucionais para problemas polticos.20 Por outro lado, isso pode levar expanso de um discurso de direitos populista e ao correspondente empobrecimento do discurso poltico.21

    16 Hamdan v. Rumsfeld, 126 S. Ct. 2749 (2006).17 Ver Epp (1988). 18 N. do T. No original, strategic litigation. O autor se refere aqui ao recurso sistemtico e planejado aos tribunais, por parte de movimentos sociais e organizaes da sociedade civil, no sentido de obter pela via judicial a proteo de determinados interesses ou a promoo de certas agendas polticas.19 Ver Scheingold (2004).20 Idem, p. 34.21 Ver Glendon (1991).

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    Outro aspecto da segunda face da judicializao a promoo de justia pro-cessual por meio do controle judicial de atos administrativos. A proliferao de agncias administrativas no moderno estado de bem-estar social expandiu pro-fundamente a extenso do poder dos juzes de rever atos da administrao p-blica. Na maioria das vezes, esse envolvimento judicial na elaborao de polticas pblicas fica restrito a aspectos procedimentais, ou seja, concentra-se no processo e no na substncia. Partindo de princpios bsicos de direito contratual, consti-tucional e, principalmente, administrativo, os tribunais monitoram e promovem a aplicao de garantias do devido processo legal, igualdade de oportunidades, transparncia, accountability e razoabilidade na elaborao de polticas pblicas. Portanto, no surpreende que esse tipo de judicializao domine o prprio sistema judicial, do processo civil ao criminal e de que seja particularmente visvel em reas do direito com um grande componente processual, como imigrao, direito tributrio e contratos administrativos. Mas esse tipo de judicializao tambm claramente visvel em incontveis reas, de planejamento urbano e sade pblica a relaes industriais e proteo ao consumidor. Os tribunais tambm tm moni-torado aspectos importantes da privatizao de patrimnio estatal no mundo ps-comunista. Em sntese, seja por meio da jurisprudncia centrada em direitos fun-damentais, seja por meio da reviso judicial de atos administrativos, na maioria das democracias constitucionais de hoje a judicializao da elaborao de polticas pblicas se aproxima de um verdadeiro governo com juzes.22, 23

    Nas ltimas dcadas, a judicializao da elaborao de polticas pblicas tam-bm se expandiu internacionalmente, com o estabelecimento de numerosas cor-tes e tribunais, painis e comisses internacionais quase judiciais, que lidam com direitos humanos, governana transnacional, comrcio e assuntos monetrios.24 Talvez em nenhum lugar esse processo seja mais evidente do que na Europa.25 Um processo similar aconteceu no mbito das disputas de comrcio internacional.26 Decises do mecanismo de soluo de controvrsias da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) tiveram extensas implicaes para polticas de troca e comrcio no mundo. Esse tambm o caso dos Estados Unidos, onde defender o cumpri-mento de decises desfavorveis de tribunais estrangeiros sempre uma rdua tarefa. O Tratado de Livre Comrcio da Amrica do Norte (Nafta), de 1994, tam-bm estabelece processos quase judiciais de soluo de controvrsias envolvendo

    22 Ver Guarnieri e Pederzoli (2002). 23 N. do T. No original, government with judges. O uso da preposio with aqui intencionalmente am-bguo, podendo significar tanto governo com juzes (isto , ao lado, junto com, convivendo com), quanto governo por meio de juzes (tendo os juzes como instrumento de governana).24 Ver Goldstein et al. (2001); Romano (1999) e Slaughter (2000). 25 Ver Alter (2001); Sweet (2000) e Weiler (1999). 26 Goldstein et al., 2001.

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    investimentos estrangeiros, servios financeiros e instncias antidumping e com-pensao. Arranjos similares foram estabelecidos pelo Mercado Comum do Sul (Mercosul), na Amrica do Sul, e pela Associao das Naes do Sudeste Asitico (Asean) na regio da sia-Pacfico. Em resumo, nas ltimas dcadas, estabeleceu-se rapidamente uma transferncia, em larga escala, de prerrogativas centrais de elaborao de polticas de arenas decisrias majoritrias em nvel nacional para entidades e tribunais transnacionais relativamente insulados.

    Uma terceira classe emergente de judicializao da poltica o emprego de tribunais e juzes para lidar com o que podemos chamar de megapoltica: con-trovrsias polticas centrais que definem (e muitas vezes dividem) comunidades inteiras. A judicializao da megapoltica inclui algumas subcategorias: judiciali-zao de processos eleitorais; superviso judicial de prerrogativas do Poder Exe-cutivo em reas de planejamento macroeconmico ou segurana nacional (o fim daquilo que conhecido na teoria constitucional como a doutrina da questo poltica;27 dilemas fundamentais de justia restautativa;28 corroborao judicial de transformaes de regime poltico; e, acima de tudo, a judicializao da formao de identidades coletivas, processos de construo de naes e disputas a respeito da prpria definio ou raison dtre da comunidade, talvez o tipo mais pro-blemtico de judicializao do ponto de vista da teoria constitucional. Essas reas emergentes de poltica judicializada expandem as fronteiras do envolvimento de tribunais superiores nacionais na esfera poltica para alm do mbito dos direitos constitucionais ou do federalismo, levando a judicializao da poltica a um ponto que excede de longe qualquer limite previamente estabelecido. Na maioria das vezes, essa tendncia apoiada, tcita ou explicitamente, por poderosos agentes polticos. O resultado tem sido a transformao de cortes supremas no mundo inteiro em parte central dos aparatos nacionais para a elaborao de polticas p-

    27 N. do T. No original, political question doctrine. A referncia aqui a um conjunto de standards ado-tados por tribunais em certos perodos da histria constitucional dos EUA para demarcar os limites de sua competncia para apreciar questes que, por sua natureza poltica, por expressa determinao legal/constitucional ou por questes prudenciais, devem ser resolvidas exclusivamente pelos poderes eleitos. Em um sentido mais geral, essa expresso muitas vezes utilizada em textos de lngua inglesa para designar qualquer posicionamento jurisprudencial adotado por tribunais para isolar certas ques-tes como polticas e, portanto, insuscetveis de apreciao judicial.28 N. do T. Ao longo do texto, Hirschl parece utilizar os termos reparative justice e restorative justice de forma intercambivel, referindo-se a questes envolvendo medidas a serem adotadas no sentido de compensar certos grupos ou indivduos perseguidos ou que tiveram direitos sistematicamente viola-dos em perodos anteriores (e geralmente sob outro regime poltico) da histria do pas, e/ou no sentido de reconciliar divises internas dentro da comunidade aps transies de regime. No texto, essas ideias tambm vm associadas categoria mais geral da justia transicional (traduzido aqui como justia tran-sicional), que abrange o conjunto maior das medidas tomadas para se passar de forma justa de um regime poltico a outro. A categoria da justia transicional mais ampla por incluir tambm medidas no compensatrias, de carter retributivo, como a punio de responsveis por violaes de direitos humanos durante o regime anterior.

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    blicas. Em outra oportunidade, descrevi esse processo como uma transio para a juristocracia.29

    No se pode enfatizar demais a profundidade dessa transio. Enquanto a superviso judicial dos aspectos procedimentais do processo democrtico mo-nitoramento de procedimentos e regulamentaes eleitorais, por exemplo se enquadra na competncia da maioria das cortes constitucionais, questes como a legitimidade de um regime poltico, a identidade coletiva de uma nao, ou o enfrentamento de um passado do qual a comunidade no se orgulha refletem di-lemas que so primordialmente morais e polticos e no jurdicos. Como tais, eles devem ao menos por questo de princpio ser contemplados e decididos pela prpria populao, por meio de seus representantes eleitos e politicamente responsabilizveis. Julgar tais questes um exerccio inerente e substancialmente poltico, muito alm da aplicao de dispositivos sobre direitos fundamentais e devido processo legal a questes de polticas pblicas. Judicializao desse tipo coloca os tribunais na posio de decidir sobre alguma das mais centrais ques-tes polticas que uma nao pode enfrentar, mesmo que a Constituio no faa nenhuma referncia a esses problemas, e apesar de se reconhecer os bvios riscos polticos envolvidos em decises desse tipo. So precisamente essas situaes de judicializao de questes que combinam altssimos riscos polticos com instru-es constitucionais escassas ou impertinentes que tornam mais questionveis as credenciais democrticas do controle judicial de constitucionalidade. Isso ocorre porque no est nada claro o que tornaria os tribunais o frum mais apropriado para resolver esses dilemas puramente polticos.

    A diferena entre a segunda e a terceira face da judicializao sutil, mas importante. Encontra-se, em parte, na distino qualitativa entre questes prima-riamente de justia processual, de um lado, e dilemas morais substantivos ou con-trovrsias polticas essenciais enfrentadas por toda a nao, de outro. Em outras palavras, parece haver uma diferena entre a importncia poltica da judicializa-o da elaborao de polticas pblicas e a importncia poltica da judicializao da megapoltica. A garantia de justia processual em contrataes feitas com o Estado um elemento importante se queremos ter uma administrao pblica livre de corrupo. Do mesmo modo, o alcance do direito a um julgamento rpido uma questo importante para pessoas que estejam enfrentando acusaes crimi-nais. Mas sua relevncia poltica no to significativa quanto a de questes como o lugar da Alemanha na Unio Europeia, o futuro de Quebec e da federao cana-dense, a constitucionalidade do acordo poltico ps-Apartheid na frica do Sul, ou das aes afirmativas nos Estados Unidos.

    29 Hirschl, 2004:222-223.

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    Entretanto, a diferena entre o segundo e o terceiro nveis de poltica judiciali-zada vai alm da relevncia poltica das questes de que tratam. Depende da nossa prpria conceituao do que poltico. O que conta como deciso poltica no uma pergunta fcil de ser respondida. Uma deciso poltica afeta a vida de muitas pessoas. Porm, muitos casos que no so puramente polticos (grandes aes coletivas) tambm afetam as vidas de muitas pessoas. Mais ainda, j que no existe uma resposta simples e completa para a pergunta o que poltico? para muitos tericos sociais, a resposta seria tudo poltico , tambm no pode haver uma definio simples e completa da judicializao da poltica. Em outras palavras, o que Larry King consideraria poltico bem diferente do que Michel Foucault consideraria poltico. Do mesmo modo, o que pode ser considera-do questo poltica controversa em uma comunidade (digamos, o direito de fazer um aborto nos Estados Unidos) pode no ser um problema em outra comunidade. Contudo, mesmo levando em conta essas consideraes, parece haver uma dife-rena qualitativa entre a relevncia poltica de, por exemplo, uma deciso judicial especificando os limites do direito a uma audincia justa perante o tribunal ou discutindo a validade de cotas federais para exportaes agrcolas e a de um jul-gamento determinando a legitimidade de um regime ou a identidade coletiva de uma nao. De fato, poucas decises podem ser consideradas mais polticas que a definio autoritativa da raison dtre de uma comunidade. Essa distino nebu-losa, ainda que intuitiva, o que diferencia a judicializao da megapoltica dos dois primeiros nveis de judicializao. Consideremos os exemplos a seguir to-dos so raramente abordados pela teoria constitucional em sua forma cannica, normalmente preocupada apenas com problemas norte-americanos.

    3. A judicializao da poltica pura: alguns casos ilustrativos

    O cenrio de Bush v. Gore

    Uma rea politicamente sensvel que passou por uma dramtica judicializao nas ltimas duas dcadas o processo eleitoral ou o que pode ser chamado de o direito da democracia.30 No mundo do novo constitucionalismo, tribunais so frequentemente chamados a decidir questes como remarcao de distritos elei-torais, financiamento de campanha de partidos polticos e propaganda eleitoral na televiso. Tribunais aprovam ou desqualificam partidos polticos e candidatos com cada vez mais frequncia. Nos ltimos anos, tribunais em diversas democra-

    30 Ver Issacharoff et al. (1998) e Miller (2004).

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    cias constitucionais especialmente na Blgica, Israel, ndia, Espanha e Turquia baniram (ou chegaram muito perto de banir) partidos polticos populares de eleies nacionais.31 Recentemente, a Suprema Corte de Bangladesh considerou invlidas as listas de eleitores que haviam sido feitas para as eleies seguintes.32 Apenas na ltima dcada, tribunais constitucionais em mais de 25 pases foram chamados para determinar o futuro poltico de lderes polticos importantes por meio de processos de impeachment ou de desqualificao. Enquanto a Corte Cons-titucional Russa, por exemplo, imps um limite constitucional tentativa de ter-ceiro mandato do presidente Boris Yeltsin, a Suprema Corte colombiana aprovou recentemente a constitucionalidade de uma emenda que removeu da Constituio a proibio de reeleio de oficiais governamentais, permitindo assim ao presiden-te lvaro Uribe se candidatar e ser reeleito para um segundo mandato.33

    Tribunais tambm se tornaram as ltimas instncias decisrias em disputas sobre resultados eleitorais nacionais por exemplo, no Zimbbue (2002),34 em Taiwan (2004),35 na Ucrnia (2004)36 e na Itlia (2006), onde a Suprema Corte ita-liana aprovou uma vitria por menos de 25 mil votos do lder de centro-esquerda Romano Prodi sobre o direitista Silvio Berlusconi em uma das eleies mais dispu-tadas daquele pas.37 Mais recentemente, uma srie de recursos e contrarrecursos eleitorais culminou na rejeio, pelo Tribunal Federal Eleitoral do Mxico, da acu-sao de fraude nas eleies presidenciais de julho de 2006, feita pelo candidato esquerdista Andes Manuel Lopez Obrador.38 A deciso garantiu formalmente a presidncia de 2006 a 2012 ao candidato de direita Felipe Caldern, aps uma vi-tria eleitoral por uma margem de menos de 0,6%. At mesmo as exticas naes insulares de Madagascar e Trinidad e Tobago tiveram o destino de suas eleies

    31 Pildes (2004:33). A Corte Suprema da Blgica baniu o partido separatista conservador neerlands Vlaams Blok em novembro de 2004. O partido ressurgiu como Vlaams Belang poucos meses depois.32 Courting danger: democracy in the lap of the judges. Economist, p. 40, June 2006. 33 Uribe wins Colombia Court ruling, allowing him to seek second term. Bloomberg News Online, 19 Oct. 2005. Disponvel em: .34 Ver Legal resources found. Justice in Zimbabwe (report). Disponvel em: . Acesso em: 20 set. 2006.35 Ver Hogg (2004). 36 Ver a deciso da Corte Constitucional ucraniana de dezembro de 2004 (invalidando os resultados da eleio presidencial de novembro de 2004 e ordenando uma nova eleio). Para a traduo para o ingls, ver: ; ver tambm a deciso da Corte Constitucional ucraniana de 24 de dezembro de 2004. Disponvel em: (sobre a constitucionalidade do Ato das Eleies Pre-sidenciais). A deciso da mesma Corte de 26 de dezembro de 2004. Disponvel em: (respondendo alegao de Victor Yanukoyvich sobre a violao dos direitos de eleitores deficientes durante as eleies de 2004).37 Ver Italian Court rules prodi election winner, Guardian Unlimited, 19 abr. 2006. Disponvel em: .38 A deciso foi publicada no dia 4 de setembro de 2006. Ver Mexico Court rejects fraud claim, BBC News Online, 29 Aug. 2006. Disponvel em: . Para discus-ses mais profundas sobre a Corte Eleitoral Federal do Mxico, ver Zamora (2004).

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    determinado por tribunais.39 Claramente, a disputa judicial pela presidncia norte-americana em Bush v. Gore no foi apenas um momento idiossincrtico na histria recente da poltica constitucional comparada.40

    Prerrogativas centrais do Executivo

    Outra rea poltica que vem sendo crescentemente judicializada envolve as prerrogativas centrais de legislaturas e executivos no que se refere a relaes ex-teriores, segurana nacional e poltica fiscal. A Suprema Corte do Canad (SCC) no hesitou em rejeitar a doutrina da questo poltica (isto , a no apreciao judicial de questes explicitamente polticas) aps a adoo da Carta Canadense de Direitos e Liberdades, em 1982.41 No histrico julgamento Operation Dismantle v. A Rainha, por exemplo, a Corte decidiu por unanimidade que

    quando um caso levanta a questo de se aes executivas ou legislativas vio-lam a Constituio, a questo deve ser respondida pela Corte, no impor-tando o carter poltico da controvrsia (...) Disputas de natureza poltica ou de poltica exterior podem ser apropriadamente analisadas pelas cortes.42

    No surpreendentemente, a SCC se tornou um rgo decisrio central para questes que vo do futuro de Quebec ao futuro da poltica de sade pblica no Canad.43

    A recm-criada Corte Constitucional russa seguiu a mesma direo no caso Chechnia, quando concordou em apreciar peties de vrios membros da opo-sio na Duma, questionando a constitucionalidade de decretos presidenciais que ordenaram a invaso militar russa na Chechnia.44 Rejeitando a reivindicao chechena de independncia e sustentando a constitucionalidade dos decretos do

    39 Ver Bobb e Anor. UKPC 22 (Trin. & Tobago), 2006. Disponvel em: ; Madagascar Court annuals election, BBC News Online, 17 mar. 2002. Disponvel em: .40 Ver Hasen (2004).41 Sobre a rejeio da doutrina da questo poltica nos EUA, ver Tushnet (2002).42 Operation Dismantle v. The Queen, 1985, 1 S.C.R. 441.43 Ver Chaoulli v. Que. (Atty Gen.), 2005, 1 S.C.R. 791 (sustentando que os limites no fornecimento de sade privada no Quebec violam a Carta de Direitos Humanos e Liberdades do Quebec). Trs dos ju-zes tambm decidiram que os limites do fornecimento de sade privada violam a seo 7 da Carta de Direitos e Liberdades. A deciso pode ter ramificaes significantes na poltica de sade do Canad, e pode ser interpretada como uma abertura de caminho para o chamado sistema de sade 2/3.44 Ver Russian Federation Constitutional Courts ruling regarding the legality of president Boris Yelt-sins degree to send troops to Chechnya, Official Kremlin International News Broadcast , 31 July 1995. Para uma anlise em ingls, ver Pomeranz (1997).

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    presidente Boris Yeltsin como intra vires, a maioria dos juzes da Corte declarou que a manuteno da integridade e unidade territorial da Rssia seria uma re-gra inabalvel que exclui a possibilidade de uma secesso unilateral armada em qualquer estado federativo.45 Em 2004, a Suprema Corte israelense decidiu sobre a constitucionalidade e a compatibilidade com o direito internacional da barreira da Cisjordnia uma polmica rede de cercas e muros que separam Israel do territrio palestino.46

    Uma manifestao ligeiramente diferente, mas igualmente significativa, de

    interveno judicial na esfera poltica desta vez, no contexto de polticas fiscais

    e de bem-estar social pode ser encontrada nas Decises do Pacote Econmico de Austeridade (os chamados Casos Bokros), da Corte Constitucional hngara.47 Neste caso, a Corte se apoiou nos conceitos de proteo de expectativas e certeza jurdica para anular cerca de 26 regras de um abrangente plano econmico de emergncia adotado pelo governo. O plano tinha como medida principal um corte substancial nos gastos pblicos com benefcios sociais, pagamento de aposentado-rias, educao e sade, com a finalidade de reduzir o enorme dficit orament-rio e a dvida externa da Hungria.48 Outra manifestao igualmente significativa da judicializao de problemas macroeconmicos controvertidos a deciso da Suprema Corte da Argentina, de outubro de 2004 (o chamado Caso Corralito), sobre a constitucionalidade do plano de pesificao proposto pelo governo (con-verso total da economia argentina em pesos, com taxa de cmbio fixa em relao

    ao dlar norte-americano), e a correspondente desvalorizao e congelamento de poupanas atreladas ao dlar uma consequncia da grande crise econmica argentina de 2001.49

    Entretanto, se por um lado tem havido uma crescente penetrao judicial nas prerrogativas de legislaturas e executivos a respeito de relaes exteriores, segu-rana nacional e poltica fiscal, os tribunais tm no geral permanecido passivos

    no que se refere a polticas sociais e de redistribuio de riqueza e recursos. Com pouqussimas excees (principalmente na frica do Sul e na ndia), os tribunais tm sido tmidos quando se trata de promover noes progressistas de justia dis-tributiva em reas como distribuio de renda, erradicao da pobreza e direitos

    45 Russian Court: Chechen War Legal, United Press Intl, 31 jul. 1995. Disponvel em: Lexis UPI database; ver tambm Gaeta, Paola. The armed conflict in Chechnya before the Russian Constitutional Court, 7 Eur. J. Intl L. 563, 1996.46 HCJ 2056/04 Beit Sourik Vill. Council v. Govt of Isr. 2005. IsrSC, v. 58, n. 5, p. 807. Isr. L. Rev., n. 83, 2005.47 Uma traduo para o ingls desse caso est disponvel em Slyom, Lszl e Brunner, Georg (2000).48 Idem.49 Corte Suprema de Justicia (CSJN), 26 out. 2004. Bustos, Alberto Roque et al. v. Estado Nacional et al. Disponvel em: .

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    relacionados subsistncia (educao bsica, sade e moradia), cuja implementa-o requer maior interveno estatal e mudanas nas prioridades dos gastos pbli-cos.50 Assim, pode-se dizer que a judicializao de questes envolvendo poderes fundamentais do Executivo no tem sido exatamente uma bno para keynesia-nos e progressistas.

    Corroborao de mudanas de regime

    Outra rea de crescente envolvimento judicial em megapoltica a (in)validao de mudanas de regime. O exemplo mais bvio a saga da certificao cons-titucional na frica do Sul: foi a primeira vez que uma corte constitucional se recusou a aceitar um texto constitucional elaborado por um rgo constituinte re-presentativo.51 Outras manifestaes recentes desse tipo de judicializao incluem a raramente mencionada, mas impressionante, restaurao da Constituio de Fiji de 1997 pela Corte de Apelaes de Fiji em Fiji v. Prasad, em 2001 a primeira vez na histria do constitucionalismo moderno em que um tribunal restaurou uma constituio e o sistema de governo democrtico que o criou;52 a deciso histrica da Suprema Corte do Nepal, de fevereiro de 2006, que declarou inconstitucional a controversa Comisso Real para o Controle da Corrupo (CRCC), estabelecida aps o golpe de Estado de 2005, abrindo caminho para a libertao do primei-ro-ministro deposto, Bahadur Deuba, detido desde julho de 2005 por ordem da CRCC;53 e a rejeio, pela Corte Constitucional da Coreia do Sul, do impeachment do presidente Roh Moo-hyun realizado pela Assembleia Nacional do pas, em 2004 a primeira vez na histria do constitucionalismo moderno em que um pre-sidente foi reconduzido ao cargo por um rgo judicial aps um rgo legislativo ter determinado o seu impeachment.54

    Vale destacar tambm o endosso, pela Suprema Corte do Paquisto, da le-gitimidade do golpe de Estado militar de 1999. Alegando corrupo generaliza-da e grave m administrao econmica por parte do governo, o general Pervez Musharraf tomou o poder do primeiro-ministro Nawaz Sharif em um golpe de Estado militar, em 12 de outubro de 1999. Musharraf se autodeclarou o novo che-

    50 Hirschl, 2005. 51 Ver Certification of the amended text of the Constitution of the Republic of S. Afr. 1997 (2) SA 97 (CC); Certi-fication of the Constitution of the Republic of S. Afr. 1996 (4) SA 744 (CC).52 Ver Republic of Fiji Islands v. Prasad,2001, 1 LRC 665 (HC), 20022 LRC 743 (CA).53 Ver Nepal corruption panel outlawed, BBC News, 13 Feb. 2006. Disponvel em: .54 Lee, Youngjae. Law, politics, and impeachment: the impeachment of Roh Moohyun from a comparative constitutional perspective, 2005.

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    fe do Executivo, deteve o primeiro ministro Sharif e diversos aliados polticos e promulgou uma Proclamao de Emergncia, suspendendo todas as operaes do governo Sharif, da Assembleia Nacional e do Senado. Em resposta, ativistas pol-ticos contrrios ao golpe militar encaminharam uma petio Suprema Corte em meados de novembro de 1999, contestando a legalidade da derrubada do governo Sharif e da Proclamao de Emergncia e exigindo a libertao de Nawaz Sha-rif e a restaurao de seu governo eleito. Em uma deciso largamente divulgada, anunciada em maio de 2000, a Suprema Corte do Paquisto se baseou na doutrina do estado de necessidade para validar, por unanimidade, o golpe de outubro de 1999, considerando ter sido o mesmo necessrio para livrar o pas do caos e da falncia.55 A Corte sustentou que:

    (em) 12 de outubro de 1999, surgiu uma situao para a qual a Constituio no fornecia soluo e a interveno das Foras Armadas atravs de uma medida extraconstitucional se tornou inevitvel, o que aqui validado com base na doutrina do estado de necessidade e no princpio do salus populi su-prema lex (...) Material suficiente foi produzido para corroborar (...) e apoiar a interveno das Foras Armadas atravs de medida extraconstitucional.56

    Entretanto, o presidente da Corte, Irshad Hasan Khan, complementou que um prolongado envolvimento do Exrcito em assuntos civis corre o grave risco de politiz-lo, o que no seria do interesse nacional e, portanto, o governo civil deve ser restaurado o mais breve possvel no pas.57 Nesse sentido, a Corte deu ao general Musharraf trs anos para implementar reformas econmicas e polticas e restaurar a democracia.58 A Corte anunciou que o general Musharraf (presidente Musharraf, a partir de junho de 2001) deveria escolher uma data at 90 dias antes do final do perodo de trs anos para a realizao de eleies para a Assembleia Nacional, para as assembleias provinciais e para o Senado.59 O Paquisto um pas em um limbo poltico quase constante. Mas uma coisa clara: a batalha judicial sobre a legitimidade poltica do regime de Musharraf realou o papel poltico cen-tral da Suprema Corte no Paquisto nos dias de hoje.60

    55 Zafar Ali Shah v. Pervez Musharraf, Chief Executive of Pak., P.L.D. 2000 S.C. 869.56 Idem, p. 1219.57 Idem.58 Idem, p. 1219-1223.59 Idem, p. 1223.60 Desde 1990, o Paquisto passou por cinco mudanas de regime e a Corte Suprema do Paquisto exerceu um papel fundamental em cada uma dessas transies radicais. Ver Zafar Ali Shah v. Pervez Musharraf, Chief Executive of Pak., P.L.D. 2000 S.C. 869; Benazir Bhutto v. President of Pak., P.L.D. 1998 S.C. 388; Muhammad Nawaz Sharif v. President of Pak., P.L.D. 1993 S.C. 473; Begum Nusrat Bhutto v. Chief of Army Staff, P.L.D. 1977 S.C. 657.

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    Justia transicional

    Uma quarta rea emergente da megapoltica que, nas ltimas dcadas, tem sido judicializada de forma rpida e em grau talvez excessivo a da justia tran-sicional ou restaurativa. A transferncia cada vez mais comum, da esfera poltica para os tribunais, de dilemas morais e polticos fundamentais ligados a injustias extremas e atrocidades em massa cometidas contra grupos e indivduos histori-camente desfavorecidos apresenta algumas subcategorias, cada uma refletindo diferentes noes de justia restaurativa. Existem muitos exemplos recentes de ju-dicializao da justia restaurativa. Lembremos da era ps-Apartheid na frica do Sul: a frmula anistia-em-troca-de-confisso obteve luz verde por parte da Corte Constitucional sul-africana no caso Azanian Peoples Organization (Azapo) v. Presidente da Repblica da frica do Sul (1996), sustentando o estabelecimento da Comisso de Verdade e Reconciliao, de carter quase judicial.61 Ou conside-remos o importante papel cumprido pelas recm-criadas cortes constitucionais na Europa ps-comunista no confronto com o passado por meio de julgamentos de ex-funcionrios pblicos acusados de atos que, hoje, so considerados violaes de direitos humanos da era comunista.62 Da mesma forma, ocorreu uma judiciali-zao generalizada da justia restaurativa em pases latino-americanos ps-autori-trios (consideremos, por exemplo, a batalha judicial sobre o destino de Augusto Pinochet, ex-ditador do Chile). Outro exemplo seria a grande judicializao das disputas sobre o status de povos indgenas nas chamadas colnias de povoamen-to, como Austrlia, Canad e Nova Zelndia.

    A judicializao da justia restaurativa tambm evidente no nvel transna-cional. Mais uma vez, os exemplos so muitos. O Tribunal Penal Internacional (TPI) (ratificado por 90 pases at 2006) foi estabelecido em 1998 como um rgo judicial internacional permanente com jurisdio potencialmente universal sobre genocdio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra etc.63 O Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslvia na Haia foi estabelecido em 1993.64 Nele, Slo-bodan Milosevic foi levado a julgamento.65 Outro exemplo o Tribunal Penal In-ternacional para Ruanda em Arusha, na Tanznia, estabelecido em 1995. Tambm esto includas nessa categoria as cortes hbridas recm-criadas no Camboja, Timor Leste, Iraque, Kosovo e Serra Leoa. Todas elas so tribunais internacionais

    61 Azanian Peoples Organization (Azapo) v. President of the Republic of S. Afr. 1996 (4) SA 672 (CC). 62 Ver Schwartz (2000) e Quint (1999). 63 Ver Schabas (2004).64 Ver Kerr (2004). 65 Idem.

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    de justia restaurativa que trabalham sob as regras dos sistemas legais domsti-cos e aplicam uma combinao de direito internacional e domstico, substantivo e processual.

    Definindo a nao atravs dos tribunais

    Todas essas reas de megapoltica judicializada, porm, so mera introduo para o que pode ser considerado a mais clara manifestao da judicializao gene-ralizada de controvrsias polticas fundamentais: o crescente recurso aos tribunais para contemplarem a prpria definio, ou raison dtre, da comunidade. Conside-remos, por exemplo, o envolvimento sem precedentes do Judicirio canadense na questo do status bilngue do pas e do futuro poltico de Quebec e da federao canadense, incluindo a histrica deciso da Suprema Corte canadense na Consulta sobre a Secesso de Quebec a primeira vez em que um pas democrtico testou antecipadamente os termos jurdicos de sua prpria dissoluo. Da mesma forma, a Corte Constitucional Federal alem exerceu papel-chave na criao da Alemanha unificada, como ficou claro, por exemplo, no caso Maastricht, no qual a Corte se ba-seou em provises da Lei Fundamental alem para determinar o status da Alemanha ps-unificao vis--vis a emergente comunidade supranacional europia. Existem muitos exemplos desse fenmeno: o papel central que a Corte Constitucional turca exerceu na preservao da natureza estritamente secular do sistema poltico turco, reprimindo continuamente foras e partidos polticos antissecularistas; a importante jurisprudncia da Suprema Corte da ndia sobre o status das leis pessoais religiosas mulumana e hindu;66 o papel crucial dos tribunais em diversas teocracias constitu-cionais, como Egito e Malsia, na determinao da natureza da vida pblica nesses estados modernos formalmente governados por princpios da Sharia islmica;67 a transferncia generalizada da profunda diviso entre o religioso e o secular, na so-ciedade israelense, para o Judicirio, atravs da judicializao da questo quem judeu? e o correspondente envolvimento da Suprema Corte de Israel na interpre-tao da definio fundamental de Israel como um Estado democrtico e judaico. No nvel supranacional, podemos pensar no papel-chave da Corte Europeia de Jus-tia na implementao e acelerao do processo de integrao europeu papel que est destinado a crescer com a expanso da fronteira leste da UE, em 2004, e com a possibilidade de uma Constituio europeia.

    66 Ver Mohammed Ahmed Khan v. Shah Bano Begum, A.I.R. 1985 S.C. 945 (ndia).67 Para uma discusso sobre o papel das cortes no Egito, ver Hirschl, Ran. Constitutional courts vs. Re-ligious fundamentalism: three middle eastern tales. Tex. L. Rev. p. 1819, 1829-1833, 2004. Para Malsia, ver Peletz, Michael G. Islamic modern: religious courts and cultural politics in Malaysia, 2002.

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    Para melhor apreender a natureza puramente poltica desses julgamentos, necessria uma discusso mais detalhada de alguns casos ilustrativos. Comece-mos pela Europa. No histrico caso Maastricht, a Corte Constitucional Federal alem foi provocada a definir, com base na Lei Fundamental alem, o status da Alemanha ps-unificao vis--vis a comunidade supranacional europeia emer-gente.68 O art. 38 da Lei Fundamental d aos cidados alemes o direito de votar nos seus representantes parlamentares.69 O art. 20 (2) da Lei Fundamental d aos cidados-eleitores o direito de participar no exerccio da autoridade estatal por meio de seus deputados.70 Os peticionrios argumentaram que a criao da Unio Europeia, atravs do Tratado de Maastricht de 1992, implicava uma transferncia de autoridade para tomada de decises polticas do mbito nacional para o supra-nacional, colocando parte considervel dessa autoridade alm do mbito de ao dos legisladores nacionais. Mais especificamente, a transferncia de autoridade para a Unio Europeia constituiria uma renncia de poder por parte do Bundes-tag, infringindo, assim, o direito dos cidados alemes de influenciar o exerccio do poder estatal atravs do voto. E, assim, mais uma vez, um tribunal nacional foi chamado para clarificar e resolver uma controvrsia poltica fundamental dessa vez, as inter-relaes entre o eleitor alemo, o Bundestag e a comunidade suprana-cional europeia emergente.

    Em sua deciso, o Tribunal Constitucional Federal alemo analisou em de-talhes as razes por trs da criao da comunidade supranacional europeia e estipulou as condies necessrias para a obteno de legitimidade demo-crtica no mbito supranacional. O tribunal seguiu definindo a competncia legislativa dos Estados-membros e parlamentos nacionais em relao UE, e declarou que o Bundestag deveria reter para si funes e poderes de importn-cia substancial. Mais ainda, o tribunal declarou que o art. 38 da Constituio violado quando um ato abre o sistema jurdico alemo para a aplicao do direito das comunidades supranacionais europeias (se este ato) no estabelece com certeza suficiente quais poderes so transferidos e como eles sero inte-grados.71 O tribunal tambm sustentou que os princpios fundamentais de participao e representao poltica no impediriam a participao alem na UE, desde que a transferncia de poder para esses rgos permanecesse enrai-zada no direito dos cidados alemes de votar e, assim, participar no processo nacional de elaborao legislativa. Em outras palavras, o tribunal no hesitou

    68 Uma verso resumida da deciso aparece em Kommers (1997:182-186 e 187-193). 69 Grundgesetz (Constituio) art. 38 (F.R.G.). Disponvel em: .70 Idem, art. 20.71 Ver Kommers (1997).

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    em lidar com uma questo poltica explcita. Ao contrrio, sustentou a consti-tucionalidade do Tratado de Maastricht o documento constitutivo da noo de unio cada vez mais prxima , colocando o tratado sob o escrutnio da Lei Fundamental e seus princpios.

    Outro revelador exemplo de articulao judicial dos valores centrais da na-o pode ser encontrado no papel exercido pela Suprema Corte Constitucional do Egito quando lidou com a crucial questo do status das regras da Sharia pro-vavelmente o problema de identidade coletiva mais controverso e fundamental da comunidade egpcia. Desde o estabelecimento, em 1979, do controle de consti-tucionalidade no Egito, e da emenda constitucional de 1980, que tornou a Sharia islmica a principal fonte legislativa do pas,72 a Corte vem sendo cada vez mais chamada a determinar a constitucionalidade de atos legislativos e administrativos com base em sua compatibilidade com os princpios da Sharia.73 A questo diante da Corte em todos esses casos tem sido a de quais princpios da Sharia possuem autoridade determinante e absoluta.74

    Para abordar essa questo de forma moderada, a Corte desenvolveu uma complexa matriz interpretativa de diretivas religiosas a primeira desenvolvi-da por um tribunal no religioso. Afastou-se de tradies antigas das escolas fiqh (jurisprudncia islmica ou o conhecimento/cincia acumulados sobre a Sharia) e desenvolveu um novo quadro para interpretar a Sharia.75 Mais especificamente, a Corte desenvolveu uma abordagem flexvel e modernista para a interpretao da

    Sharia, distinguindo entre princpios inalterveis e universalmente vinculantes e aplicaes maleveis dos princpios.76 Uma legislao que contrarie um prin-cpio estrito, inaltervel, declarada inconstitucional e nula mas, por outro lado, a ijtihad (interpretao externa) permitida em casos de lacuna, ou quando as re-gras pertinentes so vagas ou tm finalidades abertas.77 Mais ainda, foi concedida ao governo uma grande margem de discricionariedade em questes de polticas pblicas nas quais a Sharia no fornece respostas claras ou unvocas, desde que o resultado da elaborao normativa no contrarie o esprito geral da Sharia.78 Essa abordagem interpretativa marcou uma verdadeira mudana de paradigma na legitimao de polticas de governo baseadas em uma interpretao (ijtihad) moderada e razoavelmente liberal da Sharia.

    72 Constituio do Egito, cap. I, art. 2. Disponvel em: . 73 Ver Gabr (1996). 74 Hirschl (2004:1.823).75 Ver Brown (1999:491). 76 Idem, p. 496.77 Idem.78 Idem, p. 497.

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    A Corte aplicou tal abordagem no caso Riba,79 no histrico caso Niqab80 e no pioneiro caso Khul, em que a Corte sustentou a constitucionalidade da Lei de Status Pessoal, de 2000, mantendo os dispositivos que estabelecem o direito de uma mulher mulumana invocar o khul divrcio sob qualquer justificativa e sem o consentimento do marido desde que os presentes de joias (shabka) e pagamentos de dote (mahr) do noivo sejam devolvidos e que se renuncie a certos direitos patrimoniais.81 Ao anunciar a deciso da Corte, o ministro Maher El-Bahri confirmou que a incorporao do khul na lei egpcia sobre status pessoal no viola a Sharia ou o art. 2o da Constituio, j que existem versos claros no Alcoro e fiqh correspondentes sustentando o procedimento do khul.

    Neste e em outros julgamentos fundamentais a respeito do escopo da Sharia na vida pblica do Egito, a Corte realizou uma interpretao substantiva autno-ma do Alcoro e de evidncias disponveis na Suna. De fato, a Corte estabeleceu sua prpria interpretao da ijtihad, apesar da existncia de opinies contradit-rias na jurisprudncia islmica, a fiqh, e seus mtodos tradicionais. Dessa forma, a Suprema Corte Constitucional do Egito se posicionou como intrprete de fato de normas religiosas e como um frum central para lidar com o dilema da teocra-cia constitucional do Egito.

    Talvez em nenhum outro lugar do mundo a judicializao da megapoltica esteja mais evidente do que na vizinha Israel provavelmente, o pas mais pr-ximo de uma completa juristocracia em todo o planeta. Toda semana, a Suprema Corte de Israel (SCI) anuncia uma deciso significativa, amplamente divulgada pela mdia e assistida de perto pelo sistema poltico. Os exemplos mais claros do envolvimento profundo da SCI em questes formativas de identidade coletiva so os recentes julgamentos sobre a questo quem judeu possivelmente a ques-to mais carregada de implicaes sobre identidade coletiva na Israel de hoje. A corrente ortodoxa do judasmo a nica formalmente reconhecida pelo Estado. Este status exclusivo permitiu que a comunidade ortodoxa estabelecesse um quase

    79 O caso Presidente da al-Azhar Univ. v. Presidente da Repblica (o caso Riba), no 20 do primeiro ano judicial (4 de maio de 1985), discutido em Vogel, Frank E. Conformity with Islamic Sharia and constitu-tionality under article 2: some issues of theory, practice and comparison. In: Brown (1999:525-534).80 Wassel v. Ministro da Educao (o caso Niqab), no 8 do ano judicial 17 (18 de maio de 1996). Traduzido em Cotran e Mallat (1996:178-180). Sustenta a constitucionalidade de um decreto governamental que permitia que as pessoas responsveis por alunas abaixo do nvel universitrio requisitassem que elas cobrissem seus cabelos, desde que no fosse exigido encobrir os rostos (que elas usassem uma hijab cobertura de cabea e no uma nigab mscara ou cobertura total de cabea).81 A nova lei permitiu esse divrcio por ordem judicial (sem o consentimento do marido) depois que um processo de mediao e reconciliao obrigatrias falhasse. Essas novas provises efetivamente torna-ram ilegais prticas abusivas de homens que se divorciavam de suas esposas apenas dizendo Eu me divorcio de voc (talaq al-bida) trs vezes, contornando qualquer esforo para mediar ou reconciliar os cnjuges (talaq al-ghyabi). Ver Khul law passes major test, Al-Ahram Weekly Online, 19-25 dez. 2002. Disponvel em: .

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    monoplio na prestao de servios religiosos pblicos e que impusesse critrios rgidos no processo de determinao de quem judeu. Essa pergunta tem im-plicaes simblicas e prticas cruciais, na medida em que, de acordo com a Lei do Retorno, judeus que imigram para Israel recebem uma variedade de benefcios, in-cluindo o direito imediato cidadania plena.82 Imigrantes no judeus no recebem tais benefcios. J que ser judeu suficiente para obter cidadania, a autodefinio do Estado como um Estado judaico inseparvel da definio de quem judeu. No surpreendentemente, a batalha sobre a converso ao judasmo tem sido assis-tida de perto por judeus dentro e fora de Israel.

    Assim como em outros assuntos polticos polmicos em Israel, a incompetn-cia ou a falta de vontade do sistema poltico em lidar com o problema (somadas s incrivelmente generosas regras de acesso SCI) levaram a questo quem judeu SCI. Em 1989, quando a iniciativa da revoluo constitucional estava em seus estgios iniciais, a SCI decidiu que, para fins de imigrao, qualquer pessoa convertida ao judasmo fora de Israel, independentemente de a converso ter sido feita por instituio religiosa ortodoxa, conservadora ou reformista, teria acesso automtico a todos os direitos de um oleh (imigrante judeu), nos termos da Lei do Retorno e da Lei de Cidadania.83 Em 1995, a SCI foi mais uma vez arrastada para as turvas guas da poltica de identidades. Dessa vez, o problema era se uma pessoa no judia que se submetera a uma converso no ortodoxa em Israel teria direito automtico cidadania, com base no direito de retorno. A SCI evitou dar uma resposta clara ao mesmo tempo que reafirmou explicitamente seu julgamento anterior, que validara converses no ortodoxas feitas fora do pas.84

    Aps tal deciso, um nmero crescente de no judeus residindo em Israel (sobretudo trabalhadores estrangeiros e imigrantes no judeus da antiga Unio Sovitica) foi ao exterior para obter converso no ortodoxa com o intuito de rei-vindicar os benefcios concedidos pelo Estado aos recm-chegados reconhecidos como judeus. Em resposta, o ministro do Interior (ento controlado pelo partido ultraortodoxo Shas) renovou sua recusa em reconhecer converses reformistas e conservadoras feitas no exterior. Em novembro de 1999, a SCI revisitou o assunto, declarando que, se as partes envolvidas falhassem em chegar a um acordo at abril de 2000, um painel expandido de 11 juzes abordaria o problema da conver-so. Nenhum compromisso foi obtido no prazo e a SCI concluiu sua deliberao no final daquele ano. A judicializao da questo sobre a converso culminou no

    82 A Lei do Retorno, 1970, S.H. 586 (Isr.). Disponvel em: . Concede a judeus o direito de retorno a Israel para adquirir cidadania, mesmo que no tenham tido qualquer contato prvio com o Estado.83 HCJ 264/87 Sepharadi Torah Guardians-Shas Movement v. Population Registrar. IsrS, v. 43, n. 2, p. 723-731, 1989.84 HCJ 1031/93. Pessaro (Goldstein) et al. v. Minister of the Interior. IsrSC, v. 49, n. 4, p. 661, 1995.

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    incio de 2002 com a histrica deciso da SCI (por nove votos a dois) de reconhecer converses no ortodoxas realizadas no exterior.85 A SCI ordenou que o ministro do Interior registrasse como judeus os cidados israelenses que haviam sido con-vertidos pelos movimentos conservador e reformista no exterior.86 Na justificativa, a SCI se baseou em uma antiga conveno segundo a qual o censo populacional do ministrio deve se abster de questionar cidados israelenses acerca dos detalhes de suas crenas.87

    Em maro de 2005, a SCI proferiu outro julgamento histrico sobre uma ques-to que perpassa o corao da identidade coletiva do Estado judeu.88 Um grupo de trabalhadores estrangeiros residentes em Israel havia estudado para converses reformistas e conservadoras no pas, mas teve as cerimnias realizadas no exterior, em uma tentativa de driblar o reconhecimento exclusivo para converses orto-doxas em Israel. O ministro do Interior objetou contra essas converses bypass (co-nhecidas em Israel como converses saltadoras, j que requerem um pequeno pulo em uma jurisdio estrangeira), argumentando que a Lei do Retorno no se aplica a estrangeiros j residentes em Israel, e que converses bypass no contam validamente como converses no exterior. Em uma deciso por sete votos a qua-tro, a SCI concordou com os peticionrios e reconheceu converses no ortodoxas do tipo bypass feitas de jure no exterior, mas de facto em Israel. A SCI sustentou que uma pessoa que foi para Israel como no judeu e, durante um perodo de residn-cia legal, converteu-se em uma comunidade judaica reconhecida no exterior deve ser considerada judia. O presidente da SCI, Aharon Barak, escreveu:

    A nao judaica uma s... Ela est dispersa pelo mundo, em comunidades. Quem se converteu ao judasmo em uma dessas comunidades no exterior aderiu nao judaica, e deve ser visto como um judeu de acordo com a Lei do Retorno. Isto pode encorajar a imigrao para Israel e manter a uni-dade da nao judaica na Dispora e em Israel.89

    Lembremos que isso deveria ser uma deciso judicial, no um discurso ou manifesto poltico.90

    85 HCJ 5070/95 Working and Volunteering Women Movement v. Minister of Interior. IsrSC,v. 56, n. 2, p. 721, 2002.86 Idem.87 Idem.88 Yoaz,Yuval. Court recognizes non-orthodox overseas conversion of israeli residents. Haaretz, 4 jan. 2005. Disponvel em: . 89 Idem.90 Compare esta clara manifestao da judicializao de questes fundamentais sobre identidade coleti-va (a terceira face da judicializao) com aspectos menos relevantes das mesmas questes de identida-

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    Outro exemplo claro de judicializao da megapoltica pode ser visto no envolvimento sem precedentes da Suprema Corte do Canad com o status bi-lngue do pas e com o futuro poltico de Quebec e da federao canadense, mais notavelmente na histrica deciso da Corte na Consulta sobre a Secesso de Quebec.91 O que torna essa deciso to nica no apenas o fato de ter sido a primeira vez que um pas democrtico testou antecipadamente os termos de sua prpria dissoluo, mas tambm a liberdade e a autoridade com que a Corte articulou os pilares fundamentais da comunidade canadense e de uma forma que nenhum outro rgo estatal jamais havia feito. Em setembro de 1996, aps uma apertada derrota de 50,6% a 49,4% do movimento de secesso de Quebec no referendo de 1995, o governo federal canadense se baseou no procedimento de consulta para solicitar Suprema Corte do Canad que determinasse se uma hipottica declarao de secesso unilateral do governo de Quebec seria cons-titucional. Na consulta submetida por Ottawa Suprema Corte, trs questes foram levantadas:

    (1) De acordo com a Constituio do Canad, podem a Assembleia Nacio-nal, a legislatura ou o governo de Quebec efetuar a separao de Quebec do Canad de forma unilateral? (2) O direito internacional d Assembleia Nacional, legislatura ou ao governo de Quebec o direito de efetuar a sepa-rao de Quebec do Canad de forma unilateral? Em outras palavras, existe no direito internacional um direito autodeterminao aplicvel a Quebec? (3) Se existe um conflito entre o direito internacional e a Constituio cana-dense sobre a secesso de Quebec, o que deve prevalecer?92

    Em uma deciso amplamente divulgada, em agosto de 1998, a SCC sustentou por unanimidade que a secesso unilateral seria um ato inconstitucional em face tanto do direito domstico, quanto do internacional, e que o voto majoritrio em

    de (a segunda face da judicializao): Fred convertido ao judasmo por um rabino ortodoxo que, por estar cansado naquele dia, comete um ou dois erros procedimentais durante o processo. Uma semana depois, o rabino percebe seu erro e insiste que Fred passe pelo procedimento correto. Fred diz no e o debate chega s cortes. Apesar de o debate judicial envolver aspectos da pergunta sobre quem judeu, eles so incidentais para a questo procedimental central em jogo. Agradeo a Mark Graber por clarificar esse ponto.91 Reference re secession of Que., 1998 2 S.C.R. 217. Ver tambm A.G. (Que.) v. Que. Protestant Sch. Bds., 1984, 2 S.C.R. 66. Afirma a inconstitucionalidade de provisos sobre instruo em ingls. Reference re objection to resolution to amend the Constitution, 1982, 2 S.C.R. 793. Sustenta que Quebec no tinha poder para vetar emendas constitucionais, afetando a competncia legislativa de Quebec. Re resolution to amend the Constitution, 1981, 1 S.C.R. 753. Sustenta que, de um ponto de vista puramente legal, as Casas do Parlamento do Canad poderiam requisitar unilateralmente emendas Constituio do Ca-nad, apesar de existir conveno constitucional exigindo consentimento substantivo das provncias.92 Reference re Secession of Que., 1998, 2 S.C.R., p. 228.

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    Quebec no seria suficiente para permitir a essa provncia se separar legalmente do resto do Canad.93 Entretanto, a Corte tambm notou que, se a secesso fosse aprovada por uma clara maioria das pessoas em Quebec, votando em um referen-do sobre uma pergunta clara, as partes deveriam negociar de boa-f os termos da separao subsequente.94 Quanto questo da possibilidade de secesso unilateral no direito canadense, a Corte deu respostas que no desagradaram completamen-te nem aos federalistas, nem aos separatistas.

    Em termos estritamente legais, a Corte decidiu que a secesso do Quebec en-volveria uma mudana significativa na Constituio do Canad, o que requereria

    uma emenda constitucional, que por sua vez requereria negociaes entre todas as partes envolvidas.95 No nvel normativo, a Corte declarou que a Constituio canadense baseada em quatro princpios fundamentais igualmente importantes: (1) federalismo, (2) democracia, (3) constitucionalismo e estado de direito, e (4) a proteo das minorias.96 Nenhum desses princpios prevalece sobre os outros.97 Assim, mesmo uma votao majoritria (aderncia estrita ao princpio democrti-co e regra da maioria) no seria suficiente para permitir que Quebec se separasse

    unilateralmente.98 Porm, a Corte declarou que, se uma maioria clara dos quebecois votasse sim para uma questo inequvoca sobre a separao de Quebec, isto conferiria legitimidade aos esforos do governo de Quebec para iniciar o processo de emenda constitucional para se separar atravs de meios constitucionais.99 Esta maioria clara em uma pergunta clara obrigaria o governo federal a negociar de boa-f com Quebec para chegar a um acordo quanto aos termos da separao.100

    Em relao ao direito internacional, a resposta da Corte foi muito mais curta e objetiva: foi decidido que, apesar de o direito autodeterminao dos povos existir no direito internacional, ele no se aplicaria a Quebec.101 Evitando a questo controversa de se a populao de Quebec, ou parte dela, constitui um povo no sentido corrente do direito internacional, a Corte sustentou que o direito seces-so unilateral no se aplica a Quebec. Aos quebecois no negada a capacidade de buscar seu desenvolvimento poltico, econmico, social e cultural dentro do qua-dro de um Estado existente, nem constituem um povo colonial e oprimido.102

    93 Reference re Secession of Que., p. 259-260.94 Idem, p. 293.95 Idem.96 Idem, p. 247-263.97 Idem, p. 248.98 Idem, p. 259-261.99 Idem, p. 265.100 Idem, p. 271.101 Idem, p. 277.102 Idem, p. 282.

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    O governo de Quebec respondeu deciso promulgando uma lei declarando que quando uma maioria de 50% mais um dos quebecois apoiasse em um refe-rendo provincial a ideia de secesso, estaria satisfeito o requerimento de maioria clara estabelecido pela deciso da Corte. O governo federal, por sua vez, respon-deu no final de 1999 propondo a Lei da Clareza, formalmente confirmada pelo Parlamento no vero de 2000.103 Resumidamente, a lei declara que apenas uma maioria clara em uma pergunta clara teria o poder de obrigar o governo federal a negociar os termos de separao com Quebec; e ainda que, dada a natureza da questo, o termo maioria clara deveria significar mais do que 50% mais um; e que, em qualquer caso, o governo federal se reserva o direito de determinar se a pergunta colocada pelo governo de Quebec em um futuro referendo obedece ao critrio da pergunta clara.

    Sem conhecer o contexto poltico destes eventos e decises, o leitor no ca-nadense pode achar supreendente essa cadeia de eventos judiciais definindo o status de Quebec. Uma coisa, porm, inquestionvel: nos ltimos 25 anos, a SCC se tornou um dos mais importantes fruns pblicos para lidar com a altamente controversa questo do status de Quebec e sua futura relao com o resto do Ca-nad. Graas ao novo cenrio constitucional estabelecido pelo Ato Constitucional de 1982 e disposio da SCC em exercer um papel central na saga de Quebec, as partes envolvidas (principalmente os federalistas) foram capazes de gradualmente transferir a questo de Quebec da esfera poltica para a esfera jurdica.

    Em suma, em numerosos pases ao redor do mundo tem havido uma cres-cente deferncia legislativa ao Judicirio, uma crescente intruso do Judicirio em prerrogativas de legislaturas e executivos, e uma correspondente acelerao do processo por meio do qual agendas polticas tm sido judicializadas. Juntos, tais desenvolvimentos contriburam para a crescente confiana em meios judiciais para clarificar e resolver controvrsias morais fundamentais e questes polticas altamente controversas, transformando tribunais superiores nacionais em impor-tantes rgos de decises polticas. A onda de ativismo judicial que inundou o mundo nas ltimas dcadas no poupou os problemas mais fundamentais que uma comunidade democrtica deve enfrentar seja acertar as contas com seu frequentemente pouco admirvel passado ou lidar com conflitos de identidade coletiva. Com a possvel exceo do monitoramento judicial do processo eleitoral, nenhuma das recm-judicializadas questes exclusiva ou intrinsecamente legal. Ainda que algumas delas possam envolver certos aspectos constitucionais signi-ficativos, no so puramente, nem mesmo primariamente, dilemas legais. Como

    103 Act, 2000 S.C., ch. 26 (Can.). Esse Ato d efeito exigncia de clareza como foi estabelecido na deci-so da Suprema Corte do Canad no caso da Consulta sobre a Secesso de Quebec. Idem.

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    tais, devem ser resolvidas ao menos por princpio atravs de deliberao p-blica na esfera poltica. Entretanto, tribunais superiores ao redor do mundo vm gradualmente se tornando importantes rgos decisrios para lidar precisamente com tais dilemas. Questes fundamentais de justia transicional, legitimidade de regimes e identidades coletivas foram formuladas como argumentos constitucio-nais e, assim, rapidamente encontraram seu caminho at os degraus das cortes.

    4. Por que isto est acontecendo?

    A rea da megapoltica judicializada talvez a concretizao mais completa da noo do direito constitucional como poltica. Os exemplos discutidos at aqui realam o fato de que nem uma estrutura constitucional favorvel ao ativismo judicial, nem juzes famintos por poder ou tribunais constitucionais agressivos so condies suficientes para a judicializao da megapoltica. A afirmao da supremacia judicial do tipo que foi descrito neste artigo no pode acontecer ou se manter sem o suporte tcito ou explcito de atores polticos influentes. pouco realista e at mesmo ingnuo supor que a definio de questes polticas centrais como o conflito sobre a natureza do Canad como uma confederao com dois povos fundadores, o problema de Israel com a pergunta quem judeu e sua con-dio de Estado democrtico e judaico, o conflito sobre o status do direito islmico em pases predominantemente mulumanos, ou a transio democrtica na frica do Sul poderia ter sido transferida para tribunais sem que essa transferncia contasse com no mnimo o apoio tcito dos atores polticos relevantes nesses pa-ses. Como qualquer outra instituio poltica, tribunais constitucionais no ope-ram em um vcuo institucional ou ideolgico. Sua jurisprudncia explicitamente poltica no pode ser entendida separadamente dos conflitos sociais, polticos e econmicos concretos que do forma a um determinado sistema poltico. De fato, deferncia poltica ao Judicirio e a consequente judicializao da megapoltica so partes integrais e manifestaes importantes desses conflitos polticos e no podem ser entendidas isoladamente. Isso nos leva a um aspecto crtico e muitas vezes negligenciado da histria os determinantes polticos da judicializao. Uma autntica judicializao de baixo para cima tem mais chances de ocorrer quando as instituies judiciais so percebidas por movimentos sociais, grupos de interesse e ativistas polticos como rgos decisrios mais respeitveis, imparciais e efetivos do que outras instituies governamentais consideradas muito burocr-ticas ou arenas decisrias majoritrias tidas como enviesadas. Uma judicializao da poltica totalmente abrangente tem, ceteris paribus, menos chances de ocorrer em uma comunidade com um sistema poltico unificado e assertivo, que seja capaz de limitar o Judicirio. Em tais comunidades, a esfera poltica pode fazer ameaas

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    crveis a um Judicirio superativo. Do mesmo modo, quanto mais disfuncionais ou paralisados forem o sistema poltico e suas instituies decisrias em uma dada comunidade organizada como Estado de direito, mais provvel ser a presena de um Poder Judicirio expansivo.104 Maior fragmentao de poder entre os rgos polticos reduz a capacidade que tm de frear os tribunais, e, consequentemente, aumenta a possibilidade de os tribunais se afirmarem.105

    Do ponto de vista dos polticos, a delegao de questes polticas controver-sas para os tribunais pode ser um meio eficaz de transferir responsabilidade, re-duzindo os riscos para eles mesmos e para o aparato institucional no qual operam. O clculo dessa estratgia de redirecionamento de culpa bastante intuitivo. Se a delegao de poderes capaz de aumentar a legitimidade e/ou diminuir a culpa atribuda aos atores polticos pelo resultado da deciso da instituio delegada, ento tal delegao pode beneficiar os atores polticos.106 No mnimo, a transfe-rncia de abacaxis polticos para os tribunais oferece uma sada conveniente para polticos incapazes ou desinteressados em resolver essas disputas na esfera poltica. Essa transferncia tambm pode representar um refgio para polticos que buscam evitar dilemas difceis, nos quais no h vitria possvel, e/ou evitar o colapso de coalizes de governo em estado de fragilidade ou de impasse.107 Da mesma forma, a oposio pode buscar judicializar a poltica (por exemplo, peticio-nando contra polticas pblicas do governo) para dificultar a vida do governo da vez. Polticos da oposio podem recorrer ao Judicirio na tentativa de aumentar sua exposio na mdia, independentemente de o resultado final da disputa ser ou no favorvel.108 Com frequncia, por trs da transferncia para o Judicirio de questes envolvendo mudanas de regime encontraremos uma busca poltica por legitimidade (considere, por exemplo, a j mencionada legitimao do golpe de Estado militar pela Suprema Corte do Paquisto, em 1999). Estudos empricos confirmam que, na maioria das democracias constitucionais, tribunais superiores tm mais legitimidade e mais apoio da opinio pblica do que virtualmente todas as outras instituies polticas.109 Isso verdade mesmo quando os tribunais se engajam em manifestaes explcitas de jurisprudncia poltica.110

    A judicializao da megapoltica tambm pode ser alimentada por tentativas de preservao hegemnica de grupos sociopolticos dominantes que estejam com receio de perder seu controle sobre o exerccio do poder poltico. Estes gru-

    104 Guarnieri e Pederzoli, 2002:160-182.105 Ferejohn, 2002.106 Voigt e Salzberger, 2002. 107 Graber, 1993.108 Dotan e Hofnung, 2005. 109 Fletcher e Howe, 2001; Gibson et al., 1998.110 Caldeira et al., 2003.

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    pos e seus representantes polticos so mais propensos a delegar ao Judicirio questes estruturantes sobre a construo da nao e sobre identidades coletivas quando suas vises de mundo e preferncias polticas esto sendo cada vez mais contestadas nas arenas decisrias majoritrias.111 Talvez a melhor ilustrao des-sa tendncia possa ser encontrada em pases onde o crescente suporte popular a modos teocrticos de governana coloque em xeque as preferncias culturais e polticas de elites moderadas e relativamente cosmopolitas.112 Nesses cenrios, uma estratgia cada vez mais comum por parte dos detentores do poder poltico, que representam as elites, tem sido a transferncia de conflitos fundamentais so-bre identidade coletiva ou sobre a relao entre religio e Estado para tribunais constitucionais, em detrimento da esfera poltica.

    Dado o seu desproporcional acesso e influncia sobre a arena jurdica, elites sociais em comunidades que enfrentam profundas divises entre orientaes se-culares e religiosas procuram diminuir a possibilidade de contestao efetiva s suas preferncias polticas seculares ocidentalizadas. O resultado tem sido uma judicializao sem precedentes de questes envolvendo identidades coletivas fun-damentais, em especial... questes de religio e Estado, e a consequente emergn-cia de tribunais constitucionais como importantes guardies dos interesses secu-lares desses pases.

    No mesmo sentido, tem-se observado que a judicializao de questes so-bre a formao de identidades coletivas mais vivel em casos de desarmonia constitucional, causados pelo comprometimento da comunidade com valores aparentemente conflitantes, como a autodefinio de Israel como um Estado si-multaneamente judaico e democrtico.113 Tambm mais vivel quando os valores protegidos na Constituio contrastam com os valores predominantes entre a po-pulao. Consideremos, por exemplo, a separao constitucional estrita entre re-ligio e Estado na Turquia, apesar de a grande maioria dos turcos se definir como de mulumanos devotos.

    A judicializao da poltica pode refletir a competitividade do mercado elei-toral de uma comunidade ou os horizontes temporais dos governantes. Segundo o modelo de alternncia eleitoral, por exemplo, quando um partido governante espera vencer diversas eleies seguidas, a probabilidade de se ter um Judicirio poderoso e independente baixa. Porm, quando um partido governante tem bai-xa expectativa de permanecer no poder, torna-se mais propenso a apoiar um Judi-cirio poderoso, garantindo assim que o prximo partido governante no poder

    111 Hirschl, 2004.112 Idem.113 Ver Jacobsohn (2004).

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    usar o Judicirio para fins polticos.114 Do mesmo modo, quando atores polticos so impedidos de implementar plenamente sua agenda, podem tentar vencer os obstculos estimulando o exerccio ativo do controle de constitucionalidade por um Judicirio que seja simptico sua agenda.115 A judicializao da megapoltica pode permitir que governos imponham a comunidades enormes e heterogneas uma poltica centralizadora de tamanho nico116 (consideremos, por exemplo, o efeito uniformizador da jurisprudncia constitucional de tribunais superiores em comunidades extremamente heterogneas, como os Estados Unidos ou a Unio Europeia). Por fim, a transferncia de grandes questes controversas para tri-bunais ou outras instituies decisrias quase profissionais e semiautnomas, tan-to domsticas quanto supranacionais, pode ser vista como parte de um processo maior pelo qual elites polticas e econmicas procuram proteger a elaborao de polticas pblicas das vicissitudes da poltica democrtica, ao mesmo tempo que manifestam apoio a uma concepo schumpeteriana (ou minimalista) de demo-cracia.117

    A transferncia de questes fundamentais sobre identidades coletivas para os tribunais raramente leva a decises contrrias aos interesses dos atores que opta-ram pela delegao de poder s instituies judiciais. Do mesmo modo, o avano da justia transicional atravs dos tribunais tem andado na melhor das hipteses a passos pequenos e quase letrgicos. Ocasionalmente, quando provocados a se ma-nifestar contra o establishment, os tribunais podem reagir com decises que amea-am alterar as relaes de poder poltico que definem o prprio lugar do tribunal na comunidade. Na maioria dos pases do novo constitucionalismo, os legislado-res tm sido capazes de responder de forma efetiva a tais decises desfavorveis ou de simplesmente obstruir sua implementao. Talvez a ilustrao mais clara da necessidade de suporte poltico para a terceira face da judicializao possa ser encontrada nas inequvocas reaes da esfera poltica contra manifestaes inde-sejadas de ativismo judicial.

    Como nos mostra a histria recente da poltica constitucional comparada, manifestaes recorrentes de interveno judicial no solicitada na esfera polti-ca em especial decises inconvenientes sobre problemas polticos altamente polmicos levaram a significativas retaliaes polticas cortando as asas dos tribunais hiperativos. Essas retaliaes incluem a reviso legislativa de decises controversas; a interferncia poltica no processo de preenchimento das vagas nos tribunais e nas garantias inerentes ao cargo, com vistas a assegurar a indicao de

    114 Ver Gillman (2002). 115 Whittington, 2005. 116 Morton, 1995; Goldstein, 2001.117 Hirschl, 2004:211-223.

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    juzes obedientes e/ou bloquear a indicao de juzes indesejveis; tentativas de se preencher o tribunal (court-packing) por parte dos detentores do poder poltico; aplicao de sanes disciplinares, impeachment ou remoo de juzes inadequados ou hiperativos; introduo de restries jurisdio dos tribu-nais, ou a poda dos poderes de controle de constitucionalidade. Em alguns casos (Rssia em 1993, Cazaquisto em 1995, Zimbbue em 2001 e Equador em 2004), as aes adotadas como parte da retaliao poltica resultaram em crises constitucio-nais que levaram reconstruo ou dissoluo das respectivas cortes supremas. Podemos acrescentar a essa lista respostas polticas mais sutis, e possivelmente mais letais, como a pura e simples inobservncia das determinaes judiciais por parte da burocracia estatal, ou a implementao vagarosa ou relutante de decises indesejadas.118

    So muitos os exemplos de situaes de reviso legislativa de decises judi-ciais no mundo do novo constitucionalismo. Executivos e legislativos nos EUA frequentemente reviram, neutralizaram ou driblaram decises de cortes constitu-cionais.119 Em sua deciso mais famosa, no caso Mohammed Ahmad Kan v. Shah Bano Begum, a Suprema Corte da ndia decidiu que o direito infraconstitucional de esposas negligenciadas receberem dos maridos auxlio para sua manuteno deveria se manter independentemente de quaisquer outras disposies legais apli-cveis s partes.120 Tal deciso teve implicaes srias para a tradicional prtica in-diana de deixar que temas religiosos centrais fossem resolvidos pelas instituies muulmanas. Representantes tradicionalistas da comunidade mulumana tomaram a deciso como prova das tendncias homogeneizantes dos hindus, que ameaavam enfraquecer a identidade mulumana. O Parlamento da ndia se curvou s macias presses polticas de mulumanos conservadores e reverteu a deciso da Suprema Corte em Shah Bano atravs da aprovao da Lei das Mulheres Muulmanas (prote-o aos direitos de divrcio). Apesar do seu ttulo reconfortante, a nova lei desfez a deciso da Corte, privando mulheres mulumanas do direito de recorrer aos tribu-nais estatais para pedir pagamentos de penso aps o divrcio. A lei tambm isen-tou ex-maridos mulumanos de outras obrigaes ps-divrcio. Aparentemente, a Suprema Corte entendeu o recado. Ao julgar um caso sobre a constitucionalidade da Lei das Mulheres Muulmanas, a deciso da Corte foi sensivelmente mais modera-da e ambgua do que sua deciso original em Shah Bano.121

    Podemos mencionar tambm a dura reao poltica e a correspondente rever-so por vias legislativas da expanso dos direitos dos aborgenes promovida pela

    118 Conant, 2002; Rosenberg, 1991; Garret et al., 1995. 119 Peretti, 1999.120 Muhammed Ahmad Kan v. Shah Bano Begum, A.I.R., 1985, S.C. 945. Ver tambm Shachar (2001). 121 Danial Latifi v. Union of India, A.I.R., 2001, S.C. 3958.

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  • O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no Mundo 19

    Suprema Corte australiana. Na deciso histrica no caso Mabo v. Queensland II, a Suprema Corte abandonou o conceito jurdico de terra nullius (terra vaga) que por sculos servira como base para a negao formal da validade das reivindica-es de aborgenes como nativos estabelecidos a direitos de propriedade sobre a terra que ocupam, e sustentou que o ttulo aborgene no se extinguiria com a mudana de soberania.122 No caso The Wik Peoples v. Queensland, a Suprema Corte sustentou que a cesso de terras pastorais a terceiros por parte do governo no necessariamente extinguiria o ttulo nativo.123 Esta extino s ocorreria depen-dendo dos termos especficos da cesso de terras pastorais e da legislao que a sustentava. As potencialmente profundas implicaes redistributivas de Mabo II e Wik causaram imediata reao popular, junto com os poderosos setores agrcola e minerador, apoiados pelos governos de Queensland, da Austrlia do Oeste e do Territrio Norte, demandando uma extino de forma ampla e geral do ttulo nativo de propriedade. No incio de 1997, o governo conservador de John Howard cedeu deliberadamente mobilizao poltica contra a Corte, introduzindo no Native Title Act modificaes que, para todos os fins, reverteram a deciso do caso Wik.

    Consideremos tambm o caso de Cingapura. Respondendo prontamente a uma deciso desfavorvel da Suprema Corte de Cingapura sobre o direito ao de-vido processo legal de dissidentes polticos detidos por conspirao comunista para derrubar o governo, o governo de Cingapura (controlado, nas ltimas qua-tro dcadas, pelo Partido da Ao do Povo) emendou a Constituio para revogar a autoridade da Corte para exercer qualquer controle significativo da constitucio-nalidade de medidas governamentais de deteno preventiva.124 Em uma deciso de 1993, largamente divulgada na imprensa, o Comit Judicial do Conselho de Es-tado CJCP (Privy Council), em Londres, reverteu uma deciso da Corte Superior de Cingapura expulsando o Sr. J. B. Jeyartenam um lder poltico de oposio da Ordem dos Advogados de Cingapura. Antes da deciso no caso Jeyartenam, o status do CJCP no topo do sistema judicial de Cingapura parecia inquestionvel. Mas, to logo decidiu de forma contrria aos interesses polticos da elite dominan-te do pas, o CJCP foi denunciado pelos oficiais governamentais como interven-cionista, exorbitando de seu papel previsto, alienado das decises locais e fazendo poltica. Em questo de semanas aps a deciso do CJCP, o governo de Cingapura aprovou uma emenda constitucional que aboliu de uma vez por todas a possibilidade de recurso para o CJCP.125

    122 Mabo v. Queensland II, 1992, 175 C.L.R. 1.123 The Wik Peoples v. Queensland, 1996, 187 C.L.R. 1.124 Chng Suan Tze v. Minister of Home Affairs, 1988, 1 S.L.R. 132 (Sing.).125 Silverstein (2003). Seow, Francis T. The politics of judicial institutions in Singapore. Disponvel em: .

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  • Revista de Direi