Artigo Leis Da Alimentação

download Artigo Leis Da Alimentação

of 24

Transcript of Artigo Leis Da Alimentação

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    1/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 171

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    LIMA, Eronides da Silva. Quantidade,qualidade, harmonia e adequao:princpios-guias da sociedade sem fomeem Josu de Castro.Histria, Cincias,Sade Manguinhos, Rio de Janeiro,v.16, n.1, jan.-mar. 2009, p.171-194.

    Resumo

    Analisa o vnculo entre o biolgico e osocial estabelecido por Josu de Castroem seus estudos da alimentao. Estoem evidncia: primeiro, como o autorintroduziu os princpios da dietticamoderna, ao tempo em que

    desvendava a fome e a subalimentaonas regies brasileiras, com vistas aconfigurao da poltica alimentarnacional; segundo, como ampliou odebate, dando visibilidade dinmicados estados e aos rumos polticos de ummundo em demolio, em que fome ealimentao eram parte intrnseca dadistribuio espacial do poder. Naconjuntura ps-Segunda GuerraMundial, os princpios dietticos dequantidade, qualidade, harmonia eadequao foram transpostos comoprincpios-guia da sociedade sem fomeem escala planetria.

    Palavras-chave: alimentao; nutrio;fome; sociedade.

    Abstract

    This article analyzes the links between thebiological and social spheres established byJosu de Castro in his studies ofalimentation. First it looks at how theauthor introduced modern dietary principlesat the same time that hunger andmalnutrition were unveiled in parts ofBrazil, aiming at the configuration of anational alimentation policy. Second, at itexamines how he expanded the debate,giving visibility to the dynamics of statesand the political direction of a world thatwas being dismantled in which hunger andalimentation were an intrinsic part of thespatial distribution of power. In the postwarscenario the dietary principles of quantity,quality, harmony and adequacy weretransposed as the guiding principles for asociety without hunger at the global scale.

    Keywords: alimentation; nutrition; hunger;society.

    Quantidade, qualidade,harmonia e adequao:

    princpios-guia dasociedade sem fome em

    Josu de Castro

    Quantity, quality, harmonyand adaption: the guiding

    principles of a society withouthunger in Josu de Castro

    Recebido para publicao em agosto de 2007.

    Aprovado para publicao em dezembro de 2007.

    Eronides da Silva LimaProfessora do Departamento de Nutrio Social e Aplicada

    Instituto de Nutrio/Universidade Federal do Rio de JaneiroRua Apria, 30/302

    21940-000 Rio de Janeiro RJ [email protected]

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    2/24

    172 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    Em momento de crise extrema como este que atravessamos, temos que

    enfrentar a dura verdade dos fatos e concordar com o grande RomainRolland de que a mentira herica uma covardia e que s h umherosmo no mundo: ver o mundo tal qual e am-lo assim mesmo. nesta ordem de idias, com a convico que devemos todos trazernossa cooperao pessoal para disciplinar, no bem da humanidade, astremendas foras sociais em choque na hora presente, que apre-sentamos aos homens de boa vontade do mundo principalmenteaos dirigentes polticos, intelectuais e aos cientistas, este documentoque resolvemos chamar deLivro negro.

    Josu de Castro, O livro negro da fome

    Diante da vastido e profundidade da obra do autor, no tarefa simples apreenderseu ncleo de sentido a fome e a alimentao. O percurso feito at hoje foi marcado,

    de certa forma, por expresses e abordagens da fome relacionada aos estgios dedesenvolvimento/subdesenvolvimento econmico-social, e pouco se tem atentado para aquesto do prprio fio condutor que estabelece o marco dessa relao: o que alimentaoe nutrio, em sua concepo? Que princpios orientavam a sociedade sem fome por eleidealizada? preciso l-lo com mais ateno neste ponto. Para iniciar, a epgrafe acima sugestiva, por tornar visvel o centro da motivao que inspirou toda a sua trajetria comointelectual pblico.

    Isso fica evidente a partir da estria do primeiro livro, O problema alimentar brasileiro(Castro, 1934), em um contexto sombrio, como descrevia o jornal Dirio Carioca: 1934

    Um anno tragico para a humanidade. Guerras, Revolues, terremotos e attentadosassignalaram singularmente os ultimos doze mezes. A matria registrava que aquele anohavia sido um dos mais dramticos dos ltimos tempos depois da Primeira Grande Guerrae destacava, entre os diversos casos listados, o desfecho mais contundente: em agostomorria o presidente Hindemburg e Hitler tornava-se o supremo chefe dos alemes. Tudoacontecia logo aps a limpeza nazista em que ele ordenou a execuo de numerososchefes indese-jveis. Falava-se em uma nova guerra (Um ano tragico..., 29 dez. 1934).

    Quanto ao Brasil, o mesmo jornal trazia tona a crise engendrada pela RepblicaVelha e mostrava os conflitos violentos na capital da Repblica, chamando a ateno paraas sucessivas notcias de suicdios (Suicdios..., 16 nov. 1934).1 Em retrospectiva do ano emfoco, denunciava os descalabros da cultura poltica clientelista e seus danosos efeitos, mas

    apontava perspectivas optimistas com a revoluo de 1930.2Em face dos novos rumosdados pelo governo de Getlio Vargas, o povo brasileiro tinha motivos sobejos para semanter otimista e acreditar que, em pouco tempo, seramos senhores de uma posioeconmica invejvel no mundo (Perspectivas..., 16 dez. 1934).

    Concomitantemente, oJornal do Brasilhavia registrado o impacto da crise na alimentaodo povo, com a matria Frutas baratas e frutas-caras,na qual descrevia o cenrio docusto de vida no mercado da capital da Repblica: diante das bancadas, todas as classessociais, desde a cozinheira negra, at a senhora da alta sociedade, percorriampacientemente o mercado e no se cansavam de chorar o preo das mercadorias (Frutasbaratas..., 31 mar. 1934).

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    3/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 173

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    Assim, em meio s hostilidades internacionais que sinalizavam uma nova guerra mundial

    e em clima de agitao e esperana no mbito interno, o ano de 1934 expirava com novose velhos desafios, que levaram Castro a tecer respostas indagao: racional o nossoregime alimentar? ( racional..., 3 nov. 1934). No se falava explicitamente da fome, masa questo pedia soluo: Qual o regime alimentar que devemos seguir?. Essa pequenanota da imprensa trazia ao pblico brasileiro os captulos da obra Alimentao, publicadoem 1934 pelo mdico e professor argentino Pedro Escudero, influente iluminador em seusestudos iniciais (Qual o regime..., 4 nov. 1934).

    Nesse sentido, foroso registrar uma primeira observao relevante: o olhar que revelaprecisa afastar-se de uma viso romntica do passado e sublinhar os avanos e limites dosprincpios dietticos de Castro, olhando para o futuro. A mesma indagao sobre Qual oregime alimentar que devemos seguir? perpetua-se no imaginrio presente, ocupando

    manchetes de destaque nos meios de comunicao.Exemplo disso a matria de capa darevista poca, sob o ttulo A bilionria e confusa indstria da dieta (A bilionria econfusa..., 27 mar. 2006). Em meio a controvrsias tericas, anuncia-se uma multiplicidadede frmulas alimentares e propala-se uma nova revoluo alimentar sob a gide dabiotecnologia, no momento em que avana a biologia molecular. Ao tempo em que seinstitui a produo de alimentos transgnicos, forja-se uma transformao do estatuto daespcie humana: a identidade inscrita no corpo (Prodi, 1993; Moser, 2004).

    Fato que os modos de conhecimento mudam continuamente enquanto novasrealidades emergem, novas relaes so feitas, novas formas lingusticas vo sendo produzidas(Prodi, 1993, p.127). Como assinala Carneiro (2003, p.29), a histria da alimentao a

    histria da luta contra a fome. A histria da fome interligada com a histria da abundncia.O balano da produo historiogrfica da alimentao, realizado por esse autor, demonstroucomo, no Brasil e no mundo, as abordagens sobre o assunto se modificaram ao longo dostempos, a partir de mltiplos pontos de vista. Isso encontra ressonncia na viso de Campello(2 fev. 1936), de que a cincia da nutrio tem em si a experincia de todas as pocas, de todosos povos e de todos os pases. Desse modo, Rezende (2004, p.178) tem razo quando pondera: importante seguir esse percurso e encarar as transformaes no modo de se pensar acomida, uma vez que elas refletem as mudanas das sociedades e reafirmam a idia de quecomida e sociedade so elementos sem dvida imbricados.

    Disso resulta a segunda observao relevante: estril discutir os princpios dietticos deCastro fazendo um recorte apenas biolgico, porque o modelo alimentar proposto no

    somente estava imbricado nas sociedades, mas trazia em si a concepo de uma sociedadesem fome, como se ver adiante. certo que elegeu a fisiologia como ponto de partida, nolivro O problema alimentar brasileiro(Castro, 1934), com prefcio de Pedro Escudero. Mas tambm notrio que, no conjunto de sua obra, conceituou a fome e a alimentao em suadupla face como objetos de interesse das sociedades, retirando-as do mbito mdico. Comoo problema era de interesse vital para as naes, para que se obtivesse um profcuoconhecimento de sua essncia era necessrio recorrer aos referenciais de diversos saberes,deixando de lado os modelos teraputicos.

    H consenso na literatura recente que o interesse pela abordagem dos determinantessociais sobre as doenas retrocedeu com o surgimento da microbiologia e das pesquisas

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    4/24

    174 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    epidemiolgicas, s ressurgindo, nas dcadas de 1920 e 1930, sob a perspectiva da causalidade

    mltipla. Tal revitalizao visvel na obra de Castro e instiga o leitor a indagar o quehavia de revolucionrio na concepo da sociedade sem fome, sob os princpios dietticosda racionalidade alimentar, ou se seus estudos e pesquisas se aproximavam mais das reformasracionalizadoras da poca.

    Seguindo a linha de raciocnio, a tese mal de fome e no de raa, formulada pelo au-tor no livroAlimentao e raa(Castro, 1936), exemplar como irreverncia explcita contraa canonizao dos mtodos disciplinares em voga. Essa foi uma marca da sua originalidadecomo pensador, dado que a assimilao de conceitos de diversos campos do saber, para oestudo da alimentao e da fome, se confrontava com a fragmentao dos saberes emascenso na vida acadmica, proporcionando novos conhecimentos de aspectos obscurosdesse tema considerado tabu. Foi assim que elegeu, como objeto de reflexo terica e

    prtica, desde as condies de vida e alimentao das classes operrias de Recife, organizao econmica de produo, passando pelas polticas pblicas do setor.

    A hiptese mais debatida que ele visava encontrar uma razo estrutural que organizasseos diversos fatores envolvidos na produo da fome, realizando o dilogo interdisciplinarsob a orientao do mtodo geogrfico e retirando os obstculos que o impediam deiluminar a questo da relao entre o biolgico e o social.No entanto, medida que seavana na leitura das ltimas publicaes, nota-se que no se deve apenas aos mritos dainterdisciplinaridade o que de mais valioso se pode extrair do conjunto da obra. Aindisciplinaridade se apresenta como o ensinamento maior do dilogo estabelecido peloautor na construo do conhecimento de uma trade de elementos indisciplinados a

    fome, a alimentao e a sociedade , adotando aqui a frtil idia de Sevalho e Castiel(1998). Enfim, o que configurou o pensamento de Castro foi a capacidade de estabelecerrelaes globalizadoras: a nfase ia do nacional, no livro Geografia da fome(Castro, 1946b),ao universal, na Geopoltica da fome (Castro, 1968a, 1968b), marcando decisivamente oincio de sua trajetria internacional.

    No esforo de alcanar todos os elementos que tal construo exigia, Castro fez omapeamento geogrfico das condies alimentares do Brasil e do mundo. Precisava estar altura dos novos tempos, estabelecendo um contato com a realidade global, seus problemase conflitos. Para isso, era preciso ir alm de uma configurao terica da alimentao e dafome, externalizando as idias e intervindo nos assuntos cotidianos do mundo poltico eeconmico.

    luz das concluses inferidas, reuniu os elementos para uma macropoltica de desco-lonizao social e forneceu os princpios-guia da sociedade sem fome. Dessa forma, colocavaem evidncia o valor da sua obra e, ao se aproximar da realidade mundial, assumia o pesoda prova, afirmando que a fome foi a grande descoberta de meados do sculo XX.

    Portanto o grande desafio tico-poltico est na interpretao do modelo alimentarproposto como fruto da poca, a comear das demandas da sociedade brasileira em cujoambiente nasceu. Para efeito deste artigo, dar-se- nfase a alguns traos fundamentais deseis livros que sintetizam bem os termos do debate pelos quais a fome e a alimentaoadquiriram expresso como dimenses prprias das organizaes sociais. So eles O problemaalimentar brasileiro (1934),Alimentao e raa(1936),A alimentao brasileira luz da geografia

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    5/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 175

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    humana(1937), Geografia da fome: a fome no Brasil (1946) e Geopoltica da fome, volumes 1 e 2

    (1968a, 1968b).Em outras palavras, na anlise estaro em evidncia, primeiro, como o autor introduziu

    os princpios da diettica moderna, delineando o conceito de racionalidade alimentar, aotempo em que desvendava a fome e a subalimentao nas diversas regies brasileiras comvistas a um objetivo prtico a configurao da poltica alimentar nacional; segundo,como ampliou o debate, dando visibilidade dinmica dos Estados e os rumos polticos deum mundo em demolio, em que a fome e a alimentao eram parte intrnseca dadistribuio espacial do poder.

    Em suma, o objetivo desta exposio explicitar a forma como o autor estabeleceu ontimo vnculo entre o biolgico e o social, transpondo os princpios dietticos na concepoda sociedade sem fome em escala planetria, que culminou na criao, em Paris (1957), da

    Associao Mundial de Luta Contra a Fome (Ascofam).3

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao: princpios dietticos da alimentaoracional e a geografia da fome no Brasil

    Como parte da arquitetura do mtodo, a fisiologia era o pr-requisito para a construodas bases cientficas do conceito de racionalidade alimentar. O primeiro postulado cientficodesse conceito estava na evidncia de que o antecedente do fenmeno vital era sempre umfenmeno qumico, e que a energia potencial dos alimentos era a primeira fase do sistemade transformaes que sofria a energia no organismo vivo. Era possvel prever as variaes

    desses fenmenos, orientar e modificar sua marcha de acordo com as necessidadesindividuais e obter o mximo de rendimento vital luz do estudo da bioenergtica,conforme as variaes que as condies climticas imprimiam ao habitante dos trpicos.As despesas do organismo podiam ser calculadas com base no metabolismo basal e nometabolismo de trabalho, considerando-se tambm o metabolismo da digesto e as variaesde idade, sexo, constituio corporal, estado de alimentao e clima (Castro, 1934). Issosugere que, no incio da produo, havia forte preocupao em determinar, previamente,o normal e seus verdadeiros limites de variao, enquanto se exploravam a natureza e osefeitos da fome e da subalimentao.

    Para Castro, a noo biolgica do que seja alimento variava necessariamente de acordocom as concepes do momento, com as verdades de cada etapa cientfica. Reconhecia

    que do conhecimento da bioenergtica de Lavoisier e Laplace brotou a concepo cartesianada mquina viva, em que o alimento era concebido como fonte de energia. 4No entanto,advertia que, embora essa definio de alimento fosse completa para os fisiologistas dosfinais do sculo XIX, ela no satisfazia na sua poca, depois que surgiu o conceito devitamina, ampliando-se o conhecimento das doenas de carncia: o raquitismo, o escorbuto,o beribri, a xeroftalmia e a pelagra, enfermidades conhecidas de longa data, quandoainda no se conheciam as vitaminas.

    Segundo Veloso (1940, p.159), o descobrimento das vitaminas na alimentao humanadata de 1911. Foi o mdico polonez Casemiro Funk que, em investigaes sobre a etiologiado beribri, encontrou no farelo de arroz certa substncia que administrada aos beribricos

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    6/24

    176 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    os curava rapidamente. As sucessivas descobertas permitiram definir as vitaminas como

    ligaes orgnicas que, em pequenssimas pores, deviam ser introduzidas no organismoa fim de facilitar a conservao e a reproduo celulares e ao mesmo tempo garantir a

    funo normal dos rgos.

    De Funk at os nosso dias a histria da vitaminas pode, com efeito, ser escrita com as maisbelas letras do alfabeto. J se tem hoje admiravelmente catalogados os alimentos mais ricos emvitaminas, atravs de anlises e dosagens criteriosas; h timas classificaes de vitaminas;conhecem-se a maior parte das suas frmulas qumicas; a influncia que exercem o sol, osraios ultra-violetas e certas glndulas endcrinas sobre as vitaminas; ... Talvez que em futuroprximo surjam at as vitaminas da alegria, da moral, do entusiasmo, vitamina do dio e ...que sei mais! Porque a vitamina do amor j existe. No a vitamina E?5

    Alm disso, na nova era da nutrio, que ampliava o conhecimento das doenas decarncia, os estudos fisiolgicos deveriam incluir o clima como primeira variante da relao

    entre o homem e o meio geogrfico. Em extensa matria publicada no Dirio Carioca

    (Castro, 19 jul. 1936), destacava a supremacia da espcie humana na aclimatao s variantes

    meteorolgicas do ambiente, criando seus artifcios tcnicos como a casa, o abrigo e o

    vesturio. A alimentao era o mais esquecido desses fatores e, no entanto, atravs da

    nutrio que o clima atua mais fortemente sobre o homem.6

    Foi ento quem primeiro documentou suas concluses sobre a forma como o clima

    interagia com a fisiologia do homem dos trpicos, procedendo determinao do metabo-lismo basal de 15 habitantes de Recife (PE). A partir do clculo da cifra mdia de 33,8 calorias

    obtida em seu estudo, definiu que o metabolismo basal dos brasileiros era de 10% a 30%

    menor do que o dos habitantes dos climas frios e temperados ou dos climas quentes,considerando a constante fisiolgica padro de Dubois: 39,7 calorias. Ficava posta a primeira

    indicao para a determinao da quota de energia da alimentao, em virtude da

    intensidade dos fatores que compunham a temperatura efetiva das diversas regies do pas.

    O segundo elemento do meio que interagia com o metabolismo orgnico do homem

    era o trabalho, o que implicava a necessidade de calcular uma taxa energtica adicionalreferente s vrias ocupaes habituais, representadas em calorias despendidas por hora

    em determinadas atividades. Com esta equao, Castro (1934) estabelecia, tambm, o

    biotipo mdio brasileiro, homem, com 40 anos de idade, pesando 60kg, com 1,62m de

    altura, sapateiro, trabalhando oito horas por dia e que gastava 2.769 calorias dirias. No

    livro A alimentao brasileira luz da geografia humana (Castro, 1937), ele aprimorava osestudos fisiolgicos desenvolvidos sobre o metabolismo basal e chegava a uma definio

    classificatria da categoria trabalho, como segue: trabalho sedentrio (intelectual, alfaiate);

    trabalho leve (sapateiro, encadernador); trabalho moderado (pintor, carpinteiro) e trabalhopesado (ferreiro, serrador de madeira).

    Foi Quetelt que, na Blgica, iniciou o movimento biomtrico. Ao estudar em 1843 as

    variaes da estatura do homem, constatou a existncia de um polgono de freqncia que

    tendia para uma curva em sino semelhante curva binomial de Gauss. A distribuio dos

    resultados de medida aqum e alm do valor mdio garantia que a mdia gaussiana era

    uma mdia verdadeira. Entre um grande nmero de homens cuja estatura variava dentro

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    7/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 177

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    de limites determinados, aqueles que mais se aproximavam da estatura mdia eram os mais

    numerosos. A esse tipo humano Quetelt deu o nome de homem mdio (Canguilhem,1990).7

    Nessa perspectiva, Castro fechava o clculo de 2.800 calorias como padro da quotaalimentar diria recomendada para o nosso homem, alertando que no bastava, para quea alimentao fosse perfeita, que ela contivesse o total energtico necessrio s despesasdo organismo. Considerando que s a parte absorvida podia ser utilizada e constitua ocoeficiente digestivo, era preciso que essa alimentao fosse formada por quantidadessatisfatrias e em determinadas propores mtuas das vrias espcies de nutrientes:protenas, gorduras, hidratos de carbono, vitaminas, minerais e gua. A rao energticado homem que executava trabalho mediano no clima caracterstico local devia fornecer asseguintes propores desses elementos: 20% a 30% do total de calorias em matrias proticas,

    o que equivalia a 1g de protena por quilo de peso do indivduo adulto, 20% a 30% emgorduras, e os 50% restantes em hidratos de carbono.

    Se o conceito cartesiano de mquina viva fornecia a Castro elementos para o conhe-cimento das despesas energticas humanas, o alimento era a fonte das receitas orgnicas eelemento de interao entre o homem e o ambiente. O conhecimento da sua composioqumica e suas funes fisiolgicas permitia classific-los em alimentos energticos,alimentos plsticos e alimentos reguladores. O valor energtico era de ordem quantitativae se encontrava nos alimentos ricos em hidratos de carbono e nas gorduras. O valor plstico eregulador era de ordem qualitativa e se encontrava nos alimentos ricos em protenas,vitaminas e minerais.

    Com isso estavam lanados os quatro princpios dietticos que imprimiam sentido aoconceito de racionalidade alimentar, em linguagem cientfica moderna: quantidade,qualidade, harmonia e adequao. A quantidade foi definida pela suficincia calrica darao alimentar para repor as perdas energticas do organismo; a qualidade, pelavariabilidade de alimentos e o seu teor de nutrientes, o que permitia operar com esquemasde substituio e equivalncia; a harmonia, pela proporcionalidade entre os nutrientes e ovalor calrico total; e, finalmente, a adequao, pelo respeito individualidade.

    Um dado importante nessa viso era o de que no bastava saber a quantidade dehomens que produziam, mas tambm a sua qualidade. O novo homem brasileiro assimconcebido adquiria o porte biofsico mdio, sob a marca da robustez, da vitalidade e daeficincia, por um processo de revitalizao alimentar feita em bases cientficas, racionais.

    O que distinguia esses estudos fisiolgicos da alimentao da fase fsico-qumica anteriorera, exatamente, a perspectiva de reposio, ao homem, da qualidade negada. Sob aperspectiva da revitalizao biolgica, a doutrina racial de Gobineau no possua umestatuto de cincia e, alm disso, estava fora do lugar, pois ramos todos mestios e nocabia entre ns a definio do tipo racial puro. Era pela alimentao que se fazia avalorizao eugnica do homem e o aperfeioamento da raa.8

    No livroA alimentao brasileira luz da geografia humana(Castro, 1937), o autor retomavaos dados do inqurito alimentar realizado com a classe operria de Recife, em 1935,demonstrando que as 500 famlias estudadas, num total de 2.585 pessoas, consumiamapenas feijo, farinha, charque, caf e acar, e a maior parte delas (81%) consumia tambm

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    8/24

    178 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    po. Sendo esse o regime habitual da famlia operria, era fcil deduzir o regime alimentar

    individual: cada indivduo se alimenta de 62grs de albumina, 310grs de hidrato de carbonoe 13grs de gordura, num total energtico de 1.646 calorias. ... inegavelmente um regimeinsuficiente, incompleto e desharmnico (p.135).

    Ao comparar com os inquritos realizados em So Paulo por Almeida Junior (set. 1935)e Souza, Cintra e Carvalho (1935), em classes sociais diferentes, Castro (1937) conclua quetanto o inqurito do norte quanto os de So Paulo mostravam que, nas duas regies, aalimentao era sempre inadequada, mesmo em classes de situao econmica relativamenteboa. Assim, nas zonas mais desenvolvidas as falhas residiam nos dficits qualitativos parciais,sendo os mais freqentes o de albuminas de alto valor biolgico e a carncia mineral, emclcio e ferro, que era mal de todo o Brasil e dos mais temerosos.

    O quadro, que se repetia em todos os recantos da nossa terra, demonstrava que, em tais

    condies de nutrio, nenhum povo poderia ser forte, no importando qual fosse a suaraa. Assim, no livro em foco havia um objetivo prtico: a correo desses defeitosalimentares, para a qual impunha-se previamente um zoneamento do nosso territrio,dividindo-o em cinco regies, correspondendo cada uma delas a um tipo de alimentaousual, e caracterstico (Castro, 1937, p.148).

    O autor definiu cinco tipos de rao alimentar padro para cada regio brasileira,assegurando que todos mantinham as propores de alimentos que julgava conveniente ecom total calrico capaz de cobrir as despesas energticas normais do organismo.Considerava que o valor econmico da rao alimentar racional estava em poder-se fixaro salrio-mnimo e determinar as quotas proporcionais das despesas familiares. De fato, osdispositivos legais que definiram o salrio-mnimo constituram o primeiro passo da

    implantao da poltica alimentar estatal. Em janeiro de 1936 foi promulgada a lei 185,que formava as Comisses de Salrio Mnimo (Brasil, 1936) e em 1ode maio de 1940 eraassinado o decreto-lei 2.162 (Brasil, 1940a) instituindo o salrio-mnimo em todo o pas. Osegundo passo foi a criao do Servio de Alimentao da Previdncia Social (Saps), em1940, que implementou o programa da assistncia alimentar aos trabalhadores e suasfamlias, atravs dos restaurantes populares e postos de subsistncia, e aes de educaoalimentar (Brasil, 1940b). Essa poltica sofreu amargos abalos com o desenrolar da SegundaGuerra Mundial, em virtude de seu impacto na produo agrcola e na elevao dos preosdos gneros, o que imps restries de racionamento a toda a sociedade e agravouseveramente a fome no pas.

    A esperana inicial que se depositara no governo Vargas parecia sufocada pela decepo.

    Na matria A rendio dos brbaros, o Dirio Cariocaanunciava o fim da guerra, com arendio de Berlim aos italianos nos campos de batalha. Entretanto havia o sentimentode que a guerra continuava aqui, como denunciava o jornal: Era de se esperar que, passadaa guerra, imediatamente as autoridades responsveis pela fome do povo cuidassem deabastecer suficientemente o mercado, liberando a venda de mercadorias de primeiranecessidade, como o acar e a carne. Lamentava o jornal ter de noticiar que a permannciada guerra no se dava por um conflito armado, mas pela batalha contra o bem pblico (Arendio..., 3 maio 1945).

    Reiterava-se a convenincia de se restabelecer o sufrgio direto para a eleio de presidenteda Repblica e demais instncias polticas para a recomposio democrtica do pas, mas o

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    9/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 179

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    tumultuado processo eleitoral resultou na deposio de Getlio Vargas, anunciada nao

    no dia 30 de outubro do mesmo ano (Getlio deposto..., 30 out. 1945). Com isso,deslanchou-se uma campanha de difamao do Saps pela imprensa e o desmonte dasinstituies responsveis pelo abastecimento de alimentos, generalizando-se as prticascriminosas do cmbio negro, que deixavam a populao merc dos aproveitadores egeraram intenso movimento de revolta popular e estudantil.

    Em tal conjuntura, Castro consolidaria o conceito de fome, com a publicao do livroGeografia da fome: a fome no Brasil (Castro, 1946b). Para que uma regio geogrfica fosseconsiderada rea de fome seria necessrio que as deficincias alimentares que nela semanifestavam incidissem sobre a maioria dos indivduos que compunham seu efetivodemogrfico, a saber: a Amaznia, a Zona da Mata, o Serto, o Centro e o Sul. Com esselivro, traduzido em mais de vinte idiomas, o autor superava os inquritos realizados em

    formas parciais e chegava descrio exaustiva das diversas paisagens. Reiterando osprincpios fundamentais da diettica, assinalava que, para entender os principais defeitosda alimentao da Amaznia, era preciso analis-la de acordo com os modernosconhecimentos de nutrio.

    luz dos parmetros cientficos, o regime das classes pobres de Belm era de apenas 1.800a 2.000 calorias dirias, quando a literatura universal recomendava 3.000 para grupos humanosem atividade de intensidade mdia. No entanto, Castro (1946b) assinalava que tal situaono era to drstica, considerando que o metabolismo basal do homem da Amaznia eracerca de 20% do total calrico das cifras do standarduniversal. Sob a ao modeladora doclima, baixavam no s o chamado metabolismo basal, mas tambm as despesas detrabalho. Com as 2.000 calorias que cada indivduo ingeria diariamente, conseguia-se

    cobrir as despesas bsicas e realizar-se um pouco de trabalho. Ritmo e produo eramretardados como recursos de defesa orgnica, para que os nativos no morressem de fome.

    Os defeitos qualitativos eram mais graves, pois se tratava de uma alimentaoincompleta, com deficincia de elementos nutritivos das mais variadas categorias: protenas,sais minerais e vitaminas. O dficit protico resultava da quase ausncia das fontes deprotenas animais provenientes da carne, do leite, do queijo e dos ovos, deficincia que serevelava no crescimento reduzido e na estatura abaixo do normal dos componentes dapopulao amaznica. Em decorrncia da subnutrio (fomes especficas em numerososprincpios essenciais) ocorriam, em parte, os altos coeficientes de mortalidade infantil. EmManaus esse coeficiente chegava cifra de 239 crianas entre mil, quando nos EstadosUnidos era de 46 por mil, na Noruega, 38 e na Nova Zelndia, 32.

    Era no interior da organizao do sistema econmico produtivo que se constituam oshbitos alimentares que caracterizavam as diferentes cozinhas regionais, com seus alimentostpicos e defeitos correspondentes. Ao contrrio da Amaznia, a pobreza de alimentos noNordeste aucareiro no podia ser explicada base de razes naturais, pois as condies,tanto do solo quanto do clima regional, sempre foram as mais propcias ao cultivo certo erentvel de uma infinidade de produtos alimentares.

    Segundo ele, dos processos culinrios indgenas, poucos se fixaram no panorama dacozinha regional, alm do preparo de pamonha, canjica de milho, beiju, farinha demandioca e paoca. Outra influncia favorvel mais expressiva e enobrecedora dos hbitosalimentares dessa regio foi, sem nenhuma dvida, a do negro, a do escravo negro

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    10/24

    180 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    importado da frica, em cujas regies de origem tinha obtido, pelo cultivo de variadas

    plantas, um regime alimentar dos mais saudveis. Como povo de tradio agrcola do tipode sustentao, o negro reagia contra a monocultura de forma mais produtiva do que ondio. Desobedecendo s ordens do senhor, plantava s escondidas seu roado de mandioca,batata-doce, feijo e milho. Nesse enfoque, a fome no se definiria tanto com base nasdeformaes inerentes aos arranjos culinrios, mas na opresso do latifndio.

    Na cozinha nordestina, o coco entrava numa infinidade de preparaes culinrias:feijo de coco, peixe de coco, arroz de coco, vatap, canjica, pamonha, mungunz, docede coco, cocada e outros pratos e doces de fama universal. O coco, assegurando 25% degordura, garantia a quota desse nutriente na dieta, enquanto o caju fornecia a vitaminaC. Nisso residia a superioridade da alimentao litornea sobre a da zona propriamente damata, ou melhor, da cana. A despeito disso, sobreviviam as interdies (tabus) que se

    projetavam no pouco uso de frutas e verduras, estas consideradas comida de lagarta.Se as manifestaes clnicas especficas da desnutrio do Nordeste no eram

    aparentemente das mais alarmantes, o mesmo no se dava com suas conseqncias indiretas:o baixo rendimento do trabalho e a elevada mortalidade infantil, a qual, entre milnascimentos, vitimava 457 crianas em Aracaju, 443 em Macei e 352 em Natal. Outrondice ligado a essa situao alimentar era a mortalidade por tuberculose, que nas capitaisdo Nordeste era trs a seis vezes maior do que no resto do pas. Salvador (BA), Fortaleza(CE) e Recife (PE), situadas na Zona da Mata, apresentaram respectivamente os ndices de345, 302 e 359 por cem mil habitantes, em 1939. A alta mortalidade global e o fato de quemais de 50% dos bitos ocorriam antes dos trinta anos de idade completavam o quadrocatico da evoluo demogrfica dessa regio (Castro, 1946b).

    O serto apresentava um novo tipo de fome, inteiramente diferente. No mais a fomeatuando de maneira permanente, condicionada pelos hbitos de vida cotidiana, mas seapresentando episodicamente em surtos epidmicos: surtos agudos de fome durante assecas, intercalados ciclicamente com perodos de relativa abundncia nas pocas denormalidade. Eram epidemias de fome global, quantitativa e qualitativa, alcanavam comincrvel violncia os limites extremos de desnutrio e inanio aguda e atingiamindistintamente a todos, ricos e pobres, fazendeiros abastados e trabalhadores do eito,homens, mulheres e crianas.

    digno de nota que, nesse modelo explicativo, acentuava-se uma tendncia dualistaem torno da existncia de dois brasis, cuja evoluo social (e alimentar) se fazia em funo

    de dois plos produtivos: o moderno e o arcaico.9

    Ao contrrio das reas anteriormentedescritas, a rea central e a rea do sul foram consideradas, pelo autor, reas de deficinciasalimentares discretas e menos generalizadas. No eram reas de fome no sentido rigorosodo termo, mas sim reas de subnutrio, desequilbrio e carncias parciais, restritas adeterminados grupos ou classes sociais. A esse respeito, o ganho elucidativo est em captar,da forma mais ampla possvel, a trajetria do pensamento do autor, assinalando que, nocontexto da Guerra, a regio deixou de existir em si mesma. Havia leis cuja escala ultrapassavaa dimenso do lugar. Sob as condies da economia mundial, a alimentao e a fomeeram fenmenos marcados por elementos diversos que caracterizavam e definiam as regies,como segue.

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    11/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 181

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    Fome, alimentao e poder no mapa mundial da Geopoltica

    O livro Geopoltica da fome, cuja primeira edio foi lanada em 1951, ampliou o debateda fome nacional para o campo internacional. Coincidentemente, o autor j ocupava ocargo de membro do Comit Consultivo Permanente de Nutrio da Organizao dasNaes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (FAO) desde 1947 e tornou-se seupresidente em 1951.

    Nesse percurso pde constatar de perto que o mundo vivia uma fase revolucionria dahistria, em que fome e alimentao eram parte intrnseca da distribuio espacial dopoder. Um dos traos significativos da oitava edio do livro que, no deslocamentoproduzido, a geopoltica era definida no como uma arte de ao poltica na luta entreos Estados e, sim, como mtodo de interpretao da dinmica dos fenmenos polticos

    em sua realidade espacial (Castro, 1968a, p.27). Isso lhe permitia correlacionar a crisebiolgica e a crise poltica. Para ilustrar a importncia da geopoltica naqueles tempos, emmatria do Jornal do Brasil, A propsito do comando nico, Mrio Travassos (7 mar.1946) comentava:

    O fator geogrfico cada dia se torna mais preponderante nas decises do Governo, seja qualfor o plano de que se trate. No plano poltico essa preponderncia chegou a criar a Geo-Poltica, o mais recente dos desdobramentos da cincia geogrfica moderna. Ao passo que aGeografia poltica estatstica, a Geo-Poltica exprime a prpria dinmica dos Estados, osrumos polticos traduzidos pelas caractersticas geogrficas. Dessas, o espao e a posioconstituem as linhas mestras, estruturais da Geo-Poltica.

    Sob esse aspecto, Castro assinalava que as duas guerras e as revolues russa e chinesaforam apenas manifestaes aparentes ou sintomas da revoluo em marcha . Em seuconceito de revoluo, a palavra era empregada para expressar um processo de transmutaohistrica pelo qual ocorria a substituio de um mundo de convices sociais por outrodiferente, no qual os valores sociais anteriores j no tinham significao. Nessatransmutao destacava-se certa prioridade dos problemas humanos, incluindo apreocupao com os problemas de proteo e revalorizao biolgica. Esse fato j ficaraevidente na Conferncia de Alimentao de Hot Springs, a primeira convocada pelas NaesUnidas, em 1943, que reuniu tcnicos de 44 naes com o fim de planejar medidas conjuntaspara atenuar a fome em seus pases.

    A situao alimentar ps-guerra atingiu propores alarmantes no mundo. O Dirio

    Carioca, na matria Fome e desemprego para milhes de homens, divulgada no dia deAno-Novo de 1946, relatava que naquele momento a Europa enfrentava uma fase terrvel,com milhes de pessoas desalojadas e desempregadas, enquanto outros milhes se submetiama uma prova de resistncia s molstias e fome, que s poderiam ser vencidas com umaumento considervel dos abastecimentos de alimentos, combustveis e medicamentos,durante os prximos meses (Fome e desemprego..., 1 jan. 1946).

    Em maro do mesmo ano, o presidente Truman dava o tom benevolente da marcaimperialista, ao anunciar ter ordenado a mobilizao completa e imediata de todos osrecursos dos Estados Unidos a fim de vencer a guerra contra a fome em todo o mundo. Sefosse necessrio aos norte-americanos voltarem ao racionamento alimentar, para conservar

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    12/24

    182 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    dez ou 15 milhes de pessoas no exterior livres da fome, isso seria feito (Mobilizao de

    recursos..., 13 mar. 1946).Nesse cenrio pr-reconstruo mundial, Castro (1968a) afirmava a sua f na

    racionalidade cientfica como ordenadora e disciplinadora dos sistemas sociais em choque,acentuando: Um dos grandes obstculos ao planejamento de solues adequadas ao pro-blema da alimentao dos povos exatamente o pouco conhecimento que temos doproblema em conjunto como um complexo de manifestao simultaneamente biolgica,econmica e social (p.55).

    Em oposio teoria de Malthus, desencavada naqueles dias, argumentava que oproblema da fome mundial no tinha origem numa produo limitada por coero dasforas naturais, mas era, antes, um problema de distribuio. A fome e a guerra noobedeciam a qualquer lei natural; eram, na realidade, criaes humanas. Detalhou no

    livro Geopoltica da fomea forma como o fenmeno da fome se manifestava, em intensidadee extenso, nas diferentes coletividades. Reafirmava, no plano global, o mesmo conceitode fome j firmado internamente, pois o objetivo era analisar a fome coletiva, aquela queatingia endmica ou epidemicamente grandes massas humanas. E referia-se no somente fome total, em geral limitada s reas de extrema misria, mas tambm ao evento maisflagrante e grave, em conseqncias numricas, da chamada fome oculta. Pela falta dedeterminados princpios nutritivos indispensveis vida, grupos inteiros da populao sedeixavam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias: A fome ocultaconstitui hoje forma tpica da fome de fabricao humana (Castro, 1968a, p.82).

    No obstante admitisse que esse drama era intrnseco s relaes de poder na estrutura

    dos Estados globais, em seu estudo pretendia situar o homem acima dos partidos e dospreconceitos polticos. A verdade cientfica era o nico partido no qual o problema dafome adquiria forma humana. Isto sugere que a fome no seria suprimida por algumaideologia em si, mas pelo esforo suprapartidrio de construo de um mundo sem fome,posto que, na viso do referido autor, ela era o estopim das revolues e das guerras. Erapreciso analisar os meios potenciais, a fim de dominar a fome dos determinismos geogrficose transform-los no que chamou de possibilismos sociais.

    Dessa forma Castro estudou, ao lado dos problemas da produo, os da distribuio eutilizao racional dos alimentos, tratando das possibilidades geogrficas que o homemaproveitou, mas tambm daquelas que ele no aproveitou ou malbaratou (Castro, 1960,p.4). Submeteu anlise tanto as foras produtivas a serem postas em jogo, como as

    relaes sociais que deviam ser estabelecidas para uma redistribuio eqitativa dos meiosde subsistncia entre os componentes dos diferentes grupos humanos: S assim haveruma esperana de vivermos num mundo limpo das negras e infamantes manchasdemogrficas da fome. S assim deixar de existir uma Geografia da fome (p.75).

    Reafirmava que a superioridade ou inferioridade racial nada tinham a ver com a raa,sendo produtos exclusivos da ao modeladora dos alimentos. Era a fome crnica e endmicaem escala universal o trao mais caracterstico da misria reinante no mundo. Nesse aspecto,sua distribuio espacial comeava pela Amrica Latina, onde o drama era mais contundente,dele participando um nmero maior de personagens cerca de noventa milhes de indivduos,que correspondiam a dois teros do total das populaes que ali viviam. No plano causal, a

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    13/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 183

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    distoro mais evidente, nessa rea, tinha sido o atraso da agricultura em relao ao progresso

    industrial, atraso em grande parte centrado no arcasmo das estruturas agrrias, o que constituafator de conteno do ritmo de expanso industrial. Logo, a fome no passava de umamanifestao tpica do subdesenvolvimento (Castro, 1968a).

    Na Amrica do Sul havia dois setores de fome: o setor A, de alimentao extremamentedefeituosa, em que se associava a fome quantitativa com as insuficincias qualitativasespecficas; e um setor B, com condies alimentares menos graves, em que apenas existiamas fomes especficas em certos princpios nutritivos, sendo o regime alimentar quanti-tativamente suficiente. O primeiro abrangia Venezuela, Colmbia, Peru, Bolvia, Equador,Chile, noroeste e extremo sul da Argentina, a metade ocidental do Paraguai e a metadenorte do territrio brasileiro. O segundo, as terras do Centro-Oeste e do Sul do Brasil, oterritrio paraguaio situado a leste do rio Paraguai, o Uruguai e a regio do nordeste da

    Argentina (Castro, 1968a).A ttulo de ilustrao, destaco algumas passagens do livro Geopoltica da fome (Castro,

    1968a) referentes aos modelos alimentares de determinadas regies, nos quais o autorimprimia uma lgica causal manifestao da fome no planeta: Com populaes queapresentam aspecto de desnutrio intensa e em grande escala verdadeiras reas de fome encontramos na Amrica inglesa duas reas bem caracterizadas e que merecem, por isso,ateno especial: a rea das ndias Ocidentais Britnicas e a rea do sul dos Estados Unidosda Amrica o velho Sul agrrio (p.182).

    A escassez de alimentos e as deplorveis condies de nutrio das ndias Ocidentaiseram conseqncia direta do defeituoso sistema de explorao colonial que os ingleses

    desenvolveram nessas terras. No obstante as variantes locais/regionais, os desequilbriosalimentares estavam historicamente centrados no consumo de substncias amilceas, soba forma de cereais, tubrculos e razes. Os alimentos plsticos, como a carne, o leite e osovos, praticamente no participavam da alimentao do povo, assim como no entravamtambm os vegetais frescos: Assim, em Jamaica os alimentos bsicos so o inhame, abatata-doce, a mandioca e a fruta-po, enquanto que, em Trinidad, se consomemprincipalmente arroz polido, ervilha seca e derivados de cco. Em Barbados, onde ascondies alimentares so das mais alarmantes, a dieta normalmente constituda dearroz, batata-doce, inhame, cebola, ch e acar (Castro, 1968a, p.183).

    Esse era o exemplo mais tpico de como um grupo humano motivado pelos interessesde lucro imediato era capaz de depredar a riqueza natural e transformar regies ricas em

    reas de misria e de fome. Mas foi a realidade do sul agrrio dos Estados Unidos quecausou maior perplexidade. Castro considerava chocante ver includa entre as reas defome toda uma regio geogrfica desse celeiro mundial, abrangendo uma extenso superiora de muitos pases. Neste ponto cabe perguntar se havia, ento, uma ordem simblico-ideolgica subjacente aos sistemas de produo capaz de se sobrepor s vidas orgnicas.

    No era de surpreender que a velha sia tambm se inserisse no panorama mundial dafome, considerando-se as quatro regies estudadas pelo autor: o Extremo Oriente,compreendendo a China e o Japo, o Sudeste Asitico e a ndia. Neste continente, eleestudou primeiro a China, depois a ndia e o Japo. Por fim, analisou a fome na frica,Europa Oriental e Ocidental, incluindo Frana, Espanha e Alemanha (Castro, 1968b).

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    14/24

    184 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    Na impossibilidade de detalhar aqui todas as regies, merece destaque a nfase atribuda

    pelo autor ao modelo agrcola chins, pois era nele que repercutia com mais intensidadeuma questo central na Geopoltica da fome: a transformao produtiva das calorias vegetaisem calorias animais, naquele momento histrico em que emergiam as bases cientficasmodernas de um novo modelo alimentar sintonizado com o desenvolvimento industrialem curso. Preconizava-se o consumo de uma dieta mista, na qual os alimentos de origemanimal adquiriam valor e expresso, em detrimento de uma alimentao exclusiva devegetais. Que seria, ento, do chins se se desse ao luxo de transformar as calorias vegetaisem calorias animais? era a pergunta que fazia Castro (1968b, p.219).

    Segundo ele, enquanto os viajantes ilustres eram recebidos no Oriente com vriasiguarias, os inquritos levados a efeito nas zonas rurais da China apresentavam milhesde indivduos que, durante toda a vida, apenas dispuseram, para suas refeies, de um

    nico alimento o arroz: Trata-se de uma dieta exclusivamente de origem vegetal,excessivamente reduzida e extremamente montona ... . Dedicando-se quase que exclusiva-mente agricultura e plantando alimentos altamente energticos como o arroz, o trigo eo milhete, o chins no alcana, nem assim, uma rao mdia de 2.250 calorias dirias(Castro, 1968b, p.218-219).

    Esses tipos de dieta, insuficientes e incompletos, resultavam na fome crnica daspopulaes, em suas variadas formas, como produtos de uma lgica econmica quedeterminava uma produo, alm de insuficiente, especializada em um nmero limitadode alimentos vegetais. Sofriam os chineses, antes de tudo, de fome quantitativa da falta deenergia em suas dietas para as necessidades bsicas e de trabalho, sendo o ritmo e o

    rendimento de trabalho do chins dos mais lentos e baixos do mundo. A fome de protenasmanifestava-se em variados aspectos. O primeiro sinal era a baixa estatura da maioria doschineses, aumentando do sul para o norte, medida que aumentava a proporo deprotenas nas dietas.

    Disso resulta a primeira constatao significativa na Geopoltica da fome: parte as diferenas,a fome, aqui e no resto do planeta, decorria de um rearranjo global nos sistemas produtivosagrcolas que haviam instalado o latifndio e consolidado a monocultura de ndolecolonizadora. Embora os Estados apresentassem contornos diferenciados em suas estruturaspoltico-produtivas, assemelhavam-se em suas deficincias alimentares: o nfimo consumode carne, leite, ovos, frutas, legumes e verduras, que perpetuava o ciclo vicioso da misria.

    Em termos comparativos, ainda que o autor se surpreendesse com a fome no sul agrrio

    dos Estados Unidos, destacava os avanos do modelo alimentar americano e de outrospases, como Nova Zelndia e Austrlia. A existncia de melhores condies alimentaresnesses pases levava segunda constatao significativa: nessas regies ocorria um verdadeirodeclnio populacional, que equilibrava o nmero de nascimentos em relao ao de mortes.Portanto o fator explicativo para a superpopulao chinesa estava no baixo teor de protenascompletas de origem animal na dieta habitual, que tornava os grupos atingidos maisfrteis.Por esse prisma, fornecia a base biolgica para apoio de sua teoria a teoria dafome especfica como causa de superpopulao de produtos humanos fabricados emexcesso e de qualidade inferior (Castro, 1968a, p.3).

    Em sntese, nas seis obras consultadas foi possvel visualizar, em linhas gerais, a forma

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    15/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 185

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    como se distribua a fome no Brasil e no mundo, bem como a precariedade alimentar,

    caracterizada pela deficincia do consumo de carne, leite ovos, frutas e verduras, fenmenoatribudo ao latifndio e prtica da monocultura, que uniformizavam um padro deconsumo aqum das exigncias biolgicas dos grupos humanos em situao devulnerabilidade social. Dessa forma, pode-se supor que a determinao dos princpiosdietticos quantidade, qualidade, harmonia e adequao nutria de sentido o conceitode racionalidade alimentar, com vistas a estabelecer a primazia da revitalizao biolgica,em face da ordem simblica vigente nos sistemas sociais em crise, que no hesitava emeliminar vidas humanas pela fome.

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao: princpios-guia

    da sociedade sem fome10

    Neste tpico destaco o modo como Castro transps os princpios dietticos em princpios-guia da sociedade sem fome, acenando para o mundo a justa dimenso do seu empreen-dimento. A cincia da nutrio abria novos caminhos no processo civilizatrio, e era pormeio dela que pretendia dar sua cooperao pessoal para disciplinar, as tremendas forassociais em choque (Castro, 1960, p.13), universalizando o estreito vnculo entre o corpobiolgico e o corpo social.

    Advertia, de partida, que a sociedade sem fome s se poderia concretizar com a instau-rao de uma economia humanizada, posto que era preciso, antes de tudo, procurarextirpar do pensamento poltico contemporneo esse conceito errado da economia comoum jogo, no qual devem existir sempre uns que tudo percam para que outros tudo ganhem(Castro, 1968b, p.385). A idia de Castro era fazer da economia um instrumento dedistribuio equilibrada dos bens da terra, para que ningum pudesse defini-la, como acincia das misrias humanas, como o fizera anteriormente Karl Marx.

    No se conclua, com isso, que os postulados de Marx tenham sido privilegiados nadefinio dos princpios-guia da sociedade sem fome. Tampouco tais princpios pareciamenquadrar-se nas reformas racionalizadoras de cunho assistencialista da poca. Nas palavrasdo autor, a inteno era colaborar para uma macropoltica humanizadora, capaz dedisciplinar as foras sociais na perspectiva da emancipao coletiva. De fato, tal meta seimps como a razo substantiva de todo o seu investimento terico e prtico, podendo-seindagar: de que tipo de emancipao ele estava falando? A realizao universal das necessi-

    dades fsicas dos famintos? Uma emancipao geral do gnero humano? Em que medidaos princpios dietticos guias da sociedade sem fome se configuravam em dispositivos propul-sores de uma economia mundial humanizada, capaz de dar o salto para a emancipao?

    Foge ao escopo deste artigo esgotar questes to complexas e abrangentes. Porm, extraindoo que h de mais visvel no livro Geopoltica da fome, v-se que o primeiro princpio dietticotransposto na concepo da sociedade sem fome foi o da quantidade. O primeiro objetivoa conquistar era o aumento da produo mundial de alimentos por meio da ampliao asreas cultivadas e do uso adequado destas, e da conseqente elevao da produtividadepercapitae por unidade de rea, contando-se com os novos recursos tcnicos da cincia agrcola.Da a noo de larga viso poltica, por parte daqueles que viam na agricultura um servio

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    16/24

    186 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    de sade pblica. Uma vez que a agricultura fosse pensada em tais termos, a nica

    considerao importante quanto produo de alimentos deveria ser a convenincia dasade coletiva, ficando em plano inteiramente secundrio as consideraes de ordemeconmica. O prprio uso de uma alimentao bem equilibrada reduziria muito anecessidade mundial de usar substncias antibiticas ou protetoras da sade.

    No entanto, a idia do aumento da produtividade dos alimentos trazia aspectoscontrovertidos. A cincia qumica introduzia o uso dos fertilizantes qumicos na agricultura,o que implicava transpor o segundo princpio diettico na concepo da sociedade semfome o da qualidadenutritiva da produo. Se as disponibilidades de fertilizantesqumicos no eram motivo de preocupao uma vez que os Estados Unidos j haviamgarantido a produo alimentar de guerra utilizando uma mdia anual de cerca de 12milhes de toneladas do produto , o mesmo j no se podia dizer quanto eficincia do

    seu uso para manuteno da sade do solo, da qualidade nutritiva da produo e da sadedas populaes alimentadas com tais produtos (Castro, 1968b).

    Castro confrontava dois pontos de vista: o do doutor E.L. Bishop, que via no uso dosfertilizantes artificiais o meio mais econmico de promover a constante restaurao dos solose a progressiva melhoria das condies de nutrio humana; e o do falecido cientistaingls SirAlbert Howard, que julgava a medida um verdadeiro atentado da civilizao,contra a sade dos solos, das plantas e dos homens. Com sua longa experincia emagricultura na ndia, esse cientista preconizava que a salvao estaria na volta aos processosagrcolas mais naturais e, principalmente, no uso dos adubos naturais, oriundos de diferentesfontes de matria orgnica (Castro, 1968b).

    Perante essas posies opostas, Castro (1968b) indicava uma soluo conciliatria, queassociava o emprego de ambas as tcnicas agrcolas. O uso de hormnios do crescimento einseticidas poderia assegurar o aumento da produtividade de alimentos, sem prejuzo daqualidade. Alm disso, no era s no aumento da produtividade do solo que os homenspodiam encontrar novas disponibilidades para seu abastecimento alimentar com qualidadenutritiva e variedade. Tambm nas guas mares, rios e lagos havia uma fonteextraordinria de alimentos. Ademais, a tecnologia j permitia criar peixes, moluscos ecrustceos em viveiros ou tanques artificiais, com elevados rendimentos: O emprego doshormnios de crescimento, a inseminao artificial, a semeadura de adubos nas guaspsiccolas, para aumento do valor nutritivo de seus produtos so mtodos que podem serpostos em prtica para multiplicar de muito o rendimento das guas em alimentos (p.401).

    Em sua viso, estava em curso uma revoluo tecnolgica de considervel impactoemancipador, capaz de suprir as necessidades quantitativas e qualitativas dos alimentos,desde que se fizesse uso adequado de todos os recursos potenciais de que a natureza dispunha.As evidncias permitiam anunciar uma geografia da abundncia, dado que, enquanto aprimeira Revoluo Industrial baseara-se na aplicao da mecnica s indstrias manuais,a segunda se caracterizava pela extensa aplicao dos mtodos cientficos s indstrias detoda espcie, para a soluo dos problemas de produo.

    Entretanto fato inconteste, hoje, que os danos socioambientais e sade humana,decorrentes da modernizao agro-industrial, podem atingir nveis inversamenteproporcionais aos anunciados benefcios da geografia da abundncia. Posto como o

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    17/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 187

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    nico modelo de produo possvel, reduz-se o dilema discusso conciliatria entre teor

    nutritivo da produo e metas de produtividade, ocultando-se a verdadeira dimenso dosdanos sade coletiva, segurana alimentar e ao ambiente, principalmente nos pasesem desenvolvimento e nos de economia de transio, que respondem pelo consumo decerca de 25% da produo mundial de agrotxicos (Peres, Moreira, 2003).11 Vale lembrarque o apelo massivo atual das instituies de sade e da mdia escolha de uma alimentaosaudvel em momento algum demonstra preocupao com os riscos da contaminaovenenosa dos alimentos, alm de omitir do pblico qualquer informao sobre o problema.

    Enfim, embora para Castro a produtividade fosse a chave da questo, ela devia serencarada em termos de uma economia humana, dado que o desenvolvimento econmicomal-orientado era desviado de sua finalidade social. Foi nesse ponto da Geopoltica da fomeque ele props a indissociabilidade de dois princpios dietticos tidos, por ele, como

    princpios-guia da sociedade sem fome. Concebidos como elementos propulsores daeconomia humanizada, o princpio da harmonia alimentar estava necessariamentevinculado harmonia social, que deveria ser alcanada pelo equilbrio das foras sociais.O princpio da adequao alimentar implicava a capacidade de as sociedades distriburemeqitativamente os alimentos, realizando as necessidades fsicas dos povos famintos eaumentando o poder aquisitivo das populaes marginais, para que se atingisse o consumoem massa, equilibrando o fiel da balana. Nesses termos, a emancipao postulada visavaproporcionar no s os bens de necessidades, mas tambm os bens de dignidade que asconscincias famintas reclamavam.

    Essa lgica regia o pensamento sociopoltico do autor, com vistas a assegurar no somente

    o alimento para todos, mas tambm a paz mundial. Se isto ainda no ocorreu, que, aolado da populao em massa, no se procurou promover o correspondente consumo emmassa, que daria o necessrio equilbrio a uma economia humanizada (Castro, 1968b,p.384).No item Emancipao colonial e reciprocidade de interesse econmico, do livroem foco, fica claro que o princpio da harmonia social poderia ser levado a efeito mediantea convergncia de trs domnios de foras interdependentes: desenvolvimento da cooperaoentre os pases, substituio dos conflitos de interesses pela reciprocidade e integrao dospases coloniais economia mundial. Era assim que se poderia suplantar a ordem vigentenas sociedades em crise, instituindo novas relaes sociais movidas pela cooperao,reciprocidade e integrao. O desenvolvimento encarado aqui o desenvolvimento integrale harmnico, isto , ao mesmo tempo econmico, tcnico, social e humano, permitindo a

    valorizao dos recursos e das possibilidades (Castro, 1960, p.99).Sua viso objetiva dos fatos parecia mesmo se distanciar do plano simblico-ideolgico

    que engendrava o comrcio da fome. Esclarecia que a economia humana emancipadorada qual falava no se realizaria primordialmente sob as regras do comunismo orientalnem sob a lgica da ganncia do lucro do capitalismo ocidental. Para ele as diferenasentre esses sistemas no constituam muros intransponveis, pois havia um denominadorcomum entre ambos: o interesse pelo homem e pela re-humanizaoda cultura.

    Nas duas grandes estruturas econmicas que lutam pela supremacia universal ... parece-nosuma evidncia de que no existem, no momento atual, dois mundos em luta irreconcilivel,mas apenas, dois plos diferentes dum s mundo. Dois plos sociais com diferenas e

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    18/24

    188 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    peculiaridades que no criam, contudo, distncias intransponveis maiores do que as existentes

    entre as condies materiais dos dois plos fsicos da Terra (Castro, 1968a, p.53).

    prematuro fazer qualquer inferncia sobre tal idia sem uma anlise da concordnciado autor com a viso de Romain Rolland, naquele momento ps-1945, em que os Estadoseuropeus haviam sido divididos em dois blocos. No limite, importa registrar que, no mapada geografia da abundncia, constituam mercados potenciais a Amrica Latina, a frica

    e o Extremo Oriente, que aguardavam para entrar em ao na economia global. A expectativaera de que seus habitantes, uma vez bem alimentados, pudessem produzir o suficiente paraatingir um nvel de vida coerente com as possibilidades tcnicas do mundo moderno, qualseja: O ideal seria buscar-se um entendimento nesse campo das necessidades vitais, quepermitisse amplo aproveitamento das reservas do mundo, consolidando a economia de

    todas as naes e promovendo o levantamento dos nveis de vida de toda a humanidade(Castro, 1968b, p.414).Nesse sentido, tudo dependia tambm da forma como as potncias coloniais encaras-

    sem a nova realidade do mundo. Uma vez se transformando em grandes mercados

    consumidores, aquelas potncias poderiam cooperar substancialmente para a estruturaode uma economia mais equilibrada, absorvendo os excedentes de determinados produtosdas reas altamente desenvolvidas (Castro, 1968b, p.415). Em tal enfoque, o problema doplanejamento econmico nos pases subdesenvolvidos era, basicamente, o de contingenciarrecursos escassos entre objetivos concorrentes e escalonar sua utilizao de maneira eficiente.

    Assim, a substituio de uma economia colonial por uma economia cooperativa, na

    qual os conflitos de interesses cederiam espao reciprocidade, era o pr-requisito para a

    conquista da harmonia social e da paz. Afinal, Castro (1968b) dizia acreditar nos destinosda humanidade, nos frutos da revoluo social em curso e na fora construtiva da cooperao

    humana. No mais se encontraria, na sociedade sem fome, a dramtica questo dasobrevivncia biolgica, alcanando-se, ento, o mais elevado estgio social. Esse , defato, um ponto revelador do pensamento do autor e d margem a interrogaes atrativas.Do modo como expunha tais idias em sua poca, convm ao menos lembrar que a entradadas potncias coloniais na economia global, transformando-se em grandes mercadosconsumidores, no implicava necessariamente a conquista do equilbrio social.

    Parafraseando Rodrigues (1999), assim como no pode haver predadores a ponto to extremode eliminar totalmente as presas de que se nutrem, as sociedades coloniais no podiam sairdas relaes intersocietrias globais sem que se envenenassem a si prprias com as toxinasde que seriam supostamente beneficirias.

    Com efeito, para Castro a instaurao da sociedade sem fome esbarrava exatamentenuma questo crucial: saber se a realizao da economia humanizada se daria efetivamenteno tempo limite dos que sofriam de fome, visto que a adequao distributiva e a harmoniasocial extrapolavam muito os limites dos recursos tcnicos e cientficos. Essas possibilidadesdependiam de um imenso se, e isso implicava ponderar a utopia dos homens de cincia.

    Havia muito o que lutar contra o que ele chamou de apatia humana:

    Suponhamos que os cientistas venham a descobrir tudo isso. Como podero os fazendeiros,em todo o mundo muitos deles ignorantes, ser educados a tempo? E como podero os

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    19/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 189

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    industriais do mundo, muitos deles egostas, quando no tambm ignorantes, ser impelidos

    nessa direo? Eis o ponto nevrlgico do problema ... Dentro destas contingncias polticas, oproblema da vitria contra a fome ultrapassa os limites da capacidade dos homens de cinciae dos tcnicos (Castro, 1968b, p.407).

    Mas, para apaziguar esses vrusanti-sociais, recomendava um antdoto o conhe-cimento , do qual brotariam a liberdade e a sabedoria. Apostava na educao como abssola libertadora que humanizaria a economia e venceria o espectro da fome, libertandoos grupos humanos do estigma do medo que os oprimiam. Somos, pois, otimistas evemos nas frices e agitaes sociais dos nossos dias sinais de novos tempos, quando serfinalmente alcanada a difcil vitria sobre a fome, vitria capital para a estabilidadesocial dos grupos humanos (Castro, 1968a, p.68).

    O importante a reter do exposto que como experte idelogo, o autor concentrou na

    plataforma doutrinria de criao da Ascofam, em 1957, toda a expectativa de concretizaodos princpios-guia da sociedade sem fome. Indicou os meios e recursos materiais epedaggicos que privilegiavam a realizao de duas aes essenciais consubstanciadas numaampla rede de projetos: primordialmente, a difuso dos conhecimentos da alimentao eda nutrio para a formao de agentes multiplicadores dessa causa em nvel mundial e,concomitantemente, a implementao de projetos nacionais e locais que deveriamimpulsionar as polticas produtivas e distributivas de alimentos, de modo a dar novorumo ordem econmica e social do mundo ps-guerra.

    Consideraes finais

    Desta leitura, possvel extrair de imediato dois posicionamentos: um comemorativo,movido pelo gesto de reverncia a um dos mais influentes fundadores do campo da nutrio;o outro, no menos reverente, mas movido pela indisfarada vontade de esquentar omotor da histria, acrescenta outras questes ao conhecimento produzido, sobretudoquanto ao alcance sociopoltico do empreendimento de transformao social em prol darealizao universal das necessidades fsicas e da dignidade dos famintos da terra.

    A reflexo pode tomar rumos que no cabem nos limites destas breves consideraes edemandam outros estudos. Entretanto, como pessoa que vivenciou a fome de dentro e aviolncia da pobreza em terra conterrnea, mister atiar o debate e, entre tantas outrasquestes possveis, apontar duas delas para futuros desdobramentos: em que medida os

    princpios dietticos traados sob a razo lgica da ao sobre os corpos biolgicosprescindiam de espao para a discusso de dimenses no-biolgicas da alimentao, noenfrentamento da crise intensa vivida pelos povos famintos? E, uma vez que o autorfalava para os dirigentes polticos, patres, intelectuais e cientistas com vistas instauraoda sociedade sem fome, fica posta a segunda questo: em que medida a conquista daemancipao coletiva mediante uma integrao postulada de cima para baixo prescindiade aes e estratgias pedaggicas de emancipao poltica daqueles povos, de forma atranscender seu olhar culturalmente treinado?

    No basta querer integrar para emancipar. As relaes sociais que regem os sistemaseconmicos produtivos encontram ressonncia na cultura, aqui entendida como amlgama

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    20/24

    190 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    Posse de Josu

    de Castro como

    Presidente do

    Conselho Executivo

    da FAO - Roma 1952

    (arquivo da famlia)

    Assinando a Carta

    dos Direitos

    Humanos Contra a

    Fome - Roma, 1952

    (arquivo da famlia)

    Laboratrio

    do Instituto de

    Nutrio da

    Universidade

    do Brasil - 1947

    com os vrios

    professores e

    pesquisadoresdo Instituto

    (arquivo da famlia)

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    21/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 191

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    das mltiplas determinaes da vida social, o que pressupe no apenas a existncia de um

    comrcio da fome, mas tambm de uma ordem simblico-ideolgica historicamentedinmica, que d suporte aos limites de tolerncia misria. Subjacente ao modo capitalistade produo h uma forma capitalista de pensar o alimento e o corpo pois, como lembraMadeley (2003, p.28), h uma idia de tratar o alimento do mesmo modo que qualqueroutro produto como cestas de lixo ou latas para conservas, por exemplo. As realidadesbiotico-culturais representam a unidade necessria da esfera estritamente fisiolgica, omundo fsico, o capital cognitivo e as formas convencionais das relaes sociais de produo. nessas fronteiras que o corpo se situa e trava a grande batalha pela plenitude da vida.

    Posto que a educao foi concebida, por Castro, como a bssola libertadora quedisciplinaria os conflitos sociais da poca, a emancipao coletiva assim postulada descuroudo preceito de que os povos famintos no eram papis em branco. Era preciso que se

    trouxessem tambm, para o ato pedaggico, elementos de intensa vitalidade e dinamismopresentes na construo de sentidos e estratgias existentes na interioridade desses povos,de modo a serem superados por expresses coletivas mais elaboradas e profundas quepermitissem situ-los no mundo em que viviam, despertando energias de transformao.Em que consiste, afinal, a educao libertadora?

    O tema permanece atual. A histria se repete e produz novas geraes ainda mais pobrese famintas, na escala de mais de 20% da populao do mundo em desenvolvimento. Adifcil tarefa nos prximo 25 anos ser garantir que elas e os milhes de outras que, pelasprojees atuais, estaro fora do mercado sejam bem alimentadas (Conway, 2003).

    Sendo a cidadania ativa um requisito indispensvel para se iniciar o processo de

    emancipao, e considerando que tal emancipao coletiva dos famintos nunca ser doadade fora nem de cima , por ser conquista prpria, h que admitir, em acordo com Negte Kluge (1999, p.313), que eles precisam de um duplo processo de aprendizagem queultrapasse o conhecimento dos princpios alimentares: assimilao de sua prpria histriae formao macia da capacidade de discernimento para tudo que estranho.

    NOTAS

    1A matria apresentava dados da tabela comparativa da Diretoria Geral de Comunicaes e Estatsticada Policia Civil do Distrito Federal referente ao ano de 1933, onde se l que, de 318 tentativas de suicdio,139 foram fatais, sendo 101 homens e 38 mulheres, que por vrios meios deram fim vida.2Sobre a Revoluo de 1930, ver Fausto, 1983.3A Ascofam foi criada com o apoio e cooperao de um grupo de personalidades internacionais: Padre

    Joseph Lebret, Abb Pierre, Albert Schweitzer, Raymond Schevein, Loui Maire, Kuo-Mo-Jo, Paul Martin,Loy Bpyd Orr, Tibor Mende, Ren Dumont e Max Habitch. Sobre a sua plataforma doutrinria e osprojetos apresentados e implementados, ver Castro, 1960.4A reflexo passa inicialmente pela qumica, que foi proeminentemente uma cincia francesa. Seuverdadeiro fundador, Lavoisier (1743-1794), publicou o fundamental Tratado elementar de qumica no

    AGRADECIMENTOS

    Meu sincero agradecimento professora doutora Tnia Elias Magno, da Universidade Federal de Sergipe,pela decisiva sugesto na escolha do tema do estudo. Estendo tambm o agradecimento professoradoutora Anna Maria de Castro, pela leitura do texto inicial e final do artigo e os comentrios emitidos,que muito ajudaram a consolid-lo.

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    22/24

    192 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    REFERNCIAS

    A BILIONRIA E CONFUSA...A bilionria e confusa indstria da dieta.

    Revista poca,So Paulo, n.410, p.88-95. 27mar. 2006.

    ALMEIDA JUNIOR.Nosso dirio alimentar.Arquivos do Instituto de

    Educao, So Paulo, n.1. set. 1935.

    ALTVATER, Elmar.Opreo da riqueza. So Paulo: Unesp. 1995.

    A RENDIO...A rendio dos brbaros. Dirio Carioca,Rio de Janeiro. 3 maio 1945.

    BOBBIO, Norberto.Os intelectuais e o poder: dvidas e opes doshomens de cultura na sociedadecontempornea. So Paulo: Unesp. 1997.

    BRASIL.Decreto-lei 2.162, de 1ode maio de 1940.Institui o salrio mnimo e d outrasprovidncias. Boletim do Ministrio do Trabalho,

    Indstria e Commrcio, Rio de Janeiro, p.27. 1940a.BRASIL.Decreto-lei 2.478, de 5 de agosto de 1940. Criao Servio de Alimentao da Previdncia Social(Saps) no Ministrio do Trabalho, Indstria eComrcio.Boletim do Ministrio do Trabalho,

    Indstria e Commrcio , Rio de Janeiro, p.133.1940b.

    BRASIL.Lei 185, de14 de janeiro de 1936. Institui ascomisses de salrio mnimo.Boletim do

    Ministrio do Trabalho, Indstria e Commrcio,Rio de Janeiro, p.19. 1936.

    mesmo ano da Revoluo Francesa. No entanto foi no sculo XIX que a qumica deu um saltorevolucionrio: Lavoisier descobriu que a respirao era uma forma de combusto, estabelecendo arelao entre a produo de calor e utilizao de oxignio do organismo (Hobsbawm, 1981). Os princpiosda bioenergtica de Lavoisier traziam embutidos o postulado de que os seres vivos estavam sujeitos s leisgerais da natureza e que suas manifestaes eram expresses fsico-qumicas. Com isso surgia o perodofsico-qumico da nutrio humana. Como adepto da fisiologia, Laplace foi colaborador de Lavoisiernas pesquisas sobre a respirao e sobre o calor animal e desenvolvia a viso determinista que tinha comoconseqncia a reduo da qualidade quantidade, que est aplicada na identidade essencial do normale do patolgico (Canguilhem, 1990).5A esse respeito ver tambm Peregrino Junior, 1936.6A tese da aclimatao defendida por Castro encontra-se detalhada em Castro, 1946a. Para compreendermelhor como a noo de clima e as teorias aclimatacionistas influenciaram os estudos da geografiamdica e os higienistas desde o sculo XIX ver tambm Caponi, jan.-mar. 2007.7Canguilhem (1990) destaca as crticas de Maurice Halbwachs, em 1912, ao determinismo de Quetelt. Odeterminismo estava em admitir que os fatos fsicos que dependiam do meio e os fatos fisiolgicos

    inerentes aos processos de crescimento se entrecruzavam de modo independente um do outro naconstncia desse processo. No entanto, na espcie humana a estatura era inseparavelmente biolgica esocial. Sendo assim, a freqncia estatstica no traduzia apenas uma normatividade vital, mas tambmuma normatividade social.8Para Ortiz (1986), a doutrina racial de Gobineau (Essais sur les ingalits des races humaines, 1853-1855)foi aceita no Brasil, onde ele marcou passagem como amigo do imperador Pedro II. Do arianismo, osbrasileiros endossaram a teoria da degenerescncia latina (traduzida nas crticas aos portugueses como osmais atrasados dos europeus), resultante da indolncia e da imoralidade.9A respeito das teses dualistas em torno da existncia de dois brasis, ver Sodr, 1963 e Fausto, 1983.10A seguinte citao de Bobbio (1997, p.72-73) sugestiva para analisar a dimenso sociopoltica da obrade Castro e sua insero social como intelectual pblico: Creio ser suficiente dizer que por idelogosentendo aqueles que fornecem princpios-guia, e, por expertos, aqueles que fornecem conhecimentos-meio. Toda ao poltica, como de resto qualquer outra ao social ... tem necessidade, de um lado, deidias gerais sobre os objetivos a perseguir ... a que chamei acima de princpios e que poderiam ser

    chamados de valores, ideais ou mesmo concepes do mundo; e, de outro, de conhecimentos tcnicosque so absolutamente indispensveis para resolver problemas para cuja soluo no basta a intuio dopoltico puro, mas se fazem necessrios conhecimentos especficos que s podem ser fornecidos porpessoas competentes nos diversos campos singulares do saber.11Sobre os danos socioambientais da agroindstria e a contaminao de alimentos, ver tambm Altvater,1995, Bulll, Hathaway, 1986, Madeley, 2003 e Conway, 2003.

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    23/24

    v.16, n.1, p.171-194, jan.-mar. 2009 193

    Quantidade, qualidade, harmonia e adequao

    BULL, David; HATHAWAY, David.Pragas e venenos: agrotxicos no Brasil e noTerceiro Mundo. Petrpolis: Vozes. 1986.

    CAMPELLO, Jos.Alimentao e raa. Dirio Carioca,Rio de Janeiro. 2 fev. 1936.

    CANGUILHEM, Georges.O normal e o patolgico. 3. ed. ampl.Rio de Janeiro: Forense Universitria. 1990.

    CAPONI, Sandra.Sobre la aclimatacin: Boudin y la geografiamdica. Histria Cincias Sade Manguinhos,Rio de Janeiro, v.14, n.1, p.13-38. jan-mar. 2007.

    CARNEIRO, Henrique.

    Comida e sociedade: uma histria daalimentao. 2.ed. Rio de Janeiro: Campus.2003.

    CASTRO, Josu de.Geopoltica da Fome. v.1. 8. ed. So Paulo:Brasiliense. 1968a.

    CASTRO, Josu de.Geopoltica da Fome. v.2, 8. ed. So Paulo:Brasiliense. 1968b.

    CASTRO, Josu de.O livro negro da fome. So Paulo: Brasiliense.1960.

    CASTRO, Josu de.

    La alimentacion en los trpicos.1. ed. Mxico:Fondo de Cultura Econmica. 1946a.

    CASTRO, Josu de.Geografia da fome: a fome no Brasil.Rio de Janeiro: O Cruzeiro. 1946b.

    CASTRO, Josu de.A alimentao brasileira luz da geografiahumana.Porto Alegre: Livr. Globo. 1937.

    CASTRO, Josu de.Alimentao e aclimatao. Dirio Carioca,Rio de Janeiro. 19 jul. 1936.

    CASTRO, Josu de.Alimentao e raa. Rio de Janeiro: Biblioteca de

    Divulgao Scientfica. 1936.CASTRO, Josu de.O problema alimentar brasileiro. Prefcio, PedroEscudero. So Paulo: Companhia EditoraNacional. 1934.

    CONWAY, Gordon.Produo de alimentos no sculo XXI:biotecnologia e meio ambiente. So Paulo:Estao Liberdade. 2003.

    RACIONAL... racional o nosso regime alimentar?DirioCarioca, Rio de Janeiro. 3 nov. 1934

    FAUSTO, Boris.A revoluo de 1930: historiografia e histria. 9.ed. So Paulo: Brasiliense. 1983.

    FOME E DESEMPREGO...Fome e desemprego para milhes de homens.

    Dirio Carioca , Rio de Janeiro. 1 jan. 1946.

    FRUTAS BARATAS...Frutas baratas e frutas-caras. Jornal do Brasil,Rio de Janeiro. 31 mar. 1934.

    GETLIO DEPOSTO...Getlio deposto. As foras de terra, mar e arentregam o poder ao judicirio. Dirio Carioca,Rio de Janeiro. 30 out. 1945.

    HOBSBAWM, Eric.

    A era das revolues (1789-1848). Rio de Janeiro:Paz e Terra. 1981.

    MADELEY, John.O comrcio da fome.Petrpolis: Vozes. 2003.

    MOBILIZAO DE RECURSOS...Mobilizao de recursos para a guerra contra afome no mundo. Dirio Carioca,Rio de Janeiro. 13 mar. 1946.

    MOSER, Antonio.Biotecnologia e biotica: para onde vamos?Petrpolis: Vozes. 2004.

    NEGT, Oscar; KLUGE, Alexander.O que h de poltico na poltica?So Paulo:

    Unesp. 1999.ORTIZ, Renato.Cultura brasileira & identidade nacional.So Paulo: Brasiliense. 1986.

    PERES, Frederico; MOREIRA, Josino Costa (Org.). veneno ou remdio?: agrotxicos, sade eambiente. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2003.

    PEREGRINO JUNIOR, Joo.Vitaminologia. Rio de Janeiro: Flores e Mano.1936.

    PERSPECTIVAS...Perspectivas optimistas.Dirio Carioca,Rio de Janeiro. 16 dez. 1934.

    PRODI, Giorgio.O indivduo e sua marca: biologia etransformao antropolgica. So Paulo:Unesp. 1993.

    QUAL O REGIME...Qual o regime alimentar que devemos seguir?

    Dirio Carioca, Rio de Janeiro. 4 nov. 1934.

    REZENDE, Marcela Torres.A alimentao como objeto histricocomplexo: relaes entre comidas e sociedades.

    Estudos Histricos. Alimentao.Rio de Janeiro,n.33, p.175-179. 2004.

  • 8/11/2019 Artigo Leis Da Alimentao

    24/24

    194 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Eronildes da Silva Lima

    RODRIGUES, Jos Carlos.O corpo na histria.Rio de Janeiro: EditoraFiocruz. 1999.

    SEVALHO, Gil; CASTIEL, Luis David.Epidemiologia e antropologia mdica: ain(ter)disciplinaridade possvel. In: Alves, PauloCsar; Rabelo, Miriam Cristina (Org.).

    Antropologia da sade: traando identidade eexplorando fronteiras. Rio de Janeiro: RelumeDumar. p.47-69. 1998.

    SODR, Nelson Werneck.Formao histrica do Brasil. 2. ed. So Paulo:Editora Brasiliense. 1963.

    SOUZA, Geraldo H. Paula; CINTRA, A.U.;CARVALHO, P.E.

    Inqurito sobre alimentao popular em umbairro de So Paulo. Revista doArquivo

    Municipal, So Paulo, v.2, n.17, p.121-181. 1935.

    SUICDIOS...Suicdios. Como e quaes procuram a morte noRio.Dirio Carioca, Rio de Janeiro, 16 nov. 1934.

    TRAVASSOS, Mrio.A propsito do comando nico. Jornal do

    Brasil,Rio de Janeiro, 7 mar. 1946.

    UM ANO TRAGICO...Um anno tragico para a humanidade. Guerras,revolues, terremotos e attentadosassignalaram singularmente os ultimos dozemezes.Dirio Carioca , Rio de Janeiro. 29 dez.1934.

    VELOSO, Cleto Seabra.Alimentao: o problema encarado do pontode vista fisiolgico, higinico, diettico e social.

    2.ed. Rio de Janeiro: Zlio Valverde. 1940.

    uuuUUU