Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
-
Upload
fabriciobaitehotmail -
Category
Documents
-
view
241 -
download
8
Transcript of Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
1/31
HERMENUTICA, NEOCONSTITUCIONALISMO E O PROBLEMA DADISCRICIONARIEDADE DOS JUZES
Lenio Luiz Streck1
1. As demandas de um novo paradigma
Indubitavelmente, o novo constitucionalismo que exsurge a partir do segundo ps-
guerra - recebe da teoria neoconstitucionalista os aportes necessrios para uma confluncia de
teses e posturas aptas para a realizao do direito. Por isso, de pronto possvel dizer que a
teoria neoconstitucionalista paradigmtica porque ultrapassa a tese de que o direito se basta.
No , assim, uma nova forma ou uma verso sofisticada de positivismo que, agora
(constitucionalismo do segundo ps-guerra) sairia da lei para um texto fundante: as
Constituies. No se trata de um novo legalismo ou super legalismo. O legalismo
forjou-se inicialmente como expressso da politicidade do direito, a partir da prescrio do
poder soberano, legitimando-se per se, mas, ao mesmo tempo se auto-limitando. Em um
segundo momento, a legalidade tornou-se fato poltico, tornando o direito instrumento das
estratgias polticas. Os acontecimentos histricos, entretanto, fizeram com que no bastasse
alterar o fundamento de validade do direito. Se isso fosse suficiente, o legalismo seria
transformado em constitucionalismo ou, melhor dizendo, o constitucionalismo seria um
legalismo de nvel superior.
Explicando melhor essa problemtica: o neoconstitucionalismo uma resposta a outro
tipo de poder ilimitado: o do Estado Corporao (Garcia-Pelayo), o Estado Social
burocrtico (Ferraloji), que se autonomiza do indivduo em seu momento operacional, que se
formou durante o entre guerras e cujo paroxismo foi representado pelos estados nazi-facistas.
Isto o neoconstitucionalismo: uma tcnica ou engenharia do poder que procura dar resposta
a movimentos histricos de natureza diversa daqueles que originaram o constitucionalismoliberal, por assim dizer (ou primeiro constitucionalismo). Por isso o neoconstitucionalismo
paradigmtico; por isso ele ruptural; no h sentido em trat-lo como continuidade, uma vez
que seu motivo de luta outro. Do mesmo modo, no h como tentar compatibilizar
neoconstitucionalismo e positivismo jurdico porque e isso ressaltado por Oto mesmo o
primeiro constitucionalismo era contrrio ao positivismo, como nos lembra Nicola Matteucci.
A questo direito-moral outra coisa. Da que e no tenho receio de afirmar - essa postura
massificada que v no neoconstitucionalismo uma mutao do positivismo jurdico (sic) para
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
2/31
2
nele introduzir a moral atravs de discursos corretivos/adjudicadores, mostra-se sobremodo
equivocada,porque no entende essa "motivao historica" da qual ele tributrio. Claro, na
medida em que todas estas posturas so caudatrias das teorias analticas lato sensu, elas no
do conta do "destino" que a histria nos impe. E isso a hermenutica pode nos mostrar
muito bem, revolvendo o cho lingstico da histria, a partir de uma reconstruo
institucional do Estado, do direito e da poltica.
Nessa linha, seguindo a matriz terica da hermenutica filosfica (na leitura que
proponho desde Hermenutica Jurdica em Crise 8. Edio - e Verdade e Consenso 3. Ed
- ), preciso dizer mais. Com efeito, o neoconstitucionalismo por tudo o que ele representa
efetivamente transformou-se em um campo extremamente frtil para o surgimento das mais
diversas teorias (que se pretendem) capazes de responder s demandas desse novo paradigmajuspoltico-filosfico. Das teorias do discurso fenomenologia hermenutica, passando pelas
teorias realistas, os ltimos cinqenta anos viram florescer teses com objetivos comuns no
campo jurdico: superar a concepo do direito entendido como um modelo de regras,
resolver o problema da incompletude das regras, solucionar os casos difceis (no abarcados
pelas regras) e a (in)efetividade dos textos constitucionais, nitidamente compromissrios e
principiolgicos, comprometidos com as transformaes sociais.
Considero esse novo constitucionalismo, portanto, como proporcionador de umaverdadeira revoluo copernicana no plano da teoria do direito e do Estado. O novo
constitucionalismo que aqui ser denominado de neoconstitucionalismo2 representa a real
possibilidade de ruptura com o velho modelo de direito e de Estado (liberal-individualista,
formal-burgus), a partir de uma perspectiva normativa e, por vezes, fortemente diretiva
1 Doutor e Ps-Doutor em Direito;Professor da UNISINOS-RS e da UNESA-RJ; Procurador de Justia-RS;Coordenador da parte brasileira do Acordo Internacional CAPES-GRICES (UNISINOS-Faculdade de Direito deCoimbra).2 O texto no pretende discutir o significado de neoconstitucionalismo. A doutrina acerca da matria exuberante (no Brasil, entre outros, veja-se Ecio Oto e Suzanna Pozzolo, em seu Neoconstitucionalismo epositivismo jurdico, Belo Horizonte, Del Rey, 2006). Nesse sentido, no assume relevncia nos limites destasreflexes a classificao em neoconstitucionalismo ideolgico, terico ou metodolgico (essa classificao feita por COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo. Um anlises metaterico. In:CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalimo(s). Madrid: Trotta, 2003), isso porque, a um s tempo, oneoconstitucionalismo ideolgico, pois ala a Constituio a elo conteudstico que liga a poltica e o direito(aqui se poderia falar no aspecto compromissrio e dirigente da Constituio, que , assim, mais do que normacom fora cogente, representa um justificao poltico-ideolgica); terico, porque estabelece as condies depossibilidade da leitura (descrio) do modelo de constitucionalismo e dos mecanismos para superao dopositivismo (papel dos princpios enquanto resgate da moral expungida do direito pelo positivismo, problemticaque deve ser resolvida a partir dessa teoria do direito e do Estado); metodolgico, na medida em que ultrapassa
a distino positivista entre descrever e prescrever o direito, sendo que, para tal, reconecta direito e moral (o queocorre sob vrios modos, a partir de teses como a co-originariedade entre direito e moral ou o papel corretivoque a moral assumiria neste novo modelo de direito). Em sntese, neoconstitucionalismo significa ruptura, tantocom o positivismo como com o modelo de constitucionalismo liberal. Por isso, o direito deixa de ser reguladorpara ser transformador. Trata-se, pois, de uma questo paradigmtica.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
3/31
3
(especialmente em terrae brasilis), valendo lembrar, nesse sentido, a determinao
constitucional, em textos constitucionais de Portugal, Espanha, Brasil, Colombia, para citar
apenas alguns, de efetivao dos direitos fundamentais-sociais). Ora, a tradio
(compreendida no sentido estipulado por Gadamer) nos mostra que, definitivamente, no
havia espao para o mundo prtico no positivismo. No havia espao para a discusso de
conflitos sociais, que no eram assunto para o direito. Sendo mais especfico: isso no era
pauta para a Constituio e, portanto, no era pauta para o direito.
Diante desse novo paradigma, as diversas teorias jusfilosficas tinham (e ainda tm)
como objetivo primordial buscar respostas para a seguinte pergunta: como construir um
discurso capaz de dar conta de tais perplexidades, sem cair em decisionismos e
discricionariedades do intrprete (especialmente dos juizes)?3 A libertao do direito dequalquer fundamento metafsico deslocou o problema dessa fundamentao (legitimidade)
para outro ponto: as condies interpretativas. E nisso residir a diferena dos diversos
enfoques. A toda evidncia, trata-se de opes paradigmticas.
Essas indagaes e perplexidades demandam novos paradigmas, que, por sua vez,
exigem novas formas de compreenso. Tais questes j podiam ser percebidas no
neopositivismo, fonte para a construo de metalinguagens4 e discursos analticos, e que
centrou suas crticas s insuficincias da linguagem natural (ordinria), propondo, comocontraponto, a construo de uma linguagem artificial, para assegurar, assim, a neutralidade
cientfica. A razo disso que a linguagem natural no se apresentava confivel para abarcar
as complexidades do discurso cientfico.
Sob outro vis, apontando igualmente para as insuficincias da tradio, Habermas vai
propor uma teoria comunicativa capaz de superar a linguagem sistematicamente distorcida
da tradio. Ou seja, para Habermas, a linguagem da tradio no se mostra(va) adequada
para a compreenso das formas de comunicao sistematicamente distorcidas por estaproporcionadas. Por isso, pretendeu superar a razo prtica pela razo comunicativa. Em
sentido contrrio, Gadamer resgata o valor da tradio, colocando a pr-compreenso
3 difcil caracterizar as teses decisionistas (discricionrias). Aqui parece adequada e essa posio aquiadotada a noo forte de discricionariedade cunhada por Dworkin (Taking Rights Seriously. Massachusetts:Harvard University Press, 1978), para criticar as posturas positivistas. De qualquer modo, assim como difcilfazer um quadro acerca de (todas) as modalidades de positivismo, tambm complexo delinear as posturasdecisionistas, que vo desde o normativismo kelseniano, que atribui ao juiz, nos casos difceis, um poderabsoluto, at as tese da escola de direito livre e do realismo norte-americano, passando por Herbert Hart (TheConcept of Law. Oxford: Oxford University Press, 1997) alvo principal das crticas de Dworkin. A partir de tais
autores e posturas, forjou-se um enorme contingente de concepes que tm no esquema sujeito-objeto o seusuporte epistemolgico (embora isso no seja confessado por um considervel nmero de posturas quepretendem criticar o positivismo jurdico).
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
4/31
4
(Vorverstndnis) como condio de possibilidade. Mas, registre-se, h um algo a mais na tese
hermenutico-gadameriana, ao dizer que essa pr-compreenso est eivada de faticidade, do
modo prtico de ser no mundo que Heidegger havia percebido para superar a metafsica
representacional. Veja-se a importncia da revoluo proporcionada por Heidegger ao mostrar
que a filosofia hermenutica, condio de possibilidade para, mais tarde, levar Gadamer a
dizer, tambm de forma revolucionria, em seu Wahrheit und Methode, que a hermenutica
filosfica, no mtodo(logia).
A importncia desse debate est no fato de que o novo paradigma de direito institudo
pelo Estado Democrtico de Direito proporciona a superao do direito-enquanto-sistema-de-
regras, fenmeno que (somente) se torna possvel a partir de algo novo introduzido no
discurso constitucional: os princpios, que passam a representar a efetiva possibilidade deresgate do mundo prtico (faticidade) at ento negado pelo positivismo (veja-se, nesse
sentido, por todos, o sistema de regras defendido por Kelsen e Hart). Dito de outro modo, esse
mundo prtico seqestrado metafisicamente pelas diversas posturas epistemo-metodolgicas
centra-se no teatro do sujeito autocentrado e desdobrado sobre as palavras possveis,
coerentes, sensivelmente concebveis, proporcionando um grande exorcismo da realidade,
mantendo-a distanciada, nada querendo saber dela.5
4 Veja-se que a teoria da norma fundamental kelseniana uma metalinguagem sobre o direito, que , assim, alinguagem-objeto. So ntidas, pois, as influncias do neopositivismo lgico nas teses kelsenianas.5 Cfe. HAAR, Michel. Heidegger e a essncia do homem. Lisboa: Piaget, s/d, pp. 115 e segs. Cabe, aqui, umaexplicao: em face da complexidade/dificuldade para definir as diversas posturas positivistas, no parecedesarrazoado a opo por uma classificao que poderia ser denominada de a contrario sensu, a partir dascaractersticas das posturas consideradas e autodenominadas ps-positivistas, entendidas como as teoriascontemporneas que privilegiam o enfoque dos problemas da indeterminabilidade do direito e as relaes entre odireito, a moral e a poltica (teorias da argumentao, a hermenutica, as teorias discursivas, etc). Ou seja, talvezseja mais fcil compreender o positivismo a partir das posturas que o superam. Autores como AlbertCalsamiglia (CALSAMIGLIA, Albert. Pospositivismo.Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, n.21, 1998, pp. 209 e segs.) consideram que a preocupao das teorias ps-positivistas com a indeterminao do
direito nos casos difceis, ou seja, para os ps-positivistas, o centro de atuao se h deslocado em direo dasoluo dos casos indeterminados (mais ainda, os casos difceis no mais so vistos como excepcionais). Afinal,os casos simples eram resolvidos pelo positivismo com recurso s decises passadas e s regras vigentes. J noscasos difceis se estava em face de uma terra inspita. No deja de ser curioso que cuando ms necesitamosorientacin, la teoria positivista enmudece. Da a debilidade do positivismo ( lato sensu), que sempre dependeude uma teoria de adjudicao, que indique como devem se comportar os juzes (e os intrpretes em geral). Veja-se a pouca importncia dada pelo positivismo teoria da interpretao, sempre deixando aos juzes a escolhados critrios serem utilizados nos casos complexos. Para o ps-positivismo, uma teoria da interpretao noprescinde de valorao moral, o que est vedado pela separao entre direito e moral que sustenta o positivismo.O ps-positivismo aceita que as fontes do direito no oferecem resposta a muitos problemas e que se necessitaconhecimento para resolver estes casos. Alguns so cticos sobre a possibilidade do conhecimento prtico,porm, em linhas gerais, possvel afirmar que existe um esforo pela busca de instrumentos adequados pararesolver estes problemas (Dworkin e Soper so bons exemplos disso). Em acrscimo s questes levantadas por
Calsamiglia, vale referir o acirramento da crise das posturas positivistas diante do paradigmaneoconstitucionalista, em face da sensvel alterao no plano da teoria das fontes, da norma e das condies paraa compreenso do fenmeno no interior do Estado Democrtico de Direito, em que o direito e a jurisdioconstitucional assumem um papel que vai muito alm dos planos do positivismo jurdico e do modelo dedireito com ele condizente.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
5/31
5
2. O novo modelo constitucional como remdio contra o seqestro da realidade
produzido pelo modelo de regras do positivismo
inegvel que a noo de constitucionalismo social (fora normativa e textos com
forte contedo diretivo) teve a funo de trazer, para o mbito das Constituies, temticas
que antes eram reservadas esfera privada. Por isso que que parcela significativa dos textos
constitucionais surgidos aps a segunda guerra mundial publiciza os espaos antes
reservados aos interesses privados. E essa publicizao somente poderia ocorrer a partir daassuno de uma materialidade, espao que vem a ser ocupado pelos princpios.
Com efeito, se o constitucionalismo compromissrio e diretivo altera
(substancialmente) a teoria das fontes que sustentava o positivismo e os princpios vm a
propiciar uma nova teoria da norma6 (atrs de cada regra h, agora, um princpio que no a
deixa se desvencilhar do mundo prtico), porque tambm o modelo de conhecimento
subsuntivo, prprio do esquema sujeito-objeto (nas suas duas faces, objetivista e subjetivista),
tinha que ceder lugar a um novo paradigma compreensivo-interpretativo. nesse contexto que ocorre a invaso da filosofia pela linguagem (linguistic turn, que,
no plano da hermenutica filosfica, prefiro chamar de ontologische Wendung giro
ontolgico), a partir de uma ps-metafsica (re)incluso da faticidade que, de forma
inapelvel, mormente a partir da dcada de 50 do sculo passado, atravessar o esquema
sujeito-objeto, estabelecendo uma circularidade virtuosa na compreenso (hermeneutische
Zirkel). Destarte, esse dficit de realidade produzido pelas posturas jusfilosficas ainda
prisioneiras do esquema sujeito-objeto ser preenchido pelas posturas interpretativas,especialmente as hermenutico-ontolgicas, que deixam de hipostasiar o mtodo e o
procedimento, colocando o locus da compreenso no modo-de-ser e na faticidade (mundo
prtico), bem na linha da viragem ocorrida a partir de Wittgenstein e Heidegger. Assim, salta-
se do fundamentar enquanto busca de um fundamentum inconcussum, em direo do
compreender, onde este o compreender no mais um agir do sujeito, mas, sim, um
modo-de-ser que se d em uma intersubjetividade. E isso extremamente ruptural.
6 Para tanto, consultar importante estudo de SANCHIS, Luis Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderacin. In:CARBONELL, Miguel (Org.).Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
6/31
6
Muito embora a relevncia paradigmtica desse fenmeno, um simples passar dolhos
na operacionalidade do direito e falo aqui na especificidade de terrae brasilis suficiente
para constatar a cotidiana resistncia exegtico-positivista por parte da dogmtica jurdica,
ainda sustentada muito mais em decisionismos e discricionariedades do que em discursos que
procurem efetivamente colocar o direito como uma cincia prtica, destinada a resolver
problemas (sociais), mormente nesta fase da histria.
Ou seja, preciso compreender que o direito neste momento histrico no mais
ordenador, como na fase liberal; tampouco (apenas) promovedor, como era na fase
conhecida por direito do Estado Social (que nem sequer ocorreu na Amrica Latina); na
verdade, o direito, na era do Estado Democrtico de Direito, um plus normativo/qualitativo
em relao s fases anteriores, porque agora um auxiliar no processo de transformao darealidade. E exatamente por isso que aumenta sensivelmente e essa questo permeou, de
diversos modos, as realidades jurdico-polticas dos mais diversos pases europeus e latino-
americanos o polo de tenso em direo da grande inveno contramajoritria: a jurisdio
constitucional, que, no Estado Democrtico de Direito, vai se transformar no garantidor dos
direitos fundamentais-sociais e da prpria democracia.
Mas, se, efetivamente, o constitucionalismo do Estado Democrtico de Direito
objetivou e ainda objetiva resgatar a realidade perdida, de que modo a teoria jurdicatem reagido diante desse fenmeno? Como dar por vencido o modelo subsuntivo, que coloca
o sujeito isolado do objeto, e que relega a linguagem a uma terceira coisa, dis-posio do
sujeito cognoscente, a ponto de se delegar ao juiz o poder de solucionar os casos difceis?
De que modo possvel resolver a inexorvel tenso entre fato e norma, separados
politicamente pela Revoluo Burguesa e, filosoficamente, pelas duas metafsicas (clssica e
moderna)?
Dito de outra forma, at mesmo algumas teorias discursivas, a pretexto de superar asdiversas formas assumidas pelo positivismo jurdico e buscando resolver os problemas da
impossibilidade de anteviso de todas as hipteses de aplicao prprias de um direito que
assumia um carter inexoravelmente hermenutico, apostaram na construo de discursos
(prvios) de justificao/fundamentao (Begrndungsdiskurs), com o que acabaram por
incorrer na prpria problemtica que pretendiam criticar no positivismo.
Dito de outro modo: penso que as diversas posturas positivistas, ao desindexarem do
discurso jurdico o mundo prtico, no encontraram adversrio altura em teses como a teoria
do discurso habermasiana, que, sob pretexto da morte do sujeito solipsista, acabou por
deslocar o problema da atribuio de sentido em favor de uma contraftica situao ideal de
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
7/31
7
fala, cuja funo a de servir de justificao prvia ao procedimento de adequao entre a
faticidade e a validade e, assim, superar a tenso entre fato e norma.
No fundo, no houve grandes alteraes em relao ao mago das teorias jurdicas
arraigadas ao esquema sujeito-objeto. Discursos de justificao prvia (Begrndungsdiskurs)
construo terica das teorias discursivas (especialmente Gnther e Habermas) procuram
ultrapassar a deciso de origem, para atingir todas as situaes semelhantes futuras. Ao
mesmo tempo, para evitar decisionismos decorrentes de ativismos judiciais, tais teorias
buscam aliviar o juiz da carga representada pelos problemas da fundamentao da norma que
aplica, isto , a racionalidade da deciso (discurso de aplicao Anwendungsdiskurs) do juiz
j no depende do fundamento racional dessa norma, porque este problema j vem
resolvido por um discurso de fundamentao (anterior).Isso, no entanto, no ocorre impunemente. Afinal, se fosse possvel uma lei (um texto
jurdico transformado em uma norma) prever todas as suas hipteses de aplicao, estar-se-ia
em face do fenmeno da entificao metafsica dos sentidos. Isso, entretanto, no se corrige
com discursos de adequao, como propem Klaus Gnther e Jrgen Habermas, que nada
mais fazem do que reconhecer a impossibilidade filosfica daquilo que sustenta a sua prpria
tese.
preciso compreender que nos movemos numa impossibilidade de fazer coincidirtexto e sentido do texto (norma), isto , movemo-nos numa impossibilidade de fazer coincidir
discursos de validade e discursos de adequao. neste ponto que se d o embate entre
hermenutica (filosfica) e a(s) teoria(s) discursiva(s). Objetivamente, no conseguimos
atingir um saber que possa abranger todos os modos de aplicao dos textos jurdicos de uma
vez. Em outras palavras, a objetividade conteria as hipteses aplicativas, em que o texto
conteria a norma, ou, melhor ainda, o texto (a regra) conteria todas as normas (hipteses de
aplicao) possveis.Se trabalhamos no interior de um paradigma (o paradigma da ontologische Wendung)
no qual o direito assumiu um carter hermenutico, que decorre da prpria caracterstica que
marcou o direito a partir do segundo ps-guerra, em que visivelmente a tradio nos mostra o
papel interventivo da jurisdio constitucional, ento a preocupao de qualquer teoria
jurdica deve estar voltada ao enfrentamento das conseqncias desse fenmeno.
Numa palavra: se o direito um saber prtico, a tarefa de qualquer teoria jurdica,
hoje, buscar as condies para a concretizao de direitos afinal, insisto, a Constituio
(ainda) constitui, isto , a Constituio no perde sua principal caracterstica: a de norma
superior e com perfil que ultrapassa paradigmaticamente a noo de direito liberal e social
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
8/31
8
e, ao mesmo tempo, envidar todos os esforos para evitar decisionismos e arbitrariedades
interpretativas. Sendo mais claro: contraditria qualquer perspectiva jus-interpretativa
calcada na possibilidade de mltiplas respostas, porque leva, ineroxavelmente, ao
cometimento de discricionariedades, fonte autoritria dos decisionismos judiciais.
Trata-se, pois, de entender que, se o primeiro problema metodolgico como se
interpreta tem uma resposta que est fundamentada na superao do paradigma
representacional, em que no mais cindimos interpretao de aplicao, o segundo como se
aplica parece bem mais difcil de resolver, isto , aqui se trata de dar uma resposta talvez ao
maior desafio do direito nestes tempos de ps-positivismo: como evitar decisionismos,
ativismos, etc, e alcanar uma resposta correta (adequada constitucionalmente) em cada caso.
Ou seja, como transformar a Constituio e a sua interpretao em um direito fundamentaldo cidado, no sentido de que o resultado dessa interpretao no seja fruto de um sujeito
solipsista ou dependente de mtodos igualmente elaborados a partir do (velho) paradigma
representacional. Este o cerne da discusso hermenutica, pois.
3. O problema da discricionariedade positivista e sua incompatibilidade com a era dos
princpios
Parece no haver dvida mormente aps o debate Dworkin-Hart e de tudo o mais
que a tradio jusfilosfica nos tem legado no decorrer do sculo XX que o positivismo (nas
suas mais variadas acepes) est ligado discricionariedade interpretativa (cujas
conseqncias so decisionismos e arbitrariedades), alm de ser incompatvel com a noo de
princpio forjada no neoconstitucionalismo. O positivismo, assim, porque no leva em conta o
modo prtico de ser-no-mundo e essa questo visvel nas caractersticas semntico-
analticas das diversas teorias que pretendem dar conta da indeterminabilidade do direito possibilita mltiplas respostas (exatamente em face da delegao que dada ao juiz para
encontrar a resposta nos hard cases).7 Desse modo e a partir disso, parece razovel afirmar
que essa discricionariedade/arbitrariedade (e sua consequncia, as mltiplas respostas) no
ser contida ou resolvida atravs de regras e meta-regras que cada vez mais contenham a
soluo prvia das vrias hipteses de aplicao, isto porque e a resposta aqui deve ser
peremptria a discricionariedade/arbitrariedade exatamente produto daquilo que
7 evidncia, esse no o problema da teoria do discurso habermasiana, que, assim como a hermenutica,aceita/adota a tese da existncia de respostas corretas.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
9/31
9
proporcionou a sua institucionalizao, isto , o positivismo jurdico e suas diversas facetas,
que sempre abstraram a situao concreta no ato de aplicao.
A (histrica) discricionariedade positivista embora (historicamente) limitada pelo
ordenamento jurdico tem proporcionado uma espcie de mundo da natureza
hermenutico, em que viceja a liberdade interpretativa (veja-se, por todos, o decisionismo
kelseniano e a discricionariedade admitida por Herbert Hart para a resoluo dos hard cases),
onde, no fundo, queiramos ou no, cada juiz decide como quer (arbitrariamente), de acordo
com a sua subjetividade (esquema sujeito-objeto), mesmo porque esses limites do
ordenamento so limites semnticos, os quais jamais foram obstculo para as pretenses
positivistas, bastando, para tanto, um exame da incontvel quantidade de smulas (para falar
apenas nesse tipo deprt--portr) contra-legem e/ou inconstitucionais.Dito de outro modo, as fronteiras textuais, produtos de um direito produzido
democraticamente e que deveriam estabelecer limites discricionariedade, confinando-a
nos marcos do ordenamento, acabam sendo ultrapassadas por um aprimoramento gentico
do positivismo, isto , no satisfeito com uma discricionariedade contida nos marcos do
ordenamento, o positivismo praticado no Brasil constri diversas maneiras de ultrapassar
essas fronteiras (veja-se, por exemplo, o argumento, muito utilizado at mesmo por cultores
de determinadas teorias crticas, de que o texto to-somente a ponta do iceberg, e que, porbaixo dele, esto os valores...; veja-se, enfim, o realismo jurdico, a jurisprudncia de valores,
etc). Assim, para essa modalidade de positivismo para, aqui, no rejeitar teses de que
possam existir outros positivismos que no tm na discricionariedade judicial a sua holding
, h momentos em que o texto jurdico j no satisfaz suficientemente o interesse do
intrprete (afinal, antes de tudo, o direito instrumento de poder). Como conseqncia, para
esse tipo de positivismo (ainda dominante em terrae brasilis) o texto jurdico, mesmo que
produzido democraticamente e em conformidade com a Constituio, transforma-se em umobstculo que deve ser ultrapassado, em nome dos valores, da mens legis, da voluntas legis,
etc. E assim por diante.
Esse ir-alm-do-texto, enfim, essa discricionariedade que se transforma em
arbitrariedade, tem lugar a partir de diversas teorias que colocam na subjetividade do
intrprete o locus do processo hermenutico, tais como as teorias realistas e axiologistas (por
vezes, simplesmente voluntaristas) em geral, que, quando lhes interessa, relegam os textos
jurdicos a um plano secundrio, sob o pretexto de que cabe ao intrprete a descoberta dos
valores escondidos embaixo do texto. Nesse caso e no faltam exemplos nesse sentido
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
10/31
10
at mesmo os textos constitucionais podem soobrar diante da plenipotenciaridade da
conscincia do intrprete.
O resultado disso uma situao incontrolvel at mesmo para esse tipo de
positivismo, demandando, do seu interior, reaes contra esse ir alm dos marcos do
ordenamento que deveria demarcar o espao da discricionariedade interpretativa. Explicando
melhor, mormente porque essa questo est fortemente presente na dogmtica jurdica
brasileira: se foi calcado no esquema sujeito-objeto que o positivismo ultrapassou os limites
semnticos do texto8 (aqui no se pode perder de vista o valor da tradio compreendida no
sentido gadameriano), com uma espcie de retorno metafsica clssica (no confessada,
evidentemente) que o mesmo positivismo buscar conter esse mundo da natureza
hermenutico. E o faz atravs de verbetes, enunciados e smulas vinculantes (verso para acivil law dos precedentes da common law), com os quais se pretende abarcar todas as
hipteses de aplicao de cada texto jurdico.
A conseqncia disso o sacrifcio da situao concreta. Assim, se no interior do
modelo positivista de aplicao do direito parece impossvel impedir que os juzes decidam
como queiram porque, afinal, obedecem apenas sua subjetividade (esquema sujeito-
objeto) , o prprio positivismo elabora conceitualizaes prvias (espcie de discursos de
fundamentao prvios elaborados sem os pressupostos exigidos pela teoria do discursohabermasiana) acerca do sentido dos textos jurdicos, buscando, desse modo, combater os
excessos decorrentes do prprio modelo. Em outras palavras, o positivismo travando um
combate consigo mesmo.
Eis a o paradoxo. Essa viravolta do positivismo contra si mesmo fruto de uma
espcie de adaptao darwiniana, que funciona a partir da elaborao de conceitos jurdicos
com objetivos universalizantes, utilizando, inclusive, os princpios constitucionais. Ou seja, os
princpios constitucionais, que deveriam superar o modelo discricionrio do positivismo,passaram a ser anulados por conceitualizaes, que acabaram por transform-los em regras (a
conceitualizao de um princpio petrifica seu sentido).
Ora, se os diversos mecanismos que buscaram resolver a multiplicidade de demandas
no tiveram xito at hoje e todos eles possuem um perfil que busca colocar em segundo
plano a substancialidade do direito , porque est sendo atacada to-somente a contradio
secundria do problema. Ou seja, se as mltiplas respostas e a discricionariedade (ausncia de
controle na interpretao e nas decises judiciais) esto ligadas ao positivismo (em suas
8 Veja-se, nesse sentido, o papel da jurisprudncia de valores e do realismo jurdico norte-americano eescandinavo.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
11/31
11
diversas matizes) e isso que gera o caos no sistema jurdico parece que a resposta est
para alm do positivismo e de sua ratio essendi.
Trata-se, pois, de examinar essa complexa problemtica a partir de um cmbio
paradigmtico, que envolve, certamente, um salto da subsuno compreenso, do esquema
sujeito-objeto para a intersubjetividade, da regra para o princpio e, fundamentalmente, do
positivismo para o neoconstitucionalismo, conseguindo-se, assim, uma resposta adequada
para o terceiro9 problema que envolve a metodologia contempornea: em face do carter
hermenutico assumido pelo direito nesta quadra da histria (paradigma do Estado
Democrtico de Direito) e em face da indeterminalidade do direito, quais so as possibilidade
que temos para encontrar respostas corretas, evitando-se tanto os objetivismos quanto os
subjetivismos interpretativos?
4. A tarefa de uma hermenutica crtica: construir as condies para efetivar a
Constituio (que no esgotou sua tarefa) e evitar discricionariedades interpretativas,
superando distines estruturais (dualismos metafsicos).
Contra o objetivismo do texto ou do sentido previamente dado ao texto (posturas
normativistas-semanticistas) e o subjetivismo (posturas axiolgicas lato sensu quedesconsideram ou relativizam o texto) do intrprete, cresce o papel da hermenutica filosfica
e seu antirelativismo. Embora o avano e a importncia das teorias do discurso para o
enfrentamento das demandas de um universo de direito ps-positivista, em que a jurisdio
assume especial relevncia, pela necessidade de controlar a indeterminabilidade das normas
que no conseguem por impossibilidade filosfica abarcar as diversas hipteses de
aplicao, a hermenutica filosfica, adaptada ao que venho denominando de Crtica
Hermenutica do Direito
10
, pretende ir alm dos discursos prvios de fundamentao trazidospelas teorias discursivas como soluo para o problema da subjetividade (e, portanto, da
discricionariedade) do juiz.
Como o direito um saber prtico e que deve servir para resolver problemas e
concretizar os direitos fundamentais-sociais que ganharam espao nos textos constitucionais,
9 Como j se viu, o primeiro problema como se interpreta e o segundo como se aplica. Ambos so resolvidos,no plano da hermenutica, a partir de sua no ciso, isto , a partir da applicatio.10
Remeto o leitor para os meus: Verdade e Consenso. Constituio, Hermutica e Teorias Discursivas. Dapossibilidade necessidade de respostas corretas em Direito. 2.ed. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2007; eHermenutica Jurdica e(m) Crise. 7.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, onde proponho as bases deuma nova crtica do direito.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
12/31
12
a superao dos obstculos que impedem o acontecer do constitucionalismo de carter
transformador estabelecido pelo novo paradigma do Estado Democrtico de Direito pressupe
a construo das bases que possibilitem a compreenso do estado da arte do modus
operacional do direito.
O problema da inefetividade da Constituio e tudo o que ela representa no se
resume a um confronto entre modelos de direito. O confronto , pois, paradigmtico. A
Constituio ainda possui fora normativa, pois. Penso que o constitucionalismo do Estado
Democrtico de Direito (guardadas as especificidades de cada pas e de seus respectivos
estgios de desenvolvimento social e econmico) tem uma fora sugestiva relevante quando
associado idia de estabilidade que, em princpio, se supe lhe estar imanente.11 Esta
estabilidade est articulada com o projeto da modernidade poltica, que, sucessivamenteimplementado, respondeu a trs violncias (tringulo dialctico), atravs da categoria
poltico-estatal: a) respondeu falta de segurana e de liberdade, impondo a ordem e o direito
(o Estado de direito contra a violncia fsica e o arbtrio); b) deu resposta desigualdade
poltica alicerando liberdade e democracia (Estado democrtico); c) combateu a terceira
violncia a pobreza mediante esquemas de socialidade.12 Tenho presente, assim, que o
papel diretivo da Constituio continua a ser o suporte normativo do desenvolvimento deste
projeto de modernidade.Na medida em que no resolvemos essas trs violncias e essa questo aparece
dramaticamente na realidade de pases como Brasil, Colmbia, Venezuela, Argentina, para
falar apenas destes , mostra-se equivocado falar em desregulamentao do Estado e
enfraquecimento da fora normativa dos textos constitucionais e, consequentemente, da
prpria justia constitucional no seu papel de garantidor da Constituio. Na verdade, a
pretenso que os mecanismos constitucionais postos disposio do cidado e das
instituies sejam utilizados, eficazmente, como instrumentos aptos a evitar que os poderespblicos disponham livremente da Constituio. A Constituio no simples ferramenta;
no uma terceira coisa que se interpe entre o Estado e a Sociedade.
nesse sentido que assume relevncia uma anlise do problema a partir de uma leitura
hermenutica. As alteraes do papel do Estado esto ligadas s transformaes do papel do
direito. Por isso que no h teoria constitucional sem (teoria do) Estado. Se no Estado
Democrtico de Direito, ao mesmo tempo em que diminui a liberdade de conformao
legislativa, ocorre um crescimento do espao de atuao da justia constitucional em razo
11 Ver, para tanto, CANOTILHO, J.J. Gomes. O Estado Adjetivado e a Teoria da Constituio. InteressePblico, Porto Alegre, n. 17, 2003, p. 40.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
13/31
13
do papel destinado s constituies nesta quadra da histria e institucionalizao da moral
no direito como demonstrao do fracasso do positivismo e do modelo de regras , parece
inexorvel a necessidade de colocar efetivos controles no produto final da interpretao do
direito: a aplicao pelos juzes e tribunais.
Essa nova configurao nas esferas de tenso dos Poderes do Estado, decorrente do
novo papel assumido pelo Estado e pelo constitucionalismo, refora, sobremodo, o carter
hermenutico que o direito assume. Afinal, h um conjunto de elementos que identificam essa
fase da histria do direito e do Estado: textos constitucionais principiolgicos, a
previso/determinao de efetivas transformaes da sociedade (carter compromissrio e
diretivo das Constituies) e as crescentes demandas sociais que buscam no poder judicirio a
concretizao de direitos tendo com base os diversos mecanismos de acesso justia.Mas isso, toda evidncia, no pode comprometer os alicerces da democracia
representativa. O grande dilema contemporneo ser, assim, o de construir as condies para
evitar que a justia constitucional (ou o poder dos juzes) se sobreponha ao prprio direito.
Parece evidente lembrar que o direito no e no pode ser aquilo que os tribunais dizem
que . E tambm parece evidente que o constitucionalismo no incompatvel com a
democracia. Mas, se algum deve dizer por ltimo o sentido do direito no plano de sua
aplicao cotidiana, e se isso assume contornos cada vez mais significativos em face docontedo principiolgico e transformador da sociedade trazidos pelas Constituies, torna-se
necessrio atribuir um novo papel teoria jurdica.
Ou seja, se o positivismo fracassou com a antidemocrtica delegao em favor dos
juzes para a deciso dos casos difceis, no parece apropriado que o advento do
constitucionalismo principiolgico possa ser compreendido a partir daquilo que sustentou o
velho modelo: o esquema sujeito-objeto, pelo qual casos fceis eram solucionados por
subsuno e casos difceis por escolhas discricionrias do aplicador.Conseqentemente, no se pode substituir a discricionariedade (subjetivista), que
sustentou o positivismo, por um novo tipo de discricionariedade, que fosse admitida teria
um terreno muito mais frtil para se instalar nesta quadra do tempo, uma vez que, vistos a
partir de uma perspectiva metafsica, os princpios possuem textura bem mais aberta que o
velho modelo de regras do positivismo. neste ponto que a teoria do direito deve dar um
salto, adequando-se ao novo perfil assumido pelo direito (que ser sempre um direito
constitucional). Por isso a relevncia do trplice problema metodolgico antes delineado:
interpretao, aplicao e a (im)possibilidade de alcanar respostas corretas em direito.
12 Idem, ibidem.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
14/31
14
Se as concepes metafsicas sobre o direito esto sustentadas na atribuio de
sentidos in abstracto e por isso sustentam a possibilidade da existncia de mltiplas
respostas , porque a interpretao ocorre em etapas, cindindo/separando a interpretao da
aplicao, como se fossem mundos distintos. Ora, exatamente neste ponto que reside o
diferencial entre a hermenutica e as diversas teorias discursivo-procedurais. Em outras
palavras, a incindibilidade entre interpretar e aplicar que ir representar a ruptura com o
paradigma representacional-metodolgico. E o crculo hermenutico que vai se constituir
em condio de ruptura do esquema (metafsico) sujeito-objeto, nele introduzindo o mundo
prtico (faticidade), que serve para cimentar essa travessia, at ento ficcionada na e pela
epistemologia. Definitivamente, no h como isolar a pr-compreenso.
Negar a possibilidade de que possa existir (sempre) para cada caso uma respostaconformada Constituio portanto, uma resposta correta sob o ponto de vista
hermenutico , pode significar a admisso de discricionariedades interpretativas, o que se
mostra antittico ao carter no-relativista da hermenutica filosfica e ao prprio paradigma
do novo constitucionalismo principiolgico introduzido pelo Estado Democrtico de Direito,
incompatvel com a existncia de mltiplas respostas.
possvel e necessrio dizer, sim, que uma interpretao correta e a outra
incorreta. Movemo-nos no mundo exatamente porquepodemos fazer afirmaes dessa ordem.E disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreenso os conceitos interpretativos no
resultam temticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrrio, determinam-se
pelo fato de que desaparecem atrs daquilo que eles fizeram falar/aparecer na e pela
interpretao. Aquilo que as teorias da argumentao ou qualquer outra concepo teortico-
filosfica (ainda) chamam de raciocnio subsuntivo ou raciocnio dedutivo nada mais do
que esse paradoxo hermenutico, que se d exatamente porque a compreenso um
existencial (ou seja, por ele eu no me pergunto porque compreendi, pela simples razo deque j compreendi, o que faz com que minha pergunta sempre chegue tarde).
Uma interpretao correta quando desaparece, ou seja, quando fica objetivada
atravs dos existenciais positivos, em que no mais nos perguntamos sobre como
compreendemos algo ou por que interpretamos dessa maneira e no de outra: simplesmente, o
sentido se deu (manifestou-se), do mesmo modo como nos movemos no mundo atravs de
nossos acertos cotidianos, conformados pelo nosso modo prtico de ser no mundo. Fica sem
sentido, destarte, separar/cindir a interpretao em easy cases e hard cases.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
15/31
15
4.1. A indevida distino entre casos fceis e casos difceis
Da a necessidade de deixar claro que a crise dos modelos interpretativos no autoriza
que as teorias da argumentao ou outras teorias procedurais venham a se constituir em uma
espcie de reserva hermenutica, que somente seria chamada colao na insuficincia da
regra, isto , quando se estiver em face de casos difceis (hard cases). Casos fceis (easy
cases) e casos difceis (hard cases) partem de um mesmo ponto e possuem em comum algo
que lhes condio de possibilidade: a pr-compreenso (Vorverstndnis). Esse equvoco de
separar easy cases de hard cases cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teorias
discursivo-argumentativos, valendo citar, por todos,13 Alexy14 e Atienza15. O que tm em
comum o fato de que, nos hard cases, consideram que os princpios (critrios) para solv-losno se encontram no plano da aplicao, mas, sim, devem ser retirados de uma histria
jurdica que somente possvel no plano de discursos a priori (no fundo, discursos de
fundamentao prvios). Tambm Dworkin faz indevidamente essa distino entre casos
fceis e casos difceis. Mas o faz por razes distintas. A diferena que Dworkin no
desonera os discursos de aplicao dos discursos de fundamentao, que se doprima facie.
Na verdade, a exemplo de Gadamer, ele no distingue discursos de aplicao de discursos de
fundamentao, assim como no separa interpretao e aplicao.Acreditar na distino (ciso) entre casos simples (fceis) e casos difceis (complexos)
pensar que o direito se insere em uma suficincia ntica, isto , que a completude do
mundo jurdico pode ser resolvida por raciocnios causais-explicativos, em uma espcie de
positivismo da causalidade. Pensar assim esquecer que essa metafsica da causalidade
apenas uma etapa necessria para chegarmos aos entes.
13 Embora essa questo no esteja explcita em Habermas e Gnther, penso que ambos incorrem nessa ciso.
Para tanto, valho-me da leitura de Habermas em seus: Teora de la accin comunicativa: complementos yestudios previos. Madrid: Ctedra, 1989; Direito e democracia I e II. Entre Faticidade e Validade. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1997; Reply to may critics. In: THOMPSON, J.; HELD, D. (Eds.). Habermas.Critical Debates. London, 1982; e Gnther em seus: Teoria da Argumentao no Direito e na Moral:
justificao e aplicao. So Paulo: Landy, 2004; Uma concepo normativa de coerncia para uma teoriadiscursiva da argumentao jurdica. Cadernos de Filosofia Alem, n. 6, So Paulo, Humanitas, Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, 2000. Essa questo por mim enfrentada em Verdade eConsenso, op.cit.14 Cfe. ALEXY, Robert. La idea de una teora procesal de la argumentacin jurdica. In: VALDS, ErnestoGarzn (Org.). Derecho y Filosofa. Alfa, Barcelona-Caracas: Alfa, 1985; Problemas da teoria do discurso.
Revista do Direito Brasileiro, n. 1, Braslia, UnB, 1996; Derechos fundamentales y Estado ConstitucionalDemocratico. In: CARBONEL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003; Teoria de la
Argumentacin Jurdica. Teora del Discurso Racional como Teoria de la Fundamentacin Jurdica. Madrid:CEPC, 1997.
15 Cfe. ATIENZA, Manuel. As razes do direito. Teorias da argumentao jurdica. So Paulo: Landy, 2002;Argumentacin jurdica. In: El derecho y la justicia. Madrid: Trotta, 2000.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
16/31
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
17/31
17
compreensiva, o caso (que no fcil e nem difcil, mas, sim, um caso) passar ao nvel da
objetivao e sobre o qual no haver perquirio acerca dos motivos da compreenso. Por
tais razes, torna-se invivel como querem, v.g., os tericos da teoria da argumentao
sustentar raciocnios dedutivos (causais-explicativos) para os casos fceis.
O problema de um caso ser fcil (easy) ou difcil (hard) no est nele mesmo, mas
na possibilidade que advm da pr-compreenso do intrprete de se compreend-lo. Fosse
possvel distinguir/cindir (a priori) casos fceis e casos difceis, chegar-se-ia concluso de
que os casos seriam fceis para determinados intrpretes e difceis para outros...! A questo
vista de outro modo : fcil ou difcil para quem?
Portanto, h algo anterior distino: trata-se de uma dobra hermenutica que cada
caso possui, assim como ocorre com a linguagem (alis, um caso s vem compreensoatravs da linguagem, porque e no devemos esquecer texto evento). Ou seja, uma
suficincia ntica pode at explicar um caso simples para um intrprete. Entretanto, esse
mesmo caso pode permanecer como complexo para outro. Conseqentemente, a distino
entre casos fceis e difceis est na compreenso, portanto, nas condies de possibilidades
que o intrprete possui de entender os pr-juzos. Se est na compreenso, ento depender de
uma pr-compreenso, que antecede a designao de ser um caso fcil ou difcil. Da a
absoluta inadequao de se dizer que os casos fceis se resolvem mediante raciocniosdedutivos (causais explicativos).
4.2. Da inadequada distino/ciso entre regras e princpios
Do mesmo modo, tem-se a inadequada compreenso acerca da tenso entre regra e
princpio, que acaba sucumbindo em mais um dualismo metafsico. A regra no explica; ela
esconde (a regra no desvela; ela vela). O princpio desnuda a capa de sentido imposta pelaregra (pelo enunciado, que pretende impor um universo significativo auto-suficiente). No
fundo, o positivismo jurdico no conseguiu ainda nem sequer superar a metafsica clssica,
circunstncia facilmente perceptvel em setores importantes da doutrina jusfilosfica que a
sustentam, acreditando que a palavra da lei (regra) designa no a coisa individual, mas a
comum a vrias coisas individuais, ou seja, a essncia captvel pelo intrprete. Por outro lado,
as posturas positivistas tambm no superaram a metafsica moderna, o que se pode perceber
pelas posies assumidas por considervel parcela dos juristas que a pretexto de
ultrapassar a literalidade do texto, coloca no sujeito a tarefa essencialista de descobrir
os valores escondidos debaixo da regra, isto , na insuficincia da regra construda a
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
18/31
18
partir da conscincia de si do pensamento pensante entra em cena o intrprete com a sua
mente privilegiada (veja-se, nisso, a imbricao dos dois paradigmas metafsicos) para
levantar o vu que encobre o verdadeiro sentido da regra (sic).
Eis a novidade: por trs de cada regra, passa a existir um princpio. Enquanto as
insuficincias provocadas pela limitao prpria das regras eram superadas pelas teorias da
argumentao e correlatas (mas sempre ainda atreladas a teses axiolgico-subjetivas), atravs
do manuseio das incertezas da linguagem, o paradigma que supera esse modelo, sustentado no
novo constitucionalismo (neoconstitucionalismo), passa a ter na aplicao dos princpios e
no na sua ponderao como quer, por exemplo, Alexy o modo de alcanar respostas
adequadas constitucionalmente (respostas hermeneuticamente corretas/verdadeiras), evitando
a descontextualizao do direito e a ciso do que incindvel: fato e direito, texto e norma,palavra e coisa, interpretao e aplicao, enfim, os diversos dualismos que sustentam o
modelo positivista-metafsico do direito. Desnecessrio lembrar que a aplicao dos
princpios aqui especificada diz respeito applicatio gadameriana, o que nos remete,
necessariamente, faticidade, ao modo prtico de ser no mundo, diferena ontolgica
(ontologische Differentz). Portanto, no se est substituindo a regra pelo princpio ao
sustentar a aplicao destes no lugar da regra. Essa iluso poderia levar concluso de que
essa aplicao poderia se dar nos moldes alexianos.Numa palavra e permito-me insistir , importante notar que essa distino entre regra
e princpio deve ser vista luz do paradigma hermenutico, sob pena de no ser
compreendida e provocar confuses. Estar equivocado aquele que achar que se trata da
distino obtida pelo critrio forte, que v nos princpios uma estrutura lgica diferenciada
daquela percebida nas regras (dado A deve ser B). Essa diferena, a rigor, somente ser
percebida no plano apofntico, quando criamos um mnimo de entificao necessria para
transmitir mensagens. Neste plano e apenas neste podemos dizer que o princpio(independente da sua forma textual), diferentemente das regras, traz consigo a carga de uma
filosofia prtica, razo pela qual acaba sendo, no mais das vezes, associado aos valores. Nesse
contexto, os princpios representariam a tentativa de resgate de um mundo prtico abandonado
pelo positivismo. As regras, por outro lado, representariam uma tcnica para a
concretizao desses valores (sic), ou seja, meios (condutas) para garantir um estado de
coisas desejado. Mas, convm notar que essa distino somente poder ser feita no plano
apofntico, no tendo sentido se entendida como uma analtica constituidora de sentido. No
plano hermenutico, h a pr-compreenso como condies de possibilidade, que impede a
distino estrutural entre regras e princpios.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
19/31
19
Distinguir regra e princpio no pode significar que as regras sejam uma espcie de
renegao do passado e de seus fracassos e nem tampouco que os princpios traduzam o
ideal da boa norma. Ora, regra e princpio so textos, donde se extraem normas. Regras (se
se quiser, preceitos) produzidas democraticamente podem/devem, igualmente, traduzir a
institucionalizao da moral no direito. A distino regra-princpio no pode significar,
assim, maior ou menor grau de subjetividade. Isso equivocado e proporciona mal-
entendidos. Se assim o fosse, os princpios no representariam uma ruptura com o mundo de
regras. Mas regras no so boas nem ms; carregam, inegavelmente, um capital simblico
que denuncia um modelo de direito que fracassou: o modelo formal-burgus, com suas
derivaes que cresceram sombra do positivismo jurdico. E isso no pode ser olvidado.
neste contexto que deve ser compreendida a diferena entre regra e princpio. Oprincpio no a norma da regra; tambm a regra no um ente disperso no mundo
jurdico, ainda sem sentido. A diferena que sempre h uma ligao hermenutica entre
regra e princpio. Isso fundamental para a compreenso do problema. No fosse assim e no
se poderia afirmar que atrs de cada regra h um princpio. Esse princpio, que denominamos
instituidor, na verdade, constitui o sentido da regra na situao hermenutica gestada no
Estado Democrtico de Direito. Essa a especificidade; no um princpio geral do direito,
um princpio bblico, um princpio (meramente) poltico. No fundo, quando se diz que entreregra e princpio h (apenas) uma diferena (ontolgica, no sentido da fenomenologia
hermenutica no original, ontologische Differentz), porque regra e princpio se do, isto ,
eles acontecem (na sua norma) no interior do crculo hermenutico. H sempre, pois, um
engendramento significativo (um Ereignis significativo).
Em sntese, necessrio entender que, diante do conceitualismo provocado pelo
imprio das regras em um mundo de subsunes e dedues que nada mais fazem do que
reforar a subjetividade (discricionariedade) do intrprete, os princpios constitucionaisingressam no cenrio jurdico para superar esse paradigma da deduo (causalista-
explicativo), que se move ainda no plano da teoria do conhecimento (esquema sujeito-objeto).
Portanto, para as posturas positivistas ainda inseridas nesse modelo, a questo no
s metodolgica, mas, sim, ontolgica no sentido clssico, que o paradigma da objetivao;
nesse paradigma, h uma questo de mtodo uma posio ontolgico-metafsica. Move-se,
pois, no campo do fundamentar. Em outras palavras: h um fundamento objetivamente
ontolgico e disso resulta o mtodo positivista. Nisso est assentado o paradigma positivista.
Positivismo, subjetivismo (filosofia da conscincia), discricionariedade (que redunda em
arbitrariedades) esto umbilicalmente ligados (sem desconsiderar a importncia para o
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
20/31
20
positivismo jurdico das teorias semnticas assentadas no paradigma objetivistametafsico-
clssico).17 E por tais razes que o mtodo positivista exclui o hermenutico e a pr-
compreenso. Quem est preso a esse paradigma incapaz de entrar no campo do
compreender, fixando-se na fundamentao de carter objetificante. O mtodo , por
excelncia, a forma de objetificao metafsica.
4.3. A ponderao como repristinao da discricionariedade positivista: a diferena
entre hermenutica e teoria da argumentao jurdica
Se no positivismo os casos difceis eram deixados a cargo do juiz resolver de
forma discricionria (com as conseqncias histricas de que j falei anteriormente), emtempos de ps-positivismo e naquilo que se denominou de teoria(s) da argumentao
jurdica(s), os hard cases passaram a ser resolvidos a partir de ponderaes de princpios.
Quando os princpios entram em conflito, devem ser ponderados, diz, por todos, Alexy,
sustentando, assim, a tese da hierarquizao axiolgica. O problema saber como feita essa
escolha...!
Penso, aqui, que o calcanhar de aquiles da ponderao e, portanto, das diversas
teorias argumentativas reside no deslocamento da hierarquizao ponderativa em favor dasubjetividade (assujeitadora) do intrprete, com o que a teoria da argumentao, como
sempre denunciou Arthur Kauffman, no escapa do paradigma representacional. No fundo,
volta-se ao problema to criticado da discricionariedade, que, para o positivismo (por todos,
Kelsen e Hart), resolvido por delegao ao juiz. Assim, tambm nos casos difceis de que
falam as teorias argumentativas, a escolha do princpio aplicvel repristina a antiga
delegao positivista (na zona da franja, em Hart ou no permetro da moldura, em Kelsen),
cabendo ao intrprete dizer qual o princpio aplicvel, isto , tal como no positivismo, cabe aojuiz decidir nas zonas de incertezas e das insuficincias nticas, para usar aqui uma
expresso que faz parte do repertrio que identifica a dobra da linguagem (Stein-Streck)
que sustenta a ausncia de ciso entre harde easy cases.
A ponderao, modo simples, acaba por repetir a idia da subsuno. Mesmo que
como prope Alexy devam ser feitas frmulas e critrios de hierarquizao, isso no livra a
17 Desnecessrio lembrar o papel das smulas vinculantes, que cumprem exatamente esse papel de objetificao.
evidente que isso no privilgio das smulas, uma vez que, em terrae brasilis, de h muito o direitocontenta-se com um conjunto deprt--posters significativos, por intermdio dos quais o senso comum tericopretende estabelecer previamente as diversas hipteses de aplicao de um texto, transferino o problema dainterpretao do direito para o plano dos discursos de fundamentao, fortificando, assim, os diversos dualismosmetafsicos.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
21/31
21
ponderao das armadilhas do velho problema da metodologia, to bem criticada e superada
por Gadamer em Wahrheit und Methode. A ponderao de que trata a teoria da argumentao
estar baseada em um mtodo, que, a par de ser construdo, solipsisticamente, pelo prprio
intrprete, nada mais ser do que uma terceira coisa que se interpe entre um sujeito e um
objeto. Afinal, sempre possvel perguntar acerca das condies de possibilidade que existem
para afirmar que este critrio para fazer a ponderao melhor que o outro. Ou, de outro
modo, qual o fundamento de validade do critrio? E volta-se ao trilema de Mnschausen.
Veja-se que at adeptos da teoria da argumentao, como Pietro Sanchis, admitem que o
juzo de ponderao implica uma margem (considervel) de discrcionariedade. Pergunta-se,
ento: qual a distncia da at a arbitrariedade interpretativa (ou, se quiser, do
decisionismo)?Eis aqui a diferena entre a hermenutica e a teoria da argumentao: enquanto esta
compreende os princpios (apenas) como mandados de otimizao, portanto, entendendo-os
como abertura interpretativa, o que chama colao subjetividade do intrprete, quela
parte da tese de que os princpios introduzem o mundo prtico no direito, fechando a
interpretao, isto , diminuindo ao invs de aumentar o espao da discricionariedade do
intrprete. Claro que, para tanto, a hermenutica salta na frente para dizer que, primeiro, so
incindveis os atos de interpretao e aplicao (com o que se supera o mtodo) e, segundo,no h diferena estrutural entre hard cases e easy cases.
nesse contexto, isto , por acreditar na existncia de hard cases e easy cases e,
sobremodo, por dispensar a pr-compreenso antecipadora, a teoria da argumentao
utiliza-se do princpio da proporcionalidade como chave para resolver a ponderao, a
partir das quatro caractersticas de todos conhecidas. Como a proporcionalidade s
chamada colao em caso de necessidade de ponderao (so os casos difceis), ao
intrprete que caber hierarquizar e decidir qual o princpio aplicvel. Ora, se, ao fim eao cabo, ao intrprete que cabe hierarquizar (e escolher) o princpio aplicvel, a pergunta
que fica : qual , efetivamente, a diferena entre o intrprete ponderador e o intrprete
positivista-discricionarista?
Claro que a Teoria da Argumentao Jurdica mormente a de Alexy responder
que h um conjunto de critrios que devero sempre balisar a escolha. Mas, pergunto, qual a
diferena desses critrios (ou frmulas) dos velhos mtodos de interpretao, cujo calcanhar
de aquiles na feliz expresso de Eros Grau e Friedrich Mller (ra) exatamente no ter um
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
22/31
22
critrio para difundir qual o melhor critrio, que, em outros palavras, comparei, em textos
anteriores, com a ausncia/impossibilidade de um Grundmethode?18
Portanto, neste ponto h que se dar razo a Habermas e aos adeptos de sua teoria,
sobre as suas crticas ao uso discricionrio da ponderao e ponderao discricionria
(alis, a prpria ponderao passa a ser, por si s, instrumento para o livre exerccio da
relao sujeito-objeto). Assim, por exemplo, quando se est dizendo que uma lei x
inconstitucional porque fere o prioncpio da proporcionalidade, na verdade, antes disso, a lei x
inconstitucional porque, por certo, violou um determinado princpio constitucional. Na
verdade, esto corretas as crticas de Habermas de que no se deve ponderar valores, nem em
abstrato, nem em concreto. Por isso, a proporcionalidade no ser legtima se aplicada como
sinnimo de eqidade. Proporcionalidade19 ser, assim, o nome a ser dado a necessidade decoerncia e integridade de qualquer deciso (aqui h uma aproximao de Habermas com
Dworkin).
6. A resposta correta como remdio contra a discricionariedade. Aportes finais em
tempos de ps-positivismo.
De tudo o que foi exposto, penso que uma reflexo que aponte para a superao doimaginrio jurdico-positivista necessita dos pressupostos hermenuticos, que apontam para a
superao do esquema sujeito-objeto, assim como dos diversos dualismos prprios dos
paradigmas metafsicos objetificantes (clssico e moderno). preciso, portanto, insistir nisso.
Conscincia e mundo, linguagem e objeto, sentido e percepo, teoria e prtica, texto e
norma, vigncia e validade, regra e princpio, casos simples e casos difceis, discursos de
justificao e discursos de aplicao: esses dualismos se instalaram no nosso imaginrio
sustentados pelo esquema sujeito-objeto.Frente ao estado da arte representado pelo predomnio do positivismo, que sobrevive a
partir das mais diversas posturas e teorias que se sustentam, de um modo ou de outro, no
predomnio do esquema sujeito objeto problemtica que se agrava com uma espcie de
protagonismo do sujeito-intrprete (especialmente juzes e tribunais) em pleno paradigma da
intersubjetividade penso que, mais do que possibilidade, a busca de respostas corretas em
direito uma necessidade.
18 Cf. STRECK, Lenio Luiz.Hermenutica Jurdica E(m) Crise, op. cit.19 Ao invs da proporcionalidade, que acaba sendo utilizada como uma panacia para resolver qualquerproblema, parece mais indicado utilizar as suas duas faces: a proibio de excesso (bermassverbot) eproibio de proteo deficiente (Untermassverbot).
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
23/31
23
Por isso, a resposta correta que venho propondo uma simbiose entre a teoria integrativa
de Dworkin e a fenomenologia hermenutica (que abarca a hermenutica filosfica). Dito de
outro modo, trata-se de enfrentar o estado de natureza hermenutico em que o
discricionarismo positivista transformou o sistema jurdico. A liberdade na interpretao
dos textos jurdicos proporcionada pelo imprio das correntes (teses, teorias) ainda
arraigadas/prisioneiras do esquema sujeito-objeto tem gerado esse estado de natureza
interpretativo, representado por uma guerra de todos os intrpretes contra todos os
intrpretes...! Cada intrprete parte de um grau zero de sentido. Cada intrprete reina nos
seus domnios de sentido, com seus prprios mtodos, metforas, metonmias, justificativas,
etc. Os sentidos lhe pertencem, como se estes estivessem a sua disposio, em uma espcie
de reedio da relao de propriedade (neo)feudal. Nessa guerra entre os intrpretes afinal, cada um impera solipsisticamente nos seus domnios de sentido reside a morte do
prprio sistema jurdico.
A resposta correta uma metfora, como o juiz Hrcules de Dworkin tambm o .
Afinal, metforas servem para explicar coisas. Isso, evidncia, implica pensar esse modelo
dentro de suas possibilidades. Com efeito, metfora so criadas porque se acredita que um
determinado fenmeno poder ser melhor explicado a partir da explicao j consolidada de
um outro fenmeno, ou seja, a operao com que transferimos significados no-sensveispara imagens ou remetemos elementos sensveis a esferas no-sensveis20. Portanto, se
considerarmos que essa distino fundamental entre sensvel e no-sensvel no existe, a
colocao da metfora representa uma atitude tipicamente metafsica, induzindo o agente a
compreend-la como um ponto de partida universal.
Contudo e essa advertncia reveste-se de fundamental relevncia, para no gerar
malentendidos , se a metfora for pensada dentro das limitaes de uma linguagem
apofntica, que ter sempre como pressuposto a dimenso hermenutica da linguagem, elapermitir, a exemplo do neologismo, uma aproximao entre o dito e o fenmeno j
compreendido, uma vez que nela encerra, como j foi visto, um grau de objetivao
minimamente necessrio. A metfora entendida, assim, como a possibilidade, a partir da
diferena ontolgica, de ligar significantes e significados. A metfora significa a
impossibilidade de sinonmias perfeitas.
A metfora da resposta correta ser, desse modo, a explicitao de que possvel
20 Cf. STEIN, Ernildo. Pensar pensar a diferena. Iju: Uniju, 2002, p. 69 e segs. O conceito tradicional demetfora pode ser aplicado, v.g., s smulas vinculantes e aos enunciados pr--porter proto-sumulares queconformam a cultura jurdica dominante, porque pretendem estabelecer explicaes prvias de outros fenmenos
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
24/31
24
atravessar o estado de natureza hermenutica (lembremos o estado de natureza de outra
metfora, a de Hobbes, em seu Contrato Social) instalado no direito. A metfora nos mostra
que, ao nos situarmos no mundo, isso no implica um genesis (grau zero) a cada enunciao.
Dito de outro modo, pela resposta correta compreendida nos moldes aqui delimitados
estabelece-se a convico (hermenutica) de que h um desde-j-sempre (existencial) que
conforma o meu compromisso minimamente objetivado(r), uma vez que, em todo processo
compreensivo, o desafio levar os fenmenos representao ou sua expresso na
linguagem, chegando, assim, ao que chamamos de objetivao, como sempre nos lembra
Ernildo Stein.
Mas e aqui vai uma advertncia indispensvel , a ruptura com o estado de natureza
hermenutico no se dar atravs de uma delegao em favor de uma instncia ltima, isto ,um abrir mo do poder de atribuir sentidos em favor de uma espcie de Leviat
hermenutico, como parece ser o caso da institucionalizao da simplista idia das smulas
vinculantes ou de outros mecanismos vinculatrios (v.g., Leis 8.038, 9.756 e 11.277, para
falar apenas destas).
Dito de outro modo, se a resposta para a fragmentao do estado de natureza medieval
foi a delegao de todos os direitos em favor do Leviat representado pela soberania absoluta
do Estado (o Estado Moderno absolutista superou, desse modo, a forma estatal medieval), nahermenutica jurdica de cariz positivista a resposta para o imprio dos subjetivismos,
axiologismos, realismos ou o nome que se d a tais posturas que colocam no intrprete (juiz,
tribunal) o poder discricionrio de atribuir sentidos no pode ser, sob hiptese alguma, a
instaurao de uma supra-hermeneuticidade ou a delegao dessa funo para uma super-
norma que possa prever todas as hipteses de aplicao, que, mutatis, mutandis, a
pretenso ltima das smulas vinculantes. Assim, contra o caos representado pelos
decisionismos e arbitrariedades, o establishmentprope um neo-absolutismo hermenutico.E isso recrudece a crise, longe de debel-la.
Nesse sentido, parece no haver dvidas de que a admisso de mltiplas respostas a
cada caso est relacionada, antes de tudo ao contrrio do que sustentam os juristas no ao
caso concreto por todos to reverenciado, mas, sim, ao conceitualismo da regra, que pretende
abarcar (todas) as possveis situaes de aplicao de forma antecipada, independente
do mundo prtico, da situao ftica. Aqui, o caso concreto acaba sendo exprimido para
dentro desse conceito, que, assim, no passa de uma capa de sentido com pretenses
a partir da explicao consolidada de um, isoladamente, como se o problema do direito se resumisse validade(prvia) dos discursos.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
25/31
25
universalizantes. De um lado, isso que acontece. Mas h tambm outra parte dos juristas,
que pretende superar o problema desse semanticismo sem ser-no-mundo. Trata-se daqueles
para os quais o caso concreto tem a funo ideolgica de servir para a exemplo do realismo
jurdico e suas derivaes abrir uma nova cadeia de sentidos, como se o intrprete partisse
de um grau zero de sentidos. Como resultado, so ignorados, sob os mais argumentos mais
voluntaristas e voluntariosos, os prprios limites de sentido e o sentido dos limites que se
encontram minimamente entificados (se se quiser, solidificados em uma tradio) nos textos
jurdicos produzidos democrticamente sob o plio do Estado Democrtico de Direito. Para
ser mais simples: escudado no caso concreto, diz-se qualquer coisa sobre qualquer coisa...O
problema saber como se procede no caso seguinte...! Soobram, pois, no somente os textos
jurdicos produzidos democraticamente, mas a prpria democracia, uma vez que passamos aser refns dessa batalha de sentidos que se d entre os os diversos sujeitos solipsistas
detentores, cada um, de um feudo interpretativo.
Na verdade, nesse mundo positivista, o que conta o enunciado, isto , todas as
outras formas de linguagem e todos os outros modos de dizer do objeto de anlise se resumem
ao enunciado, que fica dis-posio do sujeito-intrprete. Esse fenmeno, alis, embora sob
outra motivao, muito bem explicada por Gadamer, para quem a possibilidade de mltiplas
respostas est calcada no logos apofntico, cuja funo significar o discurso, isto , aproposio cujo nico sentido a de realizar o apofainesthai, o mostrar-se do que foi dito.
uma proposio terica no sentido de que ela abstrai de tudo que no diz expressamente. O
que constitui o objeto da anlise e o fundamento da concluso lgica apenas o que ela
prpria revela pelo seu dizer.21 Ora, na medida em que sempre h um dficit de previses, as
posturas positivistas delegam ao juiz uma excessiva discricionariedade (excesso de
liberdade na atribuio dos sentidos), alm de dar azo tese de que o direito (apenas) um
conjunto de normas (regras). Em conseqncia, transforma-se a interpretao jurdica emfilologia, forma refinada de negao da diferena ontolgica. E tambm no se pode, a
pretexto de superar o problema da arbitrariedade (subjetivista-axiologista) do juiz, desoner-
lo da tarefa de elaborao de discursos de fundamentao, como querem, por exemplo,
Habermas e Gnther.
A resposta correta que no nica e nem uma entre vrias22 luz da hermenutica
(filosfica)23 ser a resposta hermeneuticamente correta para aquele caso, que exsurge na
21 Cfe. GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Ergnzungen Register. Hermeneutik II. Tbingen:Mohr, 1990, pp.193 e 194.22 Nesse sentido, ver meu Verdade e Consenso, op. cit.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
26/31
26
sntese hermenutica da applicatio. Essa resposta propiciada pela hermenutica dever, a toda
evidncia, estar justificada (a fundamentao exigida pela Constituio implica a obrigao de
justificar) no plano de uma argumentao racional, o que demonstra que, se a hermenutica
no pode ser confundida com teoria da argumentao24, no prescinde, entretanto, de uma
argumentao adequada (vetor de racionalidade de segundo nvel, que funciona no plano
lgico-apofntico). Afinal, se interpretar explicitar o compreendido (Gadamer), a tarefa de
explicitar o que foi compreendido reservado s teorias discursivas e, em especial, teoria da
argumentao jurdica. Mas esta no pode substituir ou se sobrepor quela, pela simples razo
de que metdico-epistemolgica.
Nesse sentido, a tese da resposta constitucionalmente adequada (ou a resposta correta
para o caso concreto) pressupe uma sustentao argumentativa. A diferena entrehermenutica e a teoria argumentativo-discursiva que quela trabalha com uma justificao
do mundo prtico, ao contrrio desta, que se contenta com uma legitimidade meramente
procedimental. Isto , na teoria do discurso, a pragmtica convertida no procedimento.
Mutatis, mutandis, trata-se de justificar a deciso25 (deciso no sentido de que todo
ato aplicativo e sempre aplicamos uma de-ciso). Para esse desiderato, compreendendo
o problema a partir da antecipao de sentido (Vorhabe, Vorgriff, Vorsicht), no interior da
virtuosidade do circulo hermenutico, que vai do todo para a parte e da parte para o todo, semque um e outro sejam mundos estanques/separados, fundem-se os horizontes do intrprete
do texto (insista-se, texto evento, texto fato, texto no um mero enunciado lingstico).
Toda a interpretao comea com um texto, at porque, como diz Gadamer, se queres dizer
algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo. O sentido exsurgir de acordo
com as possibilidades (horizonte de sentido) do intrprete em diz-lo, donde pr-juzos falsos
acarretaro graves prejuzos hermenuticos.
Atravs do circulo hermenutico, faz-se a distino entre pr-juizos verdadeiros efalsos, a partir de um retorno contnuo ao projeto prvio de compreenso, que tem na pr-
compreenso a sua condio de possibilidade. O intrprete deve colocar em discusso os seus
23 A partir da leitura que fao da filosofia hermenutica e da hermenutica filosfica, proponho uma CrticaHermenutica do Direito. Ver, para tanto, meus Hermenutica Jurdica e(m) Crise, op. cit.; e Verdade eConsenso, op. cit.24 H uma ntida diferena entre a tese da resposta correta a ser dada pela hermenutica filosfica e o tipo deresposta proposta a partir das teorias do discurso e da argumentao. Assim, embora minha concordncia emrelao inviabilidade da nica resposta correta, no possvel, porm, concordar com as crticas referida
tese feitas luz da teoria da argumentao jurdica, exatamente pelo no abandono, por parte destas, dasubsuno e, portanto, do esquema sujeito-objeto (pelo menos, se assim se quiser, para os easy cases).25 A justificativa condio de possibilidade da legitimidade da deciso. Nesse sentido, guardadas asespecificidades da operacionalidade do direito na common law e na civil law, remeto o leitor a Dworkin, em seuUma Questo de Princpio. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p 238.
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
27/31
27
pr-juizos, isto , os juzos prvios que ele tinha sobre a coisa antes de com ela se confrontar.
Os pr-juizos no percebidos enquanto tais nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a
tradio. No perceber os pr-juizos como pr-juizos alienam o intrprete, fazendo-o refm
da tradio ilegtima. A compreenso tem nsita a permanente tenso entre coisa e intrprete.
Por conseguinte, compreender no um ato reprodutivo (Auslegung), e, sim, um ato
produtivo, de dar sentido coisa (Sinngebung). Interpretar ser, assim, explicitar uma
possibilidade verdadeira do texto compreendido. Interpretar iluminar as condies sobre as
quais se compreende, para usar as precisas palavras de Gadamer.
Na verdade, essa explicitao o espao epistemolgico da hermenutica. Explicita-
se as condies pelas quais se compreendeu. A hermenutica no afasta a epistemologia.
Entretanto, o que no possvel fazer confundir os nveis nos quais nos movemos. A
separao entre o epistemolgico e o nvel concreto no o mesmo que dividir o
transcendental e o emprico. Em muitos momentos, a hermenutica introduz o elemento
epistemolgico, se assim se quiser dizer. A posio hermenutica no pretende eliminar
procedimentos. Ela j sempre compreende essa circunstncia, porque capaz de analisar
filosoficamente os elementos da pr-compreenso. Ou seja, quando explicito o (j)
compreendido, esse processo se d no nvel lgico-argumentativo, e no filosfico. E, insista-
se: filosofia no lgica. Pela hermenutica, fazemos uma fenomenologia do conhecimento.
No uma coisa concreta. , sim, a descrio da autocompreenso que opera na compreenso
concreta.
Mais do que fundamentar uma deciso, necessrio justificar (explicitar) o que foi
fundamentado. Fundamentar a fundamentao, pois. Ou ainda, em outras palavras, a
fundamentao (justificao) da deciso, em face do carter no procedural da hermenutica e
em face da mediao entre o geral e o particular (o todo e a parte e a parte e o todo) na tomada
de decises prticas (aqui reside a questo da moral, porque a Constituio agasalha em seu
texto princpios que traduzem deontologicamente a promessa de uma vida boa, uma sociedade
solidria, o resgate das promessas da modernidade, etc) faz com que nela na fundamentao
do compreendido o intrprete (juiz) no possa impor um contedo moral atemporal ou
ahistrico, porque o caso concreto representa a sntese do fenmeno hermenutico-
interpretativo.
Por outro lado, parece despiciendo referir que a resposta correta no , jamais, uma
resposta definitiva. Do mesmo modo, a pretenso de se buscar a resposta correta no possui
condies de garant-la. Corre-se o risco de se produzir uma resposta incorreta. Mas o fato de
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
28/31
28
se obedecer a coerncia e a integridade do direito, a partir de uma adequada suspenso de pr-
juzos advindos da tradio, j representa o primeiro passo no cumprimento do direito
fundamental que cada cidado tem de obter uma resposta adequada a Constituio .
Hermeneuticamente e na medida em que o tempo o nome do ser e a distncia temporal
sempre um aliado e no um inimigo a resposta correta (sempre) provisria, at porque h
uma dialtica entre velamento e desvelamento. O ser se vela e se desvela. A linguagem
proporciona descobertas e encobrimentos. Por isso, os enunciados lingsticos que descrevem
o direito no so o lugar da resposta correta, mas a resposta correta ser o lugar dessa
explicitao, que, hermeneuticamente, no se contentar com uma fundamentao de
carter a priori dos discursos de fundamentao.
Na era das Constituies compromissrias e sociais, enfim, em pleno ps-positivismo,uma hermenutica jurdica capaz de intermediar a tenso inexorvel entre o texto e o sentido
do texto e dar conta do mundo prtico no pode continuar a ser entendida como uma teoria
ornamental do direito, que sirva to somente para colocar capas de sentido aos textos
jurdicos. No interior da virtuosidade do crculo hermenutico, o compreender no ocorre por
deduo. Conseqentemente, o mtodo (o procedimento discursivo) sempre chega tarde,
porque pressupe saberes tericos separados da realidade.
Numa palavra: mundo mundo pensado. E a filosofia hermenutica; no lgica.As coisas s so na medida em que so compreendidas. Quando falo em rupturas
paradigmticas quero falar de profundas alteraes no modo de entender o mundo. Ora,
nesse contexto que preciso ter presente que o novo paradigma neoconstitucional (e,
portanto, nos propsitos destas reflexes, ps-positivista) consubstancia e proporciona um
deslocamento do plo de tenso do solipsismo (Selbstsichtigkeit) das decises do judicirio
em direo esfera pblica de controle dessas decises. E disso o campo jurdico (dominante)
no se d (e at hoje no se deu) conta, isto , no compreende que o constitucionalismo doEstado Democrtico de Direito deve ser compreendido no contexto da ruptura paradigmtica
ocorrida no campo da filosofia.Dito de outro modo, o direito no est imune ao pensamento
que move o mundo. Conseqentemente, a derrocada do esquema sujeito-objeto (ponto fulcral
das reflexes das teorias democrticas que vo desde as teorias do discurso hermenutica)
tem repercusso no novo modelo de Estado e de Direito exsurgido a partir do segundo ps-
guerra. Por isso, o novo constitucionalismo dessa quadra da histria condio de
possibilidade para a superao do positivismo; e, por isso, ps-positivista.
No interior dessa ruptura paradigmtica cujos efeitos so profundamente
revolucionrios para o direito , o sujeito solipsista (Selbstschtiger) d lugar
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
29/31
29
intersubjetividade. O solipsismo proporciona/proporcionou uma privatizao de sentidos
(afinal, a conscincia de si do pensamento pensante). Da a pergunta: de que modo um/esse
sujeito, que se sustenta (fundamentum inconcussum) individual e egoisticamente, pode vir a
compreender a sua prpria anttese? Ora, o modelo formal-burgus (liberal-individualista e
tudo o que dele decorreu) foi concebido a partir e pelo sujeito solipsista. por tais razes que
a derrocada do modelo de direito e de Estado demanda um novo sujeito, mas um sujeito que
j no possa dominar os sentidos, como se fossem propriedade sua, enfim, como se os
sentidos fossem produtos de sua cosncincia individual. Dito de outro modo, indispensvel
compreender que o novo paradigma neoconstitucionalista (ps-positivista) exige uma
construo intersubjetiva de sentidos. O que parece difcil de ser entendido no campo jurdico
que, no modelo fruto do imprio da subjetividade, o sujeito que se assenhora dosespaos em que se do os sentidos l/interpreta o mundo atravs destes (seus) territrios
significativos. Ou seja, o esquema sujeito-objeto uma forma de impedir a penetrao do
nvel discursivo forjado intersubjetivamente nos espaos pblicos. Para assim agir, o sujeito
do esquema s-o toma posse da linguagem (para ele, apenas uma terceira coisa) e constri
blindagens contra a manifestao hermenutica dos fenmenos.26 E essa terceira coisa que
possibilita a entificao dos sentidos (veja-se o congelamento de sentidos feita pelo sentido
comum terico), colocando-se como barreira contra a transcendncia27
(lembremos dosdiversos dualismos que povoam o discurso jurdico).
Para uma melhor compreenso dessa fenomenologia, basta que examinemos alguns
sintomas (positivistas) dessa no recepo do paradigma da intersubjetividade no e pelo
direito. Com efeito, quando j de h muito est anunciada a morte do sujeito (da subjetividade
assujeitadora filosofia da conscincia), parece que, no mbito do direito, tal notcia no
surtiu qualquer efeito. Continuamos a apostar nesse sujeito do esquema metafsico sujeito-
objeto e, portanto, no deslocamento do polo de tenso dos sentidos em favor do sujeitodiscricionrio. Para exemplificar, veja-se que o Cdigo de Processo Penal sustenta-se no
modelo inquisitivo, pelo qual o juiz toma decises de ofcio prises, diligncias, busca de
provas etc (h at mesmo recursos de ofcio); o Cdigo de Processo Civil fruto de repetidas
apostas no procedimento que tem o sujeito-juiz como protagonista recordemos, aqui, o
26 Isso fica ntido pela seguinte questo: o discurso dogmtico, refm do esquema sujeito-objeto, provoca ovelamento do sentido do ser autntico do direito; no fundo, o discurso jurdico-dogmtico nadifica as
possibilidades transformadoras e emancipatrias do direito exsurgente do neoconstitucionalismo.27 A transcendncia entendida no sentido da fenomenologia hermenutica. Nesse sentido, o princpio pode serentendido como a transcendncia da regra. por tais razes que venho sustentando que entre regra e princpiono h uma distino estrutural e sim apenas uma diferena, que ontolgica (evidentemente, estou falando daontologische Differentz).
-
7/28/2019 Artigo Lenio Luiz Streck Hermeneutica
30/31
30
papel da escola instrumentalista do processo , com a funo de adaptar o procedimento
correta aplicao da tcnica processual, reconhecendo-se ao julgador o poder de adequar (sic)
o mecanismo s especificidades da situao, utilizando-se, para tal, de sua sensibilidade e
seu sentido do justo (considere-se, ainda, que as sucessivas reformas foram transferindo as
decises colegiadas para o monocratismo);28 no direito civil, parcela considervel dos juristas
aposta nas clusulas gerais, que, em face de sua abertura, dariam maior possibilidade para o
juiz buscar o justo concreto (sic), o que nada mais do que reforar a velha
discricionariedade positivista; no direito penal, basta uma leitura do artigo 59, para
compreendermos a dimenso da cognio (metafsica) a ser feita pelo aplicador, sem
considerar a ontologia clssica que sustenta a(s) teoria(s) do delito; no direito tributrio, o
sujeito liberal-individualista continua a ser mesmo nesta quadra da histria o protagonistade uma contraposio Estado-Sociedade (como se ainda vivssemos no sculo XIX), cuja
leitura/interpretao feita, no raras vezes, a partir de regras que superam princpios
constitucionais (sic); por ltimo, na teoria do direito, em nome da ponderao e esse o
problema fulcral, v.g., da teoria da argumentao jurdica , abre-se um campo profcuo para
o exerccio de discricionariedades (que levam arbitrariedades) e decisionismos, sob os
auspcios dos diversos graus de proporcionalidades, alm da defesa da distino lgico-
estrutural entre casos simples (que seriam solucionados por deduo ou subsuno- sic) ecasos complexos (para os quais so chamados colao os princpios). Isso para dizer o
mnimo.
De todo modo, nisso tudo h um ponto comum. Est-se diante de um novo princpio
epocal. Na verdade, se o ltimo princpio epocal da era das duas metafsicas foi a vontade do
poder (Wille zur Macht),29 o novo princpio, forjado na era da tcnica, transforma o direito em
uma mera racionalidade instrumental (lembremos, sempre e novamente, as escolas
instrumentalistas do processo...!). Manipulando o instrumento, tem-se o resultado. Ao finaldessa linha de produo, o direito (ser) aquilo que (ess)a vontade do poder quer que seja.
28 Parece que a comunidade jurdica esquece que, cada vez que se pretende processualizar mais o sistema,ocorre uma diminuio do processo enquanto instrumento de garantia do devido processo legal. Na verdade, essaprocessualizao entendida como a construo de mecanismos que visam desafogar os Tribunais esimplificar o procedimento acaba por no produzir maiores possibilidade de acesso justia, participao das partes, etc, e, sim, to-somente reforam o poder decisrio do condutor do processo (desculpemminha insistncia no tema, mas esse sujeito o Selbstschtigerde que tanto venho falando), que transformadono nico protagonista (para quem tem dvidas, recomendo que frequente sees de Turmas e Cmaras dosTribunais, assista o julgamento dos agravos decorrentes das decises monocrticas, etc). No fundo, as reformasque buscam efetividades quantitativas acabam funcionando como o direito do consumidor: sob pretexto de oproteger, coloca-se sua disposio telefones 0800...29 Lembremos, pois, o eidos platnico, a ousia aristotlica, o ens creaturaquiniano, o cogi