Artigo - Macunaima, Da Literatura Ao Cinema (Heloisa Buarque de Hollanda)

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Macunaíma Da literatura ao cinema Rio de Janeiro, 1978, J. Olímpio Editora, pp. 19-127. EXPLICAÇÃO Este livro não é uma coletânea de artigos, nem uma seleção de depoimentos, nem a publicação parcial de uma tese. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma montagem e de uma desmontagem. O que me foi inicialmente proposto pela Diretoria de Operações Não-Comerciais da Embrafilme era a publicação de minha tese de mestrado, Heróis de nossa gente, um estudo sobre a especificidade do mito e a observação das relações intertextuais, em Macunaíma, nas passagens do mito ao livro e do livro ao filme. Entretanto as normas e pressões acadêmicas que geralmente regem a realização de uma tese universitária me conduziram a caminhos e descaminhos que hoje reconheço mais como a formalização de um sistema de pensamento do que como a discussão das questões que realmente me mobilizavam nos três Macunaímas. E, certamente, neste caso, a minha falta de liberdade e desenvoltura em lidar com a Instituição terminou por me amestrar. Assim, 4 anos depois, a partir de minha própria insatisfação e tendo em vista o público mais amplo a que esta publicação se dirige, me empenho na tentativa de construir um trabalho com alguns escombros da tese e com a experiência de limites que ela me ensinou. Este é um livro onde procurei dar a palavra a Mário de Andrade através da montagem de fragmentos de cartas, anotações e prefácios; onde um dos 5 capítulos da tese é inserido como uma ponte entre Mário e Joaquim; onde Joaquim avalia, numa colagem de recortes de jornal, o projeto e o momento do filme; e onde a presença exagerada de imagens oferece uma 4 a voz. No fim da parte referente à tese, coloquei, arbitrariamente, um artigo de Alexandre Eulálio que desafina a pretendida estrutura do livro. Entretanto, usei deste poder porque gosto tanto do artigo quanto do seu realizador. Heloisa Buarque de Hollanda Mário de Andrade São Paulo, 13 de julho de 1929 Manú: Três horas de uma noite que além de ser noite de sábado, está de neblina formidável. Noite de sábado já é uma das coisas mais humanas de São Paulo, todos os húngaros, tchecos, búlgaros, sírios, austríacos, nordestinos saem passear, gente dura, no geral tipos horrorosos, mas me sinto bem no meio deles. E além disso: a neblina, um fog maravilhoso. No Anhangabaú não se via nada de nada. Só os anúncios e o farol da Light circulando. Fui ao cinema, vi umas besteiras, saí no meio e fui andando. Quando vi estava no Brás. Então voltei procurando caminhos mais misteriosos, cheguei a Ter medo no meio do Parque Pedro II, completamente sem iluminação e com alguns ruídos nas moitas. Depois atravessei o bairro turco e só quando esbarrei na estrada de ferro, vim me encostando nela até esta Rua Lopes Chaves. Muito apito de trem, várias propostas de aventuras, uma calma interior sem comparação, o espírito vivinho gozando em colher. Mas cheguei meio excitado, sem sono, e estou escrevendo. Recebi sua carta e muito obrigado pelo seu telegrama pra Recife.* Você é um companheiro chique e artigo esteja publicado ou não, a ação boa você já fez, que foi aceder ao meu pedido. O resto não tem importância. Se o artigo sair me mande. Tenho curiosidade de saber o que você escreveu.

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  • MacunamaDa literatura ao cinema

    Rio de Janeiro, 1978, J. Olmpio Editora, pp. 19-127.

    EXPLICAO

    Este livro no uma coletnea de artigos, nem uma seleo de depoimentos, nem a publicao parcial de uma tese. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma montagem e de uma desmontagem.

    O que me foi inicialmente proposto pela Diretoria de Operaes No-Comerciais da Embrafilme era a publicao de minha tese de mestrado, Heris de nossa gente, um estudo sobre a especificidade do mito e a observao das relaes intertextuais, em Macunama, nas passagens do mito ao livro e do livro ao filme.

    Entretanto as normas e presses acadmicas que geralmente regem a realizao de uma tese universitria me conduziram a caminhos e descaminhos que hoje reconheo mais como a formalizao de um sistema de pensamento do que como a discusso das questes que realmente me mobilizavam nos trs Macunamas. E, certamente, neste caso, a minha falta de liberdade e desenvoltura em lidar com a Instituio terminou por me amestrar.

    Assim, 4 anos depois, a partir de minha prpria insatisfao e tendo em vista o pblico mais amplo a que esta publicao se dirige, me empenho na tentativa de construir um trabalho com alguns escombros da tese e com a experincia de limites que ela me ensinou.

    Este um livro onde procurei dar a palavra a Mrio de Andrade atravs da montagem de fragmentos de cartas, anotaes e prefcios; onde um dos 5 captulos da tese inserido como uma ponte entre Mrio e Joaquim; onde Joaquim avalia, numa colagem de recortes de jornal, o projeto e o momento do filme; e onde a presena exagerada de imagens oferece uma 4a voz.

    No fim da parte referente tese, coloquei, arbitrariamente, um artigo de Alexandre Eullio que desafina a pretendida estrutura do livro. Entretanto, usei deste poder porque gosto tanto do artigo quanto do seu realizador.

    Heloisa Buarque de Hollanda

    Mrio de Andrade

    So Paulo, 13 de julho de 1929

    Man:

    Trs horas de uma noite que alm de ser noite de sbado, est de neblina formidvel. Noite de sbado j uma das coisas mais humanas de So Paulo, todos os hngaros, tchecos, blgaros, srios, austracos, nordestinos saem passear, gente dura, no geral tipos horrorosos, mas me sinto bem no meio deles. E alm disso: a neblina, um fog maravilhoso. No Anhangaba no se via nada de nada. S os anncios e o farol da Light circulando. Fui ao cinema, vi umas besteiras, sa no meio e fui andando. Quando vi estava no Brs. Ento voltei procurando caminhos mais misteriosos, cheguei a Ter medo no meio do Parque Pedro II, completamente sem iluminao e com alguns rudos nas moitas. Depois atravessei o bairro turco e s quando esbarrei na estrada de ferro, vim me encostando nela at esta Rua Lopes Chaves. Muito apito de trem, vrias propostas de aventuras, uma calma interior sem comparao, o esprito vivinho gozando em colher. Mas cheguei meio excitado, sem sono, e estou escrevendo. Recebi sua carta e muito obrigado pelo seu telegrama pra Recife.* Voc um companheiro chique e artigo esteja publicado ou no, a ao boa voc j fez, que foi aceder ao meu pedido. O resto no tem importncia. Se o artigo sair me mande. Tenho curiosidade de saber o que voc escreveu.

  • Meus poemas da Negra: J estava mais ou menos imaginando que vocs no gostariam da versalhada. Matutei melhor e acho isso natural. No estou gostando nada dos versos que j escrevi e publiquei. S as prosas se sustentam mais. Principalmente o Macunama de que, sem querer provocar polmica, fico sempre gostando ainda da Carta. Gosto regularmente ainda dos contos de Belagarte que se achar tempo pra passar a limpo sairo inda este ano. E iniciei e gosto muito de um romance Caf que ter oitocentas pginas (meio de contar o tamanho do livro) cheias de psicologia e intensa vida. Mas sinto que superior s minhas foras e tenho mais ou menos a convico de que vou ratar, da mesma forma com que ratei Macunama - a obra-prima que no ficou obra-prima. Mas no por isso que vou parar o livro no. Quero ver como que vou ratar e sempre, voc entende, fica essa esperancinha de ganhar a partida. Pra quem tem o esprito sincero e esportivo, quero dizer: esportivamente sincero,m capaz de confessar que perdeu, o jogo de azar mesmo o que diverte mais... Quanto evoluo potica, bem terrvel a gente ser evolucionista! Voc ponha reparo s no mundo de versos inditos que tenho, de que voc conhece apenas metade, se tanto! e que so o que j no sou mais. doloroso, palavra. Escrevo demais.

    [...]

    *Macunama, Maria, era como eu brasileiro. ("Tempo da Maria", 1926)

    PREFCIO*

    Este livro carece dumas explicaes pra no iludir nem desiludir os outros.

    Macunama no smbolo nem se tome os casos dele por enigmas ou fbulas. um livro de frias escrito no meio de mangas, abacaxis e cigarras de Araraquara; um brinquedo. Entre aluses em malvadeza ou seqncia desfatiguei o esprito nesse capoeiro da fantasia onde a gente no escuta as proibies, os temores, os sustos da cincia ou da realidade - apitos dos polcias, breques por engraxar. Porm imagino que como todos os outros o meu brinquedo foi til. Me diverti mostrando talvez tesouros em que ningum no pensa mais.

    O que me interessou por Macunama foi incontestavelmente a preocupao em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade j tenha falado isso antes de mim porm a minha concluso (uma) novidade pra mim porque tirada da minha experincia pessoal. E com a palavra carter no determino apenas uma realidade moral no em vez entendo a entidade psquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ao exterior, no sentimento, na lngua da Histria da andadura, tanto no bem como no mal.

    (O brasileiro no tem carter porque no possui nem civilizao prpria nem conscincia tradicional. Os franceses tm carter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilizao prpria, perigo iminente, ou conscincia de sculos tenha auxiliado, o certo que esses uns tm carter.))** Brasileiro (no). Est que nem rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendncias gerais, mas, ainda no tempo de afirmar coisa nenhuma. Dessa falta de carter psicolgico creio otimistamente, deriva a nossa falta de carter moral. Da nossa gatunagem sem esperteza (a honradez elstica/ a elasticidade de nossa honradez) o desapreo cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso tnico nas famlias. E sobre tudo uma existncia (improvisada) no expediente (?) enquanto a iluso imaginosa feito Colombo de figura-de-proa busca com olhos eloqentes na terra um Eldorado que no pode existir mesmo, entre panos de cho e climas igualmente bons e ruins, dificuldades macotas que s a franqueza de aceitar a realidade, poderia atravessar. feio.

    Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunama no alemo Koch-Grnberg. E Macunama um heri surpreendentemente sem carter (Gozei). Vivi de perto o ciclo das faanhas dele. Eram poucas. Inda por cima a histria da moa... *** deu enxerto cantando pra outro livro mais sofrido, Tempo de Maria... Ento vem vindo a idia de aproveitar pra um romancinho mais outra lendas casos brinquedos costumes brasileiros ou afeioados no Brasil. Gastei muito pouca inveno neste poema fcil de escrever.

    * Prefcio indito escrito imediatamente depois de terminada a primeira verso.

  • ** Tirar toda esta parte e talvez no ir tanto s do cabo [Nota de M. de A.]

    *** M de A. deixa o espao para colocar o nome da jovem, que na realidade no aparece na lenda colhida por Koch-Grnberg, sua fonte para o poema "Lenda das mulheres de peitos chatos". A lenda "O jovem da rvore sumama".

    Quanto a estilo, empreguei essa fala simples to sonorizada msica mesmo por causa das repeties, que costume nos livros religiosos e dos cantos estagnados no rapsodismo popular. Foi pra fastarem de minha estrada essas gentes que compram livros pornogrficos por causa da pornografia. Ora se certo que meu livro possui alm de sensualidade cheirando alguma pornografia e mesmo coprolalia no haver quem conteste no valor calmante do brometo dum estilo assim.

    No podia tirar a documentao obscena das lendas. Uma coisa que no me surpreende porm ativa meus pensamentos que em geral essas literaturas rapsdicas e religiosas so freqentemente pornogrficas e em geral sensuais. No careo de citar exemplos. Ora uma pornografia desorganizada tambm da quotidianidade nacional. Paulo Prado, esprito sutil pra quem dedico este livro, vai salientar isso numa obra de que aproveito-me antecipadamente.

    E se ponha reparo que falei em "pornografia organizada". Porque os alemes cientficos, os franceses de sociedade, os gregos filosficos, os indianos especialistas, os turcos poticos, etc. existiram e existem, ns sabemos. A pornografia entre eles possui carter tnico. J se falam que trs brasileiros esto juntos, esto falando porcaria... De fato. Meu interesse por Macunama seria preconcebido hipocritamente por demais se eu podasse do livro o que da abundncia das nossas lendas indgenas (Barbosa Rodrigues, Capistrano de Abreu, Koch-Grnberg) e desse pro meu heri amores catlicos e descries sociais que no seriam dele pra ningum.

    Se somando isso com minha preocupao brasileira, profundamente pura, temos Macunama, livro meu.

    Quanto a algum escndalo possvel que o meu trabalho possa causar, sem sacudir a poeira das sandlias, que no uso sandlias dessas, sempre tive uma pacincia (muito) piedosa com a imbecilidade pra que o tempo do meu corpo no cadenciasse meus dias de luta com noites cheias de calma (pra que no tempo do meu corpo no viessem cadenciar meus dias de luta as noites cheias de calma).

    [Araraquara, 19 de dezembro de 1926]

    ...pra que no viessem cadenciar minha lutas, umas noites dormidas bem (umas noites dormidas com calma).

    (Este livro afinal no passa duma antologia do folclore brasileiro.)

    (Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora geogrficas. Assim desregionalizava o mais possvel a criao ao mesmo tempo que conseguia o mrito de conhecer literariamente o Brasil como entidade homognea = um conceito tnico nacional e geogrfico.)

    (Dizer tambm que no estou convencido pelo fato simples de ter empregado elementos nacionais, de Ter feito obra brasileira. No sei se sou brasileiro. uma coisa que me preocupa e em quem trabalho porm no tenho convico de Ter dado um passo grande pra frente no.)

    CARTA SEM DATA MAS QUE DEVE SER DE NOVEMBRO DE 1927

    Man:

    Recebo agorinha e secundo logo a carta de voc. Em geral isso mesmo. A constelao da Ursa Maior se refere, diz um professor deutsch ao saci, por causa da perna s que ele tem. Acho muito bem escolhida, pelo contrrio. E se v de todo o nosso cu, no se v? Eu a enxerguei do Amazonas a So Paulo. - Pisei

  • nos calos voc achar descosido o Ci Mo do Mato que acho e sempre achei o melhor do livro. Veja como so as coisas!... At quis dar um jeito pra colocar coisas dele mais pro fim de to boas que achava elas. Ex. o caso de Naipi. O Reconto dela a coisa mais perfeita como lngua literria prosa que escrevinhei at agora. Tem uma eloqncia ardente sem nada de oratria brasileira, to simples... Gosto por demais dessa pgina. Quanto a achar descosido, no entendo. O captulo tem seqncia perfeitamente lgica. Macunama vadiando pelos matos do norte topa com a rainha das icamiabas, consegue conquist-la e venc-la. Vira imperador, porque ela era imperatriz. Prncipe consorte. Vem o filho e morre por causa da Cobra Preta. Vira Guaran. Ci de desgosto de me vai pro cu. Porm Macunama, preso pelo feitio da rede tecida com os cabelos de Ci, nunca poder esquecer dela. No podendo mais de sodade e sem mulher pra brincar (as icamiabas so sistematicamente virgens tanto que Jigu um mulhereiro no consegue moar nenhuma) parte tambm, porque fraco. Aqui um detalhe importantssimo que creio passou inteiramente virgem de voc: a criana est caracterizada justamente porque ainda no homem brasileiro. Fiz questo de mostrar e acentuar que Macunama como brasileiro que no tem carter. Isso eu falava no prefcio da segunda verso e mostrarei para voc aqui. Ponha reparo: Macunama ora corajoso, ora covarde. Nada sistematizado em psicologia individual ou tnica. Avana e vence o monstro Capi, porm depois foge de uma cabea decepada. Avana pro pblico na cena da Bolsa de Mercadorias depois fica com medo porque preso e foge. Etc. etc. Ele que s conseguiu moar Ci com ajuda dos irmos e foge bancando valento "Me acudam que sino eu mato", no tem coragem pra moar outra icamiaba e parte sofrendo amor. Vagabunda pelo mato e topa com a cascata Naipi. Tudo lgico. Pergunta porque ela chora. Ela conta e ele tem raiva de Capei - que a moa j contou que mora na gruta - sexo dela vendo sempre se Naipi foi mesmo brincada. Macunama falou que matava Capi. Capi escuta e sai da gruta, um monstro e quer matar Macunama. Ento ele na temeridade sem coragem mata Capi. E a cabea decepada (tradio) ficando escrava dele o segue. Macunama tem medo, foge. A cabea no podendo servir o senhor dela, fica sem que fazer nesta terra. Ento vai ser astro que o destino fatal dos seres (tradio0. Vira Lua. Qu que tem de descosido nisso, Man! Protesto aos berros.

    Quanto ao caso da Carta prs Icamiabas, tem a um milho de intenses. As intenses justificam a carta porm no provam que ela seja boa, lgico e reconheo. Promeiro: Macunama como todo brasileiro que sabe um oucadinho, vira pedantssimo. O maior pedantismo do brasileiro atual o escrever portugus de lei: academia, Revista de Lngua Portuguesa e outras revistas, Rui Barbosa, etc. desde Gonalves Dias. Que ele no sabe bem a lngua acentuei pelas confuses que faz (testculos da Bblia por versculos etc. e o fundo sexual dele se acentua nas confuses testculos, buraco por orifcio, etc.). Escreve pois pretensiosssimo e irritante. Pra que escreve? nica e to-somente pra pedir dinheiro. Coisa que j serve de provrbio a respeito de brasileiro que mora no estrangeiro: pedir dinheiro pros patrcios em viagem. Isso pode ser vezo de outras raas tambm, pouco me importa, coincidncia no prova que isso no bem brasileiro. Agora: como pedir dinheiro? Sorrateiramente, sub-repticiamente. o que ele faz dando como funo da carta, contar as coisas de So Paulo. Conta. Como? O fundo sexual dele est claro pela abundncia de preocupaes carnais e por comear por elas. Agora a ocasio era boa pra eu satirizar os cronistas nossos contadores de monstros nas plagas nossas e mentirosos a valer) e o estado atual de So Paulo, urbano, intelectual, poltico, sociolgico. Fiz tudo isso, meu caro. Fiz tudo isso em estilo pretensioso, satirizando o portugus nosso, e pleiteando sub-repticiamente pela linguagem lpida, natural (literatura) simples, dpourvue dos outros captulos. Sincera. No sei se voc percebeu quanto a minha linguagem literria ficou dpourvue. Meu livro praticamente falando no tem seno rarssimos qualificativos. A no ser em refros rtmicos e lricos ("no campo vasto do cu") e umas duas ou trs vezes, no tem nenhum qualificativo mais a no ser absolutamente necessrio (e assim mesmo) qualificativos indispensveis desses que fazem corpo indissolvel com o substantivo. "Homem manso" indispensvel pra determinar um homem indivduo; "Homem moreno" dispensvel e no usei. Est a. Essas so as intenes da Carta. Agora ela me desgosta em dois pontos: parece imitao de Osvaldo e decerto os preceitos usados por ele atuaram subconscientemente na criao da carta e acho comprida por demais. O primeiro ponto no acho remdio. O segundo, vou encurtar a carta. Mas no tiro ela no porque gosto muito dela.

    Quanto ao captulo Uraricoera que voc no gosta, talvez tenha razo. Vou pensar. Esse sim tem alguma coisa de descosido. A inveno do Bumba-meu-Boi... Mas assim mesmo, porque de fato, segundo a lenda, a sombra de Jigu depois de engolir o mano, vira na Segunda cabea do Pai do Urubu. E depois tem a questo da lepra que importa muito nesse captulo e bem intencional.

  • Bom, nem releio esta.

    O pedido pro Dirio Nacional fica de p. Quando voc puder ou quiser ou sentir, escreve uma coisinha..

    No deixe de vir com o Ascenso. Visitaremos a fazenda de Osvaldo, iremos pela Estrada do Mar at Santos. J estou arranjando as coisas. Faa o impossvel mas venha. Me avisem com antecedncia. E vocs no so de luxo. Arranja-se um hotelzinho barato. Diga quanto pode pagar de diria e se quiser procuro hotel.

    Mrio

    PREFCIO

    Este livro de pura brincadeira, escrito na primeira redao em seis dias ininterruptos de rede cigarros e cigarras na chacra de Pio Loureno perto do ninho da luz que Araraquara afinal resolvi dar sem mais preocupao. J estava me enquizilando... Jamais no tive tanto como diante dele a impossibilidade de ajuizar dos valores possveis duma obra minha.

    No sei ter humildades falsas no e se publico porque acredito no valor dele. O que reconheo que muitas vezes publico uma coisa ruim em si, por outros valores que podem resultar dela. o caso por exemplo do poder de ensaios de lngua brasileira, to dspares entre si, to pssimos alguns. No me amolo que sejam pssimos e mesmo que minha obra tenha a transitoriedade precria da minha vida. O que me interessa mesmo dar pra mim o destino que as minhas possibilidades me davam. E que tenho sido til: as preocupaes, as tentativas, as amizades e at as repulsas (dinmicas?) que tenho despertado provam bem. Principalmente disso vem o orgulho tamanho que possuo e me impede completamente qualquer manifestao de vaidade. Eu no me contentei em desejar a felicidade, me fiz feliz.

    Ora este livro que no passou dum jeito pensativo e gozado de descansar umas frias, relumeante de pesquisas e intenes, muitas das quais s se tornavam conscientes no nascer da escrita, me parece que vale um bocado como sintoma de cultura nacional.

    Me parece que os melhores elementos de uma cultura nacional aparecem nele. Possui psicologia prpria e maneira de expresso prpria. Possui uma filosofia aplicada entre otimismo ao excesso e pessimismo ao excesso dum pas bem onde o praceano considera a Providncia como sendo brasileira e o homem da terra pita o conceito da pachorra mais que fumo. Possui aceitao sem timidez nem vanglria da entidade nacional e a concebe to permanente e unida que o pas aparece desgeograficado no clima, na floresta, na fauna, no homem, na lenda, na tradio histrica at quando isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo. Falar em "pagos" e "querncias" em relao s terras do Uraricoera bom. Alm disso possui colaborao estrangeira e aproveitamento dos outros, complacente, sem temor, e sobretudo sem o exclusivismo de todo ser bem nascido pras idias comunistas. O prprio heri do livro que tirei do alemo Koch-Grnberg, nem se pode falar que do Brasil. to ou mais venezuelano como da gente e desconhece a estupidez dos limites pra parar na "terra dos ingleses" como ele chama a Guiana Inglesa. Essa circunstncia do heri do livro no ser absolutamente brasileiro me agrada como o qu. Me alarga o peito bem, coisa que antigamente os homens expressavam pelo "me enche os olhos de lgrimas".

    Agora: no quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma expresso de cultura nacional brasileira. Deus me livre. agora, depois dele feito que me parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa. Lenda, histria, tradio, psicologia, cincia, objetividade nacional, cooperao acomodada de elementos estrangeiros passam a. Por isso que malicio nele o fenmeno complexo que o torna sintomtico.

    Quanto s intenes que abordaram o esquerzo, tive intenes por demais. S no quero que tomem Macunama e outros personagens como smbolos. certo que no tive inteno de sintetizar o brasileiro em Macunama nem o etrangeiro no gigante Piaim. Apesar de todas as referncias figuradas que a gente possa perceber entre Macunama e o homem brasileiro, Venceslau Pietro Pietra e o homem estrangeiro,

  • tem duas omisses voluntrias que tiram por completo o conceito simblico dos dois: a simbologia episdica, aparece por intermitncia quando calha pra tirar efeito cmico e no tem anttese. Venceslau Pietro Pietra e Macunama nem so antagnicos, nem se completam e muito menos a luta entre os dois tem qualquer valor sociolgico. Se Macunama consegue retomar o muiraquit porque eu carecia de fazer ele morrer no norte. E impossvel de se ver na morte do gigante qualquer aparncia de simbologia. As prprias aluses sem continuidade ao elemento estrangeiro que o gigante faz nascer, concorrem pra minha observao do sintoma cultural do livro: uma complacncia gozada, uma acomodao aceita to conscientemente que a prpria mulher dele uma caapora e a filha vira uma estrela. Me repugnaria bem que se enxergasse em Macunama a inteno minha dele ser o heri nacional. o heri desta brincadeira, isso sim, e os valores nacionais que o animam so apenas o jeito dele possuir o "Sein" de Keiserling, a significao imprescindvel a meu ver, que desperta empatia. Uma significao no precisa de ser total pra ser profunda. E por meio de "Sein" (ver o prefcio do tradutor em Le monde Qui naut) que a arte pode ser aceita dentro da vida. Ele que fez da arte e da vida um sistema de vasos comunicantes, equilibrando o lquido que agora no turtuveio em chamar de lgrima.

    Outro problema do livro que careo explicar da imoralidade. Palavra que seria falso concluir pela imoralidade e pela porcariada mesmo que est aqui dentro, que me comprazo com isso. Quando muito admito que concluam que me comprazo... com o brasileiro. Uma coisa fcil de constatar a constncia da porcaria e da imoralidade nas lendas de primitivos em geral e nos livros religiosos. No s aceitei mas acentuei isso. No vou me deculpar falando que as flores do mal do horror do mal, no. At que despertam muito curiosidade... Minha inteni a foi verificar uma constncis brasileira que no sou o primeiro a verificar, debic-la numa caoada complacente que a satiriza sem tomar um pitium moralizante. Macunama afinal afrouxou e num esforo... de heri, se acaba ver peixe, pela... boca. Mas me repugnava servir de mendoim pra piazotes e velhotes. Empreguei todos os calmantes possveis: a perfrase, as palavras indgenas, o cmico, e um estilo potico inspirado diretamente dos livros religiosos. Creio que assim pude restabelecer a paz entre os homens de boa vontade.

    E resta a circunstncia da falta de carter do heri. Falta de carter no duplo sentido de indivduo sem carter moral e sem caracterstico. Est certo. Sem esse pessimismo eu no seria amigo sincero dos meus patrcios. a stira dura do livro. Herosmo de arroubo fcil de Ter. Porm o galho mais alto dum pau gigante que eu saiba no lugar propcio pra gente dormir sossegado.

    Como se v no o preconceito contra a Moral nem a vergonha d parecer moralista na roda inda decadente que me leva a certas complacncias.

    Nas pocas de transio social como a de agora duro o compromisso com o que tem de vir e quase ningum no sabe. Eu no sei. No desejo a volta do passado e por isso j no posso tirar dele uma fbula normativa. Por outro lado o jeito de Jeremias me parece ineficiente. Om presente uma neblina vasta. Hesitar sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo no se trata de hesitao. Se trata de uma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incgnitas. Diro que a culpa minha, que no arregimentei o esprito na cultura legtima. Est certo. Mas isso dizem os pesados de Maritain, dizem os que espigaram de Spengler, os que pensam por Wells ou por Lenine e viva Einstein!

    Mas resta pros decididos como eu que a neblina da poca est matando o consolo maternal dos museus. Entre a certeza decidida que eletrocuta e a f franca que se recusa a julgar, nasci para esta. Ou o tempo nasceu por mim... Pode ser que os outros sejam mais nobres. Mais calmos certamente que no. Mas no tenho medo de ser mais trgico.

    [27 de maro de 1928]

    So Paulo 29 de agosto de 1928

    Man:

    Ontem de noite resolvi tomar frias at Segunda e por isso te escrevo. Ando num abatimento danado, sei

  • que no volta porque vou reagir com o tempo, mas estou na mesma situao... patolgica em que fiquei em 1913 quando os mdicos falavam pra meu pai que no davam mais nem um tosto por esta vida que inda est escrevendo pra voc. Mesmos sintomas. Sempre a publicao dum livro me deixa num abatimento medonho. (Macunama at que no tanto. Fiquei muito menos abatido do que quando publiquei o Losango por exemplo e sobretudo Cl.)Tenho dessas. Fico panema, desgostado, etc. As mos caem na cho que custa ergu-las. Macunama me inquieta lgico. Mas me inquietou sobretudo antes da publicao. Depois no tive tempo pra matutar muito dele no porque meti mo no Ensaio sobre Msica Brasileira escrevinhado em duas semanas.

    [...]

    Me esqueci: De fato o captulo sobre Ci Me do Mato, aumentei por conselho de voc. Se lembra que voc me falou que pela importncia que Ci tinha no livro, os brinquedos com ela estavam desimportantes por demais. Ento matutei no caso, achei que voc tinha razo e todas aquelas safadezas vieram ento. Ficaram engraadas, no tem dvida, porm j arrependi de descrever as trs f... na rede. Estou convencido que exagerei. Devia Ter sido mais discreto e no deformar exagerando daquele jeito as coisas que escutei da rapaziada do norte. Sobretudo devia ser mais enfumaado e mais metafrico que nem fiz, e creio que bem, naquela cena do Amar verbo Intransitivo, em que depois de uma matin inteirinha encostando, perna com perna de Frulein. Carlos no pode mais e se suja todo no quarto. A fui menos realista, bem mais lrico. Se Macunama algum dia tiver a honra duma segunda edio acho que refundo aquilo.

    Ciao.

    Mrio

    ANOTAES PARA O PREFCIO

    Prefcio

    Evidentemente no tenho a pretenso de que meu livro sirva pra estudos cientficos de folclore. Fantasiei quando queria e sobretudo quando carecia pra que a inveno permanecesse arte e no documentao seca de estudo. Basta ver a macumba carioca desgeograficada com cuidado, com elementos dos candombls baianos e das pajelanas paraenses. Com elementos dos estados j publicados, elementos colhidos por mim dum og carioca "bexiguento e fadista de profisso" e dum conhecedor das pajelanas, constru o captulo a que ainda ajuntei elementos de fantasia pura. Os meus livros podem ser resultado dos meus estudos porm ningum no estude nos meus trabalhos de fico, leva fubeca.

    Prefcio

    Eu no tenho a veleidade de estar atenazando nem desencaminhando ningum no. Pelo contrrio ando sentindo j uma certa preciso de mostrar que minhas mudanas de pesquisa de livro pra livro, nem so tanta mudana assim, antes transformao concateneda, desbastada e completada da mesma pesquisa inicial.

    Os que imaginarem pois que eu mudei mais uma feita com este livro me parece que se enganaram bem. Pelo contrrio: nada mais provvel na minha obra depois de Amar, verbo intransitivo e Cl do Jaboti, do que o livro de agora. Sem vontade de pandegar sinto lgica em estabelecer uma equao assim:

    Amar, verbo intransitivo + Cl do Jaboti = Macunama.

    Contar a embrulhada geogrfica proposital de fauna e flora.

    Uma colaborao pontual do nacional e o internacional onde a fatalidade daquele se condimenta com uma escolha discricionria e bem a propsito deste. O que d o tom sendo pois um universalista constante e inconsciente que por ventura o sinal mais evidente da humanidade enfim concebida como tal. Coisa que

  • a gente j pode sentir.

    Macunama: me servindo alis sem conscincia preestabelecida disso, por instinto, duma algica sistemtica, embora satrica ou coisa que o valha, o carter religioso do livro ficou acentuado.

    Alceu

    [...]

    Macunama (28) vai sair, escrito em dezembro de 1926, inteirinho em seis dias, correto e aumentado emjaneiro de 1927, e vai parecer inteiramente antropfago... Lamento um bocado essas coincidncias todas, palavra. Principalmente porque Macunama j uma tentativa to audaciosa e to nica (no pretendo voltar ao gnero absolutamente), os problemas dele so to complexos apesar deleser um puro divertimento (foi escrito em frias e como frias) que complic-lo ainda com a tal de antropofagia me prejudica bem o livro. Pacincia. alis de todas as minhas obras a mais sarapantadora. Francamente at me assusta. Sou um sujeito no geral perfeitamente consciente dos atos que pratico. Palavra de honra que tem erros de ao que fao conscientemente, porque me conveno que eles carecem de existir. Sei sempre publicando um livro o que se vai dar com ele e de fato d certo. No geral alcano o que quero. S no alcancei com o Amar, verbo intransitivo. Pois diante de Macunama estou absolutamente incapaz de julgar qualquer coisa. s vezes tenho a impresso de que a nica obra-de-arte, de deveras artstica, isto , desinteressada que fiz na minha vida. No geral meus atos e trabalhos so muito conscientes por demais pra serem artsticos. Macunama no. Resolvi escrever porque fiquei desesperado de comoo lrica quando lendo o Koch-Grnberg percebi que Macunama era um heri sem nenhum carter nem moral nem psicolgico, achei isso enormemente comovente nem sei porque, de certo pelo ineditisnmo do fato, ou por ele concordar um bocado bastante com a poca nossa, , no sei... Sei que me botei dois dias depois pra chacra dum tio em Araraquara levando s os livros indispensveis pra criao seguir como eu queria e zs, escrevi feito doido, voc no imagina, era dia e noite, de noite at esperava meu tio cuidadoso de sade, fechar a luz e dormir e acendia a minha de novo e reprincipiava escrevendo... Seis dias e o livro estava completo. S faz trs meses mais ou menos, inda ajuntei mais uma cena. Mas poli e repoli tantas vezes que careci recopiar trs vezes o original. Na verdade o que sai publicado a quarta redao! Mas se principio matutando um pouco mais sobre o livro que escrevi sem nenhuma inteno, me rindo apenas das aluses psicologia do brasileiro que botava nele, principia surgindo tanto problema tratado, tanta crtica feita dentro dele que, tanto simbolismo at, que nem sei parece uma stira tremenda. E no no. Nem a caoada vasta que fao da sensualidade e pornografia brasileira, tive inteno de fazer stira. No sou mais capaz de stira porque o mundo me parece to como ele mesmo!... Que que se h de fazer! Pois . Alis a imoralidade do livro uma das coisas que mais me preocupa. Ser entendida? Meu destino mesmo fazer escndalo, meu Deus! Se o livro fizer escndalo como no desejo mais tenho medo, palavra que vou sofrer bastante. Mas o pior perigo ser se imitarem isso. Ora... melhor no pensar mais nisso porque me intrinco numa barafunda tal de prs e contras que fico fatigado. Escrevi dois prefcios para Macunama e acabei no publicando nenhum. Ficavam enormes e inda no diziam bem o que eu queria. Alm disso o segundo me pareceu bem pretensioso. Desisti. Mas assim mesmo como esto, num manuscrito terrvel e a lpis, vou mandar eles de presente pra voc, quando o livro for.

    [...]

    So Paulo, 16 de julho de 1928

    Augusto Meyer:

    Agora j vou preparando as cartas que vo seguir pra alguns com o meu Macunama, que talvez saia hoje ou amanh. Uma pra voc. No sei, mas esse livro est virando uma verdadeira obsesso pra mim. Tem momentos em que acho ele horrvel. Tem momentos em que acho muito bom. Uma coisa me parece certo: que ele no a aparncia de pndega que tem. Se foi escrito brincando, ou melhor, divertidamente, por causa da graa que eu achara no momento entre a coincidncia de um heri amerndio to sem carter e a convico a que eu chegara de que o brasileiro no tinha carter moral, alm do incaraterstico fsico duma raa inda em formao, se foi escrito divertidamente, a releitura do livro me

  • principiou doendo fundo em seguida. Hoje ele me parece uma stira perversa. Tanto mais perversa que eu no acredito que se corrija os costumes por meio da stira. Por outro lado no tive inteno de fazer de Macunama um smbolo brasileiro. Mas se ele no o Brasileiro ningum no poder negar que ele um brasileiro e bem brasileiro por sinal. Exijo franqueza absoluta a respeito desse livro por mais dolorosa que voc imagine que ela possa ser pra mim. Quero ver se reunindo algumas opinies desimpedidas consigo formar uma opinio geral que palavra de honra sou incapaz de formar por mim.

    [...]

    Em paga vou pedir pra voc que me fale num assunto que me interessa enormemente, nem que voc por ele tenha que tambm fazer sacrifcios que nem eu. Quero saber exatamente em que estado est a conscincia separatista do Rio Grande do Sul. Em voc particularmente e no geral. Eu creio que voc j me conhece suficientemente pra saber que eu no sou um patriota. Isso do Brasil se seccionar ou no, tem pouco interesse pra minha conscincia universalista. Porm a convico a que atingi que o Brasil duma unidade nacional e racial muito forte e que todo seccionamento dele s pode prejudicar o fato humano universal. Tanto sob o ponto-de-vista humano (da humanidade) como social (da sociedade). A nossa unidade racial apesar dos coeficientes espordicos de maior espanholismo aqui, maior teutonismo alm, maior lusitanismo adiante, etc. me parece indiscutvel e est at comigo um homem de valor de Bertoni, que observou o fato e o provou com dados. Eu quero saber por isso em que estado est no s a conscincia de voc como a geral do povo. Pra combater ferozmente se carecer ou pra me sossegar. Espero que voc me responda com a maior largueza de dados que puder e a maior sinceridade.

    Com o abrao mais fraterno do Mrio

    A Raimundo Moraes

    Meu ilustre e sempre recordado escritor:

    No imagina a intensa e comovida surpresa com que ontem, no segundo volume do seu Dicionrio de cousas da Amaznia, ao ler na pgina 146 o verbete sobre Theodor Koch-Grnberg (naturalmente o sr. se refere a Koch-Grnberg, ou em nossa letra, Koch-Gruenberg), topei com a referncia a meu nome e a defesa que faz a mim. Mas como esta minha carta pblica pra deminstrar a admirao elevada que tenho pelo escritor de Na Plancie Amaznica, acho melhor citar o trecho do seu livro para que os leitores se inteirem do que se trata: "Os maldizentes afirmam que o livro Macunama do festejado escritor Mrio de Andrade todo inspirado no Von Roraima Zum Orenoco do sbio (Koch-Grnberg). Desconhecendo eu o livro do naturalista germnico, no creio nesse boato, pois o romancista patrcio, com quem privei em Manaus, possui talento e imaginao que dispensam inspiraes estranhas."

    Ora apesar de toda minha estilizada, exterior e conscientemente praticada humildemente, me lcito imaginar que embora o sr. no acredite ma malvadeza desses maldizentes, sempre a afirmativa deles calou no seu esprito, pois garante o boato pra garantir com incontestvel exagero, o meu valor. Sempre tive a experincia da sua generosidade, mas no deixou de me causar alguma pena que o seu esprito sempre alcandorado na admirao dos grandes, preocupado com sucurijus to tamanhas e absorventes como Hartt, Gonalves Dias, Washington Lus, Jos Jlio de Andrade, presidentes, inventores, Ford e Fordlndia, se inquietasse por um pium to giro que nem eu. E para apagar do seu esprito essa inquietao, tomo a desesperada ousadia de lhe confessar o que o meu Macunama.

    O sr. muito melhor do que eu sabe o que so os rapsodos de todos os tempos. Sabe que os cantadores nordestinos, que so nossos rapsodos atuais, se servem dos mesmos processos dos cantadores da mais histrica antiguidade, da ndia, do Egito, da Palestina, da Grcia, transportam integral e primariamente tudo o que escutam e vem pros seus poemas, se limitando a escolher entre o lido e o escutado e a dar ritmo ao que escolhem pra que caiba nas cantorias. Um Leandro, um Athayde nordestinos, compram no primeiro sebo uma gramtica, uma geografia, ou um jornal do dia, e compem com isso um desafio de sabena, ou um romance trgico de amor, vivido no Recife. Isso o Macunama e esses sou eu.

  • Foi lendo de fato o genial etngrafo alemo que me veio a idia de fazer do Macunama um heri, no do "romance" no sentido literrio da palavra, mas de "romance" no sentido folclrico do termo. Como o sr. v, no tenho mrito nenhum nisso, mas apenas a circunstncia ocasional de, num pas onde todos danam e nem Spix e Martius, nem Shlichhorst, nem von den Steinen esto traduzidos, eu danar menos e curiosear nas bibliotecas gastando o meu troco miudinho, miudinho, de alemo. Porm Macunama era um ser apenas do estremo norte e sucedia que a minha preocupao rapsdica era um bocado mais que esses limites. Ora, coincidindo essa preocupao com conhecer intimamente um Teschauer, um Barbosa Rodrigues, um Hartt, um Roquette-Pinto e mais umas trs centenas de cantadores do Brasil, dum e de outro fui tirando tudo o que me interessava. Alm de ajuntar na ao incidentes caractersticos vistos por mim, modismos, locues, tradies ainda no registradas em livro, frmulas sintticas, processos de pontuao oral, etc. de falas de ndio, ou j brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da formosssima lngua portuguesa.

    Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cpia a Koch-Grnberg, quando copiei todos. E at o sr, na cena da Boina. Confesso que copiei, copiei s vezes textualmente. Quer saber mesmo? No s copiei os etngrafos e os textos amerndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mrio Barreto, dos cronistas portuguees coloniais, e devastei a to preciosa quo solene lngua dos colaboradores da Revista de Lngua Portuguesa. Isso era inevitvel pois que o meu... isto , o heri de Koch-Grnberg, estava com pretenses a escrever um portugus de lei. O sr. poder me contradizer afirmando que no estudo etnogrfico do almo, Macunama jamais teria pretenses a escrever um portugus de lei. Concordo, mais nem isso inveno minha pois que uma pretenso copiada de 99 por cento dos brasileiros! Dos brasileiros alfabetizados.

    Enfim, sou obrigado a confessar duma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo. Mas nem a idia de satirizar minha pois j vem desde Gregrio de Matos, puxa vida! S me resta pois o acaso dos Cabrais, que por terem em provvel acao descoberto em provvel primeiro lugar o Brasil, O Brasil pertence a Portugal. Meu nome est na capa de Macunama e ningum o poder tirar. certo de que tem em mim um quotidiano admirador.

    Mrio de Andrade

    (Dirio Nacional, So Paulo, 20 set. 1931)

    So Paulo, 7 de novembro de 1927

    Man:

    Eu me ri um pouco do seu "no conte que Macunama um smbolo" porque afinal das contas voc sabe que moda no gostar dos smbolos, etc., os smbolos enquizilam etc., e isso ia prejudicar o apreo a obra. Homem, Man, farnqueza:L dou to pouca importncia hoje pra essas coisas de poca que de fato pretendo empregar o smbolo mas com todos os efes-e-erres simblicos num livro muito futuro que se chama Vento.

    [...]

    Agora voltemos pro smbolo. O smbolo em arte no simbolismo no. O smolo de Maeterlinck carece no confundir com sbolo que sntese duma coisa, que nem Dom Quixote, Ulsses, Dom Juan e Shylock. No falei que meu Macunama um smbolo de que carece no confundir com smbolo que nem Mallarm ou Maeterlinck. Isso no smbolo, simbolismo. A import6ancia est na coisa me si, ou por outra: a coisa pode viver por si. Porm a quem l o Quixote e percebe alm da coisa em si, tudo o que ela traz de representaes ideais, esse tem um gozo muito infinitamente maior. E at mais vital, Man, porque a vida no simples objetividade nem simples subjetividade, mas um complexo em que a sbia unio traz a mais comovente e intensa e verdadeira vitalidade. No sei se estou conselheiral, porm sei que estou verdadeiro. E voc pondo reparo no racionalismo desbragado de outro, dos autores do sculo XIX, voc compreender a causa principal porque esse sculo foi o menos "criador" e o mais fatigante

  • dos sculos de arte. Enjoativo. Macunama no smbolo do brasileiro, alis, nem no sentido em que Shylock a Avareza. Se escrevi isso, escrevi afobado. Macunama vive por si, porm possui um carter que justamente o de no Ter carter. Foi mesmo a observao disso, diante das concluses a que eu chegara, no momento em que lia Koch-Grnberg, a respeito do brasileiro, do qual eu procurava tirar todos os valores nacionais, que me entusiasmou pelo heri. Agora: compreendo muito bem a distino que voc faz entre a vibratilidade vital de Macunama pi e Macunama homem. possvel que voc tenha razo... No sei... Careo de refletir. Talvez seja possvel melhorar. Porm no acredito, porque deve ser falha na criao. Vou matutar sobre o caso.

    Assim: pondo os pontos nos is: Macunama no smbolo do brasileiro como Piaim no smbolo do italiano. Eles evocam "sem continuidade" valores tnicos ou puramente circunstncias da raa. Se Macunama mata Piaim nunca jamais em tempo algum no tive inteno de simbolizar que brasileiro acabar vencendo italiano (idia que s me veio agora escrevendo), mata porque de fato mata na lenda arecun.

    Onde voc me despertou bem a crtica e resolvi fazer que nem voc fala no caso de Ci. Vou fazer um captulo s pros amores dela. O resto passa pra outro captulo. Essa crtica foi uma revelao luminosa nesta carta. Vai melhorar enormemente o caso. Na Carta pra Icamiabas no cedo at agora mais do que cedi. Reduzo um pouco e isso mesmo porque j sentia que estava comprido por demais. Voc conseguiu fortificar o sentimento. No resto os argumentos de voc so de ordem puramente sentimental e no de ordem crtica e so inaceitveis. No gosto porque no, porque pretensioso, porque me aporrinha, so argumentos sem valor intelectual. V juntando outros pra desembuxar aqui. Alis estou pensando agora que desenvolver os amores de Ci vai ser perigoso. No creio atingir o indito forte que tem na cena-de-amor do 1o captulo e a deste em Ci.

    E com a espera espevitada do - Mrio.

    O "Agora esto se rindo um pro outro" dum reconto caxinau.

    Mrio

    4 NOTAS DIRIAS

    Mrio de Andrade

    (Especial para Mensagem)*

    ... a observao de Srgio Milliet, me obrigou a esta releitura dos trs captulos finais de Macunama...

    Francamente s vezes at me chateia, mais freqentemente me assusta, a versidade de intenesinhas, de subentendidos, de aluses, de smbolos que dispersei no livro. Talvez eu devesse escrever no livro, pelo menos ensaio, "Ao lado de Macunama", comentando tudo o que botei nele. At sem querer!

    De uma das categorias no me alembrava, porm a leitura de hoje fez ela me ressaltar bem viva na lembrana. Talvez a recordao chegasse to viva agora porque, tendo imaginado retomar a composio do meu romance Caf, o problema de formarmos, de querermos formar uma cultura e civilizao de base crist-europia, que seria por assim dizer a tese do romance, esteja me preocupando muito. J me esquecera da alegoria que pusera sobre isso no Macunama... Mas agora tudo se relembrou em mim vividamente, ao ler a frase: "Era malvadeza de vigarenta (a velha Vei, a Sol) s por causa do heri no ter se amulherado com uma das filhas da luz", isto , as grandes civilizaes tropicais, China, ndia , Peru, Mxico, Egito, filhas do calor. A alegoria est desenvolvida no captulo intitulado "Vei, a Sol". Macunama aceita se casar com uma das filhas solares, mas nem bem a futura sogra se afasta, no se amola mais com a promessa, e sai procura de mulher. E se amulhera com uma portuguesa, o Portugal que nos herdou os princpios cristos-europeus. E por isso, no acabar do livro, no captulo final, Vei se vinga do heri e o quer matar. Ela que faz aparecer a uiara que destroa Macunama. Foi vingana da regio quente solar. Macunama no se realiza, no consegue adquirir um carter. E vai pro cu, viver o

  • "brilho intil das estrelas".

    ...pra completar a nota acima: Um dos elementos sorridentemente amargos da alegoria o custo, a hesitao de Macunama, quando deseja se jogar nos braos da Uiara enganosa, com que Vei, a Sol, o pretende matar. Estou me referindo imagem da gua estar fria, foradamente fria naquele clima do Urariquera e naquela hora alta do dia. A gua destrana as suas ondinhas de "ouro e prata" (aluso cantiga-de-roda ibrica da Senhora-Dona-Sancha) e aparece a uiara falsa. Macunama sente um desejo enorme de ir brincar com ela, talvez a fecundasse, talvez nascesse um novo filho-guaran, como dos seus amores com Ci... Mas pe o dedo do p e tem medo do frio, isto , se arreceia de uma civilizao, de uma cultura de clima moderado europeu. E Macunama como num pressentimento, retira o dedo, no se atira ngua. O heri se salva essa primeira vez. E a gua mexida pelo dedo do heri se entrana de novo num tecido de ouro e prata, escondendo a visagem da uiararona-Sancha. A qual dona Sancha pra ser europia, pois Vei, em vez de se utilizar de uma de suas filhas, europeza o seu instrumento de vingana. Ela percebe que sem o europesmo a que se acostumou, Macunama no se enganava. Vei no desanima e pra enfim vencer, acaba se servindo de um argumento exatamente tropical. Pega um chicote de calor e d uma lambada no heri. Este no resiste mais. Se atira na gua fria, preferindo os braos da uiara ilusria. E vai ser devorado pelos bichos da gua, botos, piranhas.

    Ainda consegue voltar praia, mas um frangalho de homem. Como agora? sem uma perna, sem isto e mais aquilo e sem principalmente o muiraquit que lhe d razo-de-ser, poder se organizar, se reorganizar numa vida legtima e funcional?... No tem mais possibilidade disso. Desiste de ir viver com Delmiro Gouvia, o grande criador. Desite de ir pra Maraj, nico lugar do Brasil em que ficaram traos duma civilizao superior. Lhe falta o amuleto nacional, no conseguir vencer mais nada. Ento ele prefere ir brilhar no brilho intil das estrelas.

    *Nota: O texto est em Mensagem (Quinzenrio de Literatura e Arte), 2 (26). Belo Horizonte, 24 jul., 1943 [p. 1].

    lvaro Lins:

    Aqui lhe mando essa coisa "esquisita" que o Movimento Modernista encardo por mim. No uma crtica, no sentido mais verdadeiro do termo, voc ver. Na verdade, eu me aproveitei do Movimento pra por meio de certos aspectos dele, dizer aos moos umas tantas coisas que precisava dizer. Que estourava se no falasse.

    Talvez o que importa mais seja, por isso, a confisso final. Mas como a mocidade terrvel... A no Rio como aqui j esto dizendo que "fui injusto" pra comigo. Ora isto mais um jeito hbil e inconsciente de se libertarem de suas prprias preocupaes morais. Como voc ver, no me recuso absolutamente certos valores, est claro. Seria humildade falsa e ridcula. Apenas os meus valores so valores de tempo de paz e eu vivo e ainda vivemos tempo de combate. Esse foi seno meu erro, pelo menos minha defici6encia e meu engano. o que eu confesso.

    Veja o "caso" de Macunama. Ele seria o meu mrito grande se sasse o que queria que sasse. Pouco importa se muito sorri escrevendo certas pginas do livro: importa mais, pelo menos pra mim mesmo, lembrar que quando o heri desiste dos combates da terra e resolve ir viver "o brilho intil das estrela", eu chorei. Tudo, nos captulos finais foi escrito numa comoo enorme, numa tristeza, por vrias vezes senti os olhos umedecidos, porque eu no queria que fosse assim! E at hoje ( o livro meu que nunca pego, no porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente ele), as duas ou trs vezes que reli esse final, a mesma comoo, a mesma tristeza, o mesmo desejo amoroso de que no fosse assim, me convulsionaram.

    Mas a verdade que eu fracassei. Se o livro todo ele uma stira, um no-conformismo revoltado sobre o que , o que eu sinto e vejo que o brasileiro, o aspecto "gozado" prevaleceu. certo que eu fracassei. Porque no me satisfaz botar a culpa nos brasileiros, a culpa tem de ser minha, porque quem escreveu o livro fui eu. Veja no livrinho a introduo com que me saudaram! Pra esses moos, como pra os modernistas da minha gerao, o Macunama a "projeo lrica do sentimento brasileiro, a alma do

  • Brasil virgem e desconhecida!" Que virgem nada! Que desconhecida nada! Virgem, meu Deus! Ser muito mais um co de nazista! Eu fracassei.

    [...]

    Bibliografia

    JOAQUIM PEDRO

    Antropofagia coisa que os subdesenvolvidos entendem. E eu fiquei chocado foi quando soube que Weekend, de Godard, terminava com uma cena da mulher comendo os restos do marido e pedindo mais. Eu estava justamente acabando Macunama. Em veneza havia outros filmes com canibalismo. Pasolini tambm j colocou isso num de seus filmes recentes, Porcile. curioso como ns e os artistas de sociedades avanadas tivemos, num certo momento, a mesma idia. A antropofagia no uma idia nova no Brasil. Mas eu demorei muito a entender o alcance poltico das idias de Oswald de Andrade, por exemplo, que redigiu seu manifesto antropofgico antes de 1930. A antropofagia a denncia de uma condio primitiva de luta, uma luta resumida ao seu nvel mais primrio. Uma dentada, afinal de contas, destri muito pouco.

    Na verdade, a dificuldade maior que tive foi a de entender as coisas. Custei a ver claro no conjunto do livro, at que entendi como funcionava em relao aos problemas do Brasil e at em relao aos problemas do mundo. Mas afinal a coisa se resolveu com bastante facilidade, quando consegui entender politicamente o livro. Escrevi duas adaptaes que me consumiram quatro meses, mais ou menos de fevereiro a junho de 1968 (a filmagem s comeou em setembro desse ano). Na primeira eu tentava racionalizar, de certa forma domar o livro. Mas as coisas colidiam. Iam em vrias direes e no se completavam. J na Segunda, quando entendi que Macunama era a histria de um brasileiro que foi comido pelo Brasil, as coisas ficaram mais coerentes e os problemas comearam a ser resolvidos uns atrs dos outros.

    Porque escolhi Macunama para filmar? difcil explicar porque a gente escolhe alguma coisa para fazer. uma deciso to complicada e ao mesmo tempo to simples... Macunama era um projeto que me interessava h muito tempo, desde que pensei em fazer cinema e me lembrei do livro de Mrio de Andrade, que j tinha lido antes. Me interessava muito, porque tinha um caminho de adaptao na cabea, um caminho que me parecia vivel. Mas nuca tentei realiz-lo antes, porque havia uma fila de gente pronta a faz-lo, inclusive amigos meus. Por um motivo ou por outro, foram desistindo. Restou ento Cac Diegues, que tambm passou uns anos com esta idia na cabea. Acho at que quando Cac fez A Grande Cidade partiu tentando mesmo adaptar Macunama, desistindo no meio do caminho. Fui ento falar com ele e perguntei se ainda pretendia adaptar o Macunama. Cac respondeu que no e eu parti ento para a realizao do filme.

    "Macunama era um projeto que me interessava h muito tempo, desde que pensei em fazer cinema e me lembrei do livro de Mrio de Andrade. Macunama um heri antiqssimo, um heri dos ndios e cujo nome significa Grande Mal. Os civilizados tomaram conhecimento dele pela primeira vez atravs dos estudos de um alemo, Koch-Grnberg, que passou uns tempos no Brasil nos fins do sculo passado, recolhendo lendas indgenas. Ao l-las, Mrio de Andrade, preso de grande comoo lrica e sentindo no Brasil de 1926 o eco de Macunama, escreve o livro.

    Acho que o personagem, no livro, mais gentil do que no filme, assim como o filme mais agressivo, feroz, pessimista, do que o livro amplo, livre, alegre e melanclico de Mrio de Andrade. Para ser justo, considero o filme um comentrio do livro.

    O que falta ao personagem de Macunama uma viso mais geral, mais ambiciosa e mais consciente. Ele d sempre os seus golpes com objetivo limitado, pessoal, individualista. um estgio vencido - mas importante - do que seria o caminho para o heri moderno brasileiro. Macunama o heri derrotado, que acaba comido pela Iara, abandonado e trado. Sua trajetria, desde o nascimento at a morte, com todas as reviravoltas, um caminho da terra para a terra. Ele come terra no princpio e no fim do filme, mas na

  • verdade a terra que termina por com-lo.

    O heri moderno, para mim, uma espcie de encarnao nacional, cujo destino se confunde com o prprio destino de seu povo. Uma das suas caractersticas fundamentais a conscincia coletiva. Ao contrrio de Macunama, ele ter de encarnar um ser moral, no sentido de estar possudo por toda uma tica social. Ainda no apareceu o heri moderno simplesmente porque ele ter de ser um vencedor, ao contrrio do heri romntico, que era o heri vencido, triste. Em suma, o heri moderno ter de ser evidentemente uma superao de Macunama, embora conservando algumas caractersticas dele.

    O livro no tem limitaes realistas como as que o filme tem, por escolha minha. Procurei tornar reais as lendas para aproxim-las do pblico.

    Usei o essencial da lenda, para torn-la mais ativa para a platia. Acho que a lio de Kafka tratar o absurdo de forma minuciosamente realista, dando a ele um poder de agresso muito maior. O canibalismo, por exemplo, tratado no filme com a maior naturalidade, sem artifcio. Isso o torna mais prximo e incmodo.

    Em Macunama, h uma total baguna tnica. Botei Paulo Jos, travestido, como a me branca de Macunama preto (Grande Otelo).

    Nas transformaes m,gicas de preto para branco, Macunama torna-se racista. Branco, gera com uma me branca um filho negro. O problema racial brasileiro, que a coisa mais declarada do mundo atravs do prprio processo de auto-ironia do negro, visto, numa perspectiva brasileira tpica, como se fosse uma brincadeira.

    No campo cinematogrfico, e como reflexo do processo geral brasileiro, se fez evidente a necessidade de um cinema aberto, socialmente ativo e capaz de impor-se no mercado interno. Em minha opinio, a evoluo de nossa sociedade, e da sociedade latino-americana em geral, faz com que no mais se justifiquem os esquemas da moral tradicional. necessrio denunciar as estruturas moralizantes; os valores ultrapassados que s servem para ocultar uma realidade antropofgica. De fato, em nossa sociedade os homens se devoram uns aos outros. Macunama trata dessa realidade antropofgica atravs de um personagem irreverente, que rompe com nossa coero educativa.

    A antropofagia uma forma de consumo que os subdesenvolvidos usaram de maneira exemplar. Os ndios brasileiros, notadamente, logo ao serem descobertos pelos nossos primeiros colonizadores, tiveram a felicidade de escolher o bispo portugus D. Pero Fernandes Sardinha, para com-lo em ato memorvel. No foi a toa portanto que os modernista s de 22 dataram o seu manifesto antropfago: ano 374 da deglutio do Bispo Sardinha.

    Todo consumo redutvel, em ltima anlise, ao canibalismo. As relaes de trabalho, como as relaes entre as pessoas, as relaes sociais, polticas e econmicas, so ainda basicamente antropofgicas. Quem pode come o outro, por interposto produto ou diretamente, como nas relaes sexuais. A antropofagia se institucionaliza e se disfara. Os novos heris, procura da conscincia coletiva, partem para devorar quem nos devora, mas so fracos ainda.

    Mais numerosamente, o Brasil, enquanto isso, devora os brasileiros. Macunama a histria de um heri brasileiro que foi comido pelo Brasil.

    "Macunama" um encontro latino-americano, o descobrimento de fronteiras ideolgicas mais amplas. um filme que encontra a Amrica Latina em todos os sentidos, em uma busca nacional. Baseado em lendas indgenas, descobrimos que seus heris coincidiam com a histria e a realidade no s brasileira como de toda Amrica Latina, uma sntese que no tinha nada a ver com uma cultura falsa, importada. As lendas contm uma mesma verdade... O gigante comedor do homens, por exemplo, no uma representao simblica, um tpico industrial brasileiro... Outra coisa importante: a representao da antropofagia. Vemos que as coisas no mudaram desde a colonizao, quando os ndios comeram os portugueses... Como somos fracos, ainda, nossa nica defesa a antropofagia. Modernizada se assim se

  • quiser, mas a relao entre os homens ainda antropofgica. O filme no de modo algum simblico, seria um tratamento fraco. Quis mostrar que aqueles personagens da lenda se repetem, so representativos, de certos povos, da Amrica Latina, do Terceiro Mundo. O que existe sim, uma exacerbao de elementos que vem a ser reveladora. Os adornos da casa do gigante, por exemplo, so de um mau gosto delirante, que existe no Brasil. Esta concentrao exacerbada permite destacar elementos, ultrapassar uma conveno realista que pode dissipar de uma expresso fundamental, reveladora. Um processo que tambm evita o engano, a iluso de um realismo circunstancial.

    que a nossa fora, no momento, est dando, no mximo, para um impotente destruir outro impotente. H novos heris. Eles tentam devorar quem os devora. Mas os contestadores so industrializados pelos rgos de divulgao e passam a ser consumidos, isto , comidos, como todos aqueles que aceitam. Enfim, quem pode come o outro. Macunama um sujeito que foi comido pelo Brasil, onde quem comia no tempo em que os ndios devoraram o Bispo Sardinha continua comendo at hoje. Macunama comea comendo terra, mas no termina assim. Falta ao filme uma idia mais clara a respeito dessa deglutio que a terra faz do homem. Uma espcie de geofagia ao contrrio.

    A empostao que pretendi dar a Macunama no se vincula onda tropicalista, que, para mim, sempre foi completamente furada como movimento.

    O que houve como movimento tropicalista foi a diluio de algumas obras fortes que podem ser chamadas tropicalistas, como Terra em transe, de Gluber Rocha, e O rei da vela, na encenao de Jos Celso Martinez Correia. A meu ver, Macunama mostra que o balo inchado e colorido do tropicalismo estava furado mesmo e tinha que se esvaziar, do mesmo jeito que Macunama, personagem, festeja muito, mas acaba sendo comido pelo Brasil.

    Meus filmes vm tentando discutir um problema s: o de uma pessoa viver no Brasil. So diferentes entre si porque eu trabalho em funo do que quero dizer e preciso dizer as coisas de maneiras diferentes. O padre e a moa um filme de negao. Nega tudo, inclusive o fato de tentar se resolver como filme. E contm doses mais fortes de irracionalismo. Quando a pessoa desiste de ser racional, est confessando que seu nico caminho est fechado. Veja: anos atrs, quando queramos resolver alguma coisa, tnhamos que decidir coletivamente. As solues individuais eram criticadas. Hoje est todo mundo "na sua". Antes, a gente via um maconheiro na rua e apontava para aquele monumento de originalidade: olha l, um maconheiro! Hoje as pessoas vo ao morro comprar maconha. A situao no morro no mudou, no muda nunca. Ns mudamos. E mesmo os nossos filmes, quando tratam de assuntos importantes, precisam faz-lo de maneira indireta.

    Meu crdito com os produtores se havia esgotado, e eu acho que essa era a nica maneira de fazer alguma coisa. Porque de qualquer forma j existe um pblico de cinema aqui no Brasil, e o Macunama tinha esta vantagem: propunha um sada diferente do que estamos acostumados, porque tinha a possibilidade de comunicar com muita gente entendida em cinema, mas tambm podia ganhar o Brasil inteiro, por sua polmica. E porque profundamente enraizada na cultura brasileira, eu achava que podia inclusive renovar o pblico de cinema, atrair aqueles que estavam afastados do cinema h muito tempo, o pblico da chanchada, por um caminho diferente, sem repetir as velhas frmulas com variaes. O Macunama realmente diferente de tudo quanto foi feito em matria de cinema, no pelo meu trabalho mas em virtude do prprio livro.

    E, apesar disto, uma coisa bolada pelo povo brasileiro, porque mesmo uma rapsdia, como o prprio Mrio de Andrade o chamou, ou seja, uma orquestrao de motivos populares, uma decantao do que seria o esprito, a crtica e a inteligncia popular brasileira, que se cristalizaram em determinadas formas histricas, como a dos ndios, e se repetem assumindo formas parecidas e desiguais. Isso tudo indicava que o filme podia atrair todo esse pessoal, que no teria o condicionamento que o pblico habitual de cinema tem. Por outro lado, alm de ser diferente, era imprevisvel, porque tanto era um filme que podia ser vetado pelas pessoas, como poderia ser amado por elas. Uma espcie de desafio.

    Procurei fazer um filme sem estilo predeterminado. Seu estilo seria no Ter estilo. Uma anti-arte, no sentido tradicional da arte. Procurei, tambm, evitar que o filme fosse subserviente de qualquer modo.

  • No existem nele concesses ao bom gosto. J me disseram que ele porco. Acho que , mesmo, assim como a graa popular freqentemente porca, inocentemente porca como as porcarias ditas pelas crianas.

    imprevisvel o resultado da interao. No sei se os caras vo detestar, cuspir em cima, xingar, rasgar a cadeira do cinema, ou se riro, mostrando que gostam e que entendem realmente o que quis dizer.

    Trata-se de encontrar um lugar alm da hipocrisia vigente e aqum dos limites reais que so impostos: o projeto tem que ser vivel. Ou seja: o consumo de massa no Brasil constitui uma possibilidade original Dom maior interesse para o cinema. As "massas afluentes" no Brasil so uma semente de vitalidade muito forte, e devemos aceitar esta proposta. Acho mesmo que existe um reacionarismo em recus-la. Procurar um tipo de purismo em cinema que implique em recusar o desafio do consumo de massa (posio mais comum do que se pensa) uma atitude reacionria. como se se quisesse fazer retroceder o consumo, propor para o cinema uma espcie de "beletrismo" muito acadmico.

    O filme de arte tradicional de impostao e "respeitabilidade" cultural tem muito deste rano: utilizar inadequadamente um veculo que moderno justamente por ser um veculo de comunicao de massa. A proposio de consumo de massa no Brasil uma proposio moderna, algo novo, que no existia antes. As grandes audincias de TV entre ns certamente um fenmeno novo. uma posio avanada para o cineasta tentar ocupar um lugar dentro desta situao nova.

    O avanado assumir o lado moderno do cinema, que justamente a possibilidade de se comunicar com a massa. Isso implica em si assumir todos os valores culturais, sociais e polticos que possam ser transmitidos por esta forma de comunicao.

    Este caminho, de qualquer modo, sempre muito perigoso: pode facilmente levar prostituio da proposta inicial com o fito de assegurar audincia, etc.: a grande maioria dessas tentativas resulta sempre em verdadeiras drogas. De qualquer forma acho fundamental a explorao crtica deste caminho. Foi neste sentido que realizei Macunama.

    Macunama um filme que surgi depois da, digamos, Segunda fase do Cinema Novo. De uma primeira fase em que o dilogo com o pblico era buscado de maneira discutvel, quase sempre paternalista, passa-se a esta segunda fase em que os autores passam a se encarar em suas prprias obras - so trabalhos na primeira pessoa. Macunama volta a descobrir e a falar na terceira pessoa, ao mesmo tempo em que se situa na fase atual dos filmes de grande populao (cor, grande elenco, figurinos, cenrios, etc.) - o cinema nacional se industrializando - retoma de certa maneira a prpria chanchada: presente na grossura, no deboche, no informal" e at mesmo no ressurgimento de alguns atores.

    At que ponto esta retomada intencional e em que medida?

    Tive a inteno deliberada, desde o incio, de procurar uma comunicao popular to espontnea, to imediata, como a da chanchada, sem ser nunca subserviente ao pblico. Apesar de no ser subserviente, o filme no paternalista, no sentido em que talvez fossem paternalistas os primeiros filmes do Cinema Novo: "dando uma lio". Ele procura ser feito do povo para o povo, a orquestrao mais simples possvel, mais diretas de motivos populares, atendendo definio de rapsdia, que foi como Mrio de Andrade qualificou o livro.

    Filmar o livro um projeto antigo, realiz-lo foi uma questo de oportunidade. Creio que ele ao mesmo tempo um corte e uma continuao em meu trabalho. Os primeiros filmes que fiz, a partir de Manuel Bandeira, passando por Couro de gato e Garrincha, continham experincias realizadas no nvel da linguagem cinematogrfica, e em vrias partes deles eu aplicava uma experincia de sintaxe cinematogrfica de fora para dentro (preexistente ao material). Manuel Bandeira apresentava cortes no tempo e no espao com continuidade plstica, uma tentativa de conseguir uma fluidez de montagem. Em O padre e a moa, d-se o primeiro rompimento violento, uma tomada de consci6encia, uma recusa de valores que era aparente nestes filmes. A experincia de linguagem mais de recusa do que de inveno positiva. Mas subsiste em O padre e moa uma preocupao com os valores plsticos atuando dentro da

  • cena, marcaes de atores e cortes (concepo geral e equilbrio) - o diretor ainda est "domando" o material filmado, pelo enquadramento, marcao, etc.. Evidentemente que o mais importante nestes filmes vem de dentro para fora, o que sobrevive a esse processo.

    No Manuel Bandeira h uma viso embarcada - de certa maneira, engajada com ele. Faltaria um processo mais dialtico de crtica, em que esses valores fossem confrontados mais agressivamente com outros valores que j agrediam - de ordem moral, tica, poltica, etc.. Um filme de amigo, incondicionalmente solidrio. No Couro de gato, a preocupao poltica crtica j existe efetivamente. Mas esta espcie de engajamento emocional ainda est presente e de certa maneira limita o poder de crtica do filme. No Garrincha, a seleo de valores j menos clara - h uma recusa de uma crtica bvia e a tentativa de apreender uma realidade individual e, a partir da, social, etc., muito mais rica. Essa tentativa nem sempre foi bem sucedida, o que d s invenes no terreno da linguagem cinematogrfica um valor, s vezes, substitutivo. Em O padre e a moa, o processo fica absolutamente claro. As opes se radicalizam e, a meu ver, um filme negativo sobre a negao. Macunama , de certa maneira, a exploso da tendncia positiva. Com o campo mais ou menos limpo, a tentativa, agora, de plantar o que vale a pena. Ainda aparece no Macunama um certo tipo de ascetismo, de recusa, que vem de O padre e a moa. Agora, essa recusa vai mais longe, porque atinge o interior do quadro. Macunama um filme, digamos, chocantemente informal. Macunama, de qualquer jeito, ainda um princpio de discusso - no sentido da discusso que permanece (se processa) de um filme para outro. No sentido do personagem, Macunama realmente o contrrio do padre. O padre a negao, em que a conscincia tem um papel aprisionador reduzido ao osso da alegoria. O Macunama um personagem sem conscincia e, portanto, inteiramente desinibido - estamos caminhando para o heri moderno, que vital e consciente. Macunama vital, mas ainda inconsciente - falta conscincia dos condicionamentos contemporneos, moderno mas parcial.

    O filme moderno porque, ao colocar o problema do heri vital mas inconsciente, est-se discutindo o problema do heri moderno que vital mas consciente, que um heri que no est definido, mas sim em processo de elaborao. Visto hoje, Macunama est no passado. Inclusive porque continuamos vivos depois que ele morreu. No h nenhuma tranqilidade em verificar, pela descrio de vida de Macunama desde o nascimento at a morte, passando por tantas aventuras que o heri de nossa gente (ser?) viveu em vo. Apesar de termos uma conscincia melhor informada, no seremos ns, os espectadores de Macunama, os primeiros a terem o poder de morrer tranqilos.

    FICHA TCNICA

    Produtoras: Filmes do Serro/ Grupo Filmes/ Condor Filmes (Rio-GB), 1969.

    Distribuidoras: Difilm/ Condor Filmes.

    Gnero: Comdia.

    Direo, roteiro e adaptao: Joaquim Pedro de Andrade.

    Argumento: baseado na histria de Macunama, de Mrio de Andrade.

    Fotografia (Eastmancolor): Guido Cosulich.

    Fotografia adicional: Affonso Beato.

    Cmera: Ricardo Stein.

    Montagem: Eduardo Escorel.

    Msicas: Macal, Mrio de Andrade, Orestes Barbosa, Slvio Caldas, Geraldo Nunes, Antnio Maria, Sady Cabral, Heitor Villa Lobos.

    Cenografia e figurinos: Ansio Medeiros.

  • Som guia: Juarez Dagoberto Costa.

    Efeitos sonoros: Walter Goulart.

    Produtor executivo: K. M. Eckstein.

    Diretor de produo: Chris Rodrigues.

    Assistente de direo: Carlos Alberto Prates Correia.

    Narradoe: Tite de Lemos,

    Durao: 108 minutos.

    Elenco: Grande Otelo (Macunama preto), Paulo Jos (Macunama branco), Dina Sfat (Ci), Milton Gonalves (Jigu, irmo de Macunamaq0, Rodolfo arena (Manaape, s/irmo), Jardel Filho (Gigante Wenceslau Pietro Pietra), Joana Fomm (Sofar), Maria do Rosrio (Iquir), Maria Lcia Dahl (Iara), Miriam Muniz (Caapora0, Edi Siqueira (Filhinha), Carmen Palhares (Filhona), Rafael Carvalho (Currupira), Carolina Withaker (Princesa), Hugo Carvana (Vigarista), Zez Macedo (A Magra), Wilza Carla (A Gorda), Maria Clara Pellegrino (Copeirinha do Gigante), Maria Letcia (Cunhada colorida), Valdir Onofre, Guaraci rodrigues, Nazareth Ohana, Tnia Mrcia, Mrcia Tnia.

    Certificado do INC No 218, de 25/jul./1969.

    1o lanamento: 3 de nov. 1969 - Rio de Janeiro.

    Brasil Cinema : N 4.

    FILMOGRAFIA DE JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE

    Curta metragem:

    1959:

    O mestre de Apipucos.

    O poeta do castelo.

    1960:

    Couro de gato.

    Improvisiert und Zielbewurst (Cinema Novo0.

    1967:

    Braslia, contradies de uma cidade.

    Longa metragem:

    1963:

    Garrincha, alegria do povo.

    1965:

  • O padre e a moa.

    1969:

    Macunama.

    1972:

    Os inconfidentes.

    1974:

    Guerra Conjugal.

    HERIS DE NOSSA GENTE

    Em 1928, Mrio de Andrade "adaptou" para a literatura as aventuras de Macunama, deus do mal do catecismo, compiladas por Koch-Grnberg de folclore amazonense.

    Em 1969, Joaquim Pedro de Andrade "adaptou" para o cinema o Macunama de Mrio.

    O que significa adaptar? Seria vivel, como desejava Mrio e Andrade, submeter-se realmente estrutura do pensamento fabular? Seria desejvel que Joaquim Pedro se empenhasse na traduo da rapsdia para o cinema? De qualquer forma, possvel a traduo ou a transposio literal?

    Macunama foi escrito no final da dcada de 20, dcada do Modernismo, perodo extraordinariamente polmico e revolucionrio, que determinou, no Brasil, uma produo cultural renovadora, mas tambm profundamente contraditria. O quadro do modernismo brasileiro absorvia e harmonizava ficticiamente tendncias ideologicamente opostas como a psicanlise, o marxismo, o cristianismo, o liberalismo e o conservadorismo. Era uma poca mais de descoberta do que de reflexo e definio. Nesse momento, Mrio se lana na aventura de escrever Macunama, definida como rapsdia, que seria a obra mais expressiva do nosso modernismo. Na tentativa de identificar o carter brasileiro, as razes inconscientes de sua nacionalidade, procura expressamente se submeter s formas de criao popular coletivas, apenas montando elementos colhidos do decameron indgena de Koch-Grnberg e de "outras lendas, casos, brinquedos, costumes brasileiros ou afeioados no brasil". Entretanto, concretamente, Mrio retoma, seleciona e organiza a matria mtica e lendria num discurso literrio. Sendo o mito uma forma fechada, cuja maior funo a despolitizao do real e a arte seu contrrio, isto , uma atividade de descoberta. nesse sentido que nasce o novo Macunama, portador e deflagrador das contradies bsicas do tempo em que se insere. E exatamente pela contradio da distncia entre mito e literatura que se pode perceber o sentido maior da rapsdia de Mrio. No sentido ambguo prprio literatura e imposto estrutura rgida do mito. Fez-se um espao. E foi esse o espao percorrido por Mrio e por Macunama no ano de 1928.

    A dcada de 60, por sua vez, retoma em novos termos, a proposta modernista de descoberta do Brasil. Em 22, falava-se em independncia cultural como em 60 falava-se em independncia econmica. A experincia de 22 tentava definir uma nacionalidade: pesquisar suas razes, descolonizar a cultura brasileira. A preocupao da produo cultural de 60 era, ainda, a descoberta do Brasil, mas agora em termos de sua estrutura social e econmica. a poca dos movimentos organizados do CPC e MPC pela popularizao da cultura, e, no perodo ps-64, da grande efervescncia intelectual e artsticas onde manifestaes como o Teatro de Arena, o Teatro Oficina, o Cinema Novo, o Tropicalismo, refletem uma tomada de conscincia por parte dos produtores de cultura frente aos problemas do pas e do seu pblico. nesse momento que Joaquim Pedro "adapta" para o cinema a rapsdia modernista. Nesse caso dois aspectos merecem ateno: primeiro, ao contrrio de Mrio, a distncia crtica estabelecida frente ao texto original. Segundo, as implicaes especficas da passagem do discurso literrio para o cinematogrfico.

    PROBLEMAS DA ANALOGIA

  • Diante da adaptao para o cinema de um texto literrio, as investigaes dos formalistas e dos conteudistas se unem sempre ou na superposio do livro e do filme, ou na busca abstrata da linguagem cinematogrfica. De qualquer forma, encaram sempre o filme com uma referncia - o livro - para controlar se se produz a transposio cinematogrfica, se existem ou no no filme o chamado cinema puro (mito da linguagem absolutizada), ou ainda, para ver quem trai quem. O preconceito que estabelece o status e a aura da literatura como "forma superior de arte" parece que no pode ser questionado. E a adaptao, se por um lado se beneficia desse status, por outro traz consigo a desvantagem de uma leitura onde o filme geralmente visto apenas como expresso secundria e parasitria do livro.

    O que vem a ser adaptar? Geralmente, o cineasta sem idias ou procurando o aval da notoriedade de um texto literrio, utiliza apenas seu argumento num espetculo j desvinculado da significao maior do texto. H ainda casos em que um cuidado maior procura a "transcrio" do texto original. E h outros ainda, quando uma obra estabelece luta com a outra: a distncia entre a primeira interpretao e a Segunda justamente o elemento gerador da nova forma artstica.

    Numa tentativa de examinar o filme como expresso dessa distncia, que caminho entre tantos possveis tomou Joaquim Pedro frente ao genial texto de Mrio?

    Mrio, ao literatizar um discurso mstico preexistente, imprime a esse discurso uma nova dimenso. Assim como Macunama, que une as lendas e os mitos entre si, se subtrai da ordem mgica para poder prosseguir viagem, destituindo, conseqentemente, essa mesma ordem, Mrio, que costura as lendas para instalar uma narrativa contnua, destri o sentido absoluto dessas lendas pela organizao literria. Da mesma forma, assim como Macunama tenta controlar o discurso civilizado e desconhecido da cidade num processo de reduo, Mrio utiliza o mesmo processo ao imprimir um tipo de controle literrio ao espao desconhecido e irracional do mito.

    Por sua vez, Joaquim, ao cinematizar o discurso literrio de Mrio, faz o mesmo. Se o discurso literrio tende naturalmente a racionalizar o mtico, o discurso cinematogrfico concretiza o literrio.

    Neste ponto, algumas consideraes tornam-se imprescindveis. A diferena fundamental entre palavra e imagem consiste na palavra pertencer a um cdigo fortemente organizado enquanto que a imagem a simples analogia do objeto real. Assim sendo, no h, como na palavra, a distncia efetiva entre significante e significado, distncia essa responsvel pela possibilidade que a palavra tem de abstrair e de conceituar. A imagem , antes de tudo, uma imagem, e reproduz o espetculo do qual apenas significante. No , como a palavra, um signo convencional, codificado, mas apenas a pseudopresena daquilo que ela contm. O espetculo filmado pode ser "natural", "realista" ou "fantstico", mas o filme X?X mostrar o que mostra. Fato esse que exclui do lxico do cinema os termos abstratos.

    The film, by arranging external signs for our visual perception, or by presenting us with dialogue, can lead us to infer thought. But it cannot show us thought directly. It can show us cyharacters thinking, feeling, and speaking but it cannot show us their thoughts and feelings. A film is not thought; it is perceived.1

    Ou seja, a palavra mais livre em relao ao objeto expressado, apesar de menos eficiente na representao objetiva do mundo real. A imagem, embora traga a vantagem desse mundo real, sofre o que se costuma chamar de o "demnio da analogia". A presena do objeto real decalcado pela fotografia traz consigo a contundncia de sua presena, dificultando ao cineasta a tarefa de dizer alguma coisa. nesse sentido que o cinema tradicional afirma a prioridade doe espetculo e do argumento sobre o discurso crtico.

    O escritor, geralmente, no opera com a imagem do objeto mas com seu significado. A descrio literria no , ento, um meio para substituir a imagem pela palavra: determinada estrutura lingstica que utiliza diversas combinaes fonticas, diversas grandezas semnticas e rtmicas. Em literatura, o autor no se ocupa dos objetos, mas das palavras. sabido que o escritor vai sempre em busca de relaes novas entre palavras e objetos, o que constitui uma de sua principais tarefas. Naturalmente, fotografia e

  • objeto no so a mesma coisa: a relao entre ambos bem mais rgida. a que a descrio literria e a cinematogrfica se separam. Enquanto a literatura sugere, o cinema no pode escapar de mostrar. A descrio literria recompensa a falta da presena do objeto, reelaborando esse objeto dentro das imensas possibilidades da palavra. Os vazios, as parcialidades ou a ironia da descrio literria so exatamente sua fora sugestiva. O cinema, por sua vez, segue outro caminho. Em vez de se deter na reelaborao do material, utiliza a montagem desse material - alternncias, superposies, elipses - e se interessa prioritariamente pelo argumento. Assim sendo, o cinema, como a arte da evidncia, conjugado, ao contrrio da literatura, sempre no tempo presente, nutre-se fundamentalmente do acontecimento que existe e fala por X?X. Premissa essa que estabelece um novo sentido para o inverosmil.

    O cinema , basicamente, a "iluso da verdade". No teatro, a presena fsica dos atores e a necessidade de um palco denunciam a irrealidade do espetculo. No cinema, sem interrupes em atos e sem palco, temos a tela, que BA??in chamou de "janela para o mundo". Tudo leva o espectador a se identificar passivamente e acreditar na verdade" do que se passa.

    Una caracterstica singular del cine es su completa despreocupacin por las motivaciones.m Entiendo por motivacin la explicacin de la estructura del argumento desde el punto de vista ambiental. En el sentido ms .ato del trmino, nueswtra escuela (morfolgica) entiende por "motivacin" cualquier justificacin semntica de la estructura artstica.2

    A motivao, ou seja, um apoio verossimilhante fundamental na literatura. No cinema, pelo contrrio, a presena do acontecimento sua prpria explicao. Num filme quase nunca perguntamos: Por qu? De que maneira? H uma coincidncia? Tudo mostrado e temos o (talvez mau) hbito de acreditar no que vemos. a primazia da evidncia da imagem.

    A grosso modo, a leitura de um filme bem mais simples do que a de uma obra literria: suas descries so imediatas, os fatos parecem evidentes e claros; so as imagens e no as palavras que fazem o relato.

    Es sobre todo una necesidad del hombre moderno (esse hombre moderno que es coetneo, o casi, de la novela) reconocerce no ya en un rito trgico o en celebracin heroica, no slo en una contemplacin lrica, sino en una sucesin de hechos puramenteb humanos, terrestres, concatenados por motivos profanos: en suma, en una historia. Y "el cine - observaba tiempos atrs I. Calvino - es sobre todo esto: una historia humana relatada".3

    Assim o discurso cinematogrfico tende, por natureza, a tornar concreto e evidente o sentido alusivo da literatura.

    Como exemplo, as seqncias 0 e 1 do filme Macunama de Joaquim Pedro de Andrade.

    [Seqncias 0 a 1]

    Se Mrio, no primeiro momento de sua rapsdia apresenta o heri de nossa gente, no modo pico e solene, Joaquim, no s por contingncia do discurso cinematogrfico, mas tambm por opo evidente, trabalha este episdio inicial parodisticamente.

    O filme comea com os letreiros sobreimpressos na imagem fixa de terra e vegetao verde-ouro, tons que se explicitam com a trilha sonora Desfile aos heris do Brasil4 de Villa-Lobos, hino patritico, cujo refro - "glria aos homens-heris dessa ptria, a terra feliz do Cruzeiro do Sul"- repetido enfaticamente.

    A seqncia 1, composta de 6 planos, interrompe o hino e nos traz Macunama.

    Plano1 - Interior da maloca. Plano americano fixo. Uma velha de rosto duro e seco (o ator Paulo Jos) mostrada da cintura para cima, berra e faz esforo.

    Plano2 - Plano americano (da cintura para baixo) da velha, de onde o heri (Grande Otelo) cai

  • verticalmente no cho, com a boca na terra, gritando.

    Plano3 - Rosto da velha dizendo: - "Pronto, nasceu."

    Plano4 - Plano geral da tapera. A velha recua para fumar, enquanto Jigu e Maanape vestem na "criana" uma camisola amarela. A me pergunta:

    Me.- Homem ou mulher?

    Maanape.- homem, mo!

    Jigu.- Olha a cara dele, me, bonitinho, no?

    Me.- O xente! Que menino feio danado!

    (Macunama berra mais alto)

    Manaape.- A senhora tambm no nenhuma beleza!

    Jigu (para Macunama).- Chora no, irmozinho, feira no documento.

    Manaape (para a me, ainda irritado).- E nome, ele vai Ter no?

    Plano5 - Close do rosto malvolo da velha dizendo: "Fica sendo Macunama ( parte, para os espectadores).- Nome que comea com ma tem m sina."

    Plano6 - Plano fixo d Jigu, levantando e "aclamando" o heri, acompanhado do vozerio em off: "Macunama, heri de nossa gente."

    Ouve-se, ento, j na passagem para a seqncia 2, a voz profunda de um narrador: "Foi assim, no lugar chamado Pai da Tocandeira, Brasil, que nasceu Macunama, heri de nossa gente."

    Ainda sobre a impresso do hino herico, podemos observar a primeira vario do trabalho de Joaquim. Se o heri do livro nasce num local sugestivamente vago, como o fundo do mato virgem, o heri do filme transportado para o interior da maloca. E essa maloca construda com folhas secas de bananeira e terra. Se por um lado o filme, pela presena da imagem, situa e, conseqentemente, empobrece o aspecto alusivo da descrio literria, Joaquim recupera a fora simblica de sua descrio pela mise-en-scne. Bananeiras secas e terra so a cenografia ironicamente expressiva do heri de Joaquim. Na mesma linha alegrica, a ndia # tapanhumas concretiza-se na imagem dura, implacvel, mas um pouco cmica, de um travesti dando luz. E nasce, tomando o quadro, Macunama-Grande Otelo em direo terra. "-Pronto, nasceu."

    O partido de Joaquim j est tomado. Ao contrrio de Mrio, seu heri nasce em close. O filme mostra, bem de perto, um produto meio absurdo, meio grotesco, meio engraado: um heri que, logo no parto, se planta na terra.

    J nesse primeiro momento do filme, fica evidente a independncia da leitura crtica e radicalizante do cineasta: o close das contradies de um personagem definido e circunstanciado.

    Nascido o filme, as atribuies do heri vm em forma de dilogo, num plano mais aberto que situa a tapera com suas redes e habitantes: Jigu, Manaape, a me, o beb. Manaape afirma que o heri homem: a velha que feio, desmentindo Jigu. Como a imagem de Grande Otelo torna evidente que o heri do sexo masculino e como beb, bastante feio, o dilogo serve no para identificar o heri, mas para caracterizar quem fala. A me hostil, Jigu amvel e Manaape o chefe.

    O recuo da cmera, abrindo o campo, que s se d neste momento, descreve e situa a famlia de

  • Macunama. E quando Manaape pergunta: "E nome, ele no vai ter no?", um corte aproxima de novo. O rosto sinistro da velha diz para os filhos: "Fica sendo Macunama." E voltando-se para a cmera, ou seja, para os espectadores, em tom mais grave: "Nome que comea com ma, tem m sina."

    Em M. A. temos "Essa criana que chamaram de Macunama.

    Aqui, de perto, a figura da me niomeia Macunama, e, saindo do filme, ou seja, denunciando que se trata de um material "atuado", nos avisa sobre o malfadado destino do heri. Esse distanciamento, estabelecido pelo ator ao se dirigir diretamente ao pblico, compromete as leis da "iluso da verdade" e redobra a fora da predio: m sina.

    Novo corte traz um plano fixo onde Jigu, jogando o beb para o alto, grita com entusiasmo: Macunama, heri de nossa gente." importante notar que a voz de Jigu se faz acompanhar de um coro no identificado (em off). A imagem de aclamao, ironizada pela cenografia e pela prpria escolha dos atores. Entretanto, a voz coletiva e sagra nosso heri, ainda que o espectador receba uma imagem carregada de humor. Macunama-Grande Otelo, fazendo caretas, de camisolo amarelo, suspenso por Jigu-Milton gonalves, sobe para os ares como heri de nossa gente. Ainda sobre essa imagem, um narrador conduz para a prxima seqncia (exterior da maloca, dia. Ao no meio da famlia) com voz profunda, com a solenidade do hino patritico, e sumariza o que foi visto: "Foi assim, num lugar chamado Pai da Tocandeira, Brasil, que nasceu Macunama, heri de nossa gente." importante observar que a narrao, que vem posterior demonstrao, situa o nascimento do heri com preciso: Pai da Tocandeira, Brasil. Em Mrio: "No fundo do mato-virgem nasceu Macunama...

    Enquanto a brasilidade do heri de Mrio de Andrade era sugerida por indcios como "mato-virgem", "ndia tapanhumas". Etc., o Macunama de Joaquim, que nasce emborcado na terra e aclamado pela populao, tem uma nacionalidade textualmente declarada: nasce no Brasil. Se Mrio estava empenhado nas descobertas das razes do "carter brasileiro" - ou da falta desse carter - Joaquim, por sua vez, se interessar pela crtica de um "carter brasileiro" localizado e politicamente definido. Nesse sentido, convm lembrar que, alm da marcha de abertura, a cor dessa primeira seqncia em todos os momentos o verde, o amarelo e a cor de terra.

    PROBLEMAS DA CONOTAO

    O tropo lingstico se funda no choque de semelhanas. Justapondo qualidades similares em objetos diferentes, a linguagem se vinga da desordem aparente da vida. As teorias do simblico demonstram que observamos semelhanas, mesmo na percepo mais simples das coisas. Mesmo frente a um material dspar, a mente elabora semelhanas. Ao que Arnheim5 acrescenta afirmando que uma iluso para ser forte no deve ser necessariamente forte em detalhes. assim que a literatura trabalha: conota e metaforiza esse processo. O cinema, entretanto, no pode trabalhar abertamente com sugestes. A demanda realista da imagem concretiza o nvel alusivo do tropo literrio.

    Comeou-se, ento, a descobrir as possibilidades da montagem. E foi nesse caminho que o cinema recuperou sua qualidade metafrica. O cineasta, pela montagem, escolhe e combina, compara e contrasta, une espaos distantes ao detalhe aproximado, e consegue o equivalente ao tropo literrio.

    Nas seqncias 0 e 1 j analisadas fcil perceber a opo pelo ritmo uniforme de planos longos e imveis que se sucedem abrindo o campo, s em situaes absolutamente necessrias. A escolha da imagem prxima e ritmada inverte o tom mgico dominante em Mrio. O cineasta, nesta apresentao inicial, abre mo da extenso de mobilidade e de variao no espao, que a tcnica de cinema permite e concentra a expressividade no uso dos primeiros planos. O novo Macunama concreto e determinado. Uma nova viagem vai comear. E ele se inicia com a explicao de que o heri come terra, brasileiro e tem m sina. Vejamos:

    [Seqncia7: Exterior. Mata. Dia]

  • A seqncia trata da primeira "brincadeira" de Macunama e Sofar.

    Plano 1 - Plano gerl da mata verdejante, onde se vem grandes rvores, cips, folhas no cho e Sofar acocorada.

    Narrador.- "Sofar era feiticeira. Tirou das partes um cigarro de petum e deu para o menino fumar.

    Sofar (oferece o cigarro).-Fuma!"

    Plano 2 - Plano geral de Macunama-Grande Otelo fumando.

    Narrador.- "Quando deu a primeira baforada..."

    Sons.- rudo de exploso, seguido de arpejos que sugerem, em filmes infantis, transformaes mgicas.

    Plano3 - Plano geral de Macunama. Paulo Jos, transformado em prncipe, na mesma posio do plano 2.

    Plano 4 - Plano geral de Sofar - Que lindo! Os dois examinam Macunama-prncipe. Sofar d nele um abrao deitando-se diz: "Vem aqui vem, voc ficou to bonitinho." Comea baixinho a msica. Macunama: "A no tem muita formiga. Vamos ali no mato?"

    O prncipe d a mo a Sofar que o conduz apressadamente para dentro do mato (a msica aumenta). O mato vazio fica em quadro por um tempo.

    Em Mrio:

    A moa carregou o pi nas costas e foi at o p de aninga na beira do rio. A gua parara pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos bigus e biguatingas avoando na entrada do furo. A moa botou Macunama na praia porm ele principiou choramingando que tinha muita formiga!...e pediu pra Sofar que o levasse at o derrame do morro l dentro do mato, a moa fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajs e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num timo e ficou um prncipe lindo. Andaram muito por l.

    O texto de Mrio sugere poeticamente um local animizado e lrico, moldura eficiente para a transformao mgica em prncipe lindo. A mgica existe no s no fato de transformao, mas paira na atmosfera. Assim, penetrando ainda mais "l dentro do mato" tudo se verossimiliza e se explica.

    Em Joaquim, as coisas no se passam bem dessa maneira. Neste momento, ao contrrio da seqncia 1, os planos so gerais. A mata enche com vigor o quadro. E os personagens, no detalhados, se integram na paisagem. Entretanto,