Artigo Marina
-
Upload
stellitadangelisrocha -
Category
Documents
-
view
255 -
download
1
description
Transcript of Artigo Marina
-
92929292 Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 117, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
QUESTO HABITACIONAL COMO EXPRESSO DA QUESTO SOCIAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Marina Barbosa Pinto
RESUMO __________________________________________________________________________ Neste artigo tratamos do estudo da questo habitacional no Brasil, percorrendo a trajetria da urbanizao brasileira, a partir da problematizao da questo social no Brasil. Desse modo, identificamos a determinao da configurao capitalista brasileira na conformao das cidades, revelando o carter de classe e de excluso inerente ao ordenamento das relaes sociais, expresso de modo claro nas polticas sociais relativas questo. Neste contexto, a questo habitacional, portanto, uma expresso das contradies inerentes relao capital x trabalho no mundo urbano, no qual a cidade uma expresso da luta de classes. Com tal compreenso, a reconstituio das lutas por moradia evidencia a ao dos sujeitos polticos, imprimindo sua marca no enfrentamento cotidiano contra o capital. Palavras-chave: questo social, questo habitacional, urbanizao
ABSTRACT __________________________________________________________________________ In this article we deal with the study of the housing question in Brazil, covering the trajectory of Brazilian urbanization, from the analysis of the social problems in Brazil. In this manner, we clearly identify the determination of the Brazilian capitalist configuration in the layout of the cities, disclosing the characteristics of class and exclusion inherent to the order of the social relations, also expressed in social policies regarding this theme. In this context, the housing question, therefore, is an expression of the inherent contradictions between capital and work in the urban world, in which the city is an expression of the struggle between classes. With this understanding, the reconstitution of the conflicts over housing emphasizes the action of political individuals leaving their mark in their daily confrontation against capital. Key words: social problems, housing issue, urbanization.
Neste artigo, discutiremos a questo social, destacando a questo habitacional como
um componente revelador do ordenamento das relaes sociais capitalistas, dedicando-nos a
indicar sua conformao na sociedade brasileira. Assumimos a concepo que compreende a
habitao no apenas em seu valor de uso, como tambm no valor de troca, o que a caracteriza
como uma mercadoria. Nesse sentido, estabelece-se uma estreita relao entre o acesso
habitao e o nvel de renda da populao. Sendo um objeto de consumo, uma mercadoria, a
Doutora na Escola de Servio Social da UFF; pesquisadora do Ncleo Trabalho, Poltica e Movimentos Sociais (ESS-UFF) [email protected].
-
93939393
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
habitao que culturalmente definida como o lugar onde se desenvolvem as atividades
cotidianas necessrias sobrevivncia de cada um e tambm reproduo da fora de
trabalho1 constituda por um sentido amplo que considera o seu entorno fsico, como a
paisagem, o caminho e tambm a convivncia coletiva e de vizinhana. Ao estudar a questo
habitacional, entendemos que ela se constitui como parte do complexo e contraditrio
processo de estruturao urbana da sociedade capitalista.
ESPAO URBANO E CAPITALISMO
O debate sobre questo habitacional remete ao debate sobre as cidades. Consideramos
que a anlise de Engels2 a respeito da destruio da manufatura e do surgimento da grande
indstria nos fornece subsdios importantes para entender a conformao das cidades, partindo
de uma compreenso bsica de que estas so constitudas a partir de determinaes histricas.
Destacamos como determinante para a conformao do espao urbano o
desenvolvimento da grande indstria e, por conseguinte, o surgimento de um montante grande
de capital a ela vinculado. Originam-se da dois movimentos: um, o fluxo migratrio (a
populao se dirige s cidades em busca de oportunidades emprego em especial); outro, a
adaptao do espao produo de mercadorias. Nesse processo se mesclam as aes das
empresas e do Estado.
Entretanto, as condies habitacionais no atendiam s demandas e propiciaram o
aparecimento de surtos endmicos pelas condies miserveis e anti-higinicas em que os
proletrios foram obrigados a se alojar. Paralelamente, a concentrao de trabalhadores
favorecia o processo de politizao.
A burguesia, sentindo-se ameaada tanto pelas doenas que podiam afetar o chamado
exrcito industrial de reserva, como pela disseminao de idias revolucionrias, reage
demolindo imveis em nome de uma renovao urbana, o que provocou a criao de
1 FERRAZ, S.M.T. Espao e tempo: moradia e cotidiano. Textos para Leitura, Niteri, FF/FAU/Departamento de Arquitetura, 2000 [mimeo.]. 2 Encontramos uma importante e complexa descrio das condies habitacionais da classe operria inglesa no perodo da Revoluo Industrial em: ENGELS, F. A situao da classe trabalhadora na Inglaterra. Porto: Afrontamento, 1975.
-
94949494
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
condies para a especulao imobiliria (altos aluguis) e o deslocamento dos alojamentos
precrios dos trabalhadores. Ficava claro, segundo Engels3, que a inteno da classe
dominante no era resolver o problema habitacional e, sim, pressionar a classe trabalhadora
para seguir vendendo sua fora de trabalho, no caso para poder ter acesso moradia, e
tambm ter controle dessa fora de trabalho, submetendo-a a moradias construdas pelo
patronato.
A cidade constituiu-se, ento, como um lugar importante para a materializao do
capital e decisivo para as metamorfoses necessrias consolidao e expanso do sistema
capitalista; como tambm se tornou o lugar onde a habitao se transformava em uma
mercadoria produzida sob as relaes capitalistas e, portanto, destinada ao lucro. A
reorganizao interna das cidades resultado da ao de diferentes agentes que tm interesses
diversos e, por vezes, antagnicos. Concorrem para a definio do perfil da cidade o Estado,
as empresas, as imobilirias, os donos da terra urbana e a populao trabalhadora. Pode-se
afirmar que:
[...] o solo urbano [...] traduz a existncia de uma luta social por usos diferenciados, que ganha contornos mais claros quando se considera que, possa ser tambm esse solo terra de habitao, os mecanismos econmicos e jurdicos que geram remoo, localizao diferencial e controle implicam a segregao social e espacial de amplos segmentos da populao metropolitana.4
Seria simplificar o tema ao explicar sua configurao na contemporaneidade apenas
pela relao desequilibrada entre oferta de imveis e demanda populacional, o que
apresentado pela concepo dominante. Seus contornos atuais se devem relao
investimento x rentabilidade. Apesar de ser um equipamento imprescindvel ao processo de
produo e acumulao de capital, ele tem um custo alto e no rentvel em tempo e
quantidades semelhantes a outras opes facilmente ao alcance dos capitalistas.
O fluxo contraditrio dessa mercadoria determinado pela propriedade privada do
solo urbano, que exige renda monetria para que se possa ocup-lo. Entretanto, essa renda no
3 ENGELS, op. cit. 4 RIBEIRO, A.C.T. Cidade, reivindicaes e equipamentos coletivos. In: O desenvolvimento urbano em questo.
Textos Didticos. Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ, 2001. p. 46.
-
95959595
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
provida, minimamente, a todos. Agrega-se a isso a necessidade de manter uma parcela da
populao em condio de reserva para controle dos gastos do capital com a fora de
trabalho, parcela esta que no possui nenhuma condio de pagar pelo uso do solo urbano.5
Depreende-se da que h uma inter-relao estreita entre dois componentes da
configurao capitalista que explica a inacessibilidade da maioria da classe trabalhadora
habitao urbana: a apropriao monoplica da terra e a superexplorao da classe
trabalhadora. Cabe tecer algumas consideraes sobre esses dois componentes, a fim de
termos a real dimenso da inter-relao entre os dois processos.
Apoiando-nos nas elaboraes de Marx sobre renda fundiria, compreendemos que a
terra, originalmente um bem natural no-mercantil, adquire valor de troca na medida em que
incorpora trabalho social existente nos investimentos pblicos. A contradio do uso da terra
a contradio do sistema que organiza as relaes de produo dos bens materiais e as
relaes sociais nesse tempo presente: ainda que a terra incorpore trabalho social e seja em
potencial um bem a ser usufrudo por todos; ela se constitui em um bem apropriado
privadamente determinado pelo seu valor de troca no mercado.6 Nesse quadro, a terra ao
mesmo tempo condio de produo do capital e condio de vida da classe trabalhadora. No
sistema capitalista, o problema fundirio reside na apropriao monopolizada de alguns sobre
a terra, ao mesmo tempo em que ela necessria produo de moradia da classe
trabalhadora. A especificidade do monoplio da terra urbana est no fato de que, apesar de
no poder ser reproduzida no e pelo processo de produo e circulao de mercadoria, ela
permite ao dono da propriedade tributar a produo e circulao de mercadoria, concorrendo
para a distribuio da mais-valia sem concorrer para sua gerao e realizao7.
A terra perdeu poder de interferir, como elemento decisivo, no processo de produo
da ordem capitalista visto que, a partir do desenvolvimento dessa ordem, a relao que
5 A relao entre renda monetria e ocupao do solo urbano est bem desenvolvida em: SINGER, P. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: MARICATO, E. (Org.). A produo capitalista da casa (e da cidade no Brasil industrial). So Paulo: Alfa-Omega, 1982. p. 11-13.
6 Autores como Lefebvre e Harvey atualizam esse debate. HARVEY, D. A justia social e a cidade. So Paulo: Hucitec, 1980; LEFEBVRE, H. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
7 LIMA, S.L.R. A questo social, questo habitacional e sua especificidade na realidade brasileira. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2003. p. 19 [mimeo.].
-
96969696
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
determina sua especificidade nesse contexto passa a ficar subordinada s leis de produo e
distribuio de mais-valia. Isso altera a origem do rendimento do proprietrio de terra, que
passa a obt-lo quando o uso da terra possibilita um lucro acima do lucro mdio.8 Cabe
considerar que a terra e suas benfeitorias so mercadorias diferenciadas de outras pelo fato de
no poderem ser deslocadas com liberdade, o que acarreta especialidade de significao do
valor de uso e troca dessas mercadorias. O dono da terra, que tem localizao absoluta, tem o
poder de determinar seu uso. O solo e as benfeitorias no podem ser dispensados na
organizao da vida da sociedade.9
Ainda que a terra tenda a assumir um lugar menos influente na definio do processo
de produo social da ordem do capital, ela segue sendo necessria expanso do ciclo do
capital. No outro extremo, temos a superexplorao da classe trabalhadora como uma
expresso intrnseca da nova configurao capitalista, revelada de modo mais cruel na
privao econmica, social, poltica e cultural a que est submetida a maioria da populao,
enquanto o desenvolvimento econmico, tecnolgico e cientfico proporciona condies
excelentes de bem-estar a poucos indivduos.
Em sua corrida desenfreada pela acumulao e expanso do capital, o sistema
capitalista refratrio a qualquer tipo de controle social10 e, ao contrrio, concentra suas aes
no controle do trabalho e da fora de trabalho. Com o objetivo de obter maior rentabilidade na
relao custo x benefcio, o sistema organiza aes e relaes que propiciam uma maior
explorao da classe trabalhadora, aproximando o custo de zero e elevando o benefcio ao
mximo.
Nos momentos de crise do sistema11, h uma reorganizao das relaes que, na
atualidade, tm como eixo a integrao monopolstica global. Nesse contexto, a
mundializao, a reconverso produtiva e o neoliberalismo so reaes da classe dominante
a burguesia crise de acumulao e expanso do capital. Nessa conjuntura, acirra-se a
8 RIBEIRO, L.R. e PECHMAN, R.M. O que questo de moradia. So Paulo: Brasiliense, 1983. 9 Para aprofundar o tema: HARVEY, op. cit. 10 M SZROS, I. A ordem de reproduo social metablica do capital. Londres: Merlin Press, 1995. p. 6. 11 Compartilhamos das idias que afirmam ser as crises fases de recesso e depresso do capitalismo,
correspondentes lgica do sistema e no a elementos casuais e/ou acidentais. Apoiamo-nos nos estudos de MANDEL, E. A crise do capital. Campinas: EdUNICAMP/Ensaio, 1990.
-
97979797
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
disputa e a concorrncia intercapitalista e a busca de superao da crise geram a perseguio
incessante da reduo de custos e aumento de lucratividade no processo de produo.
classe trabalhadora reservado um recrudescimento da explorao por meio de novas configuraes nas relaes de compra e venda da sua fora de trabalho, bem como uma
destruio permanente do arcabouo jurdico-social de reconhecimento e efetivao de
direitos concernentes sua reproduo. Profundas mudanas ocorrem e desnudam o grau de
explorao da fora de trabalho: restrio de postos de trabalho, diversificao de atividades,
fim de atividades laboriais, desemprego estrutural, precarizao de contratos de trabalho,
perda de direitos sociais e trabalhistas.
A inter-relao entre os dois componentes estudados a apropriao monoplica da
terra e a superexplorao da fora de trabalho ganha sentido no contexto mais geral das
relaes sociais que, na atualidade, so determinadas pela dissociao crescente entre
necessidades humanas e as necessidades da acumulao. essa crescente dissociao que produz a escassez.12 Cabe destacar que esse quadro, por no se circunscrever somente
economia e poltica, invade a totalidade da vida social, acarretando a conformao de uma
nova sociabilidade.
Uma racionalidade de cariz pragmtico e produtivista ala a competitividade, a eficcia e a rentabilidade ao patamar de nicos critrios vlidos para orientar as anlises e decises sobre a vida em sociedade, contribuindo para acarretar forte dessolidarizao, expressa no culto ao individualismo, no cultivo da concepo fragmentria do social, na desqualificao da coisa pblica, na descrena no potencial emancipatrio das classes trabalhadoras.13
Nesse contexto, o papel do Estado ganha destaque, visto sua relao com a promoo e
garantia das condies para a efetivao das novas modalidades de acumulao capitalista.
Portanto, imprescindvel ressaltar, com o objetivo de elucidar melhor o tema em discusso,
o papel do Estado na reproduo das relaes sociais, envolvendo-se diretamente na expanso
da economia, favorecendo e subsidiando sua expanso, bem como retirando os empecilhos
acumulao e ao empreendimento capitalista. Nessa fase, o Estado assume as funes de
12 Ver: NETTO, J.P. Cinco notas a propsito da questo social. Temporalis, ano II, n. 3, Braslia, ABEPSS,
2001.
-
98989898
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
regulao e ainda que na atualidade o discurso seja contrrio a isso, a efetividade da ao do
Estado em prol da reproduo das relaes sociais capitalista facilmente comprovada.
J sinalizamos a importncia de no considerarmos o Estado como um ente
desconectado das relaes sociais, ao contrrio, ele a expresso destas; bem como de que
priorizar a dimenso poltica da realidade reduz a uma compreenso dicotomizada da relao
produo/distribuio, no dimensionando a determinao da primeira sobre a segunda,
reforando assim a viso de cidadania dominante, diluindo a prpria ao do Estado nesse
contexto.
Retomando o tema da habitao, o papel do Estado vai ser facilmente visualizado na
seletividade do investimento pblico (infra-estrutura, equipamento coletivo, normatizao e
fiscalizao do uso do solo) que encobre o segredo da valorizao da terra. A interveno
do Estado acaba por estruturar a cidade e ordenar a questo habitacional em favor dos lucros
da iniciativa privada. Partimos da constatao de que a questo habitacional, para ser
resolvida, nos marcos do sistema capitalista, precisa enfrentar a propriedade privada da terra e
os limites do mercado consumidor. Isso nos leva a concluir que a questo habitacional
intrnseca ao sistema e revela a profundidade da questo social no capitalismo.
A habitao guarda particularidades que a diferencia das outras mercadorias de
consumo privado. Ela envolve produo e circulao e requer um investimento de capital e
tempo que acaba por distanciar em muito o custo do valor dos salrios de boa parte dos
trabalhadores. Ela exige financiamento prvio, a produo e a comercializao, o que, para o
capitalista, pode significar perda de capital ou, no mnimo, no-retorno em tempo hbil. Por
conseguinte, h determinantes macroeconmicos como o perfil de gerao e distribuio de
renda da sociedade e as relaes de associao entre as instituies reguladoras do solo urbano
e a produo de moradia que delineiam a questo habitacional em um dado tempo e espao.
Na ordem estabelecida, a questo habitacional funde propriedade e capital, configurando uma
expresso da seletividade e segregao social que se ampliam na organizao da cidade.
Aqui cabe um parntese sobre a luta por moradia. O risco tratar a questo dissociada
das relaes sociais de produo, transferindo o conflito para a esfera da reproduo/consumo,
13 LIMA, op. cit., p. 21.
-
99999999
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
deixando sua resoluo sorte da negociao dos trabalhadores com o Estado, o que dilui a
compreenso do capital como um dos adversrios reais da classe trabalhadora em sua luta pela
sobrevivncia. Despreza-se, assim, a totalidade das relaes sociais e que a reproduo destas
, de fato, a reproduo da totalidade do processo social que envolve todo o modo de viver
dos indivduos em sociedade.14
Por tal caminho, absorve-se, em tese, que as contradies urbanas so oriundas das
desigualdades no acesso aos servios e bens de consumo coletivos; mas se do na prtica
como componente restrito luta democrtica, desembocando o debate [...] na questo da
cidadania, que, sem os devidos cuidados, pode tornar-se [...] um culto chamada sociedade
democrtica15.
Concordamos com Ikuta16, que destaca dois processos que se interligam: o primeiro
a desresponsabilizao do capitalista sobre o custeio de um item necessrio reproduo da
fora de trabalho a habitao , sobrecarregando o trabalhador. O segundo o deslocamento
do conflito por moradia para o mercado. Para superao dessas dicotomias, necessrio
conceber a questo da habitao como um fenmeno radicado na produo e reproduo da
totalidade social e no como uma carncia explicada pela relao oferta x demanda restrita a
ser atendida pela mediatizao do Estado.
Retomamos nossa afirmao de que a questo da habitao no decorrncia da
relao oferta x demanda, mas sim de mltiplas determinaes que caracterizam sua
complexidade. Ela determinada pelo desenvolvimento do capitalismo no urbano como parte
de suas contradies sociais.17 Essas contradies se constituem da propriedade privada e do
aparato jurdico que a garante e da diviso social e tcnica do trabalho que coloca os
trabalhadores dependentes do consumo de bens coletivos. A atualidade agrava essas
contradies na medida em que, para subsidiar a superao da crise de acumulao do capital,
o Estado deixa de formular e executar polticas pblicas universalizantes. Esse quadro
14 Para aprofundar o debate entre esfera de produo e reproduo, ver: IAMAMOTO, M. e CARVALHO, R.
Relaes sociais e servio social no Brasil. So Paulo: Cortez, 1983. p. 70-74. 15 IKUTA, F.K. A luta pela moradia e o mundo do trabalho: unificando o caracol e sua concha. Pegada,
Presidente Prudente CEG e TIFCT/UNESP, v. 2, n. 2, p. 3, out. 2001. 16 IKUTA, op. cit. 17 Ver: GOHN, M.G.M. Reivindicaes populares urbanas. So Paulo: Cortez, 1982.
-
100100100100
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
exacerba a explorao da classe daqueles que vivem do seu prprio trabalho, reforando a
seletividade e a segregao social.
TRAJETRIA DA URBANIZAO BRASILEIRA E QUADRO ATUAL
Do nosso ponto de vista, no interesse levantar as mincias, mas sim, a lgica que
presidiu a urbanizao na relao Estado-capital-trabalhadores. nessa relao que se materializa a ao dos sujeitos que tm suas aes enredadas pelo processo de criao e
expanso do capital, no qual o Estado tem papel preponderante como indutor, que subordina
as necessidades humanas. Essa trajetria desnuda os mecanismos de controle social que
buscam difundir e consolidar as aes de dominao capitalista que inova nas formas de
explorao da classe trabalhadora e avana em uma contra-ofensiva ideolgica de supremacia
do pragmatismo, influenciando decisivamente os contornos da constituio do espao urbano
no pas.
So muitas as lutas nesse processo de urbanizao que objetivaram reduzir as
desigualdades sociais no espao urbano, mas, na trajetria da urbanizao brasileira, ficam
evidente os limites do projeto burgus de modernidade, que propunha igualdade de
oportunidade de insero poltica e social para todos. Ao contrrio, confirma-se a
determinao da irrestrita liberdade econmica, que confere ao mercado a condio de relao
social no-supervel e que, para o desenvolvimento do capitalismo e organizao das cidades
a seu servio, no deve sequer ser controlada.
Controlar o mercado, afirma Duayer:
[...] , quando menos, um indcio explcito de que o controle consciente da produo possvel e desejvel. E controlar a produo social nada mais significa do que subordin-la a finalidades humano-sociais.18
Podemos afirmar que a urbanizao contribui para uma reduo dos custos dos
processos de produo, circulao e consumo de diferentes mercadorias. de interesse do sistema capitalista estimular o crescimento dos aglomerados urbanos, viabilizando, assim,
18 DUAYER, M. Dinossauros, micos-leo e teoria econmica. Instituto de Economia/UFF, Niteri, 1996
[mimeo.].
-
101101101101
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
uma diminuio no tempo de produo, uma rapidez na circulao do capital, bem como uma
maior integrao entre os agentes do processo produtivo.
Entender a urbanizao brasileira pressupe conhecer algumas particularidades da
industrializao do pas. A principal caracterstica desta que ela se processou posteriormente
fase do capitalismo concorrencial, o que a qualifica como uma industrializao tardia. A
insero do pas no circuito de valorizao do capital, priorizando a economia industrial em
detrimento da agroexportadora, d-se j na fase monoplica19 e sob a hegemonia do capital
financeiro.
Aqui destacamos que a trajetria das cidades no Brasil inicia-se antes do processo de
industrializao. Quando a economia era baseada na monocultura voltada para a exportao,
constituiu-se uma rede de cidades que sediavam o capital comercial; a se localizaram os
aparelhos burocrticos do Estado e os que se destinavam ligao entre a produo brasileira
e o circuito internacional de mercadorias.
Essa urbanizao sofre profundas alteraes quando a cidade assume tambm a funo
de aparelho produtivo industrial. A nova urbanizao ocorre tendo dois processos combinados
como seus determinantes: um, a atrao que os capitais, agora desenvolvidos nas cidades,
exercem sobre a populao do campo; outro, a inexistncia de uma diviso social do trabalho
entre o campo e a cidade.20
A industrializao no Brasil basicamente urbana, com um abundante exrcito
industrial de reserva, o que gera um perfil de cidade com crescimento do setor tercirio e da
economia informal, visto que a taxa de urbanizao era superior ao que o processo de
industrializao podia absorver. Nesse quadro, o papel do Estado no pode ser secundarizado,
pois se configurou como articulador central do novo modelo de acumulao. Concentrou seus
esforos e aes em regulamentar leis trabalhistas, favorecendo as relaes entre capital e
trabalho e a organizao do mercado de trabalho. Atuou tambm como facilitador de
transaes comerciais e financeiras entre fraes da burguesia, solapando a economia
19 Netto analisa com propriedade essa fase do capitalismo, em que grupos de monoplios controlam a produo,
j internacionalizada, por cima de povos e Estados. NETTO, J.P. Capitalismo monopolista e servio social. So Paulo: Cortez, 1982.
20 Para aprofundar o tema: OLIVEIRA, F. O Estado e o urbano no Brasil. Espao & Debates, So Paulo, n. 6, p.
-
102102102102
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
agroexportadora., bem como passou a agir diretamente em setores produtivos, assumindo um
papel de indutor do processo de acumulao do capital.
O fato de que tenha havido, no segundo ps-guerra, uma ampliao dos pases
socialistas, gerou uma restrio de espao para exportao de capital e mercadoria e, tambm,
de abastecimento de matria-prima por parte do capital. Acrescente-se a ampliao de
conquistas democrticas nos pases centrais que, originrias da presso dos trabalhadores,
impem ao Estado uma nova postura frente reproduo da fora de trabalho, fazendo-o
assumir parte de seus custos.
As demandas geradas pelo movimento de internacionalizao do capital produziro
impactos importantes no Brasil. O avano da industrializao nos circuitos perifricos
processa novos patamares de definio do papel do Estado e uma alterao na composio da
estrutura de classes. A complexificao da diviso social do trabalho faz crescer o nmero de
trabalhadores improdutivos e dos absorvidos pelas grandes empresas, o que resulta no
surgimento de uma camada mdia de trabalhadores e o crescimento de exrcito industrial de
reserva.
O quadro brasileiro reserva particularidades determinadas no s pela conformao das
contradies geradas diretamente pelo processo de produo social da riqueza, como tambm
pelo papel do Estado na urbanizao, como agente potencializador do capital privado e rbitro
da distribuio de excedente social entre os oligoplios. A urbanizao , portanto,
constitutiva do processo de desenvolvimento capitalista, visto que subordinada aos padres
de acumulao.21
Por conseguinte, ela tem a marca das classes sociais e se realiza por meio do
favorecimento das demandas da burguesia e das classes mdias em detrimento dos interesses
da grande maioria da populao: os trabalhadores. A urbanizao brasileira baseia-se na
racionalidade da modernizao excludente. Os investimentos que conformam o cenrio da
cidade revelam a segregao social e as diferenas em especial na ocupao do solo e na
distribuio dos agrupamentos, que diferentemente apropriada pelos distintos grupos ou
35-54, 1982.
21 OLIVEIRA, op. cit.
-
103103103103
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
classes sociais.22
A drstica reduo da interveno dos Estados na rea social, redefinindo seu papel,
determinado pelo reordenamento da ao da burguesia, para a superao da crise de
acumulao, nos ltimos 30 anos, refora a submisso da economia (e do social) ao mercado
financeiro e sua lgica. A conseqncia mais catastrfica o crescimento brutal de pessoas
que so postas para fora do mercado de trabalho. Nesse contexto, gestada a chamada
excluso social, originria do processo de superexplorao do capital sobre o trabalho. H
bastante controvrsia em torno do tema excluso social, mas nos atemos construo de
Martins, que a considera de fato uma incluso perversa.23 A nova ordem mundial, baseada
na mundializao do capital, atinge as trs formas institucionais de regulao social exercida,
at ento, pelo Estado:
[...] o trabalho assalariado enquanto forma predominante de insero social e de acesso renda, um sistema monetrio internacional fundado sobre taxas fixas de cmbio, a existncia de instituies nacionais suficientemente fortes para impor uma disciplina ao capital privado.24
Ao se processar uma eroso das regulaes estatais, as corporaes transacionais
objetivam no s a [...] liquidao dos direitos sociais, como o assalto ao patrimnio e ao
fundo pblico.25 Afirmamos que o redimensionamento do papel do Estado no altera o seu
carter de classe, antes o evidencia. Nesse quadro se acirra a luta pela destinao dos recursos
pblicos, delineada pela ampliao de demandas e escassez de recursos. A crise fiscal do
Estado em essncia a disputa de prioridade poltica de investimento a servio de um projeto
estratgico, no caso projeto de reproduo do capital, e financiamento de bens e servios que
viabilizam a reproduo da fora de trabalho. A conseqncia o aumento da mo-de-obra
excedente e da pauperizao, que, combinadas, podem gerar uma reao dos sem-parcela.
22 BIENSTEIN, R. Desenho urbanstico e participao social em processos de regularizao fundiria. Tese
(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de So Paulo, So Paulo, 2002. p. 19. 23 MARTINS, J.S. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre excluso, pobreza e classes sociais.
Petrpolis: Vozes, 2002. p. 23. O autor analisa as formas de incluso propostas pelo capitalismo aos trabalhadores que, em sua opinio, tm como lixo a degradao do trabalho como meio de insero digna da sociedade.
24 CHESNAIS, op. cit., p. 144. 25 NETTO, J.P. Transformaes societrias e servio social. Servio Social e Sociedade, So Paulo, Cortez, n.
-
104104104104
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
A mediao da luta de classes fato e o conflito se desloca para o campo das polticas
sociais. O que est em jogo a luta por condies de existncia diante de desonerao do
Estado do custo da reproduo social.26 Todos esses condicionantes concorrem para o
processo de territorializao da nova dinmica socioeconmica. Logo, a distribuio e o uso
do espao vinculam-se, cada vez mais, reproduo ampliada do capital e se do de modo
desigual, combinando o moderno e o atrasado como expresses de uma unidade que
contraditria e tem por base a racionalidade da busca do lucro.
A materializao dessa racionalidade conforma, por conseguinte, no um espao dual,
mas a expresso no territrio das contradies e antagonismos entre as classes sociais que
compem a sociedade, contradies estas resultantes da apropriao desigual da riqueza
produzida socialmente.
As cidades se organizam de modo a favorecer a nova ordem, respondendo aos
movimentos de reproduo do capital e da reestruturao do mercado de trabalho. Assumimos
aqui, portanto, a definio da cidade como espao que se organiza exprimindo estruturas
societrias mais amplas, com papis vinculados ao contexto histrico-social. Nesse sentido,
concordamos com Cassab, que concebe a cidade como:
[...] o lcus mais complexo, onde se desenvolvem ao mximo a produo e a circulao de bens. Ela , por excelncia, o espao da circulao, no qual os acontecimentos do cotidiano dos seus habitantes se passam no ritmo das necessidades da produo e do consumo das mercadorias e bens simblicos.27
Nas duas situaes histricas, busca-se instaurar uma nova ordem espacial como meio
e resultado de uma nova ordem societria28, produzindo uma reestruturao na configurao e
no papel das cidades.
H uma priorizao das reas metropolitanas como centro da territorializao da nova
dinmica de acumulao. Isso se explica por ser um lugar que concentra as condies para tal,
50, p. 100, abr. 1996.
26 LIMA, op. cit., p. 25. 27 CASSAB, M.A.T. Jovens pobres e o futuro: a construo da subjetividade na instabilidade e incerteza.
Intertexto, Niteri, p. 130, 2001. 28 TOPALOV, C. Os saberes sobre a cidade: tempos de crise? Espao e Debates, So Paulo, n. 34, 1991.
-
105105105105
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
como: presena de grandes empresas e instituies, servios especializados na rea de
comunicao e de finanas, grandes aglomerados de fora de trabalho, equipamentos e infra-
estrutura coletivos, instncias decisrias da poltica etc. A metrpole, conforme caracterizao
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), no se resume a um aglomerado
urbano com populao superior a um milho de habitantes, mas
[...] expresso materializada de novas formas econmicas (oligomonopolistas) e dos novos patamares financeiros e tcnicos do processo de acumulao de capital. Expressa, dessa maneira, o espao urbano-metropolitano poder e expropriao e, tambm, domnio e alienao [...] Metrpole e acumulao configuram, teoricamente, duas faces da mesma moeda.29
A metrpole configura-se como centro articulador da economia em mbito mundial.
Nos estudos sobre a reestruturao do espao urbano com destaque para a(s) metrpole(s), h
acordo de que o papel assumido por esta na atualidade vincula-se s mudanas no regime de
acumulao capitalista. Mas h uma divergncia no que se refere relao entre capital
financeiro e capital produtivo na dinmica da economia e na reestruturao dessas
megacidades. A polmica centra-se na dvida sobre o fato de que a industrializao continue
ou no a ser a fora propulsora da economia. Em nossa opinio, o comando da economia
segue sendo a extrao da mais-valia oriunda da explorao da fora de trabalho no mbito da
produo.30
Caractersticas marcantes das metrpoles so a brutal concentrao de renda e a
segregao social, representadas pela espacializao das classes sociais na cidade. Elas so
explicadas pela contradio entre aumento do desemprego e da informalidade e
subcontratao no uso da mo-de-obra (fora de trabalho), com reduo salarial e queda
vertiginosa da qualidade de vida, e o surgimento de um segmento de classe, uma elite
transacional, que possui acesso ilimitado ao consumo e demanda um novo modo de vida, que
inclui oferta de bens vinculados indstria de turismo, s artes, a shopping centers etc. Nesse
29 RIBEIRO, A.C.T. O fato metropolitano: enigma e poder. Cadernos IPPUR/UFRJ, 1(1), p. 110-125, 1986. 30 SOYE, E.W. Geografias ps-modernas: a reafirmao do espao na teoria social crtica. Rio de Janeiro:
Zahar, 1993.
-
106106106106
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
contexto socioespacial, surgem novas configuraes habitacionais no territrio da metrpole,
em geral em sua periferia, tais como:
a)a instalao de conjuntos habitacionais (muitas vezes construdos com financiamentos do poder pblico) que, por sua vez, acabam por estimular o surgimento de servios e comrcio para o consumo (farmcia, sales de beleza, aougues, pequenos mercados, oficinas etc.); b) instalao em cidades na periferia das reas metropolitanas, objetivando a desconcentrao urbana e preos fundirios mais baixos; c) implementao de novos loteamentos para as classes mdia e alta (no raro em condomnios fechados e chcaras para moradia ou lazer), vendendo idias como: viver bem, segurana, verde, tranqilidade; d) especialmente para as metrpoles dos pases considerados em desenvolvimento [...] acrescentaramos a proliferao de favelas e loteamentos irregulares (moradia daqueles que atualmente, alm de negado o direito cidade, tambm sofrem com a negao do direito ao trabalho, lugares onde equipamentos, servios, infra-estrutura e lazer esto ausentes ou so precrios).31
Visvel, tambm, nas grandes cidades, o crescimento de um contingente de habitantes
que no moram: vivem nas praas e viadutos sujeitos sorte da fome e das doenas,
imersos em condies subumanas de vida. Nas primeiras cidades industriais, as cidades
modernas se constituem em um novo modo de vida e de moradia, onde a aglomerao a
marca, gestando-se um novo mundo carregado de promessas de progresso e integrao. J nas
cidades contemporneas, presencia-se a construo/reconstruo do aglomerado urbano
buscando viabilizar a articulao da economia globalmente, o que gera aumento da
polarizao social, verificando-se uma tendncia perda de sentido e de significados humanos
da vida em sociedade.
LUTA PELA REGULARIZAO DA POSSE E CONTRA A REMOO
A complexidade dessa temtica reside no seu vnculo estreito com a base de
sustentao do sistema capitalista: a propriedade privada e a valorizao do capital. Em
tempos de insero do pas na era da industrializao, tornava-se fundamental a estruturao
do espao das cidades para a viabilizao do processo, preocupao central do Estado, que
31 BERNADELLI, M.L.F.H.; LOCATEL, R.; RAMALHO, B. Reestruturao scio-espacial e a segregao da
vivenda: os casos de Santiago do Chile, Mendonza e Buenos Aires. V COLQUIO INTERNACIONAL DE GEOCINCIAS, Barcelona, maio 2003.
-
107107107107
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
desde meados dos anos de 1940 desenvolve medidas nesse sentido, consolidando as
atividades produtivas e viabilizando a expanso do capital.
Esse processo de industrializao e urbanizao gera um deslocamento das camadas
populares para a periferia, seja por ao autoritria e repressiva oficial do Estado, seja por
medida de sobrevivncia, devido impossibilidade de se viver nos grandes centros. Isso
agravado pelo crescimento demogrfico das cidades e pela poltica de valorizao da terra
urbana. O processo de urbanizao ocorre com o crivo da segregao social, imprimindo
cidade a marca da diviso de classes.
Os desempregados, os pauperizados, os que no conseguem consumir, os que no tm
renda familiar aceitvel, os que no participam da esfera poltica, os desassistidos pelo Estado
tornam-se os migrantes na vida urbana. Peregrinam pelos espaos urbanos, constroem
comunidades, resistem, reivindicam, so removidos, reconstroem formas de resistncia,
reivindicam mais uma vez o direito cidade e, nesse processo, desnudam a relao entre o
Estado e o capital e fazem da luta coletiva a forma de interferncia e alterao daquela
relao.
Nas cidades, o lugar dos migrantes da vida urbana prioritariamente as favelas e a
periferia, locais em que se criam os redutos habitacionais da pobreza urbana e que at a
dcada de 1960 eram tidos como problemtica a ser erradicada. No Rio de Janeiro, em 1948,
existiam 105 favelas; em 1950, abrangiam 6.7% do total da populao; em 1960, o percentual
sobe para 9.3%; em 1970, alcana 13%. Os nmeros do final dos anos de 1970 nos do uma
monta de, no mnimo, 1 milho e 500 mil moradores localizados em 375 favelas.32 A
erradicao ordenou a poltica governamental frente problemtica das favelas at os anos de
1960, materializando-se em operaes de remoo. Era um operativo que exigia um grande e
complexo aparato governamental e institucional, envolvendo a opinio pblica, ocupando a
imprensa, atingindo com a alocao de recursos pblicos o setor da construo civil,
incrementando o mercado imobilirio e modificando a estrutura urbana e o cenrio da cidade.
A esse operativo, a favela reagiu. Valladares nos d pistas importantes para uma compreenso
32 VALLADARES, L.P. e FIGUEIREDO, A. Habitao no Brasil: uma introduo literatura recente. In. O que
se deve ler em cincias sociais no Brasil. So Paulo: Cortez, ANPOCS, 1986/1987.
-
108108108108
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
mais profunda do processo.
Na verdade, a poltica de erradicao de favelas fazia parte de um processo geral de renovao urbana da metrpole, de reorganizao do uso do solo, enfim, de desenvolvimento urbano, ou do prprio quadro geral de transformaes porque passava a sociedade brasileira.33
A reao da favela ocorre por meio de duas principais estratgias: criao de meios por
dentro da estrutura para valorizar a sada e assegurar condies melhores de transferncia e
pelo enfrentamento direto, como o que ocorreu durante a remoo das favelas do Pasmado,
em 1964, e da Ilha das Dragas, em 1969.
Quando do processo de remoo, visto estar associado ao acesso a programas de
aquisio de casa prpria, a favela que estaria para ser removida crescia em nmero de
moradores: os parentes que no residiam no local construam s pressas os famosos
puxados para serem considerados moradores do local. Construam-se novos barracos em
locais vagos para abrigar novos moradores para, do mesmo modo, serem includos no
programa. Com isso, tinha-se uma renovao dos moradores e muitos dos antigos vendiam
seus barracos e se deslocavam para outra favela, pois no queriam morar longe.
Como a definio da nova unidade habitacional a ser destinada ao morador se
vinculava ao critrio de renda familiar, os moradores declaravam renda superior a que
percebiam mensalmente, com o intuito de conseguir uma moradia em melhor condio.
Diante da inevitvel remoo, os moradores se viram enredados em um processo burocrtico-
administrativo longo e complexo, que envolvia prazos, documentaes, pagamentos mensais
de prestaes que aumentavam muito e constantemente. A resistncia mais uma vez veio por
dentro do sistema: adiando assinaturas, atrasando pagamento e fazendo acordos sobre a
dvida, sublocando o imvel, ocupando temporariamente sem chegar a oficializar a moradia,
ou venda do imvel (cediam os direitos). Foram aproveitadas as brechas no sistema, seja
ainda na favela ou j inserido no sistema de financiamento.
Assim, pela correlao direta entre as condies de vida e as possibilidades de
viabilizar o acesso casa prpria pelo Sistema Financeiro de Habitao (SFH), comea a ser
33 VALLADARES, L.P. Passa-se uma casa: anlise do programa de remoo de favelas do Rio de Janeiro. 2.
-
109109109109
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
criado um crculo desenhado pela seguinte ordenao: sada da favela ida para o conjunto
habitacional volta favela. A sada do conjunto se dava por vontade prpria (sublocao ou
cesso de direito do imvel) ou obrigatria (falta de pagamento que gerava o despejo),
recuava ou acrescia as favelas e tambm gerava migrao para a periferia do Grande Rio em
pequenos lotes ou reas semi-urbanizadas, o que fazia crescer o entorno da metrpole onde a
infra-estrutura urbana era precria, imprimindo a esses locais as caractersticas da favela.
A poltica governamental no assegurou os seus objetivos antifavela34, na medida em
que:
[...] realimentou o crescimento do prprio elemento que pretendia eliminar do espao: a favela. Gerou, tambm, uma srie de mecanismos informais, verdadeiras prticas de distoro do sistema habitacional, que por si s colocam em questo seu planejamento racional e tcnico. Provocou a mobilidade geogrfica de parte da populao atingida pelo programa, que no conseguiu fixar. Ocasionou, ainda, uma nova distoro, verificada na alterao da clientela dos conjuntos habitacionais, que passaram a abrigar uma populao bastante heterognea e no mais marcada pela origem favelada.35
Se a poltica ditada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro era nica no sentido de
exterminar as favelas, as complexidades do processo social que envolvia essa poltica
geravam algumas contradies e, em diversas ocasies, em especial at 1960, apresentavam-
se polticas de recuperao para manuteno das favelas oferecendo servios sociais
populao que no se viabilizaram. Um exemplo foi a ao da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, como nos relata Valladares:
Em 1941-1943, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, ento entregue a
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. p. 14.
34 Essa operao antifavela no Rio de Janeiro foi liderada pela Coordenao de Habitao de Interesse Social da rea Metropolitana do Grande Rio (CHISAM), que atuou de 1968 at 1973, encarregada de coordenar os programas de remoo. Atuavam ainda: o BNH, como financiador; a COHAB-GB, que era responsvel pela construo e comercializao das unidades habitacionais, e a Secretaria de Servios Sociais, responsvel pelo acompanhamento social da populao envolvida. Com a fuso dos estados, a COHAB-GB se transforma em COHAB-RJ e a Secretaria de Servios Sociais, em Coordenadoria de Bem-Estar Social. A Fundao Leo XIII, fundada em 1946, encarrega-se das remoes aps a extino da CHISAM. importante registrar que as instituies e/ou rgos criados do conseqncia poltica governamental oficial.
35 VALLADARES, op. cit., p. 18.
-
110110110110
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
Henrique Dodsworth, elaborou um projeto de higienizao das favelas. O objetivo era transferir suas populaes para alojamentos temporrios, enquanto se construam nos locais das favelas as casas definitivas, de alvenaria. Foram ento destrudas quatro favelas, sendo 8.000 pessoas transferidas para os Parques Proletrios, em nmero de trs (da Gvea, do Caju e da Praia do Pinto). O mesmo programa no ultrapassou a construo dos trs parques, e assim mesmo a idia original de volta ao terreno anteriormente ocupado pela favela no chegou a se concretizar. Anos mais tarde, esses Parques Proletrios passaram a ser considerados favelas.36
Na prtica, entretanto, as condies de existncia das favelas foram ressuscitadas e
soterradas as perspectivas de sua urbanizao. O elemento mais claro para explicar o
fenmeno o fato de que todas as reas de favela so consideradas ocupao ilegal de solo
urbano e atingem a questo da propriedade privada. Em 1964, por exemplo, ano marcante da
histria poltica brasileira, as favelas ocuparam 23% de terrenos do governo federal, 27% dos
estaduais e 44% de privados, alm de 6% de desconhecidos.37
No Rio de Janeiro, agrava-se a ocupao ilegal, na medida em que essa ocupao
atingia a propriedade privada em zonas de alta especulao imobiliria e urbanizadas, o que
faz os moradores das favelas disputarem espao com a classe mdia no geral e com o passar
dos anos se deslocarem para localidades at ento reservadas, pela diviso social do espao
urbano, classe mdia alta identificada como ricos. Liberar tais reas da metrpole era
disponibilizar reas para a especulao imobiliria. Alm do interesse dos especuladores
imobilirios, estava a disposio geogrfica da cidade que devia ser preservada para assegurar
seu perfil de classe, tornando a problemtica da favela invisvel aos olhos de quem vive na
urbe e no favelado. Some-se a isso o interesse da indstria da construo civil, que teve
suas atividades incrementadas.
Instalados nos conjuntos, a realidade de uma nova moradia ia desfazendo os sonhos,
pois as condies no correspondiam s necessidades e a sobrevivncia no foi facilitada por
esse acesso. O trajeto planejado e prometido pelos rgos pblicos de sair da favela e chegar
casa prpria no era seguro, nem linear. Tal acesso abriga uma condio que por vezes no
lhes era possvel cumprir.
36 VALLADARES, op. cit., p. 22. 37 Dados obtidos em: CHISAM. Metas alcanadas e novos objetivos do programa. Braslia: Ministrio do
-
111111111111
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
A posse da promessa de compra e venda do imvel, ou, depois de 1971, do termo de
ocupao com opo de compra, ocorria depois de cumpridas duas etapas administrativo-
burocrticas: a) verificar e resolver problemas de natureza tcnica nas unidades; b) pagamento
da taxa de ocupao. Ter a posse da promessa conferia ao morador a condio de promitente-
comprador. Essa assinatura gerava obrigaes, como o pagamento regular das prestaes. O
nvel de absentesmo para assinatura era grande, o que levou a Companhia de Habitao
(COHAB) a introduzir o termo de ocupao com opo de compra. Apesar de opcional, a
condio de regularizao de posse da habitao pressupunha ter condies de pagar o preo,
de ser consumidor no mercado de habitao.
A resistncia a esse termo foi viabilizada por meio da possibilidade de burlar o sistema
at o limite do despejo ou a cesso de direito e a retomada da vida na favela. Esses fatos nos
indicam que, nas grandes metrpoles, a favela de fato a possibilidade mais vivel e
econmica para as camadas de baixa renda.38
Em sete anos (1968-1975) ininterruptos de poltica oficial de remoo de favelas,
foram deslocadas 100 mil pessoas e aproximadamente 60 favelas foram destrudas. Mas isso
no significou a erradicao dessas reas. Na dcada de 1970, 13.2% da populao da cidade
estavam em favelas; na dcada de 1980, 12.3%.39
No processo de luta por moradia, muitos trabalhadores optaram por resistir
imposio de deslocamento para a periferia da cidade, buscando se manterem prximos a
locais onde havia maiores possibilidades e alternativas de sobrevivncia e, ainda, que lhes
permitissem fugir do caos que impera nos transportes coletivos. As encostas dos morros se
apresentavam como uma alternativa.
Exemplo dessa resistncia a favela do Vidigal: por quase trs dcadas, resistiu
remoo exigida pela especulao imobiliria por sua localizao privilegiada na Zona Sul do
Rio de Janeiro. Depois de vencerem a investida da proprietria original do terreno nos anos de
1950, os moradores organizam-se em uma associao. Por mais de dez anos lutam contra a
Interior/BNH, 1971. p.14.
38 VALLADARES, op. cit., p. 80-81. 39 VALLADARES, L.P. e RIBEIRO, R. The return of the favela: recent changes in intra metropolitan Rio.
Revista Instituto de Urbanismo, Universidad Central de Venezuela, 1995.
-
112112112112
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
reintegrao de posse na Justia e se mobilizam frente ao governo, que acenou com garantias
de permanncia dos moradores no local. Entretanto, o terreno vendido e a especulao
imobiliria age para assegurar seus empreendimentos. Em 1977, a remoo novamente uma
ameaa.
Os moradores se organizaram e mostraram que o argumento do poder pblico e do
empresariado de que a rea oferecia risco por estar ameaada de deslizamento era falso,
apoiados em um laudo tcnico de um professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). A luta foi ampla e envolveu igreja, polticos, profissionais ligados temtica de
moradia e ganhou a mdia.
Os moradores, por meio da resistncia fsica, de aes na Justia, de estratgias de
visibilidade da luta e apoio de outros setores da sociedade venceram a remoo. A vitria
fortaleceu a organizao e levou a comunidade a lutar por melhoria das condies de vida no
local, como, por exemplo: instalao de posto de sade, medidas de saneamento bsico, coleta
de lixo contando com mutiro dos moradores.40
Em final dos anos de 1970 e durante a dcada de 1980, o eixo de atuao do poder
pblico passa a ser como integrar a favela cidade. At ento, a luta pelo direito de morar
deu-se por meio da resistncia por dentro do sistema, que no assegurou seu plano de
moradia, e o carter da ilegalidade permanece majoritariamente para as famlias de baixa
renda que vivem na cidade.
Durante esse perodo, a porcentagem de populao favelada no Rio de Janeiro passou
de 18% para 32%. Se em 1970 essa populao significava um total de 75.770 habitantes, em
1980 o nmero alcana 1.740.800, configurando um aumento expressivo no nmero de
favelas: de 230 favelas em 1970 para 309 favelas em 1980.41
Na esteira da luta pela redemocratizao, o voto no candidato de oposio Leonel
Brizola, em 1982, caracterizava-se como um voto de negao ao processo em curso at o
momento. No Rio de Janeiro, no incio de 1980, um levantamento da prefeitura aponta:
Segundo levantamento realizado pela prefeitura no incio dos anos 80,
40 MATTOS, op. cit., p. 101-109. 41 Dados obtidos da Fundao Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FFEMA), 1980.
-
113113113113
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
apenas 1% das 364 favelas cadastradas era servido por rede oficial de esgoto sanitrio completa (6% dispunham parcialmente do servio); 6% possuam rede de gua total, e 13%, rede parcial com carter oficial; e em 92% das localidades, a nica forma de esgotamento pluvial era a drenagem natural do terreno. A coleta de lixo s foi considerada suficiente em cerca de 17% das reas faveladas.42
Brizola age com a astcia de sua trajetria de poltico populista e apresenta uma
agenda positiva para as favelas, incluindo coleta de lixo, saneamento e iluminao pblica.
Institui o programa Cada Famlia um Lote, que visa regularizao da propriedade em reas
faveladas: [...] o programa repassa a preos simblicos os lotes a seus moradores, que se
tornaro seus proprietrios definitivos, com todos os direitos legais deste fato.43
Extingue-se a poltica de remoo, inicia-se uma nova etapa na relao do poder
pblico com as reas de favelas que, na prtica, fortalece os laos da comunidade com o
Estado, fortalecendo tambm a figura do governador, mas no significou a retomada da
participao autnoma e organizada do movimento.
O Rio de Janeiro, com suas particularidades que foram determinadas pelo processo
que aqui resgatamos no que se refere configurao espacial, composto por uma
proximidade entre os pobres e os no-pobres que vivem na cidade, em cada bairro, mas cada
um desses grupos vive muito distante dos grupos da periferia.
A questo da moradia e do acesso a servios urbanos (em que pesem as lutas para a
ampliao do acesso) manteve o padro dos anos anteriores, ou seja, a ampliao foi limitada
e acompanhada de concentrao de emprego, de moradia das classes mdia e alta e dos
agrupamentos urbanos nas reas centrais, com carncias tanto na periferia quanto em reas de
concentrao de moradia dos pobres que se constituram com favelas. A luta pela condio de
proprietrio dos terrenos e por condio de vida e moradia nesses terrenos foi o que delineou
os traos da cidade do Rio de Janeiro.
No Rio, como no restante do Brasil, a omisso do poder pblico para viabilizar a
regularizao do uso do solo, de modo a garantir as demandas dos atores da cidade, e a
42 ZALNAR, A. e ALVITO, M. Introduo. In: ____. (Orgs.). Um sculo de favela. Rio de Janeiro: EdFGV, 1998. p. 41.
43 CAVALLIERI, P.F. Favelas cariocas: mudanas na infra-estrutura. In: Estudos IPLANRIO, 4. Rio de Janeiro:
-
114114114114
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
poltica restritiva quanto ao investimento nos equipamentos de consumo coletivo, para
estruturar os servios necessrios vida urbana, promoveram a valorizao seletiva das terras
urbanas, fortalecendo a segregao social no/do espao urbano, com bolses desvalorizados
dentro de ou prximo a reas valorizadas para o mercado imobilirio.
A existncia de favelas em reas centrais respondia mesma lgica segregadora, rompendo apenas com a distncia fsica que separava os pobres dos demais residentes. A precariedade extrema das condies de reproduo do migrante que chegava na metrpole, sua incapacidade de endividamento e portanto de se tornar proprietrio e a importncia da proximidade do mercado de trabalho para atividades informais e rotativas explicava as particularidades desses espaos.44
Nos anos de 1980, crescem as favelas, expandem-se as fronteiras com ampliao dos
espaos carentes de infra-estrutura, inicia-se um crescimento do setor empresarial e dos
servios para classe mdia.
A ao pblica de regulao e regularizao fundiria mantm-se a reboque do mercado empresarial e no como uma poltica a priori de insero de novas terras ao mercado. A alterao mais significativa, pelo lado da oferta, foi a retrao do financiamento pblico de longo prazo para moradia popular, com impacto significativo nas camadas sociais com alguma capacidade de endividamento.45
Se nos anos de 1970, por ocasio do processo de remoo e poltica de transferncia
para conjuntos habitacionais, da ampliao da moradia para a periferia e da diminuio do
nmero da populao das favelas, foi difundida a idia de que as favelas seriam espaos
residuais no espao da Cidade Maravilhosa, a dcada de 1980 demonstra que as favelas
seguiram compondo o cenrio da vida como espao substancial e abrigavam, em seus
contornos, um nmero destacado e crescente de empregados em setores classificados como
mdios.46 O fenmeno revelador da ausncia de uma poltica de regularizao de posse da
IPLANRIO, 1986, p. 23-25/28-30.
44 LAGO, L.C. Estruturao scio-espacial na metrpole do Rio de Janeiro: reproduo ou alterao nas condies de (no) acesso ao urbano? Disponvel em: .
45 Ibid. 46 Estudos sobre diviso scio espacial de cidades se apiam em classificaes scio-ocupacionais para definio
de seu perfil na relao moradia x trabalho, que tem por base as definies dos censos demogrficos. Para aprofundar esse tema, consultar estados e produes do IPPUR/UFRJ.
-
115115115115
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
terra e de acondicionamento democrtico da vida na cidade, por parte do poder pblico. a revelao cruel do aumento da instabilidade no emprego, da reduo do poder aquisitivo, a
caracterizao mais evidente da recesso econmica do perodo.
Nesse contexto, setores da classe trabalhadora brasileira perdem o poder de compra e
de contrair compromissos para o pagamento de aluguel e tambm para custear financiamento
de longo prazo (nica alternativa para ser proprietrio de sua casa, na poltica oficial
legalizada) e tambm a condio de pagar transporte para trabalhar quando a moradia
distante, item recorrente na justificativa para a moradia nas favelas proximidade com as
possibilidades de sobrevivncia. O movimento ocorre tambm em relao periferia, onde
setores optam por morar perto do trabalho, buscando deslocar toda sua vida para as reas de
fronteira da cidade (Baixada Fluminense, So Gonalo, por exemplo).
De fato, a dualidade centro-periferia como explicitadora de uma dicotomia espacial e
social, no Rio de Janeiro nos anos de 1980, dilui-se no que se refere ao espao e se agiliza no
que se refere ao social. A proximidade fsico-espacial dos pobres e ricos enorme, to grande
quanto a distncia nas condies urbanas de cada rea. O mesmo espao ser compartilhado,
mas ser separado no que se refere s condies para usufruir esse espao (acesso moradia e
equipamentos urbanos).
A ilegalidade da moradia era fato, no s quanto propriedade do terreno/casa, mas
tambm quanto ao padro de urbanizao. Com a crise econmica, que atinge os trs setores
envolvidos na produo/poltica de moradia, o empresarial, o popular e o estatal, ficam
evidentes o crescimento e a prevalncia do acesso casa prpria com legalidade restritos
condio de cada um, dependendo do recurso de cada comprador na voracidade do mercado
imobilirio, em que a relao era direta com as empresas da rea e com os bancos que
financiavam o negcio.
A produo estar concentrada nas reas nobres da cidade, com destaque especial para
Barra da Tijuca (Zona Oeste do Rio de Janeiro), local que concentrou o crescimento do
mercado de ponta da especulao imobiliria. Para os setores mdios e populares, reservada
a retrao na oferta de moradia pelo mercado e tambm por ao do poder pblico. Para os
setores mdios ainda houve algum investimento na rea da periferia feito por construtores de
-
116116116116
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
menor porte no mercado, oferecendo unidades mais adequadas ao padro do local e do
consumo do comprador. Para os setores populares foi um perodo de pouco investimento, com
algumas polticas voltadas para a urbanizao das reas de favelas priorizando a
autoconstruo e a atuao de mutires que no foram massificadas nem acompanhadas das
condies para moradia, e ainda, uma retrao nas polticas de loteamentos na periferia que
diminuem em oferta e procura pela crise. nos anos de 1980, portanto, que crescem visivelmente as ocupaes urbanas, iniciando uma nova etapa na construo da luta pela
moradia e trazendo modificaes para o espao social da metrpole, conforme evidencia a
Tabela 1.47
TABELA 1 - EVOLUO EM CINCO DCADAS
Anos Favelados Populao do Rio
1950 169.305 2.336.000 1960 335.063 3.307.167 1970 554.277 4.285.738 1980 731.490 5.180.413 1990 962.230* 6.200.470
Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (a partir dos dados do IBGE). (*) Estimativa do IPLAN-Rio, considerando 480 favelas cadastradas. Com a descoberta de mais 85 favelas, a
nova estimativa de um milho de habitantes .
No governo populista de Leonel Brizola, a poltica de reconhecimento de favelas,
loteamentos irregulares e clandestinos e ocupaes urbanas ser apresentada como soluo
dos problemas urbanos: o governo prope legalizar a posse e urbanizar. Investe nessa
perspectiva sem resolver o problema estruturalmente, pois que estava subordinado lgica
populista, priorizando ento a relao legitimidade x investimento, ou seja, o poder pblico
viabiliza investimentos e projetos para aquelas comunidades que assegurassem a legitimidade
poltica do governo, via votos e apoio durante o mandato. O resultado foi o crescimento das
ocupaes em funo da perspectiva de melhoria de vida e de segurana na moradia.
Com essa poltica, o poder pblico no assegura a regularizao do uso do solo e no
47 LEAL, L.N. Nmero de favelas cresceu 60%. Levantamento feito pela prefeitura mostra que total passou de
340 para 545 entre 82 e 90. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 abr. 1991. Caderno Cidade, p. 6.
-
117117117117
Libertas, Juiz de Fora, v.4 e 5, n. especial, p.92 - 116, jan-dez / 2004, jan-dez / 2005 ISSN 1980-8518
viabiliza polticas para a regularizao fundiria, que ser, historicamente, no Rio de Janeiro,
subordinada ao mercado imobilirio e produo empresarial, [...] que, ao expandir suas
fronteiras em direo periferia, incorpora novas glebas cidade.48
A questo habitacional, portanto, uma expresso das contradies inerentes
relao capital x trabalho. A cidade uma expresso da luta de classes. Com essa
compreenso, a reconstituio das lutas por moradia nos anos de 1980 evidencia a ao dos
sujeitos polticos imprimindo sua marca no enfrentamento cotidiano contra o capital. O
sentido da luta por moradia para os trabalhadores est na luta pelo seu lugar no mundo, que
atua como sujeito histrico na conformao da cidade. A cidade a cidade do capital, mas
tambm a cidade dos trabalhadores, que por meio de sua luta interferem no espao urbano.
48 LEAL, op. cit.