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TEMAS & MATIZES - Nº 10 - SEGUNDO SEMESTRE DE 2006 29 RESUMO: A folclorista Mariza Lira ao lado de outros autores de sua época, todos eles ignorados pelo universo intelectual do país, formou uma “primeira geração de historiadores” que colaborou de maneira destacada para a “invenção” da história da música popular urbana no Brasil. Esse artigo pretende justamente discutir algumas das questões apresentadas pela folclorista na sua obra que colaboraram para a ampliação dos horizontes de análise e de construção da narrativa em torno da história da música popular urbana no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Mariza Lira; Historiografia; Historiadores; Música popular. ABSTRACT: The folklorist Mariza Lira beside other authors of its time, all them unknown for the intellectual universe of the country, formed a “first generation of historians” that collaborated in an outstanding way for the “invention” of the history of the urban popular music in Brazil. This article intends precisely discuss some of the subjects presented by the folklorist in its work that collaborated for the amplification of the analysis and of the construction horizons of the narrative around the history of the urban popular music in Brazil. KEYWORDS: Mariza Lira; Historiography; Historians; Popular music. O BRASIL SONORO DE MARIZA LIRA José Geraldo Vinci de Moraes MÚSICA E PODER T E M A S & M A T I Z E S

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RESUMO: A folclorista Mariza Lira ao lado de outros autores de sua época, todos eles ignoradospelo universo intelectual do país, formou uma “primeira geração de historiadores” que colaboroude maneira destacada para a “invenção” da história da música popular urbana no Brasil. Esseartigo pretende justamente discutir algumas das questões apresentadas pela folclorista na suaobra que colaboraram para a ampliação dos horizontes de análise e de construção da narrativaem torno da história da música popular urbana no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Mariza Lira; Historiografia; Historiadores; Música popular.

ABSTRACT: The folklorist Mariza Lira beside other authors of its time, all them unknown for theintellectual universe of the country, formed a “first generation of historians” that collaborated inan outstanding way for the “invention” of the history of the urban popular music in Brazil. Thisarticle intends precisely discuss some of the subjects presented by the folklorist in its work thatcollaborated for the amplification of the analysis and of the construction horizons of the narrativearound the history of the urban popular music in Brazil.

KEYWORDS: Mariza Lira; Historiography; Historians; Popular music.

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Brasil viveu entre o final do séculoXIX e a primeiras décadas do XXuma série de importantes mudançasculturais. Marcadas pelo rápidocrescimento urbano e incipienteindustrialização, pela intensamovimentação demográfica e novas

tecnologias que surgiam, elas conviveram aomesmo tempo com elementos de nosso passadocolonial, rural e escravista. Neste quadro repletode contrastes, diferentes formas de produção edifusão das culturas populares ganharamnovos contornos e inusitadas fusões e misturas.

Foi neste contexto complexo que surgiu,num ritmo muito próprio, uma inventivacultura musical popular em alguns dos centrosurbanos mais importantes do país. Porém,raramente essa complexidade e contrastesforam compreendidos pela elite nacionalprotagonista do esforço modernizador.Infelizmente, durante décadas esta notáveldinâmica histórica foi esquecida ou criticadapelas análises e interpretações teóricasvinculadas a uma visão elitista da culturanacional que via apenas no folclore expressãoda “pura cultura popular”. Acontece que algunsjornalistas, cronistas e memorialistas atentose sensíveis a essa novidade cultural em queviviam cotidianamente, trataram de registrar,colecionar, formar arquivos e tambéminterpretações pessoais sobre a modernamúsica popular urbana em gestação.

Esses autores pouco reconhecidos pelouniverso intelectual e cultural formal, comoVagalume, Alexandre Gonçalves Pinto, OrestesBarbosa, Edigar de Alencar, Jota Efegê,Almirante, Lúcio Rangel e Mariza Lira,acabaram formando uma espécie de “primeirageração de historiadores da moderna músicapopular urbana” (Moraes, 2006). Essa geração,nascida na passagem dos séculos XIX/XX, alémdos registros da memória e dos eventosculturais, reuniu, organizou, compilou,arquivou e, sobretudo, “inventou uma tradição”na nossa cultura/música popular quepermanece viva até hoje. Na realidade eles

criaram o “acervo”, o “lugar social”, a prática euma narrativa sobre a música popular emconstrução. Portanto, eles alcançaram as váriasdimensões de uma autêntica “operaçãohistoriográfica” (Certeau, 1982), formandoassim uma espécie de influente correntehistoriográfica sobre o tema. Na realidade, elesse tornaram seus únicos historiadores, pois,na época, tanto para os historiadores de ofíciocomo para os intelectuais preocupados com apreservação e difusão da cultura nacional, amúsica popular urbana não tinha nenhumarelevância cultural ou social (Moraes, 2007).

A folclorista Mariza Lira (1899-1971) foiuma historiadora da música popular queapresentou uma interpretação muito própriasobre a música urbana em gestação. Ela seafastou do discurso e da prática predominantesnessa geração, fundados na critica jornalística,na crônica e no memorialismo, mas ao mesmotempo nunca se distanciou demasiadamente,sempre mantendo diálogo aberto com os outrosautores.

Sua trajetória vinculada ao estudo edesenvolvimento do folclore nacional apontou-lhe outro caminho para a compreensão damúsica popular urbana, muito embora nestaépoca os folcloristas ainda repelissem seusgêneros, considerando-os “popularescos” e nãoautenticamente “populares”. O fato maisinteressante, contudo, é que esta rotaalternativa apresentada pela folclorista com otempo se aproximou daquela dos memorialistase cronistas que, fundidas, deram o tom

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dominante da narrativa historiográfica damúsica popular urbana nos anos 1950-1960.Professora e diretora escolar, Mariza Lira setornou reconhecida folclorista, sobretudo dacultura e costumes do Rio de Janeiro.Integrante da comissão nacional do folclore etambém a do estado fluminense, foi defensoraintransigente da cultura nacional e militanteativa, organizando exposições, compilações ecursos, escrevendo livros, textos para aimprensa (Lira, 1953).

De modo geral seus textos e livrostratavam de temas “clássicos do folclore”, comoMigalhas Folklóricas. Esta obra é umacompilação de diversos artigos, palestras,conferências e pequenos estudos teóricos etemáticos sobre o folclore, realizados entre 1938e 1951, data da publicação da obra. Nos artigosrelativos ao folclore nacional ela trata de temasvariados típicos do folclorismo, como acerâmica, a poesia, as lendas, ladainhas,cantigas de roda e de berço e cânticos escolares.

Os textos de fundo teórico, a maior partedeles escritos no final da década de 1930,procuram reafirmar a condição científica dofolclore e seu processo de desenvolvimento noquadro das ciências antropológicas, e como eleevoluiu no Brasil a partir dos estudos de SilvioRomero. É com esta postura de reconhecer a“ciência do folclore”, típica da segunda geraçãode folcloristas brasileiros, que Mariza Lira editaem 1938 seu primeiro livro, Brasil Sonoro. Osdois primeiros capítulos apresentam discussãogeral e teórica sobre as relações da música como meio e a sociedade. Suas análises repercutemde modo tardio o ideário do final do XIX emque meio e raça era o binômio explicativo paracompreensão de nossa identidade nacional. Otítulo do primeiro capítulo aponta nesta direçãoe poderia ter sido muito bem formulado porSilvio Romero ou Euclides da Cunha: “A terra– o homem – a música” (Lira, 1938, p. 7). Neleé destacado o papel de nossa “empolgantenatureza” e como seu cenário idílico – o dogorjeio dos pássaros, do ritmo do mar, do regatoe do vento – foi determinante na formação de

nossa música popular. Para ela “o fatormesológico” subjuga tudo e a todos. Assim, “amúsica dos caboclos do interior reflete anatureza na melancolia de suas toadas; amúsica do homem do litoral revela osensualismo tropical” (Lira, 1938, p. 12).

Sobre essa base física evoluem as raçase ocorrem os encontros e as misturas queengendram nossas primeiras característicasmusicais nacionais, para ela ainda em formaçãona década de 1930. Os primeiros habitantesda terra formaram seus pendores musicais emrelação íntima com a natureza e a eles semisturaram as duas outras “raças musicais”que contribuíram com “a cadência do negro aharmonia do europeu” (Idem, p. 12) naformação de nossa nacionalidade.

É a partir dessa imanência musical das“raças” e de suas misturas que surgiram nossosgêneros musicais - a modinha, trovassertanejas, desafio, emboladas, cantigas - queela estuda em Brasil Sonoro. Este argumentode que índios, brancos e negros, em harmoniacom a natureza, eram elementos formadoresde nosso povo e, conseqüentemente, de nossamúsica, não era novidade, mas permaneceriacentral em suas obras e interpretações, comode resto em boa parte dos folcloristas. Quasevinte anos depois ela continuava a repetir omesmo discurso fundado no critério “racialternário” na coluna que mantinha na Revistada Música Popular intitulada História Social daMúsica Popular Carioca. Foram escritos onzeartigos para a coluna em que a questão da“influência do étnico em nossa música” e a da“música das três raças” (Lira, 1955) queconvivem no ambiente tropical, continuava seapresentando de modo central. Logo no artigode abertura ela deixa clara a posição:

Para encontrarmos os elementosformadores, temos que ir mais longe.Devemos buscá-los na música dos povosque concorreram para a formação denossa nacionalidade, fontes originaisque contribuíram para a característicada música popular brasileira. Além do

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índio, do português conquistador, donegro-africano escravizado, temos adominação espanhola, invasãoholandesa ao norte, fora outroselementos étnicos que aqui seamalgamaram ao sol dos trópicos (Lira,1954, p. 22).

Todavia, foi em um pequeno estudosobre o flautista e chorão Joaquim AntonioCallado escrito no início da década de 1940(Lira, 1940-41) que a folclorista definitivamenteexpôs de modo revelador a importância quedava às relações entre meio, raça e mestiçagemcomo formadora na nacionalidade e para aconsolidação da música nacional e popular.Para ela, Callado, Nazareth e ChiquinhaGonzaga foram figuras centrais na fixação danossa música popular. Porém o flautista “reuniaem si a ancestralidade musical, a influência domeio e a tendência da raça” (Lira, 1949, p. 63).Haveria nele, sobretudo o forte condicionanteracial produto da mestiçagem. A época em queo texto é editado já prevaleciam as análisesculturais de Mário de Andrade em torno damúsica popular e também se vivia sob o forteimpacto dos argumentos positivos de GilbertoFreyre em favor da mestiçagem; contudo,provavelmente seus argumentos causariaminveja à Silvio Romero:

A execução da flauta por Calado erafavorecida pelos característicos damestiçagem. Lábios grossos, dentaduramagnífica, compleição robusta refletindopulmões fortes, permitiram-lhe umsopro seguro, que o seu temperamentovibrátil traduzia numa agilidadeassombrosa (Idem).

Desse modo, a “exuberância danatureza, a ardência do clima e o fator máximodo cruzamento das raças que aqui chegaram”(Lira, 1940-41, p. 210), sintetizados na figuramestiça de Joaquim Antonio Callado,contribuíram para construir a “raça nova”brasileira — novamente uma referência

explícita a Silvio Romero (Romero, 1977) —, comuma cultura própria e um “precioso populáriomusical”, iniciando nossa libertação culturaldas influências estrangeiras. Para o segundoelemento do tripé de fixação da músicanacional-popular, Chiquinha Gonzaga, afolclorista busca outro eixo de análise,indicando que a situação social e cultural damaestrina era outra. Por meio de uma biografiade maior fôlego, publicada em 1939, Mariza Liraaponta que na trajetória da compositora oscondicionantes meio e raça estavam um tantodeslocados e eram completamente distintos domestiço Callado.

Sua contribuição à música popular sedaria, então, em outro nível, ao possibilitar aabertura de diálogo entre a música das ruas ea erudita, assim como também doentretenimento. Caso semelhante seria o deErnesto Nazareth — o terceiro elemento do tripé— que, no entanto, segundo a autora, tinhatendência e preferência à música erudita, talcomo Pestana, o angustiado compositor criadopor Machado de Assis. Para ela “não se podedizer que Ernesto Nazaré, por ter escrito tangos,valsas, polcas e choros, fosse um compositorpopular” (Lira, 1949, p. 66); talvez por issonunca tenha dedicado estudo mais cuidadosoao compositor. A biografia da maestrina não émais analisada nos limites da “música étnica”,mas nos quadros de formação da “músicanacional”. Na realidade esta música àquelaaltura estaria em plena formação na “alma dopovo brasileiro”, após todo o processo demestiçagem, e que a maestrina soube captar ecompreender muito bem “no convívio com a suagente”, transmitindo toda dinâmica cultural já“em músicas de uma expressiva brasilidade”(Lira, 1939, p. 24). A trajetória da compositoraé toda ela reconstruída para assegurar àChiquinha Gonzaga “a glória de fixar na músicade nosso povo o ritmo nacional de seu tempo”(Idem, p. 44).

Pelos textos da folclorista se entreve quea obra produzida pelos três compositorespermitia, pela primeira vez, uma tentativa de

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“elevação cultural e social” da música popularurbana. Essa música obviamente não era “cultaou elevada”, também não era “rural oufolclórica”, mas muito menos “simplesentretenimento”, embora produzida e difundidanesse e para esse universo. Ela se manifestava,sobretudo, como produto das inter-relaçõesentre todos estes campos. Essa questão,debatida à época por alguns intérpretes doBrasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque eMário de Andrade, era central na construçãoda música popular1, mas parece que afolclorista não se preocupou com ela, muitoembora algumas passagens de seu texto sobreChiquinha Gonzaga revelem elementos nestesentido. O núcleo e ponto de chegada de suasanálises estavam baseados na formação damúsica nacional, argumento reiterado no livrocomo se fosse preciso convencer o leitor e a simesma. Este motivo justificaria também, aindaque de maneira recalcada, a valorização destesartistas e suas obras integrando-os aopatrimônio cultural da nação.

Ao analisar a formação e fixação damúsica popular nacional a partir dascontribuições individuais destes “trêsexpoentes”, Mariza Lira introduziu também abiografia nos estudos da música popular,gênero que se tornariam regra a partir dos anos1960. Se no texto sobre Callado ele ainda émuito tímido e limitado, e em Nazareth o projetonão segue adiante, no livro sobre ChiquinhaGonzaga ele se realiza claramente. Bemprovavelmente ela tomou emprestado o gênerobiográfico da prática narrativa da história da

música erudita, baseada no binômio “vida eobra de...”. Essa aproximação a uma narrativavinculada à linguagem erudita, que de modogeral celebrava as “grandes obras e figuras” dasartes e literatura, era outro elemento queindicava o desejo de reconhecimento culturaldo “artista popular” e sua produção, nospadrões da norma culta. Ao mesmo temposignificava a busca de valorização intelectualda própria biógrafa, já que tanto a músicapopular como o folclore, seus objetos de estudo,eram menosprezados nos quadros dopensamento social (Vilhena, 1997).

Pode-se dizer que a autora alcançourelativo sucesso nesta valorização cultural ereconhecimento intelectual já que publicou opequeno estudo biográfico sobre Callado naRevista Brasileira de Música, vinculada à EscolaNacional de Música da Universidade do Brasil.E a biografia de Chiquinha Gonzaga tambémganhou pequena resenha e comentário positivoem dos fascículos da sisuda Revista (RevistaBrasileira de Música, pp. 76-77), que tratavasempre da “boa música”, além de ter se tornadoreferência nos estudos sobre a música popular.

Desse modo, Mariza Lira foi uma dasprimeiras a introduzir artistas vinculados àmúsica popular de entretenimento em ambienteintelectual mais formal. Mário de Andrade jáhavia feito comentários positivos ao mesmo triode compositores, estendendo-os a MarceloTupinambá e também a Pixinguinha, Sinhô eNoel Rosa, porém de modo acanhado epassageiro. Coube a ela também colocá-los noprocesso de construção da música brasileira,reconhecendo e valorizando pela primeira vezo artista popular urbano e sua obra nos quadrosda cultura nacional. Em Brasil Sonoro aparecemalém de Callado, Nazareth e Chiquinha, dezenasde músicos populares como Sinhô, Caninha,Pixinguinha, Donga, João da Baiana, H.Vogeler, Noel Rosa, Ari Barroso, Assis Valente,Lamartine Babo, André Filho, CustódioMesquita, Benedito Lacerda, Herivelto Martins,entre tantos outros (Lira, 1938, pp. 215-308).Ainda que de modo passageiro2, pela primeira

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vez um livro destinado a discutir a formaçãoda música nacional apresenta estes artistasque, sem importância algumas para a culturaoficial da época, citados e lembrados apenaspelos cronistas e memorialistas, são articuladosa uma tradição cultural original e deincorporados ao patrimônio cultural e musicalda nação.

É na segunda parte do livro que elaconstrói a narrativa que coloca esses músicosnuma dada tradição cultural e musical. Apósapresentar no primeiro bloco as tradicionaismanifestações do folclore musical rural eurbano, ela introduz os gêneros de “música dedança” – como a valsa, polca, quadrilha – quefaziam parte de nossa genuína tradição musicalno século XIX. Em seguida apresenta o maxixe,o samba e a marcha, dando sentido e criandocerta linearidade ao processo. Aparece assim,seu empenho em estabelecer vínculos entre asmanifestações urbanas “tradicionais” e algunsdos gêneros musicais surgidos nos centrosurbanos na passagem dos séculos XIX e XX. Eforam justamente esses gêneros que se“aclimataram” à indústria fonográfica eradiofônica, possibilitando o surgimento eevolução daqueles artistas e gêneros populares.Deste modo, ao abordar as formas musicais eartistas que viviam justamente no mundo doentretenimento e na indústria da cultura, numacerta “tradição cultural”, a folclorista alargavaos limites do “folclore urbano”.

Seguindo por essas cadências desiguaisem que misturava a “fábula das três raças” (DaMatta, 1987, p. 58-85), determinismo do meio,ampliação do objeto folclórico urbano e certaatenção ao universo do entretenimento, MarizaLira acaba de algum modo antecipandoalgumas questões que ganhariam consistênciasomente nas décadas seguintes. Em primeirolugar, como já foi salientado, de modo pioneiroprocura valorizar de maneira sistemática amúsica popular urbana como objeto de estudo.

Para dar substância a essa valorização,trata de colocar o objeto numa “linha evolutiva”,dando-lhe sentido no tempo e ao mesmo tempo

inventando no presente um passado para ele -a mistura das “raças musicais” nos trópicosseguida pela criação dos nossos gênerosfolclóricos rurais e urbanos - e a participaçãona construção do futuro (a música nacional).Porém, o fato mais interessante é que essatradição se transporta para os meios decomunicação e se realiza também nasindústrias fonográfica e radiofônica! É curiosoobservar que no inicio dos anos 1960 omusicólogo argentino Carlos Vega apresentouquestões semelhantes a essas ao criar oconceito de “mesomúsica” para compreenderesse mesmo objeto.

Ele criou o conceito com objetivo desuperar as noções hierárquicaspreestabelecidas nos estudos musicais e paraisso tenta compreendê-lo numa outra espéciede “linha evolutiva”. De acordo com ele, essa“música de todos” teria uma história e tradiçãosecular, que a partir do século XIX se manifestafundamentalmente coreográfica e se difundiucomo uma música que “convive en los espiritusde los grupos urbanos al lado de la ‘musicaculta’ y participa en la vida de los grupos ruralesal lado de la música folklórica” (Vega, 1997, p.77). 3 Com a multiplicação do entretenimentomusical nos grandes centros urbanos e aemergência dos meios de comunicação, ela setransformou, segundo o musicólogo, na músicamais importante do mundo ocidental na medidaem que tratou de alimentar toda indústria dacultura musical contemporânea.

Como se percebe, Mariza Lira teve papelpioneiro e inovador na ampliação da noção dofolclore nacional e interpretação da músicapopular urbana, ao mesmo tempo em queecoava visões tradicionais e passadistaspróprias do folclorismo. Apesar de construir umdiscurso influente na história da músicabrasileira, seu impacto foi limitado e restrito eacabou esquecido com o tempo, ao serincorporado por outros intérpretes vinculadosa mídias mais poderosas. Simultaneamente aoperíodo em que Mariza Lira escrevia suasprimeiras e mais importantes obras uma série

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de programas radiofônicos com características e abordagem muito semelhantes começava a serirradiado no Rio de Janeiro. Distante do universo intelectual em que ela vivia, mas de maneirainovadora e com maior impacto cultural, o radialista Almirante dava início no final dos anos1930 à sua incrível trajetória com programas voltados exclusivamente à música brasileira. Talcomo a folclorista, ele reuniu de maneira inventiva no caldeirão radiofônico os mais variadosingredientes da música popular presentes tanto nos gêneros urbanos como nos do folclore. Estefato permitiu Almirante colocar em prática a fusão da tradição dos memorialistas com asinterpretações folclorizantes de Mariza Lira. Essa mistura que já vinha sendo desenhada pelafolclorista é consolidada na forma do radialista interpretar a música brasileira e alcançou incrívelforça com a divulgação nos seus programas, tornando-se referência na compreensão da músicapopular.

Texto recebido em agosto de 2006. Aprovado para publicação em novembro de 2006.

SOBRE O AUTORJosé Geraldo Vinci de Moraes é Professor Doutor do Departamento de História da Universidade deSão Paulo. Endereço eletrônico: [email protected].

NOTAS

1. Essa questão foi apresentada de modo polêmico na década de 1990 para debater a formação do samba porVIANA, Hermano. In: ---. O mistério do samba. RJ, Ed.UFRJ/Jorge Zahar Ed., 1995. Já em WISNIK, José Miguel.Machado maxixe: o caso pestana. In: Teresa. Revista de Literatura Brasileira, 4/5, USP/Ed. 34, 2004, p. 13-79, a discussão é apresentada de modo mais consistente e consolidado.

2. Provavelmente foi essa condição que levou Lúcio Rangel a criticar a obra como superficial. RANGEL, Lucio.Sambistas e chorões: aspectos e figuras da música popular brasileira. SP: Livraria Francisco Alves, 1962, p. 32.

3. Ver no mesmo fascículo discussão sobre o conceito em AHARONIÁN, Coriún, Carlos Vega y la teoria de la músicapopular. Un enfoque latinoamericano en un ensayo pionero, pp 61-74.

REFERÊNCIAS

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—. “Música das três raças”. Revista da Música Popular. Rio de Janeiro, n. 11, nov-dez., 1955, p. 6-7.

—. “A influência ameríndia”. Revista da Música Popular. Rio de Janeiro, n. 7, maio-jun, 1955, p. 30-32.

—. “A contribuição do negro: o ritmo”. Revista da Música Popular. Rio de Janeiro, n. 9, set. 1955, p.12.

—. “A música das senzalas”. Revista da Música Popular. Rio de Janeiro, nº 10, out 1955, p. 8-11.

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