Artigo Para Debate

8
Alvenaria estrutural de blocos cerâmicos: patologias e técnicas inadequadas *João Bento de Hanai Professor do Departamento de Engenharia de Estruturas da Escola de Engenharia de São Carlos - Universidade de São Paulo e-mail: [email protected] *Fabiana Lopes de Oliveira Pesquisadora do Departamento de Engenharia de Estruturas/Fapesp da Escola de Engenharia de São Carlos - Universidade de São Paulo e-mail: [email protected] Diversos casos de ruína catastrófica ou ameaça de colapso de edifícios de alvenaria ocorreram nestes últimos dois anos e foram noticiados por todos os meios de comunicação do Brasil. Destaque ainda maior foi dado porque muitas vidas humanas foram perdidas, e exatamente nos locais onde as pessoas deveriam sentir-se mais seguras: a própria casa. Tratam-se de edifícios habitacionais de quatro pavimentos, cujo fechamento é constituído por paredes de alvenaria de blocos cerâmicos, sem qualquer função estrutural. Popularmente chamados de "prédios caixão", esses edifícios ganharam uma triste notoriedade pela sequência de ocorrências na região metropolitana de Recife-PE. Um dos casos mais graves ocorreu em um edifício em Olinda- PE, cujo colapso aconteceu em novembro de 1999, cerca de 12 anos após a execução. Durante as inspeções, constatou-se a ruína por esmagamento das paredes de alvenaria dos embasamentos, uma estrutura de transição entre o piso do primeiro pavimento e a fundação de sapata corrida de concreto armado. Tão grave quanto uma falha localizada na fundação foi a constatação de que blocos cerâmicos vazados - como os produzidos para paredes de vedação - são empregados na execução de paredes estruturais desse tipo de edifício. Esse "sistema construtivo" desenvolvido de forma empírica contém falhas incompatíveis com a boa prática da Engenharia, uma vez que materiais e técnicas consolidadas e

description

Artigo blocos ceramicos

Transcript of Artigo Para Debate

Alvenaria estrutural de blocos cermicos: patologias e tcnicasinadequadas*Joo Bento de HanaiProfessor do Departamento de Engenharia de Estruturas da Escola de Engenharia de So Carlos - Universidade de So Pauloe-mail: [email protected]

*Fabiana Lopes de OliveiraPesquisadora do Departamento de Engenharia de Estruturas/Fapesp da Escola de Engenharia de So Carlos - Universidade de So Pauloe-mail: [email protected]

Diversos casos de runa catastrfica ou ameaa de colapso de edifcios de alvenaria ocorreram nestes ltimos dois anos e foram noticiados por todos os meios de comunicao do Brasil. Destaque ainda maior foi dado porque muitas vidas humanas foram perdidas, e exatamente nos locais onde as pessoas deveriam sentir-se mais seguras: a prpria casa. Tratam-se de edifcios habitacionais de quatro pavimentos, cujo fechamento constitudo por paredes de alvenaria de blocos cermicos, sem qualquer funo estrutural. Popularmente chamados de "prdios caixo", esses edifcios ganharam uma triste notoriedade pela sequncia de ocorrncias na regio metropolitana de Recife-PE.

Um dos casos mais graves ocorreu em um edifcio em Olinda-PE, cujo colapso aconteceu em novembro de 1999, cerca de 12 anos aps a execuo. Durante as inspees, constatou-se a runa por esmagamento das paredes de alvenaria dos embasamentos, uma estrutura de transio entre o piso do primeiro pavimento e a fundao de sapata corrida de concreto armado.

To grave quanto uma falha localizada na fundao foi a constatao de que blocos cermicos vazados - como os produzidos para paredes de vedao - so empregados na execuo de paredes estruturais desse tipo de edifcio. Esse "sistema construtivo" desenvolvido de forma emprica contm falhas incompatveis com a boa prtica da Engenharia, uma vez que materiais e tcnicas consolidadas e procedimentos mnimos de controle da qualidade esto deixando de ser observados.

A principal suspeita que se levanta de que pode haver outros edifcios de caractersticas similares, em que um grave quadro patolgico pode estar latente, como se a construo estivesse contaminada por um vrus, mas a doena no tivesse se manifestado.

Com isso queremos alertar que possvel que tais obras, embora aparentemente seguras e em boas condies de uso, podem apresentar uma grande sensibilidade a problemas patolgicos de natureza estrutural. Certas anomalias - como aquelas causadas pelo uso inadequado, falta de manuteno ou recalques de apoio - que, em uma obra bem construda, poderiam ser absorvidas sem consequncias mais graves, em uma edificao mais sensvel podem ser devastadoras.

Alvenaria estrutural de blocos cermicos: patologias e tcnicas inadequadasPelo que se sabe, milhares de edifcios foram construdos nessas condies. Dada a dimenso e a gravidade deste tema preciso que haja uma discusso cautelosa. O objetivo deste artigo no levantar polmicas ou atribuir culpa a quem quer que seja, e sim promover uma rigorosa discusso tcnica sobre o assunto, no sentido de encontrar respostas para as seguintes questes:

1. Tais edifcios esto, de fato, sujeitos a problemas estruturais?2. Como caracterizar a eventual sensibilidade a tais problemas?4. Quais as precaues a serem informadas aos moradores?5. Quais as recomendaes tcnicas para obras novas?

Qualidade inadequada dos blocosA utilizao de blocos cermicos de vedao em paredes com funo estrutural apresenta, no mnimo, alguns inconvenientes:* No h nenhum suporte normativo para emprego desse componente de vedao em alvenarias com finalidade estrutural;* No h dados tcnicos ou cientficos que demonstrem a eficincia e o bom comportamento desses blocos, assentados com os furos na direo horizontal;* Os blocos de vedao empregados tm dimenses muito menores do que os recomendados para alvenaria estrutural. Consequentemente, as paredes (com espessura da ordem de 90 mm) tornam-se muito esbeltas em relao ao p-direito, o que diminui sensivelmente a capacidade resistente;* Falta de controle da qualidade, tanto durante a produo quanto recebimento em obra. * Falta de cuidados no armazenamento, no sentido de evitar quebras e deteriorao;* Falta de modulao das paredes de alvenaria, e consequente necessidade de corte de blocos em obra para adaptao das dimenses.

A NBR 7171 (1) diferencia claramente os blocos cermicos a serem empregados em paredes de vedao daqueles recomendados para paredes estruturais. Os blocos estruturais so assentados com os furos na direo vertical, isto , na direo das foras principais de compresso.

Quando os blocos vazados so assentados com os furos na direo perpendicular direo do carregamento, o fluxo das tenses internas ao bloco se d de maneira diferente. Surgem tenses transversais de trao que causam o seccionamento do bloco, a imediata instabilizao dos mecanismos de transferncia de foras e a consequente ruptura.

Via de regra, os blocos cermicos de vedao so produzidos por pequenos e mdios fabricantes, com baixo nvel de controle da qualidade. Em uma pesquisa realizada em diversas indstrias cermicas do Estado de Sergipe, a professora Angela T. C. Sales (2) coletou dados sobre a resistncia e outros indicadores da qualidade de blocos cermicos de vedao.

Com a anlise de alguns dos resultados dessa pesquisa, pode-se observar que existe uma variabilidade muito grande da qualidade dos blocos, de indstria para indstria, e at mesmo dentro das amostras de um mesmo fabricante. Dessa forma, os valores caractersticos das resistncias compresso dos blocos - que representam um parmetro de interesse segurana estrutural - ficam muito diminudos.

Outros problemas de projeto e de execuoAlm da utilizao de materiais inadequados, outros fatores ligados ao projeto e execuo podem dar origem a problemas patolgicos. A desconsiderao de alguns princpios de estabilidade das construes de alvenaria e o descumprimento de algumas regras simples, que fazem parte da prtica das pequenas construes, certamente fazem parte de um conjunto de deficincias tcnicas que debilitam a confiabilidade do sistema construtivo.

O engenheiro Odilon P. Cavalheiro (1991) (3) cita que corrente no Rio Grande do Sul a execuo de prdios de at cinco pavimentos - sendo o primeiro destinado a garagens ou lojas - com estrutura convencional de concreto armado e os demais com estrutura de alvenaria de blocos e tijolos cermicos. Em geral, os dois ltimos pavimentos so de blocos cermicos de vedao comuns (furos na horizontal) e os outros dois de tijolos macios cermicos. Segundo Cavalheiro, os casos de colapso ou de perigo iminente desse tipo de sistema construtivo, pelo menos aqueles tornados pblicos, so poucos, o que incentiva ainda mais a continuidade dessa prtica construtiva. Para Cavalheiro, o desconhecimento de um procedimento racional de clculo pode conduzir o coeficiente de segurana dos elementos de alvenaria a valores muito baixos, muitas vezes inferiores a 1,0 (runa), ou ento esse coeficiente atinge valores desmesurados, elevando o custo da obra.

ilustrativo considerar tambm o relato do engenheiro Romilde A. Oliveira (4) sobre a inspeo do Edifcio ricka, em Olinda-PE, depois da catstrofe.

As amostras dos blocos de concreto e das argamassas retiradas das fundaes e embasamento apresentavam aspecto arenoso, desagregando-se com facilidade e com inmeros pigmentos esbranquiados entre os poros. Os ensaios compresso de amostras dos blocos de concreto apresentavam uma resistncia mdia de 1,7 MPa.

A NBR 7171(1) classifica os blocos em dois tipos:

blocos de vedao - so blocos que no tm a funo de suportar cargas verticais alm das provenientes do prprio peso e pequenas cargas de ocupao. So assentados com furos na direo horizontal, e podem ser classificados - de acordo com a resistncia compresso - em blocos de vedao comuns (blocos de uso corrente da classe 10) e blocos de vedao especiais.

blocos estruturais - so projetados para suportar outras cargas verticais alm da do peso prprio, compondo o arcabouo estrutural da edificao. So projetados para serem assentados com os furos na vertical, e podem ser classificados - de acordo com a resistncia compresso - em comuns ou especiais, quando so fabricados em formatos e especificaes de comum acordo entre as partes.

Nota-se, portanto, que no houve nenhum critrio na seleo de materiais, empregando-se blocos de diferentes naturezas e de baixa qualidade. Conforme se constatou, o microambiente no local do embasamento (como se chamou a regio de transio entre o primeiro pavimento e as fundaes) era muito mais agressivo que o ambiente externo, ficando as paredes sujeitas umidade, percolao de gua e lixiviao. No houve a preocupao de se proteger as paredes contra tais agentes agressivos.A runa ocorreu de forma brusca e sem apresentar nenhum indcio de danos ou fissuras. O colapso da estrutura de alvenaria, portanto, se deu de maneira extremamente frgil, o que indica a ausncia de elementos que proporcionassem maior capacidade de redistribuio de cargas e ductilidade, tais como cintas de amarrao, pilaretes, vigas e lajes de concreto armado. No caso das lajes, cabe observar tambm que na grande maioria dos casos essas peas so de elementos pr-moldados, e sabe-se que nem sempre a ancoragem das armaduras nos apoios e a aderncia do concreto das vigotas com o concreto do capeamento mostram-se efetivas.

Pelo que foi averiguado, em muitos edifcios as instalaes hidrulicas, eltricas e de outros servios so executadas pelo processo tradicional, isto , pelo rasgamento indiscriminado das paredes de alvenaria. A diferena que nesse caso as paredes estruturais podem ter o desempenho ainda mais comprometido, uma vez que a argamassa de preenchimento dos rasgos nem sempre possibilita a reposio total da capacidade resistente.Problemas de usoConstatou-se, ainda, que os usurios desses imveis no esto adequadamente conscientizados das caractersticas peculiares dos edifcios de alvenaria estrutural. As restries contratuais usuais sobre o uso do imvel no so suficientemente claras nem adequadamente incisivas sobre a proibio terminante de alteraes no autorizadas da estrutura.

Da mesma forma, via de regra, no h um manual de manuteno ou um conjunto de recomendaes explcitas para a conservao das caractersticas mnimas de desempenho do edifcio, inclusive do ponto de vista estrutural. O que se pde observar, na realidade, foram muitos prdios sem manuteno, com sinais de deteriorao dos revestimentos e trincas claramente visveis nas paredes.

RecomendaesOs edifcios de mltiplos pavimentos construdos com blocos cermicos vazados de vedao, sem os devidos cuidados da tecnologia de alvenaria estrutural, devem ser considerados sob suspeita, salvo melhor juzo decorrente da anlise especfica de cada caso.

A falta de controle da qualidade dos blocos - tanto na produo como na sua aplicao na obra - por si j justifica tal suspeita e constitui um claro sinal de possvel sensibilidade a problemas patolgicos de natureza estrutural.

Alm da qualidade dos blocos cermicos, outros aspectos j comentados s reforam a suspeita e a necessidade de discusso e disciplinamento de tais prticas construtivas. Pelo menos as seguintes recomendaes preliminares devem ser consideradas sobre a questo:

a) abolir o uso de blocos cermicos de vedao na execuo de paredes de alvenaria estrutural;b) no permitir o uso de blocos cermicos vazados assentados com furos na direo perpendicular do carregamento predominante, at que haja subsdios cientficos e tcnicos suficientes para comprovar a eficincia;c) em qualquer obra de alvenaria estrutural deve-se respeitar os requisitos e recomendaes das normas tcnicas vigentes, permitindo-se eventualmente a aplicao criteriosa e baseada em fundamentos tcnicos das disposies constantes em normas tcnicas e cdigos estrangeiros de boa tradio;d) utilizar blocos e outros materiais produzidos para uso estrutural, com o devido controle da qualidade;e) os usurios devem ser alertados sobre os srios riscos do uso e manuteno inadequados da edificao, inclusive referindo-se claramente regulamentao existente e relacionando o descumprimento s sanes legais cabveis;f) devem ser realizadas inspees tcnicas individuais nas edificaes, por parte de profissionais habilitados e sob responsabilidade dos rgos competentes, no sentido de reavaliar ou auditorar tecnicamente a segurana estrutural e as demais condies de habitabilidade das unidades.

AgradecimentosOs autores expressam seu agradecimento Fapesp (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo) pelo seu apoio financeiro, e valiosa colaborao do professor Romilde A. Oliveira da Universidade Federal de Pernambuco, do engenheiro Agenor A. Machado Neto da Caixa Econmica Federal e da professora Angela T. C. Sales da Universidade Federal de Sergipe.

Referncias bibliogrficas1. NBR-7171 Bloco cermico para alvenaria. Especificao. ABNT (Associao Brasileira de Normas Tcnicas). Rio de Janeiro, 1992.2. Ensaios de resistncia compresso de blocos cermicos de vedao de 25 das 26 indstrias cermicas do Estado de Sergipe, cadastradas junto ao Sebrae-SE. Dados fornecidos pela autora. Sales, A. T. C. 1994.3. Influncia do revestimento na resistncia de pequenas paredes de blocos cermicos comuns. In: Jornadas Sul-Americanas de Engenharia Estrutural. Cavalheiro, O. P. & Mller, L. E. Anais, p. 25-36. Rio Grande do Sul, 1991.4. Degradao de elementos de concretos porosos submetidos ao de guas agressivas na plancie costeira da regio metropolitana do Recife. In: Simpsio Epusp sobre Estruturas de Concreto - Epusp, 4., CD. Oliveira, R. et al. So Paulo 21-25. 2000.5. Reabilitao de paredes de alvenaria pela aplicao de revestimentos resistentes de argamassa armada. Oliveira. F. L. So Carlos, Escola de Engenharia de So Carlos da Universidade de So Paulo. Tese de Doutorado. 2001.