Quem Ana C e quem Ana Cristina Cesar?

Filipe Hahn Barbosa de Souza

Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC

Centro de Comunicao e Expresso

Departamento de Lngua e Literatura Vernculas

Florianpolis, Santa Catarina

Fhbs01@msn.com

http://lattes.cnpq.br/3183615970459579

RESUMO: O ensaio relaciona o livro Teatro, de Bernardo Carvalho, com o perfil biogrfico

de Ana Cristina Cesar em Sangue de uma poeta, de talo Moriconi, partindo da ideia de que

a personagem Ana C. do livro Teatro uma referncia a Ana Cristina Cesar.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Brasileira; Ana Cristina Cesar; Bernardo Carvalho.

ABSTRACT: The essay relates the book Teatro, by Bernardo Carvalho, with biographical

profile of Ana Cristina Cesar in O sangue de uma poeta, by Italo Moriconi, starting from the

idea that the character Ana C. the book Teatro is a reference to Ana Cristina Cesar.

KEYWORDS: Brazilian Literature; Ana Cristina Cesar; Bernardo Carvalho.

Buscar entender o sentido de um texto ficcional e quem so os personagens desse

texto, fazer o exerccio de buscar o sentido da existncia de uma vida biografada e de uma

criao ficcional: esse o movimento de interpretao e tentativa de entendimento,

originando-se de relaes feitas sobre personagens diferentes, uma de fico e uma persona

descrita a partir de um estudo biogrfico. Quem Ana C e quem Ana Cristina Cesar?

O objetivo do presente trabalho por em contato o livro Teatro (1998), do autor

Bernardo Carvalho, e o livro O sangue de uma poeta (1996), de talo Moriconi. A

proximidade dos dois livros se d sobre um nome. O nome de Ana C, que tanto um

personagem do livro de Bernardo Carvalho como uma alcunha para se referir poeta carioca

Ana Cristina Cesar, pode ser verificado no artigo de Cardoso (2011, p. 79): A poesia de Ana

C., no entanto, diferencia-se da poesia da maioria dos poetas de sua gerao. Aqui, a grafia

de Ana C, refere-se a Ana Cristina Cesar, ao contrrio do que ocorre no livro Teatro, onde a

grafia do termo Ana C se refere personagem de fico Ana C.

Essa associao proposta por Luciana de Leone (2008) ocorre devido ao

aparecimento do nome Ana C. A apario desse nome o indcio de uma aproximao entre

os dois textos. Deve-se ponderar que no possvel postular uma confirmao concreta e

absoluta dessa relao. Pode-se, somente, verificar uma srie de provveis relaes entre os

dois livros fundados sobre essas imagens e, por conseguinte, inferir que se trata do mesmo

sujeito.

A personagem Ana C, no livro Teatro, de Bernardo Carvalho, faz uma referncia

poetai Ana Cristina Cesar, de acordo com uma concepo de literatura prpria do autor do

Teatro.

Tal concepo rompe com a dicotomia real x fico, em que o real faz parte de uma

construo ficcional, e ao mesmo tempo essa fico depende de elementos do real para se

constituir. H desconstruo das identidades, desfazendo sua suposta unidade. E com a

reconstruo dessas identidades a partir de fragmentos exteriores aos sujeitos donos dessas

identidades, o autor pode se utilizar de elementos no reais para reconstruir essas

identidades.

Por seu turno, o texto do crtico carioca talo Moriconi o que nos faz remeter ideia

de que Ana C pode ser Ana Cristina. Sendo assim, ele descreve uma posio da poeta frente

criao literria e situao de autora, mulher, em um determinado cenrio histrico

cultural.

Moriconi trata a questo da definio do sujeito pela opo sexual e da transmutao

da poeta para romper com essa lgica de determinados comportamentos, de acordo com

definies de gnero masculino e feminino, por exemplo. Revela-se, aqui, a questo do

machismo colocado no espao acadmico e literrio em que a poeta circulava e suas formas

de subverso diante deste quadro.

Ana Cristina Cesar ope-se em sua criao potica a questo da definio do sujeito

pela opo sexual, como se isso fosse determinante para caracterizar o comportamento e a

criao literria.

Moriconi utiliza a palavra travestismo para demonstrar como Ana Cristina faz para

romper com a questo da autoria, no sentido de ente criador. Assim, a poeta consegue

relacionar sua posio junto com a discusso feita por Barthes (2004) sobre a questo da

autoria.

O livro Teatro dividido em duas partes, a primeira parte, Os sos, um relato de

um ex-policial sobre sua atividade em forjar cartas sobre um suposto terrorista.

Posteriormente, essa criao ficcional que so essas cartas torna-se real, quando um

terrorista reivindica uma srie de atentados e a autoria das cartas. E h, ainda, a fuga do

policial de um pas central, no identificado, para um pas perifrico envolto num caos social

e o encontro com a sua namorada de infncia, que Ana C.

Quem Ana C nessa primeira parte de Teatro? Ana C uma mulher, dado muito

importante, pois a partir das indefinies sexuais que Ana C transita pelo romance.

Ana C da primeira parte de Teatro, mulher, que foi namorada do ex-policial,

protagonista dessa parte do livro. Eles se reencontram na vspera da fuga do policial. Ana C

tem papel preponderante na formao pessoal do policial, sentimental e intelectual, isso se

deve ao relacionamento vivido na juventude. Um fato interessante que os dois ex-amantes

no se veem h anos e no reencontro dos dois, Ana C conta que teve um marido, que

acabou deixando-o por outro homem. Mas Ana C, ao saber que esse marido morreu, volta a

am-lo e fica sem saber por que o abandonou.

Por sua vez, o ex-policial sabe que toda essa histria de Ana C falsa e sabe que Ana

C era uma atriz porn, pois ele mesmo tinha visto os vdeos dela. Nessa primeira parte do

romance interessante ressaltar que Ana C, quando adolescente, desperta no policial o

desejo de ser escritor. Nesse momento da narrativa, entra em cena uma fbula que desfaz a

dicotomia realidade x fico. Essa fbula trata de uma mulher que bate na porta de um

escritor e diz que conheceu o homem de quem o escritor fala em seu ltimo romance.

O real e o ficcional se fundem num jogo de fbula e prefigurao. No caso da fbula

que Ana C conta ao policial sobre o escritor, h uma ligao do real com o ficcional, ou seja,

o personagem do livro feito pelo escritor uma representao de alguma coisa do real.

J as cartas que o ex-policial produz uma prefigurao. A fico acaba se tornando

realidade. Nesse caso, h outro comrcio entre o real e o ficcional, no mais a fico

dependente do real. A fico cria um real, o que implica num descompromisso de Bernardo

Carvalho com o real.

a partir desse ponto que Bernardo Carvalho pode fazer uma referncia a Ana

Cristina Cesar, utilizando o personagem Ana C, sem usar elementos biogrficos.

Essa referncia se d a partir da personagem Ana C, que se transforma, ou se

traveste de vrias formas para se ocultar ou para romper com a definio unitria de uma

personalidade. Sendo assim, obriga o leitor a tentar descobrir quem essa persona que

Ana C, que aparece na primeira parte do livro como mulher e atriz de filme porn, mas que

tambm recria sua biografia a partir das mentiras sobre o marido e o amante, mentiras

essas contadas ao policial.

Na segunda parte do livro, Nome prprio, tudo se inverte. Ana C um ator que faz

filmes porns gays, que s conhecido pelos seus filmes, por suas imagens, no se conhece

a sua vida. Sua biografia contada e recontada pelos seus fs. Existem vrias narrativas

criadas pelos fs de Ana C para explicar sua vida.

Esses fs tm uma obsesso to grande por Ana C, que so levados loucura. Essas

narrativas criadas por seus fs embaralham-se, remetem-se umas s outras, mas nunca se

desfazem ou explicam quem esse ator porn. Assim como na primeira parte do livro a

questo do que real e ficcional questionado, no se distingue quando comea o real e

onde entra a fico, no sentido de que no possvel saber o que de fato a vida de Ana C

e o que criao de seus fs.

Ana C apenas imagem, e toda tentativa de explicar quem essa persona feita por

fs que esto em estado de delrio, ou seja, desacreditados, por isso fica difcil determinar

quem esse ator porn, que durante as cenas de sexo recita as poesias de So Joo da

Cruz. Nesse momento, pode-se supor que Bernardo Carvalho faz uma referncia, via

literatura, por meio da personagem Ana C, ou seja, de certa forma, e devido poesia de

So Joo da Cruz, ele se remete Ana Cristina Cesar.

O narrador dessa segunda parte do livro tenta se comunicar e descobrir quem Ana

C, mas acaba entrando nesse jogo de real e criao ficcional, igual aos fs de Ana C. Assim,

o narrador passa a ser um desacreditado, cabendo novamente ao leitor descobrir,

interpretar, quem a personagem Ana C.

Nesse jogo de desvendar outra pessoa em que entra tanto o narrador quanto o

leitor , h um processo de descobrir O outro e descobrir a si prprio. Assim como em

Teatro h a tentativa de desvendar uma verdade, quem Ana C, em O sangue de uma

poeta, talo Moriconi se exercita em desvendar quem Ana Cristina Cesar. Isso se d por

meio de um jogo de memrias e lembranas da vida do autor, uma interpretao do

momento histrico em que viveu a poeta e dos fatos da vida de Ana Cristina Cesar.

Partindo desse ponto, Moriconi tenta descortinar essa escritora de vrias facetas que

Ana Cristina Cesar. Poeta marginal, poeta suicida e a mais bonita escritora de sua

gerao, fato ressaltado nos comentrios acerca de sua pessoa. Nesse sentido, Moriconi visa

mostrar as vrias facetas dessa persona e as diferentes identidades dentro de uma persona.

Assim como em Teatro, em que cabe ao leitor interpretar quem Ana C, talo

Moriconi prope esse mesmo exerccio no seu estudo: cabe ao leitor interpretar e descobrir

quem Ana Cristina Cesar, permitindo a criao de outra Ana Cristina Cesar.

Nesse sentido, o crtico carioca mostra como a poeta vai se travestindo de vrias

formas e ao mesmo tempo se camuflando entre outras posies. Por exemplo, quando ela

abandona a postura de poeta e passa para posio de crtica literria.

[...] Ana se declarava em dvida quanto assumir ou no o papel de poeta. Cultivando uma pose antiliterria, em consonncia neste ponto com o esprito

de seus coetneos, dizia conferir tanta importncia a seu trabalho como colaboradora de jornais quanto ao trabalho de poeta. [...]. (MORICONI, 1996, p. 28).

Esse travestir colocar uma roupa, vestir um personagem, us-lo por um tempo e

depois se despir para colocar outra roupa, uma fantasia. Talvez isso seja a identidade, esse

no ser um e ser vrios ao mesmo tempo, que nunca pode ser definido de uma forma total.

Por outro lado, essa posio de se travestir, de se camuflar, seria uma rejeio

posio consolidada sobre a questo da autoria expressa na crtica francesa da dcada de

1970, mais especificamente Rolland Barthes, no texto A morte do autor, do ano de 1968.

Ana Cristina Cesar teve contato com esse pensamento via seus professores na PUC -

Rio, entre eles Silviano Santiago e Afonso Romano de SantAnna, pesquisadores ligados

linha francesa da crtica literria.

Rejeitava a aura enobrecedora e o discurso sublime que emolduram os universos da literatura e da poesia, mesmo em suas verses pretensamente malditas. Tal rebeldia tinha o sabor adolescente de uma rebeldia contra a

persona que construra desde muito pequena com o apoio da famlia. Pois ela fora poeta precoce, desde criana tivera poemas edificantes publicados nos jornaizinhos de igreja e de colgio.(...) Voc fala: poeta Ana Cristina, eu acho ridculo(...). (MORICONI, 1996, p. 28).

Rejeitar essa aura de poeta abandonar o estigma de gnio implcito nesse conceito.

Um ser distante do cotidiano, da rotina e da existncia das pessoas comuns. Ou que o poeta

portador de um dom dado a poucos. Optar por escrever em jornais se aproximar da

existncia cotidiana e abandonar a alcunha de poeta e tudo que ligado a esse signo.

Nesse movimento de optar por uma coisa ou outra, poeta, crtica e ensasta uma

forma de se travestir. Colocar uma veste, uma fantasia, em detrimento de outra com um

intuito poltico. Se desfazer de uma personalidade que lhe atribuiria certos adjetivos. Assim

Ana C, que ora mulher, ora homem, ora ator porn. Ana Cristina se transmuta nas mais

variadas fantasias.

Ana Cristina Cesar quer romper com a fantasia que lhe impuseram, ou que certas

posturas trazem consigo, mulher, autora. Ser mulher, assumir uma posio de mulher na

sociedade, a implicao da posio de poeta. De acordo com Moriconi, Ana Cristina Cesar

tenta escamotear ou desfazer a unidade que implica uma identidade que significada diante

do nome prprio, assim como discute Bourdieu:

O nome prprio o atestado visvel da identidade do seu portador atravs dos tempos e dos espaos sociais, o fundamento da unidade de suas sucessivas manifestaes em registros oficiais, curriculum vitae, cursushonorum, ficha judicial, necrologia ou biografia, que constituem a vida na totalidade finita, pelo veredicto dado sobre um balano provisrio ou definitivo. (BOURDIEU,

1996, p. 186).

Esse nome Ana Cristina Cesar que a partir do texto O sangue de uma poeta j no

carrega uma unidade, mas vrios matizes, uma srie de elementos que podem construir

uma persona no perfaz uma identidade unificada.

Uma persona, pois s se consegue apreender Ana Cristina Cesar atravs de certos

atributos, de alguns adjetivos: mulher, poeta, suicida. Mas nunca possvel chegar a uma

totalidade do significante Ana Cristina Cesar, pela questo do travestismo que a poeta faz,

para escamotear, desfazer esses adjetivos que impregnam o indivduo e acabam por tentar

defini-lo. Ou seja, no h uma identidade Ana Cristina Cesar, mas vrias.

Pode-se arriscar a dizer que existe uma Ana Cristina Cesar para cada leitor e, de

acordo com o que cada leitor teve acesso nesta obra, uma Ana Cristina Cesar esboada a

cada leitura.

A partir desse travestismo de Ana Cristina Cesar, ocorre a desconstruo de uma

identidade unificada. O leitor da escritora carioca s pode ter acesso determinada faceta

dessa personalidade, dependendo de determinados acessos sua obra. Assim, que se

pode afirmar que Ana C de Teatro uma referncia a Ana Cristina Cesar, a poeta. Como

discutido acima, apenas um nome Ana Cristina Cesar ou Ana C que, preenchidos por

alguns atributos, definem essas identidades. Mas essas identidades acabam no

identificando nenhuma das duas personas, pois essas identidades, em vez de serem uma

unidade, so constitudas de fragmentos acessados por seus leitores, no caso de Ana

Cristina Cesar e espectadores de Ana C.

Assim, tanto em Ana C e Ana Cristina Cesar, nunca se sabe o que foram essas

personas. Nem a razo de suas aes, por exemplo, o desaparecimento de Ana C e o

suicdio de Ana Cristina Cesar. Dois atos que entre si, h uma relao, pois nos dois atos

necessrio interpretar para tentar entender. Mas nunca se chegar verdadeira motivao

desses atos.

Apenas o que temos de Ana C e de Ana Cristina Cesar a interpretao de seus atos

a partir dos fs de Ana C e dos leitores de Ana Cristina Cesar. Porque, o que talo Moriconi

seno um f de Ana Cristina Cesar, que cria uma narrativa biogrfica da escritora,

semelhante ao que fazem os fs da Ana C de Teatro, em que criam narrativas sobre esse

ator porn? Ou seja, so construes narrativas sobre essas personas. Sempre um jogo de

interpretao e construes de novas narrativas.

Referncias

BARTHES, Roland. O rumor da lngua. 2 ed. So Paulo (SP): M. Martins, 2004.

BOURDIEU, Pierre. A iluso Biogrfica. In: Usos e abusos da histria oral. Org. Marieta de Morais Ferreira e Janaina Amado. 2 ed. So Paulo (SP): FGV Editora, 1998. p. 183-191.

CARDOSO, Tnia. O sujeito potico em Ana Cristina Cesar. v. 46. n. 02. Porto Alegre

(RS): Letras Hoje, 2011. p. 78-86.

CARVALHO, Bernardo. Teatro. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.

LEONI, Luciana. Ana C.: Tramas de uma consagrao. Rio de Janeiro (RJ): 7 Letras,

2008.

MORICONI, talo. Sangue de uma poeta. 1 ed. Rio de Janeiro (RJ): Relume-Dumar,

1996.

i O autor prefere utilizar o temo poeta, ao invs de poetisa, respeitando o posicionamento da autora Ana Cristina Cesar em sua defesa de posio de ausncia de gneros, corroborando com a forma de que talo Moricone se refere escritora.