Artigo Rubem Barboza Filho (1)

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Razão e religião: jogos de linguagem e democracia

Rubem Barboza Filho

�o encerrar a introdução a uma nova edição de seu Habits of the Heart �Hábitos do Coração� e lamentando o espírito que atormen�tava os Estados Unidos na era Bush, Robert Bellah escrevia:

Under the conditions of today’s America, we are tempted to ignore Winthrop’s advice, to forget our obligations of solidari-ty and community, to harden our hearts and look out only for ourselves. In the Hebrew Scriptures God spoke to the children of Israel throught the prophet Ezekiel, saying, “I will take out of your flesh the heart of stone and give you a heart of flesh” (Ez. 36:26). Can we pray that God do the same for us in Ame-rica today?1

Duvido muito que um cientista social brasileiro seja capaz de um apelo ao sentimento religioso da sociedade, mesmo com o objetivo de fortalecer nossa democracia. O agnosticismo é uma das marcas de nossa academia, do mesmo modo que a desconfiança em relação ao papel cumprido pela religião em nossa hist�ria. Mas antes de discutir o que se passa nestes nossos tr�picos, gostaria de explorar, rapida�mente, duas perspectivas que poderiam justificar esta interpelação de

1 Sob as condições da �mérica de hoje, somos tentados a ignorar os conselhos de Winthrop, para esquecer as nossas obrigações de solidariedade e comunidade, para endurecer nossos corações e olhar somente para n�s mesmos. Nas Escrituras He�braicas, Deus falou aos filhos de Israel por meio do profeta Ezequiel, dizendo: "Tira�rei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne" (Ez 36:26). Podemos orar para que Deus faça o mesmo para nós na América de hoje?”

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Bellah à experiência religiosa dos norte-americanos, e a sua esperan�ça de encontrar nela um antídoto à era Bush.

� primeira delas seria aquela presente em O Liberalismo Político, de John Rawls, exemplar do que se costuma chamar de procedimentalis�mo democrático. Nesta perspectiva neokantiana – ou pós-kantiana –, a democracia consistiria fundamentalmente em procedimentos para a formação discursiva de vontades e opiniões livres, adotados por cida�dãos definidos como seres morais e racionais (ou razoáveis).

Ela estaria desprendida de concepções fortes a respeito de um bem, ou seja, estaria desatada de quaisquer configurações éticas e atrelada à aposta ou numa razão moral universal ou na razoabilidade de seres morais concebidos de um ponto de vista universal. Seus procedimen�tos garantiriam a todos o uso público da razão, em um di�logo cujo resultado seria a elaboração de uma Constituição como o modo legíti�mo de normatização da sociedade.

A teoria procedimentalista vê o seu modelo de democracia como o fruto de um aprendizado ontogenético das sociedades pós-tradicio�nais e p�s�seculares, aprendizado que teria engendrado seus pr��prios fundamentos e sua própria legitimação. No entanto, dado o seu escopo, ela não pode exigir que os participantes da sociedade não estejam comprometidos com concepções morais abrangentes e for�tes, de qualquer natureza.

Assim, admite e estimula o fato do pluralismo, mas endereça a estas configurações uma exigência: a de que sejam “razoáveis”, ou seja, que moderem suas ambições éticas para o fortalecimento do pró�prio pluralismo e dos procedimentos para a formação da vontade livre de cidadãos. Desse modo, as crenças e concepções morais pré�políti�cas “razoáveis” seriam ou aceitas ou convocadas como fundamentos culturais externos, adicionais e bem vindos à democracia, dela parti�cipando ativamente através de um overlapping consensus �consenso sobreposto�. Contudo, esta não parece ser a real motivação de Bellah.

Bellah é dos mais argutos estudiosos do que �ocqueville chamou de “religião civil” dos Estados Unidos, e acaba se reconhecendo como um “comunitarista”. Na angulação do comunitarismo, a democracia não se reduz a um m�dulo racional e quase abstrato da sociedade. �o contr�rio, ela s� pode ser postulada como expressão concreta de uma tradição ética e hist�rica baseada em valores de liberdade, de solida�riedade, de tolerância, de vida em comum. Longe de se abastecer ins�trumentalmente de configurações “pré-políticas”, a democracia seria a expressão política de uma configuração de valores éticos entranhados na experiência de um povo.

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De fato, Bellah não reclama uma atividade reformista e racionalis�ta, de car�ter institucional, como resposta à era Bush, mas dirige seu apelo a uma sociedade contaminada por uma desregrada linguagem dos interesses. O que lhe interessa é a reconversão de um povo aos seus valores originais e identit�rios – originados do protestantismo e depois laicizados –, sem os quais a democracia se transforma num mero jogo entre interesses e gangues. Por isso anima�se a dar um pas�so além da condição de cientista, assumindo, ainda que fugazmente, a identidade de um profeta que se vale do imaginário bíblico e religioso que habitaria o fundo da experiência norte-americana.

A oposição entre comunitaristas e procedimentalistas foi recente�mente suavizada no que se refere às relações entre democracia e re�ligião. Depois dos atentados de 11 de setembro, dos graves proble�mas decorrentes da reação europeia à migração, sobretudo islâmica, e dos efeitos do processo de globalização, a diferença entre as duas angulações parece ter sido substituída pela percepção do mundo contemporâneo, sobretudo o ocidental, como um mundo pós-secular.

Nesta sociedade pós-secular e pós-metafísica, que abandonou seus gritos de guerra contra a religião, a razão ocidental seria – ou deveria ser – mais sensível à dinâmica das religiões, dizem os proce�dimentalistas e humanistas como Habermas. Há algo além ou fora da razão que não pode ser simplesmente descartado, e que deve ser reconhecido como fonte de aprendizado para a vida em comum, para uma democracia verdadeiramente pluralista. Este movimento, de certa forma, altera a imaginação a respeito do overlapping consensus estabelecendo uma equivalência funcional entre culturas religiosas e procedimentos racionais.

Não por acaso Charles Taylor, reconhecido como um dos papas do comunitarismo, também lança mão do mesmo conceito numa en�trevista concedida ao The Utopians, aproximando a imaginação pr��tica de comunitaristas e procedimentalistas no que se refere às rela�ções entre fé, razão e democracia. Razão, racionalidade, fé e religião acabam apreendidas como jogos de linguagem, sem nenhuma razão metafísica para a superioridade de uma sobre a outra, o que depen�deria de circunstâncias hist�ricas.

É por esta fresta, aberta pela reflexão da razão sobre si mesma, e que resulta no relativismo ou no procedimentalismo, que se insinua um discurso cat�lico e crítico sobre a modernidade, ou sobre a razão ocidental e moderna, tornando ainda mais complexo o tema das re�lações entre razão – e seus frutos mais vistosos, como o procedimen�talismo ou uma ciência indiferente ao sentido – e religião no Ociden�

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te, com consequências globais. A intervenção de Ratzinger no debate com Habermas é exemplar desta complexidade adquirida pelo tema.

Ratzinger mostra�se disposto a aceitar Habermas como o repre�sentante da razão ocidental – e de uma vertente humanista e demo�cr�tica da razão – apresentando�se como o emiss�rio da religião oci�dental por excelência, o catolicismo ou o cristianismo de forma geral. Numa leitura superficial, o itinerário seguido por Ratzinger não pare�ce trazer novidades. Destaca a origem comum do cristianismo e da razão ocidental, reconhece a fratura histórica entre ambos e não se furta a denunciar as patologias tanto da razão quanto da religião, construindo assim o ambiente para um debate p�s�secular entre ra�zão e religião interessado na construção de modelos de vida boa. E encerra a sua participação lembrando a necessidade de um di�logo intercultural e mundial entre experiências distintas como a chinesa, a indiana, a africana, a dos ameríndios e a ocidental europeia. Rat�zinger era um cardeal – agora é Papa –, e os cardeais aprenderam muito com os demônios em dois mil anos de hist�ria. E talvez por isso devamos rasgar a elegância diplom�tica de sua intervenção para capturar uma torção que tenta jogar a razão para um canto do tabla�do. Para ele, cristianismo e “razão” são produtos do Ocidente. Mas nesse di�logo intercultural necess�rio e urgente, a razão ocidental ser� uma convidada discreta, sem o protagonismo que ambiciona obter. Esta conversa entre culturas variadas só terá êxito, afirma Ratzinger, se recuperarmos “as normas e valores essenciais de algu-ma forma conhecidos ou pressentidos por todos os homens”.

Sem dúvida, isso deve ser lido como uma defesa dos direitos hu�manos, mas é mais do que isso: é uma inflexão que a razão ocidental não pode acompanhar totalmente e que o catolicismo pode reclamar confortavelmente. Ou seja, a afirmação de uma natureza comum a todos os homens, pedra de toque das grandes religiões mundiais e das culturas não ocidentais. Natureza concebida de forma substan�tiva, eticamente enraizada, e de onde nasceriam os direitos, numa imaginação distante da natureza formal dos sujeitos morais esculpi�dos pela lâmina universalista da razão ocidental. � humanidade não se fará, parece dizer Ratzinger, a não ser pelo reconhecimento mútuo e efetivo destas configurações éticas do viver, pela “purificação” das reli giões e da pr�pria razão, termo de �bvias conotações religiosas. �rata�se de um debate radical sobre o sentido de morrer e viver, para além dos procedimentos.

A hermenêutica feita por Ratzinger parece formalmente associada à reflexão de alguns acadêmicos católicos e reconhecidos. São estes autores, sem atribuir a eles nenhuma responsabilidade direta pelo

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pensamento de Ratzinger, que gostaria de explorar, ainda que rapida�mente. Refiro-me a Alasdair MacIntire, com o seu Depois da Virtude, e a Charles Taylor, em A Secular Age. Os dois organizam uma polêmica hermenêutica do mundo moderno a partir do catolicismo, entendido como uma perspectiva generosa do mundo, sem a tentação de justifi�c��lo como a religião verdadeira. Esse ponto é interessantíssimo, pois envolve uma mistura de crença e fé com a consciência de que, tanto as religiões quanto a razão são invenções humanas para responder à questão do significado da vida. Ou seja, jogos de linguagem. O que leva à indagação de qual é a melhor invenção e de como explicar a fé.

Em Depois da virtude, MacIntire não faz uma defesa explícita da religião em geral ou do catolicismo em particular. Mas é a estrutura de seu argumento que nos interessa aqui. Para ele, o Ocidente tornou�se, a partir do início da modernidade, incapaz de produzir juízos morais, entregando�se ao “emotivismo” como se estivesse construindo as ba�ses para a liberdade humana. O emotivismo é uma doutrina para a qual todos os juízos normativos, incluindo os juízos morais, não pas�sam de expressões de preferência, expressões emocionais ou afetivas, na medida em que são de car�ter moral ou normativo. �odas as varia�das doutrinas emotivistas reconhecem a impossibilidade de padrões morais objetivos, o que acaba por significar a inexistência de justifica�tivas finais para a ação moral. Resulta disso o caráter interminável, arbitrário e fracassado do debate moral ocidental e moderno, que se alimenta na verdade de fragmentos esparsos herdados de uma visão anterior, que tem no aristotelismo a sua formulação paradigmática. A ética aristotélica é teleológica e funcional, afirma MacIntyre. Ela su�põe, em primeiro lugar, uma diferença entre o homem tal como ele é e o homem como poderia ser se descobrisse a sua natureza essencial e o seu télos. � ética quer, precisamente, capacitar o homem para esta transição, educando nossos desejos e emoções através de uma razão pr�tica para uma vida virtuosa.

Este esquema é aumentado com as crenças teístas, cristãs como as de �om�s de �quino, judaicas como as de Maimônides, islâmicas como as de �bn Roschd. Por outro lado, além de teleol�gica, a ética aristotélica seria funcional, e nasce da pergunta sobre o que o bem para o homem, concebido apenas no interior de uma trama de rela�ções que constituem a comunidade. Para �rist�teles, explica Mac�n�tyre, o bem é a eudamonia, cuja difícil tradução pode ser feita como o estado de estar bem e de fazer o bem ao estar bem. As virtudes seriam as qualidades que permitiriam aos homens alcançar este bem, mas não podem ser encaradas como um meio. O que constitui o bem para os homens é uma vida completa, vivida da melhor forma

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possível, e o exercício das virtudes é uma parte necessária e funda�mental dessa vida, não se reduzindo a um exercício preparat�rio para a obtenção da felicidade.

Por outro lado, agir virtuosamente não é agir contra nossas incli�nações: é agir com base na inclinação formada pelo cultivo das virtu�des. O que é bom, portanto, exige a capacidade de discernimento, própria da razão prática, para além da mera obediência às normas e ao direito, cuja existência necessária não cobra a sua separação do reino da moralidade. �ssim, uma concepção do bem, e do homem vol�tado para o bem, na sua função social específica, ofereceria à ética aristotélica a condição de se pronunciar substantivamente sobre um ato ou vontade humana do mesmo modo que uma proposição factual, organizando um ponto de vista objetivo sobre nossas ações morais.

Ao afastar o aristotelismo de seu horizonte, pela adoção das va�riadas versões do emotivismo e suas sequelas burocr�ticas e indivi�dualistas, o Ocidente sofreu uma enorme perda. Tornou-se “weberia�no”, atravessado pelo “politeísmo de valores”, dependurado em normas pretensamente morais, como o imperativo kantiano, ou em um sistema jurídico-formal, e com o fantasma de Nietzsche a assom�br��lo. E elegeu suas m�scaras: a do esteta rico – à la Simmel –, a do terapeuta e a do administrador �entre os quais se situam os econo�mistas e os soci�logos�. Nenhum destes personagens é capaz de rea�lizar um debate moral. Os conflitos, entre indivíduos ou interiores a eles, são sempre uma confrontação entre uma arbitrariedade contin�gente e outra, e esta perda da capacidade de discriminação moral foi, equivocadamente, celebrada como progresso e acréscimo de liberda�de. �o alcançar a soberania em seu pr�prio domínio, o indivíduo perdeu seus limites tradicionais proporcionados por uma identidade social e uma visão da vida humana marcada por um fim determina�do, teísta ou não. Diante desse diagn�stico, cabe a pergunta: pode�mos ainda conceber a vida humana como uma unidade, as virtudes como capacitadoras para um fim? MacIntire acredita que sim, pela restauração do aristotelismo em formas locais de comunidade, ao modo das cidades italianas da Renascença. Mas avisa que isto é uma espécie de fé.

Não tenho a intenção de fazer justiça a MacIntyre e ao seu livro. Meu interesse é o de ressaltar a estrutura de seu argumento, que tenta capturar o emotivismo moderno jogando�o contra mais de um milênio de história e contra um fundo comum às religiões e culturas pr�prias ou mais pr�ximas do Ocidente. E, de certo modo, descre�vendo a modernidade ocidental como um processo contingente, não necess�rio, como um acidente no interior de toda a hist�ria da hu�

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manidade, que nos obriga no presente a retornar a uma fonte esque�cida de significado. Embora a solução de MacIntyre não seja a mes�ma de Ratzinger, a estrutura do argumento é semelhante. O mesmo propósito ressurge ampliado e balanceado em Charles Taylor, com o seu A Secular Age.

A questão básica que Taylor se põe é a seguinte: The change I want to define and trace is one which takes us from a society in which it was virtually impossible not to believe in God, to one in which faith, even for the staunchest believer, is one human possibility among others (A mudança que eu quero definir e traçar é aquela que nos leva de uma sociedade em que era virtualmente impossível não acre�ditar em Deus àquela em que a fé, mesmo para o mais fiel crente, é uma possibilidade humana, entre outros). Taylor recusa a explicação das teorias tradicionais da secularização, com origens weberianas, que acabam por supor a existência, no Ocidente, de um processo retilíneo e crescente de desencantamento do mundo e racionalização da vida, libertando as v�rias dimensões públicas da vida social do império das religiões. Além de insuficiente, esta versão seria apenas a primeira de uma das três possíveis encontradas por ele. A segunda estaria fundada na hipótese da diminuição progressiva dos crentes, mesmo em sociedades que mantivessem vestígios de referência pú�blica a Deus. E, finalmente, a terceira e mais complexa, tentaria des�vendar o caminho hist�rico seguido pelo Ocidente para a passagem de uma forma de vida em que a crença em Deus não era ou não podia ser desafiada para uma sociedade em que esta seria apenas uma opção entre outras, e não a mais fácil de abraçar. Esta última é a perspectiva com a qual trabalha para um cuidadoso olhar sobre os cinco últimos séculos vividos pelo norte do Ocidente. �s duas primei�ras perspectivas seriam extremamente restritas e duvidosas, diz Taylor. Não apenas porque o desenvolvimento da ciência não seria incompatível com a crença em Deus, como nada indica que o núme�ro de pessoas com – ou em busca de – experiências religiosas varia�das tenha diminuído no Ocidente.

Como bom hegeliano, Taylor está atento ao caráter dialético, e não sagital, da secularização ocidental. Os antecedentes deste pro�cesso podem ser encontrados ainda na �dade Média, na atuação de elites – religiosas ou não – interessadas numa crescente individuação da fé, em detrimento das formas rituais e públicas da religiosidade do cristianismo. Este movimento adquire uma força contagiante na Reforma Protestante, escapando de seus limites elitistas. A Reforma Protestante constitui, para Taylor, um passo decisivo para a criação do que ele chama de “humanismo exclusivo”, pr�prio da seculariza�

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ção, que propicia o aparecimento do Deísmo, da ética da benevolên�cia e da concepção da sociedade como uma ordem impessoal. � base antropol�gica deste caminho seria a construção de um buffered self �autotampão�, por oposição ao self poroso do cristianismo medieval, aberto à experiência do transcendente. Mas esta sociedade da impes�soalidade, da rotina, do homem comum e da vida comum, logo pro�voca a reação em nome da “plenitude” da vida, como no Romantismo ou em Nietzsche, em busca de algo heróico diante da ausência de sentido substancial para a vida. Estas reações não mais necessitam do transcendente, desdobrando�se no interior do immanent frame �estrutura imanente� constitutivo da secularização.

Tal como Elias, Taylor vê o processo civilizatório ocidental como a disseminação de comportamentos e pr�ticas adotados inicialmente por elites ou aristocracias. Os efeitos “Nova” – termo retirado da Físi�ca – e “Super�Nova” ocorrem precisamente quando, no interior do immanent frame, multiplicam�se as possibilidades competitivas de concepções de vida boa e “plenitude” entre as elites e altera�se deci�sivamente o “imagin�rio social” da população europeia, em especial no século XIX. Nesse momento, materializa-se com clareza o que ele chama de secularização um – o avanço da ciência e da técnica sobre as crenças teístas tradicionais – e a secularização dois, a diminuição do número de crentes e a generalização de uma atitude, ou de incre�dulidade ou de indiferença religiosa.

O desenvolvimento deste immanent frame muda inteiramente as condições para os crentes. Se no mundo medieval prevalecia uma crença naif em Deus, agora as circunstâncias da secularização a re�clamam como uma crença reflexiva, como uma opção entre outras de plenitude. Reflexividade que também aumenta as possibilidades de experiência, ou do transcendente ou de um sentido além da vida, tornando mais complexa e variada a vida religiosa dos europeus e norte�americanos. � “era das mobilizações” e a “era da autenticida�de”, em épocas recentes, teriam ampliado as possibilidades dos cam�pos dos crentes e dos não crentes, resultando no aparecimento de alternativas de experiências de plenitude que parecem se despedir daquilo que conhecemos como hist�ria cristã e ocidental.

Este pálido resumo do complexo panorama desenhado por Taylor é suficiente, no momento e para os propósitos deste texto. Mas algu�mas observações merecem ser feitas.

Taylor não deseja tratar a crença e a descrença como perspectivas competidoras, envolvidas num jogo de soma-zero, mas como diferen�tes formas de entender a vida e de diferentes formas de responder às

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nossas perguntas e desafios práticos. Assim, o panorama atual do norte do Ocidente seria composto por esta pluralidade interna dos dois campos – dos crentes e não crentes –, e atravessado por pressões cruzadas e dilemas nascidos de questões como o aborto, a eutan�sia, a clonagem humana, a exploração de embriões, que afetam as pessoas tanto quanto o casamento entre homossexuais, a proximidade de ou�tras culturas trazidas pela migração e assim por diante. Pluralidade e dilemas que tendem a enfraquecer a força de todas as opções. Taylor sem dúvida reconhece os ganhos da hist�ria moderna do Ocidente, como os direitos humanos, o respeito maior à pessoa, a capacidade técnica e científica de controle da natureza, o desenvolvimento mate�rial, e não demonstra nenhuma tolerância para com as atitudes rea�cionárias do Catolicismo, a exemplo daquelas de Pio IX. Mas, ao final, mesmo com esta percepção balanceada dos ganhos e perdas do Oci�dente, não hesita em retomar o ponto de MacIntyre: tudo isso foi um grande “desvio” de um ponto original, uma torção hist�rica que opôs razão e fé de forma contingente e desnecessária. O retorno a esta ori�gem não equivale, para Taylor, a uma volta ao mundo medieval, mas à noção de ágape, ou seja, o amor de Deus por cada um de n�s e que podemos compartilhar com os outros. De um ponto de vista pr�tico, isso pode parecer frustrante. Na entrevista a The Utopians, Taylor é mais claro. Retoma a ideia de “ecumenismo” do Vaticano �� para a con�vivência de culturas e religiões – tema a respeito do qual o Papa não sabe o que dizer, acrescenta – e sugere que, diante deste panorama de pluralidade, a esquerda ocidental deveria se orientar pelo fortaleci�mento do republicanismo, reativando a experiência do humanismo cí�vico, ponto que o aproxima mais uma vez de MacIntyre.

O livro de Taylor é uma fundamentação exaustiva de um pensa�mento pós-secular, feito de um ponto de vista católico, não protestan�te e não weberiano. O protestantismo representa um afastamento da origem que Taylor quer recuperar, um passo do grande “desvio” mo�derno e ocidental, e a sociologia de tipo weberiana – em especial a sua versão da secularização – é a manifestação mais clara de uma teoria unthought, ou seja, uma teoria na qual a imaginação teorética é deter�minada por um determinado esquema de crenças e valores de um in�vestigador subsumido ao immanent frame. Surpreendentemente, o apoio a este tipo de vertente reflexiva católica vem de um marxista, Terry Eagleton, que, por várias razões, celebra a afinidade entre a teo�logia fundante do Cristianismo e as aspirações de Marx e de um socia�lismo mais aberto. Na verdade, a preocupação de Eagleton é a de con�trabalançar os efeitos do ceticismo pós-modernista, encontrando nos aspectos revolucion�rios originais do cristianismo e do marxismo um meio de reconstruir uma ética transformadora.

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Em O debate sobre Deus Eagleton investe contra o exército dos Novos Ateus, representados por Richard Dawkins e Christopher Hitchens. O curto prefácio com que inicia seu livro já é absolutamen�te revelador. É tão verdade que a religião tem provocado um terrível sofrimento à humanidade – afirmação com a qual ele concorda – quanto a redução das escrituras judaicas e cristãs a uma caricatura, de forma especial o Novo Testamento. Contra esta indolência intelec�tual, Eagleton não convida ninguém a tornar�se um crente ou a co�nhecer melhor um oponente, mas a descobrir, no cristianismo, os:

�...� insights valiosos quanto à emancipação humana, numa época em que a esquerda política carece seriamente de boas ideias... as escrituras judaicas e cristãs têm muito a dizer sobre algumas questões vitais – morte, sofrimento, amor, au�todespojamento e congêneres – a respeito das quais a esquer�da, em boa parte do tempo, tem se mantido em silêncio. Está na hora de por fim a esta timidez politicamente incapacitante.

Em outro livro, O problema dos desconhecidos. Um estudo da éti-ca, Eagleton retoma e desenvolve a mesma inspiração. Escolhe, para reunir e distinguir as grandes famílias morais do Ocidente, a trinda�de lacaniana do �magin�rio, do Simb�lico e do Real. Cada uma des�tas dimensões produziria um tipo de ética ou moral: a ética da bene�volência, como em Adam Smith, a moral hiper-racional ao estilo kantiano, e a ética do Real, representada por Levinas, Derrida, Badiou e Zizek. Eagleton assinala os limites de cada uma destas ver�tentes, reclamando a necessidade de um retorno à tradição judaico��cristã, antes de sua institucionalização em �greja, e ao marxismo de antes do stalinismo, formas de traição do significado político e liber�t�rio que ambos abrigavam em sua origem.

Não h� aqui como discutir detalhadamente o que Eagleton nos oferece, mas vale ressaltar o que ele julga ser aquilo que associa as vertentes originais do cristianismo e do marxismo, e que as torna superiores às outras éticas fundadas no imaginário, no simbólico e no real:

A fé cristã, como a entendo, não é primariamente uma ques�tão de avalizar o postulado da existência de um Ser Supre�mo, mas o tipo de compromisso manifestado por um ser hu�mano no final de seus limites, de seus tropeços na escuridão, na dor e na confusão, que mesmo assim permanece fiel à promessa de um amor transformador.

MacIntyre e Taylor assinariam embaixo, com reservas em relação à crença em um Ser Supremo. De toda forma, é pelo aristotelismo que

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também Eagleton recupera uma ideia de ética destinada a esclarecer o que é o bem para os homens, insistindo no tema do ágape cristão como o fundamento desta ética do amor transformador. A recuperação desta vertente aristotélica permite uma provocação final. O fenômeno religioso mais evidente hoje no Brasil é o aparecimento e a dissemina�ção do pentecostalismo entre os setores mais pobres e numerosos da sociedade brasileira, resultado de dois processos hist�ricos concomi�tantes. O primeiro seria precisamente a demonização, pelas nossas elites modernizantes e pela pr�pria cúpula do catolicismo durante os séculos 19 e 20, da religiosidade popular dos nossos três primeiros séculos de história. Na verdade, foi a linguagem religiosa destes sécu�los que se ofereceu, com seu barroquismo aristotélico, como território para a conformação de uma sociedade que, apesar do latifúndio, da escravidão e da violência, detinha um grande poder de incorporação e uma dinâmica plural e potencialmente democr�tica. � este desprezo por uma tradição religiosa se somou o caráter demofóbico de nosso processo de modernização, que não previa a nossa modernidade como expressão de uma construção ética democr�tica ou de um possível overlapping consensus interpelador das religiões ou de configurações éticas presentes na vida concreta do povo brasileiro.

Se a vertente reflexiva que apresentei pode ter uma consequência, é a de nos livrar deste aparente imperativo de condenação sociol�gica da religiosidade original da população brasileira ou das formas atuais de experiência religiosa e éticas entre nós. E com isso abrir as portas para uma compreensão mais generosa dos sonhos que habitaram e habitam este imagin�rio. O pentecostalismo hoje presente no Brasil não é herdeiro da grande tradição incorporadora do catolicismo, a não ser que ele seja convencido de que pode ser. Hoje, ele pouco tem a ver com a constituição de uma sociedade capaz de compartilhar, na sua pluralidade, uma ética transformadora. A mesma coisa pode ser dita a respeito do catolicismo brasileiro, atribulado por uma clara impotên�cia te�rica e pr�tica. Sem dúvida, não cabe à academia o objetivo de fortalecer uma ou outra opção religiosa. Mas certamente, se deseja�mos ser algo mais do que um m�dulo autopoiético de um processo simplesmente racionalizador, no sentido weberiano, não podemos mais encarar as religiões apenas como objetos de estudo, sobre elas derramando uma concepção unthought a respeito da modernidade. Se tanto a atividade acadêmica quanto a experiência religiosa constituem jogos de linguagem, não há dúvida que esta consciência de nossa his�toricidade deve se desdobrar na persuasão de que temos – os cientis�tas, os crentes e não crentes – um desafio em comum: a construção e a consolidação de uma democracia. Sobre isto temos coisas a dizer às religiões, do mesmo modo que temos coisas a ouvir de todas elas.

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Referências

BELLAH, Robert et al. Habits of the heart: individualism and commitment in American life. Berkeley: University of California Press, 1996.

EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

______. O debate sobre Deus. São Paulo: Nova Fronteira, 2010.

MACINTYRE, �lasdair. Depois da virtude. �radução de Jussara Simões. Bauru, SP: Edusc, 2001.

TAYLOR, Charles. A secular age. Cambridge: Massachussets / London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2007.