ARTIGO São Bernardo Para Revista UFS

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PAULO HONÓRIO-FAZENDEIRO POR PAULO HONÓRIO-ESCRITOR: A IMPOSTURA DE UMA VOZ Alessandra Valério 1 RESUMO: O romance São Bernardo de Graciliano Ramos conta com uma vasta tradição de leitura e orientação de sentidos que se centram amiúde, em uma perspectiva política, nas relações sociais e históricas que aparecem transmutadas na obra. Contudo, o objetivo deste artigo é desviar desse itinerário tradicional e propor uma leitura de interstícios que desvele discursos latentes e operantes da constituição e organização do romance. Sob essa perspectiva, as perguntas que direcionaram esse olhar outro sobre a obra são: Por que e para quem Paulo Honório escreve? Tais questões, apenas tangenciadas e comumente negligenciadas pela crítica convencional, agenciam a percepção de uma tensão engendrada pelo embate, confronto de dois universos: o letrado e o não-letrado, encabeçados, respectivamente, por Madalena e Paulo Honório. O resultado é o desvelamento de um discurso arbitrariamente imposto ao fazendeiro: a imposição da necessidade da escrita que resulta na impostura de uma voz. PALAVRAS-CHAVE: São Bernardo, trabalho braçal, trabalho intelectual Texto, Contexto e Fortuna Crítica São Bernardo, romance de Graciliano Ramos publicado em 1934, nomeia, respectivamente, duas construções resultantes dos esforços desmedidos de seu criador Paulo Honório - a fazenda e o livro. Do fracasso da primeira empreitada, surge a necessidade da segunda, ou seja, o fim da trajetória gloriosa da Fazenda São Bernardo engendra a construção do romance que a representa. Propriedade e livro seguem trajetórias opostas, enquanto a 1 Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual do Paraná – Unioeste. [email protected] 1

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Análise São Bernardo

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PAULO HONRIO-FAZENDEIRO POR PAULO HONRIO-ESCRITOR: A IMPOSTURA DE UMA VOZ

Alessandra Valrio[footnoteRef:1] [1: Doutoranda em Estudos Literrios pela Universidade Estadual do Paran Unioeste. [email protected] ]

RESUMO: O romance So Bernardo de Graciliano Ramos conta com uma vasta tradio de leitura e orientao de sentidos que se centram amide, em uma perspectiva poltica, nas relaes sociais e histricas que aparecem transmutadas na obra. Contudo, o objetivo deste artigo desviar desse itinerrio tradicional e propor uma leitura de interstcios que desvele discursos latentes e operantes da constituio e organizao do romance. Sob essa perspectiva, as perguntas que direcionaram esse olhar outro sobre a obra so: Por que e para quem Paulo Honrio escreve? Tais questes, apenas tangenciadas e comumente negligenciadas pela crtica convencional, agenciam a percepo de uma tenso engendrada pelo embate, confronto de dois universos: o letrado e o no-letrado, encabeados, respectivamente, por Madalena e Paulo Honrio. O resultado o desvelamento de um discurso arbitrariamente imposto ao fazendeiro: a imposio da necessidade da escrita que resulta na impostura de uma voz.

PALAVRAS-CHAVE: So Bernardo, trabalho braal, trabalho intelectual

Texto, Contexto e Fortuna Crtica

So Bernardo, romance de Graciliano Ramos publicado em 1934, nomeia, respectivamente, duas construes resultantes dos esforos desmedidos de seu criador Paulo Honrio - a fazenda e o livro. Do fracasso da primeira empreitada, surge a necessidade da segunda, ou seja, o fim da trajetria gloriosa da Fazenda So Bernardo engendra a construo do romance que a representa. Propriedade e livro seguem trajetrias opostas, enquanto a primeira desliza pela curva do sucesso ao fracasso, a literatura alcana a plenitude aps um percurso marcado por tentativas frustradas e mudanas de estratgia do autor.

Paulo Honrio, narrador-fazendeiro-escritor, conduz-nos pela narrativa de sua vida, da ascenso e estabelecimento como grande proprietrio rural at o seu esmorecimento completo deflagrado pelo suicdio da esposa Madalena, que sinaliza a necessidade do incio da escrita do livro. Gradualmente, vai descortinando diante de si e do leitor a conscincia do estado de sua misria emocional e do fracasso humano em que chafurda sua existncia, o drama psicolgico de quem se d conta da falncia e inocuidade do prprio projeto de vida.

A trajetria narrada por PH marcada pela sua viso de mundo utilitarista e reificada, suas decises so pautadas pela balana de lucros e prejuzos e todas as suas relaes, com amigos, mulheres e subalternos, do-se nesse mesmo regime. A prpria linguagem do romance traduz essa secura e objetividade cortantes, Comeo declarando que me chamo Paulo Honrio, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo So Pedro (RAMOS, 2011, p. 09).

Sem origem definida, o narrador cresce em meio misria no interior de Alagoas, criado pela velha Margarida e por um cego que lhe puxava as orelhas, sendo essas as nicas referncias familiares de que dispe. Aos 18 anos, assassina Joo Fagundes, um ladro de cavalos que lhe roubou Germana, mocinha com quem tinha um caso. Na priso, aprende os rudimentos de leitura e escrita com Joaquim sapateiro em uma bblia protestante. Uma vez livre, converge todos os seus esforos para a obteno de seu patrimnio, o que ocorre por meio de negociatas escusas, meios brutos e muita agilidade mercenria.

A tradio de leitura de So Bernardo conta com quatro expoentes: Antnio Candido, Carlos Nelson Coutinho, Ruy Mouro e Joo Luiz Lafet. A tnica dessas crticas consiste, em linhas gerais, na identificao do processo de reificao de PH e de suas relaes, oriundo da ascenso do discurso burgus e das contradies socioeconmicas vividas no pas num momento de transio do semicolonialismo ao pr-capitalismo, assim como a relevncia da obra de Graciliano para o projeto esttico conhecido como romance de 30 ou neorrealismo. Quanto a esse aspecto, Candido (2006) reconhece em So Bernardo uma originalidade que o faz pertencer a esse grupo, mas, ao mesmo tempo, permanecer isolado: Se no o faz maior do que os demais, torna-o sem dvida mais estranho, quase mpar (2006,p.32). Coutinho (1978) tambm destaca essa singularidade, sendo que para ele, essa obra de Graciliano que, aps Machado de Assis, marca a passagem da crnica histria concreta, a superao de um naturalismo que se contentava em descrever a superfcie da realidade, por um realismo verdadeiro como a vida (1978, p.74).

O chamado Romance de 30 se destacou no cenrio literrio brasileiro pela sua tendncia de trazer pauta de discusses os problemas sociais vividos no incio do sculo XX, como a formao do proletariado, a questo das secas, o xodo rural e seus desdobramentos. So obras que fazem uso da matria regional, contudo, sem se valerem do caricato ou do pitoresco, o que Antonio Candido (1986) denominou de regionalismo problemtico. Salvaguardada as devidas distines e os objetivos dspares, avultam entre esses escritores: Graciliano Ramos, Jorge Amado e Jos Lins do Rego. Localizando o Romance de 30 no movimento maior do Modernismo brasileiro, Lafet (1992) o distingue como o projeto ideolgico sucessivo ao projeto esttico que prevaleceu nos anos 20. Isso porque o Modernismo no Brasil, segundo o autor, empreendeu primeiramente uma passagem de renovao dos meios de expresso, retirando-os do obsoletismo parnasiano para, posteriormente, na dcada de 30, incorrer em uma forte adeso dos escritores a uma viso ultracrtica acerca da realidade social do pas.

Em So Bernardo, Graciliano Ramos congrega, deliberadamente, esses dois projetos: o da denncia e o da esttica. No s as questes sociais ganham densidade fugindo ao caricatural naturalista tpico, como tambm a linguagem renovada prescinde do beletrismo, registrando uma fuso equilibrada entre o falar regional e a expresso literria. A evidncia dessas intenes de Graciliano pode ser conferida em carta que ele remete esposa, Helosa Ramos, em 1 de novembro de 1932:

O S. Bernardo est pronto, mas foi escrito quase em todo o portugus, como voc viu. Agora est sendo traduzido para brasileiro, um brasileiro encrencado muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expresses inditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. (RAMOS apud MIRANDA, 2004, p.24)

Esse aspecto lingustico tambm refora a notvel distino da obra de Graciliano em relao a de seus contemporneos e ao quadro literrio brasileiro. O autor, conforme Miranda (2004, p.25), submete a lngua oral aos rigores da norma gramatical e a uma requintada reelaborao (...), o resultado uma dico clssica, simultaneamente experimental. Candido (2006) tambm reconhece essa particularidade da linguagem de Graciliano, atribuindo a ela a expresso unidade violenta por conjugar o objetivismo, rudeza e uma profunda capacidade de expresso: Este grande livro curto, direto e bruto (2006, p. 32).

No tocante realidade que forneceu matria-prima para o Romance de 30 e que emoldura So Bernardo, ela advm das contradies de um sistema econmico e poltico ainda coloniais em choque com a incipiente emancipao capitalista cenrio brasileiro das primeiras dcadas do sculo XX. Segundo Coutinho (1978), as tmidas renovaes trazidas pelo sistema capitalista esboavam-se, neste perodo, por todo o pas, mas foi no nordeste que encontrou barreiras quase intransponveis. Os contrastes se tornavam mais gritantes medida que a modernizao se chocava com os valores coronelistas da sociedade nordestina, o que fazia da regio um polo de tenses entre passado e futuro. Contudo, o esgotamento das potencialidades de nossa economia semifeudal no fora seguido por uma renovao radical, pela criao de uma forma moderna de economia e de relaes sociais (COUTINHO, 1978, p.74). O desenvolvimento do capitalismo no interior dessas esferas no promoveu a consolidao de uma sociedade burguesa, portanto, no houve uma revolucionria modificao na viso de mundo local, como ocorreu na Europa. Pelo contrrio, o individualismo, trao ideolgico fundante do pensamento burgus, apenas fomentou a j existente explorao do trabalho humano, aprofundando o abismo entre as classes.

So Bernardo capta eficientemente esses conflitos estruturantes da viso de mundo da poca, transformando-os no elemento propulsor de sua narrativa. Assim, as contradies do plano externo, sentidas pelo choque, pela agregao e, principalmente, pela combinao de novos valores burgueses aos velhos princpios colonialistas, so transmutadas na estrutura interna da obra que registra, por um lado, as tenses sociais da poca e, de outro, os impasses psicolgicos da internalizao desses novos valores. Graciliano traduz com maestria o esprito de um mundo latente, os mecanismos dissimulados do universo capitalista, no que ele tem de menos evidente - as contradies, os conflitos e as snteses mais improvveis. A constituio do heri problemtico, como o definiu Candido (2006), sintomtica disso.

Paulo Honrio, em princpio, pode ser considerado um self made man, inconformado com sua condio de misria e movido por uma ambio poderosa, transpe as barreiras de classe, avana por espaos interditos e alcana o poder e o dinheiro. Com a trajetria de PH, Graciliano aponta um dos traos essenciais do capitalismo nascente: o crescimento da mobilidade social, o rompimento com as barreiras coaguladas do feudalismo (COUTINHO, 1978, p. 86). O contraste avultante entre a energia de PH e a estagnao de seu Ribeiro, por exemplo, torna o proprietrio de So Bernardo um cone da vontade de transformao, trao caracterstico da classe burguesa. Seu Ribeiro, tpico coronel, totalmente indiferente ao movimento de renovao que ocorre em seu mundo. Permanecendo estanque, vai empobrecendo e perdendo poder em detrimento de PH, que adere a essa dinmica inexorvel e toma partido dela: Tenho a impresso de que o senhor deixou as pernas debaixo de um automvel, seu Ribeiro. Por que no andou mais depressa? o diabo (RAMOS, 2011, p. 29). Velocidade, agilidade e alto poder de alcance o que distingue as pernas obsoletas de seu Ribeiro e o automvel de PH. Essas so, segundo a crtica, as caractersticas do heri que o tornam um emblema da nova classe insurgente: Paulo Honrio , ali, o dnamo que gera energia e arrebata tudo, provocando uma completa e incessante modificao nas relaes globais daquele mundo (LAFET, 1992, p.206).

Contudo, a ascenso do fazendeiro o revela um verdadeiro dspota, em nada diferente de um coronel de latifndio colonialista no seu exerccio de poder absoluto. Nesse sentido, coaduna em PH o desejo avassalador por transformar tudo em capital do tpico burgus e a velha postura tirana e opressora do coronelismo brasileiro. O progresso e a inovao trazidos para So Bernardo coabitam com o provincianismo moral e emocional de Paulo Honrio, contornando as contradies gritantes e o choque entre os diferentes espritos de poca. A personalidade do protagonista resultante da sntese da violncia imperialista do burgus e do anseio de poder tirnico do coronel, e se transpe nas suas relaes com o outro, por meio de uma brutal reificao.

Esse sentimento desproporcional de propriedade do protagonista, a nsia de transformar tudo em objeto de troca , sem dvida, a fora disjuntiva que o arrasta misria emocional e humana, e constitui a tnica da maior parte da fortuna crtica de So Bernardo. Candido (2006), Coutinho (1978) e Lafet (1992), cujas anlises recorrem a diferentes prismas de observao, reconhecem ser esse sentimento o tema unificador do romance: a assimilao inconsequente do discurso do capital e sua transposio para as relaes humanas, que resulta em segregao, solido e destruio.

Por que Paulo Honrio escreve?

Se submetermos o romance So Bernardo ao crivo de algumas perguntas ordinrias tais como: quem? Fez o qu? Quando? Onde? Por qu?, notar-se- que a primeira e a ltima questo no admitem respostas fceis. No entanto, se a primeira pergunta ainda conta com esclarecimentos, mesmo que evasivos, por parte dos estudos realizados at aqui, a segunda resposta parece afundada em silncio e ausncias. Quem e por que Paulo Honrio escreve um livro? Ou, desdobrando melhor: por que um fazendeiro boal, utilitarista, materialista que esnoba e despreza a cultura letrada, que a v com desconfiana e hostilidade se rende escrita de um inusitado romance? Por que Paulo Honrio decide aderir a um discurso que se confronta totalmente com as linhas ideolgicas abstradas de sua vivncia pragmtica?

Os tateamentos realizados pela fortuna crtica apenas tangenciam essa questo, que parece ser vista com certa naturalidade, sem muita problematizao. Candido (2006), em uma meno rpida ao caso, sugere ser por meio da escrita do livro que PH obtm uma viso ordenada das coisas e de si, pois no momento em que se conhece pela narrativa destri-se enquanto homem de propriedade (2006, p.43), mais adiante conclui: constri com o testemunho de sua dor a obra que redime (id ibid, p. 43). Conhecer-se por meio da narrativa no parece ser uma alternativa coerente com a saga de Paulo Honrio. A elaborao de si por meio do instrumento artstico no uma tendncia natural em um indivduo que construiu seu mapa cognitivo de apreenso do mundo pautado na luta pela subsistncia, no trabalho braal, na fora fsica. A rusticidade da viso de mundo de Paulo Honrio poderia eleger outras alternativas de redeno e reviso da prpria vida, que no a complexa elaborao de um objeto artstico, uma vez que ele consciente do problema esttico da escrita. A opo pelo relato oral, por exemplo, ou a escrita de uma carta figura entre o leque de alternativas negligenciadas pelo narrador.

Ruy Mouro (1978), em texto que analisa a estratgia narrativa de So Bernardo, acredita que a opo de escrita de PH se deva a uma simples necessidade de confessar-se, por imposio de um drama psicolgico, e sendo reservado, orgulhoso e sem religio, resolvera aliviar a conscincia de maneira indireta, apelando para a simbologia romanesca (1978, p. 169). Nesse caso, a imposio psicolgica de PH decidira por uma confisso indireta, distanciada por meio da escrita teraputica. Mas um dirio ntimo, nesse caso, no resolveria o problema? Por que algum to orgulhoso e prepotente exporia sua conscincia culpada atravs de um romance? (Lembrando que, a princpio, seu nome figuraria na capa). Nesse sentido, outra pergunta se torna substancial: para quem Paulo Honrio escreve? Quem seriam os leitores desse livro?

Para Miranda (2004), a opo de Paulo Honrio pela escrita de um romance est relacionada ao seu irrefrevel desejo de posse. Desse modo, o livro seria uma tentativa de apropriar-se do discurso do outro e faz-lo calar (MIRANDA, 2004, p. 26), ou seja, a empreitada caracterizaria a tentativa de domnio do discurso letrado, a incurso de seu imperialismo pelo mundo das palavras, territrio por ele no dominado. Em parte, sobre esse argumento que est fundamentada a hiptese aqui defendida: no apenas o desejo de posse que impele Paulo Honrio escrita, mas a tentativa frustrada de dominar o fantasma das palavras para quem ele realmente perdeu a guerra, a necessidade de controle sobre algo que o humilhava o mundo letrado. Mesmo depois da morte de Madalena, o fracasso real do protagonista se torna mais evidente quando visto a partir dessa perspectiva. A anlise seguinte proceder de modo a justificar essa missiva.

Paulo Honrio-fazendeiro x Paulo Honrio-escritor

consensual, nos estudos crticos, a percepo da ambiguidade constitutiva da personagem Paulo Honrio. Abdalla Jnior (1985) sintetiza: Houve uma ntida diviso em PH: como fazendeiro era acrtico, desumano; como escritor era problemtico, humano. Logo, uma personagem dialtica, com valores em contraste coexistindo no mesmo indivduo (1985, p. 266 267). No ensaio Os bichos do subterrneo, Antonio Candido (2006, p. 112) corrobora essa duplicidade do carter do protagonista:

O narrador sente que o homem que ele manifestou para o mundo, e se desumanizou na conquista da fazenda So Bernardo, no domnio sobre os outros que esse homem era uma parte de seu ser, no o seu ser autntico; mas que o contaminou todo, inclusive a outra parte que no soube trazer a tona e que avulta de repente aos seus olhos espantados, levando-o a desleixar da fazenda, os negcios, os animais, porque tudo estava fora dele.

A partir das anlises, podem-se abstrair duas vozes, sob cuja tenso se organiza So Bernardo: a do PH-fazendeiro-desumano x a do PH-escritor-humanizado. Essas vozes compem dois planos distintos na narrativa: o do enunciado e da enunciao, que correspondem, respectivamente, construo da fazenda e composio do livro, ao passado e ao presente.

Contudo, importante destacar que por meio da perspectiva do escritor que nos apresentada a trajetria do fazendeiro. o olhar daquele que invalida todo o percurso de PH-empreendedor, que questiona o aparente sucesso da construo de So Bernardo, que ressalta a inaptido do protagonista com as pessoas e, em especial, com as palavras. Os eventos da vida do fazendeiro, eleitos para compor sua biografia, so selecionados em funo de um projeto de desconstruo do propsito de sua existncia, em funo de confirmar a inocuidade e fragilidade do discurso do self made man. E principalmente: Paulo Honrio-escritor ressalta, o tempo todo, a infinita inferioridade da instruo utilitria de Paulo Honrio-fazendeiro, que, mesmo lhe fornecendo habilidades para conquistar dinheiro e poder, no amplia sua viso de mundo animalesca. Pela perspectiva do narrador, o fracasso do protagonista se deve, em grande parte, pela sua deliberada rejeio ao universo letrado, ao valor da educao e da cultura enquanto fator de humanizao, encarnado, na trama, na figura de Madalena.

Vejamos como a voz do PH-escritor organiza a narrativa de modo a submeter PH-fazendeiro aos desdobramentos de seu discurso.

O captulo inicial da obra ainda nos apresenta um Paulo Honrio mais fazendeiro do que escritor. Ele pretende aplicar o seu modus operandi capitalista construo de um romance, ou seja, quer realiz-lo pela diviso do trabalho. Para isso, mobiliza alguns amigos, que consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais (RAMOS, 2011, p. 05). Essa justificativa empregada para a escrita do livro, no pargrafo de abertura de So Bernardo, no causa estranheza, a princpio, porque o leitor ainda no conhece a orientao do pensamento do protagonista no tocante ao valor das letras. No entanto, a releitura do romance torna estranha essa preocupao despropositada do fazendeiro com as letras nacionais, antes tidas como tolices. o primeiro indcio da contraditria adeso de Paulo Honrio ao discurso do Outro, o Paulo Honrio-escritor.

O estranhamento se aprofunda quando, na sequncia, ele afirma: e j via os volumes expostos, um milheiro vendido, graas aos elogios que, agora com a morte do Costa Brito, eu meteria na esfomeada Gazeta, mediante lambujem (RAMOS, 2011, p.05). Parece que, nesse momento, a razo do livro puramente comercial, o que endossa a viso do fazendeiro como um explorador nato da fora de trabalho alheia. At mesmo na escrita ele organizaria as tarefas dos amigos para, ao final, colocar o seu nome na capa. Isso denuncia um PH no rendido, ainda identificado com as linhas de conduta, e nos faz desconfiar da ideia do livro como forma de reviso de sua vida.

O reconhecimento da impossibilidade de se transpor o modelo de produo braal ao trabalho intelectual enterra definitivamente o fazendeiro-escritor. At o final do primeiro captulo, temos a tentativa de curvar a escrita, submet-la ao dispositivo de produtividade do latifundirio, contudo, a constatao de mais um fracasso o golpe final. O fazendeiro obrigado a reconhecer a inadequao de seus mtodos e a rever suas estratgias. O captulo II se abre com o escritor-fazendeiro.

Temeroso como quem invade um territrio desconhecido, o escritor PH justifica sua falta de jeito com as palavras: Tambm pode ser que, habituado a lidar com matutos, no confie suficientemente na compreenso dos leitores e repita passagens insignificantes (RAMOS, 2011, p.07). Revela-se consciente de estar lidando com leitores, sabe que ser avaliado por um pblico letrado, o que parece ressaltar sua condio de inferioridade: Se eu possusse metade da instruo de Madalena encoivarava isso brincando (RAMOS, 2011, p. 08).

Diante da dificuldade encontrada em realizar sua empresa, Paulo Honrio-escritor assume sua limitao: Digo a mim mesmo que essa pena um objeto pesado. No estou acostumado a pensar (RAMOS, 2011, p.07). notvel a inteno do narrador de So Bernardo em fazer o protagonista assumir que os conhecimentos adquiridos e desenvolvidos por ele ao longo de sua trajetria so invlidos nesse ofcio. E mais: reconhecer sua inabilidade escrita para ele assumir que no pensa, que as atividades braais so desprovidas de raciocnio e pensamento.

Mas Paulo Honrio persiste, e o que era para ser um livro de alta vendagem com seu nome na capa, torna-se uma espcie de confisso da ignorncia, assinado com pseudnimo: H fatos que eu no revelaria, cara a cara, a ningum. Vou narr-los porque a obra ser publicada com pseudnimo. E se souberem que sou o autor, naturalmente me chamaro potoqueiro (RAMOS, 2011, p. 07). Empregando seus prprios meios, reconhecendo a circunscrio esttica, ele mergulha nas suas memrias, fazendo o resgate da fase inicial de sua vida.

Do captulo III ao XIV, o leitor assiste, em alta velocidade narrativa, construo do fazendeiro Paulo Honrio e de seu empreendimento, a fazenda So Bernardo. A objetividade e deciso da narrao, nesta parte, contrastam notoriamente com as voltas, recuos e a oscilao dos primeiros captulos. A ascenso de PH da misria ao poder nos contada em um s folego, numa rapidez estonteante. No h perda de tempo na obteno do capital, o fazendeiro no hesita em utilizar todos os artifcios necessrios na aquisio da propriedade e no estabelecimento de seu poder. Desse modo, o narrador aprofunda o contraste entre o trabalho intelectual empreendido na construo do livro, que vagaroso, vacilante, complexo, e a atividade braal de PH que representada como resultante de decises simples, raciocnios rasteiros e muita violncia.

A obstinao capitalista de PH-fazendeiro proporcional a sua desconfiana em relao ao mundo dos letrados. Conforme a sua objetividade vai alcanando os resultados planejados, mais ele busca fundamentos para sustentar o receio aos intelectuais. O primeiro esboo desse discurso aparece na associao realizada pelo fazendeiro entre a decadncia econmica de Salustiano Padilha, antigo patro, e os esforos para pagar os estudos do filho, Luis Padilha: tinha levado uma vida de economias indecentes para fazer o folho doutor, acabara morrendo do estmago e de fome sem ver na famlia o ttulo que ambicionava (RAMOS, 2011, p. 12). A mesma ligao entre potencial intelectual e fracasso material traduzida pela histria de seu Ribeiro. O antigo fazendeiro era um homem de cincia: Se se divulgava uma dessas palavras esquisitas, seu Ribeiro explicava a significao dela e aumentava o vocabulrio da povoao (RAMOS, 2011, p.27), humanizado, portanto, pelo domnio cultural. Nas suas terras, os pretos no sabiam que eram pretos, e os brancos no sabiam que eram brancos (RAMOS, 2011, p.29). A runa de seu Ribeiro exprime a moral implcita de Paulo Honrio, a derrota do velho foi engendrada por essa combinao perigosa de sabedoria e bondade, que tornou seu carter complacente, solidrio demais ao outro.

O raciocnio de Paulo Honrio ope, dessa forma, sucesso, dinheiro e poder a intelectualismo e solidariedade. Mas, mesmo reconhecendo a inferioridade do segundo conjunto, o fazendeiro parece intuir o seu poder subversivo, sua capacidade desagregadora. E, como a um inimigo que se teme por isso, no se perde de vista, ele decide manter sob o jugo de seu poder, sempre que possvel, os indivduos letrados da trama. Assim, tem ao seu lado seu Ribeiro, Padilha, Gondim, periodista de boa ndole que escreve o que lhe mandam (RAMOS, 2011, p. 05), Joo Nogueira, advogado, de quem reconhece a utilidade das aptides, mas julgava-me superior a ele, embora possuindo menos cincia e menos manha. At certo ponto parecia-me que as habilidades dele mereciam desprezo (RAMOS, 2011, p.43).

Mas em relao aos seus trabalhadores que a ojeriza e o temor acerca da educao ganham contornos definitivos. Em especial, a passagem da visita do governador a So Bernardo, funciona, principalmente, para escancarar a desconfiana de PH em relao s letras. Ao ser indagado sobre a construo de escolas na propriedade, o fazendeiro mal contm sua indignao:

No almoo, que teve champanhe, o Dr. Magalhes gemeu um discurso. S. Ex.a tornou a falar na escola. Tive vontade de dar uns apartes, mas contive-me. Escola! Que me importava que os outros soubessem ler ou fossem analfabetos? (RAMOS, 2011, p.32)

Apesar de identificar o perigo iminente que significava a construo da escola, PH decide realizar o projeto para agradar ao governador. E, em mais um ato simblico de seu desejo sdico de domnio desse territrio, prope a contratao de Padilha como mestre-escola, por um salrio miservel. Por que trazer um inimigo, mesmo que no-declarado, para o exerccio de uma atividade que julgava to perigosa? Eu sentia prazer em humilh-lo (RAMOS, 2011, p.45), confessa Paulo Honrio. Submeter Padilha aos desmandos na fazenda que fora do seu pai reitera o fracasso e a falncia da elite letrada em contraste com o sucesso de seu utilitarismo capitalista, sustentado pela fora e pela violncia.

O episdio da briga com Costa Brito endossa a inquietao de Paulo Honrio acerca dos sobreviventes da palavra. Ao se sentir explorado pelo jornalista, o fazendeiro decide romper com os subsdios que lhe fornecia, acreditando estar acima de qualquer ameaa provocada por manipulao de discursos: Que diabo diria ele contra mim? (...) O veneno da Gazeta no me atingia (RAMOS, 2011, p.47). Ao constatar o equvoco, o protagonista se d conta do poder da palavra, sente-se ultrajado e reage violentamente: Em resposta passei-lhe os gadanhos no cachao e dei-lhe um bando de chicotadas (RAMOS, 2011, p. 55). A boalidade da reao de Paulo Honrio insinua mais uma vez a animalidade de seu comportamento, a estreiteza do pensamento de quem no consegue reagir a palavras com palavras. Se dinheiro e poder no resolvem o conflito, utiliza-se a fora. Quando preso para justificar o desatino, mais uma vez ele no consegue faz-lo por seus prprios meios:

Fui chamado polcia. Apertaram-me com interrogatrios redundantes, perdi o trem das trs e no consegui demonstrar ao delegado que ele era ranzinza e estpido. Aborrecido, recorri a um bacharel (trezentos mil-ris, fora despesas midas com automvel, gorjetas e etc.) e embarquei vinte e quatro horas depois, levando nos ouvidos um sermo do secretrio do interior que me seringou liberdade de imprensa e outros disparates (RAMOS, 2011, p. 55, grifo nosso).

A nica linguagem que o fazendeiro domina a do capital, sua unidade de medida para tudo. Com as palavras, ele se atrapalha, seus recursos expressivos so restritos, o vocabulrio apequenado. A fora de seus argumentos pautada no poder ou na violncia, sem isso ele completamente indefeso. Paulo Honrio consciente dessa limitao e, em raras fissuras na couraa de seu discurso, deixa transparecer o desejo de reparao desse dano: Cerca de meia-noite descobri o advogado no hotel, discutindo poesia com Azevedo Gondim. Escutei uma hora, desejoso de instruir-me. No me instru (RAMOS, 2011, p. 51). Essa incapacidade expressiva aprofunda a distncia entre o fazendeiro e as pessoas a sua volta, afundando-o em desconfiana e hostilidade. Est consciente do abismo que o circunda por no conseguir comunicar seus sentimentos e nem a inteireza de suas ideias. O excerto a seguir profundamente ilustrativo dessa conscincia que desponta em PH, quando se v refletido nas aes de Casimiro:

(...) distra-me ouvindo Padilha e Casimiro Lopes conversarem a respeito de onas. No se entendem. Padilha, homem da mata e franzino, fala muito e admira as aes violentas; Casimiro Lopes coxo e tem um vocabulrio mesquinho. Julga o mestre-escola uma criatura superior, porque usa livros, mas para manifestar esta opinio arregala os olhos e d um pequeno assobio. Gagueja. No serto passava horas calado, e quando estava satisfeito, aboiava. Quanto a palavras, meia dzia delas. Ultimamente, ouvindo pessoas da cidade, tinha decorado alguns termos, que empregava fora de propsito e deturpados. Naquele dia, por mais que forcejasse, s conseguia dizer que as onas so bichos brabos e arteiros.

- Pintada. Dento grande, pezo grande, cada unha! Medonha! (RAMOS, 2011, p.41 grifo nosso)

possvel observar que, entre os captulos III e XIII, o narrador de So Bernardo permite que a voz do fazendeiro adquira ressonncia, dominando o plano discursivo. Embora nos aponte o tempo todo as fissuras e os recalques do discurso de Paulo Honrio, o escritor-fazendeiro cede espao ao desenvolvimento das linhas ideolgicas que aliceram o incipiente sucesso do personagem em sua trajetria. Contudo, no sem levantar suspeitas acerca da consistncia e legitimidade da ascenso de Paulo Honrio. A insistncia do narrador em sinalizar a lacuna intelectual do fazendeiro associada seleo de episdios que denunciam sua boalidade nos leva, ao final dessa parte, ao questionamento sobre a validade das conquistas de Paulo Honrio. Aquilo que, colocado de outra forma, poderia ser visto como uma luta titnica e legtima contra uma misria aterradora, torna-se uma investida tirnica e vazia em direo ao domnio e ao exerccio de posse.

No entanto, se at esse momento, mesmo fissurado, o discurso do fazendeiro consegue submeter as vozes dissonantes ao seu poder, seja por meio do dinheiro ou por meio da violncia, no momento que segue a insero de Madalena na trama, os conflitos ideolgicos se acentuam e se sucede um verdadeiro embate discursivo. Isso porque Madalena aglutina em si todas as caractersticas ausentes no fazendeiro: instruda, sensvel, solidria. O convvio com a professora funciona para Paulo Honrio como um espelho em que obrigado a se olhar e reconhecer a face disforme. Sua ignorncia e consequente desumanidade adquirem uma visibilidade assustadora em contraste com a cultura e sensibilidade da esposa. Mas, ento, por que Madalena? Analisemos como acontece essa unio que muda a direo da narrativa, deflagrando o processo de desconstruo do fazendeiro.

Os captulos XIII, XIV e XV se dedicam quase integralmente negociao do casamento de Paulo Honrio e Madalena. No entanto, a primeira referncia moa ocorre no captulo IX, introduzido pela frase emblemtica do advogado: Mulher educada, afirmou Joo Nogueira. Instruda (RAMOS, 2011, p. 34). Apesar de a conversa machista, na sequncia, se desdobrar em peitos e pernas, o narrador registra nesse momento que o trao distintivo de Madalena a sua educao. Posteriormente, o primeiro encontro do casal se d em casa de Dr. Magalhes, quando imbudo da ideia de preparar um herdeiro, o fazendeiro se dirige propriedade do juiz, a fim de visitar a filha, Marcela. Ao chegar ao destino, logo distingue a presena de Madalena, D. Marcela sorria para a senhora nova e loura, que sorria tambm, mostrando os dentinhos brancos. Comparei as duas, e a importncia da minha visita teve uma reduo de cinquenta por cento (RAMOS, 2011, p.48).

notria a mudana de atitude de Paulo Honrio, que incialmente buscava uma reprodutora, cujas caractersticas acabavam perfeitamente em Marcela: era bicho. Uma peitaria, um p de rabo, um toitio! (RAMOS, 2011, p.51), no entanto, acabou se encantando por algum precisamente o contrrio da mulher que eu andava imaginando (RAMOS, 2011, p.51), pois Madalena era miudinha, fraquinha. No s os aspectos fsicos traam as expectativas do fazendeiro, a formao intelectual da moa tambm no vinha ao encontro da sua verve utilitarista:

- Gondim, voc me falou h tempo numa professora.

- A Madalena?

- Sim. Encontrei-a uma noite destas e gostei da cara. moa direita?

Azevedo Gondim encetou a quarta garrafa de cerveja e desmanchou-se em elogios.

- Mulher superior. S os artigos que publica no Cruzeiro!

Desanimei:

- Ah! Faz artigos!

- Sim, muito instruda. Que negcio tem o senhor com ela?

- Eu sei l! Tinha um projeto, mas a colaborao no cruzeiro me esfriou. Julguei que fosse uma criatura sensata (RAMOS, 2011, p.63).

Outra vez, discurso e conduta divergem substancialmente, e Paulo Honrio opta por trazer junto a si justamente uma representante do universo letrado, pelo qual nutre uma profunda desconfiana mesclada a uma atrao obsessiva. O narrador no justifica a contraditria escolha do protagonista, sabemos apenas que de repente estava querendo bem pequena (RAMOS, 2011, p.51). E a parte restante da trama se encarregar de desvendar o enigma que era Madalena para Paulo Honrio.

Os captulos XIII a XVI fluem na mesma rapidez que a parte anterior. Os trmites da organizao do casamento com Madalena sucedem-se com a mesma objetividade cortante que a aquisio da fazenda, como mais um negcio de Paulo Honrio. Do captulo XVII ao XXXII assiste-se a uma gradual diminuio da velocidade narrativa com a intercalao de perodos de maior introspeco psicolgica por parte do narrador. A sucesso de fatos, aos poucos, amenizada pela presena das reflexes constantes de Paulo Honrio, provocadas pela deflagrao do choque entre a sua viso de mundo e a de Madalena.

A primeira divergncia novamente a da linguagem: Tive, durante uma semana, o cuidado de procurar afinar a minha sintaxe pela dela, mas no consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo. Tolice (RAMOS, 2011, p.72). A tentativa frustrada de adequar a sua fala a da esposa alm de lhe apontar mais uma vez a sua incapacidade, dispara o gatilho da desconfiana fundada na impossibilidade de conhecer o verdadeiro sentido das palavras de Madalena Procuro recordar o que dizamos. Impossvel. As minhas palavras eram apenas palavras, reproduo imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que no consigo exprimir (RAMOS, 2011, p. 73). possvel perceber que Paulo Honrio se sentia profundamente humilhado por essa condio e tal sentimento o levava a aprofundar o abismo entre ele e as pessoas. Submerso em solido e rancor, o fazendeiro se lanava s desinteligncias que consistiam em tentar recuperar a superioridade por meio do exerccio de poder brutal. Contudo, se antes era possvel submeter a todos a sua fora sem maiores remorsos, agora, na presena de Madalena seus mtodos de domnio so monstruosidades, das quais ele obrigado a tomar conscincia pela voz da esposa.

Madalena desarticulava todo o discurso de Paulo Honrio. Mesmo a voracidade de sua capacidade para o trabalho e o progresso obtido por So Bernardo tornavam-se medocres perto da esposa que havia obtido respeito e considerao pela intelectualidade e pelo humanismo. Todos admiravam Madalena, e Paulo Honrio no conseguia lidar com isso. O sentimento de inferioridade intelectual e inadequao do fazendeiro aliaram-se desconfiana geral que nutria pelas pessoas e engendraram o cime. As palestras e discusses cultas da esposa com os amigos letrados se tornam o fomento principal desse sentimento devastador

Materialista. Lembrei-me de ter ouvido Costa Brito falar em materialismo histrico. Que significava materialismo histrico? (...) Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil. "Palestras amenas e variadas." Que haveria nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. (RAMOS, 2011, p. 101).

Excludo do dilogo pela ignorncia, o fazendeiro arregimenta razes para melindrar-se acerca do contedo das palavras ditas pelo grupo. V-se cercado por inimigos, sendo que a nica pessoa confivel Casimiro cujo nvel de linguagem assemelha-se ao seu Calado, fiel, pau para toda a obra, era a nica pessoa que me compreendia (RAMOS, 2011, p.101). O raciocnio rasteiro de Paulo Honrio o leva a uma deduo simples: a razo de seu aborrecimento estava na intelectualidade de Madalena que corrompia sua ndole, tornava-a indcil e inacessvel ao seu domnio

No gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e so horrveis. Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem conferncias e conduzem um marido ou coisa que o valha. Falam bonito no palco, mas intimamente, com as cortinas cerradas, dizem:

- Me auxilia, meu bem.

Eu tinha razo para confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual. (RAMOS, 2011, p. 105)

A profundidade da insegurana e cime de Paulo Honrio no s o faz suspeitar da ndole de Madalena e dos amigos como tambm engendra uma viso tortuosa e deformante de si mesmo

Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira, a roupa bem-feita, a voz insinuante. Pensei nos meus oitenta e nove quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas espessas. Cruzei descontente as mos enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena e comecei a sentir cimes. (RAMOS, 2011, p.101)

Que mos enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram tambm enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fmea com

semelhantes mos! (...) As do Dr. Magalhes, homem de pena, eram macias como pelica, e as unhas, bem aparadas, certamente no arranhavam. Se ele s pegava em autos! (RAMOS, 2011, p. 102)

importante observar que a associao de descries fsicas animalescas pobreza intelectual do personagem algo notrio em todo o romance, no apenas nessa parte que podemos caracterizar como sendo resultante da condio angustiada de Paulo Honrio em relao Madalena. A mesma caracterizao brutal que ele aplica a si estendida a todo o grupo de personagens no-letradas

- Casimiro Lopes: corajoso, laa, rasteja, tem faro de co e fidelidade de co crdulo como um selvagem( p. 24)

- Germana: cabritinha sarar danadamente assanhada ( p.10)

- Marciano: mulato esbodegado regalou-se estronchando-se, mostrando a o beio e a gengiva banguela ( p.44) Marciano no propriamente um homem (p. 83)

- Rosa: de barriga quebrada de tanto parir como cabrita (p.144).

Seguem as descries do grupo dos letrados

- Joo Nogueira: Bacharel, mais de quarenta anos, uma calvcie respeitvel (p. 37)

- Gondim: periodista de boa ndole (p. 02).

- Seu Ribeiro: um velho alto, magro, curvado, de suas (p.38).

- Dr. Magalhes: pequenino, tem um nariz grande, um pincenez e por detrs do pincenez uns olhinhos risonhos ( p.42).

- D. Glria: acanhada, sorriso insignificante, modos de pobre (p.54).

- Padilha: homem da mata e franzino, fala muito e admira as aes violentas(p.41).

- Madalena: a loura tinha a cabecinha inclinada e as mozinhas cruzadas, lindas mos, linda cabea (p.48)

A comparao permite vislumbrar que as descries do segundo grupo que, embora secas e objetivas em consonncia com o tom do romance, no se valem dos traos animalescos e dos aspectos brutalizados recorrentes na caracterizao do primeiro grupo. notvel tambm que a intelectualidade dos personagens letrados quase sempre acompanhada de certa fragilidade fsica franzino, pequenino, magro que os associa ausncia de fora bruta. Tal composio permite inferir mais claramente a associao, realizada pelo narrador, entre a sapincia dos personagens e a docilidade dos seus corpos de um lado, e de outro, a ignorncia e o corpo indmito, selvagem. Esquematizando, temos

LETRADOS

NO-LETRADOS

- Trabalho intelectual

- Domnio da linguagem

- Afeitos leitura e cultura

- Corpos dceis e frgeis

- menos violentos

- humanizados

- Trabalho braal

- Baixa capacidade expressiva

- analfabetos (com exceo de Paulo Honrio que dispunha de leituras instrumentais)

- Corpo indcil e rstico

- mais violentos

- desumanizados

Encabeando os grupos temos, respectivamente, Madalena e Paulo Honrio, que encerram em suas figuras a potencializao desses traos. De modo que, para o narrador, o choque entre os dois inevitvel uma vez que representariam a tenso entre duas foras inconciliveis. O sucesso burgus de Paulo Honrio depende, exclusivamente, da alienao e desumanizao das pessoas que submete aos seus desmandos, ao passo que, a realizao dos propsitos de Madalena se pauta na sensibilidade e no exerccio de humanidade.

Reconhecendo o perigo que isso representa ao seu poder desptico, o fazendeiro sabe que preciso controlar Madalena, chefe do grupo adversrio. Sem os instrumentos para entrar na luta de forma digna, Paulo Honrio esmaga emocionalmente Madalena e a destri, no lugar de domin-la. Mas antes de sair de cena, a professora j havia causado as fissuras necessrias, estragos irreparveis na alma do adversrio. Ela calou fundo na autoestima de Paulo Honrio e obrigou-o a olhar-se no seu espelho deformante, aniquilando-o por culpa. Roubou-lhe o sentido da vida, desconstruiu lhe o discurso, imps-lhe a conscincia da inutilidade de seus atos. O captulo XXXIV traz a destruio final do Paulo Honrio-fazendeiro.

A impostura de uma voz

Roberto Schwarz (1990), ao analisar a posio do personagem-autor em Memrias Pstumas de Brs Cubas de Machado de Assis, aponta que o principal efeito da narrativa em primeira pessoa: quem o dono da voz sempre acaba encontrando uma maneira de desculpar a si mesmo (1990, p.162). Movimento anlogo perceptvel em outra narrativa machadiana, Dom Casmurro, cujo narrador, ao procurar atar a duas pontas da vida, lana-se a uma obstinada busca por indcios que respaldem e atestem suas concluses acerca da ndole duvidosa da esposa. A veemncia com que Bentinho arregimenta razes para condenar Capitu e justificar a sua avaliao leva o leitor a buscar as fissuras de seu discurso e a relativizao dos fatos por ele narrados. aparentemente fcil compreender os propsitos de uma conscincia culpada buscando uma interpretao dos fatos que amortize o peso da culpa e relativize a prpria responsabilidade perante o fracasso e a solido.

J no to fcil apreender as motivaes de uma conscincia que j se reconhece afundada em frustraes e amargura e ainda opta por buscar meios de aprofundar esse ressentimento por meio de uma reviso de vida altamente condenatria. o caso de So Bernardo, cuja escrita autobiogrfica tem o propsito de levar Paulo Honrio a pintar a si mesmo como um monstro moral. H um nico momento em que o narrador, realmente, justifica a sua conduta brutalizada e ao violenta Creio que nem sempre fui egosta e brutal. A profisso que me deu qualidades to ruins. E a desconfiana terrvel que me aponta inimigos em toda a parte! (...). Foi esse modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado(RAMOS, 2011, p.144).

No mais, a conduo da narrativa se encarrega de no dar chance a qualquer interpretao das aes de Paulo Honrio que no seja a de v-lo pelo prisma de uma desumanizao assombrosa. Mesmo as atitudes que poderiam apontar fissuras na sensibilidade embotada do narrador, como a do afeto pela velha Margarida, logo so submetidas razes de ordem material e interesseiras: A velha Margarida mora aqui em So Bernardo, e ningum a incomoda. Custa-me dez mil-ris, por semana, quantia suficiente para compensar o bocado que me deu (RAMOS, 2011, p. 10). O ato de acolher pessoa que o criou que, se relatado de modo avulso, poderia apontar para uma possvel humanizao, porm o raciocnio emendado ao fato boicota qualquer possvel fratura no discurso autoacusatrio do narrador.

Desse modo, essa voracidade da autocrtica no sonhava em ser o explorador feroz em que me transformei (RAMOS, 2011, p. 142) nos leva a desconfiar da legitimidade da coincidncia entre as vozes de PH-fazendeiro e PH-escritor. A profundidade da conscincia demonstrada pelo PH-narrador em detrimento ao raciocnio limitado do fazendeiro, o julgamento impiedoso que promove contra si mesmo somados contraditria adeso ao discurso letrado e, por fim, a construo de uma narrativa de linguagem apurada em contraste com a inabilidade e ignorncia declaradas denunciam a fraude da unidade entre personagem e narrador. Hlio Plvora , em sua anlise de So Bernardo, enuncia que

A identidade do escritor, inclusive de temperamento e de formao, com o relato romanesco, to extensa e to intensa que o leitor no ter ensejo de perguntar como PH aprendeu a escrever to bem e a montar um romance com artes de fina carpintaria. O artifcio convence (PLVORA, 1978, p. 125).

Creio ter demonstrado que o artifcio no convence fcil assim. H, em So Bernardo, uma fora onisciente que arrasta o fazendeiro escrita de sua prpria condenao, destruio minuciosa de seu discurso burgus-utilitarista. Uma conscincia agenciada por uma viso de mundo que acredita profundamente no papel humanizador da cultura e da escrita, que associa deliberadamente formao intelectual ao desenvolvimento da sensibilidade solidria, que ope tudo isso ao trabalho braal, brutal, alienante, reificao e animalizao das pessoas. A amplitude da perspectiva no condiz com a de um fazendeiro como Paulo Honrio, mesmo ressentido, arrependido e disposto a rever os erros. A voz que conduz a narrativa de So Bernardo traduz muito mais a viso de Graciliano Ramos-escritor do que de Paulo Honrio-fazendeiro-escritor.

H uma parte considervel da crtica sobre a obra de Graciliano que aponta aproximaes notveis entre a vida e a obra do escritor que podem ser traduzidas nas palavras de Nelly Novaes Coelho (1978, p. 71) o romance de Graciliano contm, pois, o mundo exterior ao romancista e o prprio romancista esplendidamente entrosados. Graciliano o Autor que jamais se aparta de si mesmo. Contudo, o propsito deste estudo no o de enveredar por esse caminho, levantando semelhanas e dissidncias entre vida e obra do escritor, nem o de usar a biografia de Graciliano como contraponto de anlise do romance. O objetivo era apenas demonstrar que a no-coincidncia das vozes, o confronto de perspectivas entre narrador e personagem e a impossibilidade da unidade entre eles.

Independente dos aspectos biogrficos do autor, o romance So Bernardo representa uma vontade de verdade: a crena no papel humanizador da cultura letrada em uma sociedade pseudo-capitalista onde imperava a ignorncia e a estreiteza cultural. Obrigar Paulo Honrio escrita de um livro, simbolicamente dobrar essas foras e faz-las reconhecer a validade desse discurso redentor das letras. submeter o burgus, lev-lo a admitir a ignorncia, confessar a incultura e apont-las como principal razo da desumanizao das relaes sociais.

Se no contexto de poca, o escritor era submetido aos desgnios do poder e do dinheiro, no terreno da fico, o autor que humilha e submete o fazendeiro, impiedosamente.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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