Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

22
TRANSE NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS DO MARANHÃO' Sergio F. Ferretti" Mundicanno M. R. Ferretti'" RESUMO Transe nas Religiões Afro-Brasileiras do Maranhão. Visão geral do Tambor de Mina, religião afro-brasileira difundida no Maranhão e na Amazônia, sobretudo entre populações negras, urbanas e pobres, caracterizada como religião iniciática, de transe e de mistério. O transe no Tambor de Mina é descrito como apresentando características discretas, evidenciando-se aos não iniciados, principalmente por detalhes do vestuário. A partir dos depoimentos de médiuns e da observação de antropólogos, discute-se o transe dos voduns da Casa das Minas e o de caboclos de outros terreiros, procurando-se seus elementos específicos em comum com o Espiritismo Kardecista. O transe é apresentado como estado comparável ao sonho, ao sonambulismo e aos estados anestésicos experimentados por um número maior de pessoas. Palavras-chave: tambor de mina; transe; mediunidade; vidência; possessão; religiões afro-brasileiras; Maranhão; casa das minas; terreiro de mina. SUMMARY Trance in the Afro-Brazilian Religions of Maranhão. The general vision ofTambor de Mina (Drum of Mina), an afro-brazilian religion scattered throughout Maranhão and Amazônia especially among the low income, urban, negro population is of a religion characterised as one that iniciates people in trance and mystery. The trance of Tambor de Mina has been described as discreet, perceived by the "non-iniciaied'' only as alterations in the dress and body apparel of the subject. Starting with declarations from mediums and the observations of anthropologists, discussion ofthe trance ofpractioners ofVodun of Casa das Minas and ofthe caboclos (entities) from others terreiros o Trabalho apresentado na IX Jornada sobre Alternativas Religiosas na América Latina, organizado no lFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 21 a 24/09/1999. 'o Dr. em Antropologia, professor da UFMA. o •• DT'. em Antropologia, professora da UEMA. 106 Cad. Pesq., São Luís, v. ll, n. 1, p. 106-127,jan./jun. 2000.

Transcript of Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

Page 1: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

TRANSE NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS DOMARANHÃO'

Sergio F. Ferretti"Mundicanno M. R. Ferretti'"

RESUMO

Transe nas Religiões Afro-Brasileiras do Maranhão. Visão geral doTambor de Mina, religião afro-brasileira difundida no Maranhão e naAmazônia, sobretudo entre populações negras, urbanas e pobres,caracterizada como religião iniciática, de transe e de mistério. O transeno Tambor de Mina é descrito como apresentando característicasdiscretas, evidenciando-se aos não iniciados, principalmente pordetalhes do vestuário. A partir dos depoimentos de médiuns e daobservação de antropólogos, discute-se o transe dos voduns da Casadas Minas e o de caboclos de outros terreiros, procurando-se seuselementos específicos em comum com o Espiritismo Kardecista. Otranse é apresentado como estado comparável ao sonho, aosonambulismo e aos estados anestésicos experimentados por umnúmero maior de pessoas.

Palavras-chave: tambor de mina; transe; mediunidade; vidência;possessão; religiões afro-brasileiras; Maranhão; casa das minas;terreiro de mina.

SUMMARY

Trance in the Afro-Brazilian Religions of Maranhão. The generalvision ofTambor de Mina (Drum of Mina), an afro-brazilian religionscattered throughout Maranhão and Amazônia especially amongthe low income, urban, negro population is of a religioncharacterised as one that iniciates people in trance and mystery.The trance of Tambor de Mina has been described as discreet,perceived by the "non-iniciaied'' only as alterations in the dressand body apparel of the subject.

Starting with declarations from mediums and the observations ofanthropologists, discussion ofthe trance ofpractioners ofVodun ofCasa das Minas and ofthe caboclos (entities) from others terreiros

o Trabalho apresentado na IX Jornada sobre Alternativas Religiosas na América Latina, organizado nolFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 21 a 24/09/1999.

'o Dr. em Antropologia, professor da UFMA.

o •• DT'. em Antropologia, professora da UEMA.

106 Cad. Pesq., São Luís, v. ll, n. 1, p. 106-127,jan./jun. 2000.

Page 2: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

(worship centers), the search for its specific common ground withspiritualism of Kardec. The trance is presented as comparable tothe dream state, to sleepwalking and states of being anaesthetised,things verified outside of the religious experience.

Key-words: drum of mina; transe; mediunicom; seer possession;afro-brazilian religions; Maranhão; house of minas; backyard ofminas.

1 INTRODUÇÃOo Maranhão, situado entre o Nor-

te e o Nordeste do Brasil, numa regiãotropical, possui folclore diversificado ebonito patrimônio histórico-arquitetônico. Sua capital, São Luís, lo-calizada em ilha pré- Amazônica, porsuas características culturais earquitetônicas, recentemente foi reco-nhecida pela UNESCO comoPatrimônio da Humanidade. Devido acircunstâncias históricas e geográficas,o Maranhão permaneceu relativamen-te isolado. Por influências indígena, eu-ropéia e africana, desenvolveu-se, nestaregião, uma cultura popular muitodiversificada. Atualmente o Maranhãopossui cerca de cinco milhões de habi-tantes, a quinta parte dos quais residena capital. São Luís é uma bela cidade,com características coloniais e onde apobreza atinge a maioria da população.

Entre 1750 e 1850, o Maranhãoesteve entre as três ou quatro maioresregiões importadoras de escravos noBrasil que, em 1819, representavam66% de sua população, segundo cálcu-los apresentados por Taunay (Dantas,1988). Em inícios do séc. XIX, grandeparte destes escravos pertencia a gru-pos procedentes da Costa da África,denominados genericamente de negros

Mina, nome derivado do antigo Fortede El Mina na atual República do Gana.Segundo estudos recentes (Oliveira,1997), negros minas são os que proce-dem da região situada ao sul do Fortede El Mina, destacando-se entre osmais importantes os Jêje, os Nagô eoutros.

A população negra do Maranhãoconcentra-se principalmente em SãoLuís e em algumas regiões do interior,como Codó e Cururupú e outras. Mui-tos negros vivem em comunidades ru-rais, originadas de antigos quilombos oude fazendas decadentes deixadas a es-cravos e seus descendentes. Estima-se que existem no Maranhão mais de300 comunidades rurais negras(Almeida, 1993), a maioria enfrentan-do hoje sérios problemas de luta pelaposse da terra, onde seus antepassa-dos viveram há mais de um século.

As religiões trazidas para o Brasilpor escravos, difundiram-se original-mente entre populações negras e po-bres, que até hoje predominam entreos seus participantes. Em toda parte dopaís, constitui-se, como constatou Ed-son Carneiro (1961), um fenômeno ti-picamente urbano, difundido nascapitais e em uma ou outra cidade dointerior. No Maranhão, a religião afro-brasileira é largamente difundida e pos-

Cad. Pesq., São Luís, v. 11,n. 1, p. 106-127,jan./jun. 2000. 107

Page 3: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

sui variações regionais nos instrumen-tos, nas danças, nos ritmos, no repertó-rio dos cânticos, nas entidadesespirituais cultuadas, no vestuário, nocomportamento dos participantes, etc.,originando várias tradições, sendo asprincipais denominadas Tambor deMina, Cura ou Pajelança, Terecô eUmbanda.

A religião de origem africana tra-dicional, predominante no Maranhão ena Amazônia, denomina-se Tambor deMina. Possui características específi-cas que a distinguem de outras religi-õesafro-brasileiras, como o Xangô dePemambuco, o Candomblé da Bahia, oBatuque do Rio Grande do Sul, ou aUmbanda do Rio de Janeiro. No Ma-ranhão os principais núcleos de Tam-bor de Mina localizam-se na capital doEstado. No interior, apesar do Tamborde Mina ser também conhecido, há pre-dominância de outras denominaçõescomo Cura ou Terecô.

Codó, localizada há cerca de 350km de São Luís, às margens do RioItapecurú, foi núcleo irradiador do cul-tivo de algodão e cana de açúcar, commão de obra escrava. Nesta região, areligião afro-brasileira tradicional é de-nominada Terecô, Encantaria de Bár-bara Soeira, ou Tambor da Mata.Possui características específicas e di-fundiu-se em regiões vizinhas, atingin-do São Luís e outras cidades doMaranhão e de outros Estados.

Cururupú, no Litoral Norte, a cer-ca de 500 km de São Luís, em direçãoao Pará, foi, nos séculos XVIII e XIX,importante porto de entrada de escra-vos de contrabando (Salles, 1971). Foiigualmente núcleo irradiado r do cultivo

daqueles mesmos produtos e lá, a pre-sença negra é também muito grande.Em Cururupú, os salões de curadoressão numerosos e a religião afro-brasi-leira se cruza com elementos do Terecô,da Mina e da Umbanda.

Os dois terreiros de Tambor deMina mais antigos do Maranhão, foramfundados por africanos, em São Luís econtinuam atuantes até hoje. São eles:a Casa das Minas e a Casa de Nagô.Localizam-se no bairro de SãoPantaleão, distando apenas uma qua-dra um do outro, próximos ao Centro.Ambos devem ter sido fundados, compoucos anos de diferença, provavel-mente na década de 1840. A Casa dasMinas, considerada a mais antiga, é aúnica exclusivamente Jêje, que cultuaapenas voduns e que não tem casasdiretamente derivadas ("filiais").

Existem em São Luís centenas deoutros terreiros, de número e caracte-rísticas difíceis de serem precisados.Estes terreiros seguem, sobretudo, atradição da Casa de Nagô, que come-çou a ser difundida em fins do séculoXIX. Alguns apresentam influências daCura ou Pajelança, do Terecô, daUmbanda, do Candomblé, e também dacultura jêje da Casa das Minas. Nomodelo do Tambor de Mina do Mara-nhão prevalece, entretanto, o tipo deorganização da Casa de Nagô, com in-fluências da Casa das Minas. Desdemeados do século XX a Umbanda sedifundiu largamente no Maranhão ten-do havido aproximação entre entidadesantigas do Tambor de Mina com enti-dades cultuadas na Umbanda. Grandenúmero de terreiros de São Luís e doMaranhão realiza culto em que se con-

108 Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. J, p. J06-J27,jan./jun. 2000.

Page 4: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

centram elementos da Umbanda daMina, interrelacionados com certo pre-domínio de características de uma de-las, havendo casas que se definem deUmbanda ou como Tambor de Mina.

Entre as características gerais daMina Nagô, (da Casa de Nagô e dosterreiros por ela mais influenciados),podemos indicar: o predomínio (ou aexclusividade, em certos grupos) demulheres entre as filhas-de-santo; o uso,como instrumentos musicais, de doistambores denominados abatás', comarmação de metal e couro nas duasbocas, tocados horizontalmente, sobrecavaletes e acompanhados pelo ferro(agogô) e por cabaças revestidas decontas coloridas ou sementes; o uso,durante os rituais, de roupas semelhan-tes pelas dançantes: saia da mesma cor,blusa branca rendada (cabeção) e san-dálias na cor da saia, geralmente me-nores que os pés. Quando em transe,as dançantes também usam uma toa-lha rendada amarrada na cintura ou sobos braços. A dançante de mina doMaranhão raramente usa torso ou panoamarrado na cabeça, que pode ser en-contrado em algumas casas e em ritu-ais específicos. A dança é feita em roda,no sentido contrário ao dos ponteirosdo relógio, ou para frente e para trás.

Os cânticos são predominantemente em"Nagô" e em outras "línguas africanas",como Tapa, Cambinda, Jêje e em Por-tuguês, língua que predomina na maio-ria das casas'.

O Tambor de Mina é uma religiãoiniciática, como as demais religiõesafro-brasileiras. Os devotos têm que sesubmeter a longo processo de inicia-ção. No Maranhão, pormenores desteprocesso são pouco comentados e co-nhecidos, pois a iniciação quase nãopossui ritos públicos. Poucas dançan-tes, duas ou três em cada comunidade,se submetem aos ritos completos deiniciação, que quase não são realiza-dos. Talvez porque, nas casas mais an-tigas, a iniciação é totalmente privada,no Tambor de Mina não se costumafazer festa para apresentação das ini-ciadas à comunidade (como as saídasde iaô do Candomblé).

O Tambor de Mina é uma religiãode mistérios. Em geral as vodunsis dãopoucas informações sobre mitos e ritu-ais relacionados com o culto. Não seusa falar abertamente sobre segredosda religião e sobre as entidadescultuadas. Muitos detalhes são envol-vidos pelo manto do segredo e não sãocomentados. Com isso o significado dediversos elementos do culto não é ex-

I Os tambores nagôs diferem dos tambores jêjes, que são em número de três, denominados "hun", o maior,tocado ligeiramente inclinado, "humpli" e "gumpli", tocados, geralmente, por homens. Possuem couroem uma só boca, e são tocados com a mão e com varetas de madeira, denominadas "aguidaví". Sãotambém acompanhados por ferro (gan) e cabaças, tocadas por mulheres.

2 Até agora quase não foram realizados estudos específicos de Lingüística sobre os cânticos no Tambor deMina. Na Casa das Minas acredita-se que a maioria dos cânticos seja em língua Jêje (Fon de Abomey).Afirma-se porém, que os cânticos para a família de Quevioçô são em Nagô e que na festa para a famíliade Dambirá, canta-se também em Cambinda e em Cachéu. Na Casa de Nagô, canta-se principalmente emNagô, mas diz-se que alguns cânticos são em Tapa e Caxias e outros em Português. Nos outros terreiros amaioria dos cânticos são em Português, mas há também cânticos originários das casas. mães Jêje e Nagô ecânticos conhecidos como em línguas procedentes das regiões do Congo e de Angola, ainda não devida-mente identificadas. Sobre cânticos da Casa das Minas veja-se Sogbossi, 1999.

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 109

Page 5: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

plicado, muitos conhecimentos não sãotransmitidos e se perdem. A Mina éuma religião sobre a qual pouco se falae pouco se comenta. A maioria dosparticipantes considera-se adepta docatolicismo e muitas práticas do catoli-cismo popular' foram assimiladas. AMina é considerada pelos praticantesuma obrigação, um trabalho, uma he-rança familiar, mais do que propriamen-te uma religião.

2 ALGUNS ESTUDOSSOBRE TRANSE EPOSSESSÃO

((Em um exame de parte deliteratura sobre o tema,Hoskins, (1975) distinguetrês fenômenos diferentescontidos por vezes sob amesma rubrica: amediunidade, que designagenericamente o fato dacomunicação entre homense espíritos, não se confun-dido com a possessão, otranse, que se refere a alte-rações orgânicas efisiológicas no estado cor-poral tido como normal; ea possessão, definida ge-ralmente como um estado deconsciência 'alterada', noqual o indivíduo experi-menta no próprio corpo amanifestação de seres emcuja existência acredita.Há assim transe sem pos-sessão e possessão semtranse, bem ora o mais fre-qüente seja a associaçãodos dois fenômenos. A sig-nificação desses trêstermos, nem sempre é a mes-ma, alterando-se de autorpara autor."

((O transe para mim não éincorporação, é a manifes-tação da verdadeira natu-reza da gente. Uma possi-bilidade de esquecer todasas coisas que não têm a vercom você." (Verger. In: Ho-landa, 1999)

Existe ampla bibliografia que dis-cute problemas relacionados com osfenômenos do êxtase religioso, do tran-se e da possessão. Não nos competeaqui fazer um apanhado desta biblio-grafia. Vamos nos deter em alguns tra-balhos que consideramos interessantese mais relacionados com temas que ire-mos debater adiante. Como mostraMaria Laura V. C. Cavalcanti (1983,p.79):

Gilbert Rouget (1980), em estudoclássico, chama atenção para as dife-renças entre transe e êxtase, que al-guns autores empregam comosinônimos e considera (1980, p.35) que

30S terreiros de Mina organizam muitas festas do catolicismo popular, em homenagem a entidadesespirituais recebidas em transe medi único, que apreciam tais festas, como a festa do Divino EspíritoSanto, quase sempre na época da maior festa da casa, o Tambor de Crioula, para Averequete e outros, oBumba-Meu-Boi, principalmente para entidades caboclas. Geralmente as festas de vodum iniciam-se poruma ladainha católica em latim. Assim a presença do sincretismo religioso é um elemento muito marcanteno Tambor de Mina do Maranhão.

110 Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan.rjun. 2000.

Page 6: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

"o transe é sempre ligado a umasuperestimulação sensorial mais oumenos marcada - barulhos, música,odores, agitação -, o êxtase é ao con-trário ligado mais freqüentemente à umaprivação sensorial- silêncio, jejum, obs-curidade". Lembra que as manifesta-ções do transe podem ser espetacularesou discretas, que o transe em muitoscasos pode ocorrer independente damúsica, que os tipos de música variamcom os tipos de transe, que a músicapode ser instrumental ou vocal e os ins-trumentos podem ser de tipos diversifi-cados.

Márcio Goldman (1985, p.22-54)apresenta um amplo panorama dos es-tudos sobre a possessão no Brasil e in-dica as duas vertentes principais, quedenomina de biologizante esociologizante, afirmando que:

"Creio então ser possívelsustentar, de modo muitosumário como não poderiadeixar de ser aqui, que his-toricamente foram apresen-tados dois modelos para aanálise da possessão noscultos afro-brasileiros - e,por implicação, para ospróprios cultos como umtodo. Por um lado, o mode-lo mais antigo e hoje com-pletamente ultrapassadopor seu reducionismo e evo-lucionismo comprometedo-res propõe explicar o tran-se reduzindo-o a um fatorbiológico, patológico e in-dividual, seja ele de cará-ter histérico, neurótico, ou

a simples conseqüência douso de bebidas alcoólicasou de tóxicos. A outra ex-plicação, sustentada a par-tir da constatação de ser apossessão um fato social-mente determinado, a des-peito de suas implicaçõesbiopsicolôgicas, defenderáa idéia de que para expli-cá-la é preciso conectá-lacom a ordem social abran-gente, ora vendo-a comomecanismo adaptativo, oracomo instrumento de pro-testo social, ora como meiode reforço da ordemexistente. "(Goldman, 1985,p.28-29).

Goldman critica as duas vertentese outras visões vigentes entre nós epropõem-se analisar o fenômeno dapossessão investigando as noções deritual e de pessoa nos terreiros de can-domblé.

Estudando manifestações religio-sas afro-brasileiras na Amazônia,Furuya (1994), lembra com Crapanzanoque a possessão por espíritos é um fe-nômeno cultural, havendo um idioma dapossessão compartilhado pelos mem-bros da comunidade. Afirma que "Cadamanifestação de um espírito é interpre-tada de acordo com o padrão transmi-tido ao longo do tempo dentro dacomunidade discursiva" (1994, p.76).Considera que algumas comunidadestendem a "congelar" seu idioma e ou-tras permitem "renovação" de idiomas.

Daniel Halperin (1992), analisan-do o transe em um terreiro de mina não

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 111

Page 7: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

tradicional de S. Luís, discute ainteração entre os médiuns em transe,técnicas de indução ao transe, fazendocomparações com seções de terapia dedança. Apresenta distinção entre tran-se, como estado alterado de consciên-cia, e possessão, que considera umfenômeno cultural e religioso determi-nado menos por alterações neurológi-cas do que por sistemas de crençascompartilhadas(1992, p.29). Consideraque a integração da análise científicado estado de transe com a interpreta-ção cultural da possessão, necessita ex-plorações posteriores. Constata que osmédiuns afirmam que entram em tran-se por obrigação e considera que os ri-tuais tem efeitos terapêuticos comconseqüências físicas e mentais. Osmédiuns afirmam que os caboclos des-carregam energias negativas. Consideraque o transe desempenha função auto-protetora e favorece o amor próprio,uma vez que em geral as entidades elo-giam seus médiuns e estes também sereferem com grande afeição à suasentidades protetoras.

HALPERIN (1995, p.157-235)retoma debates levantados em traba-lho anterior a respeito de transe e pos-sessão em terreiros não tradicionais detambor de mina do Maranhão. Volta adiscutir diferenças entre transe e pos-sessão a partir da bibliografia disponí-vel e de depoimentos de informantesprivilegiados. Discute categorias cornovibração, energia, força, trabalho, obri-gação e catarse em relação ao estadode possessão. Em outro capítulo (1995,p.298-358), Halperin discute o proble-ma da memória, da consciência ou dainconsciência, tendo em vista a longa

112

duração do estado de possessão no tam-bor de mina, examina o problema dafalsa possessão, da capacidade devidência discutindo exemplos de mé-diuns que se identificam como consci-entes.

Luís Nicolau Parés (1997) apre-senta um estudo etnográfico sobre setecasas de culto em São Luís, interessa-do em analisar a mediunidade e a pos-sessão. O autor discute tipos demediunidade e de possessão através dasdiversas categorias utilizadas pelos in-formantes. Assim procura caracterizara mediunidade, a irradiação e a pos-sessão no espiritismo, na pajelança, noterecô, no tambor de mina, no candom-blé e na umbanda no Maranhão. Nocapítulo 3 (p.100-148) o autor discuteaspectos fenomenológicos do compor-tamento na possessão por espírito, nocontexto de diferentes rituais, analisan-do, a despeito de sua dimensão sagra-da, aspectos externos observáveis comonum espetáculo. Constata a existênciade diferentes estágios, utilizando pala-vras portuguesas usadas pelos partici-pantes da mina, a saber: irradiação,incorporação, manifestação, virada esaída. Destaca os fatores de variaçãonas expressões externas da possessãopor espírito em função da ortodoxia dacasa, da categoria da entidade espirituale da experiência do médium. Analisaassim a incorporação na Casa das' Mi-nas Jêje, na Casa de Nagô, na mina decaboclo, destacando por exemplo a po-laridade entre calma e violência. O tra-balho é ilustrado com um vídeo em quesão apresentadas 51 detalhes de com-portamento nas diferentes casas, emvários momentos de rituais públicos.

eM. Pesq., São Luís, v.ll, n.l,p.l06-127,jan./jun. 2000.

Page 8: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

3 O TRANSE NO TAMBORDE MINA

Como as demais religiões afro-bra-sileiras, o Tambor de Mina é uma religiãode transe ou possessão. O transemediúnico é um elemento central eestruturante desta religião, sendo enca-rado como mudança de identidade, ge-ralmente acompanhado de alteração davontade, da memória e da consciência.Os conceitos de médium e demediunidade são largamente utilizados eos conceitos de transe e possessão mui-tas vezes são usados indistintamente.

Como não temos experiência pes-soal do estado de transe, procuraremosanalisá-Io a partir de observações eentrevistas, realizadas em terreiros deTambor de Mina, sobretudo com infor-mantes da Casa das Minas, onde con-versamos e realizamos entrevistas hávários anos, inclusive com pessoas emtranse com entidades espirituais pois,na Mina, os voduns, orixás e caboclospermanecem várias horas incorporadose conversam com a assistência. Emcertos grupos o transe é muito discretoe em outros ocorre de forma mais es-petacular, podendo ocorrer independen-te da música, como assinala Rouget.

Na Casa das Minas, durante ascerimônias, quase não se percebe quementrou em transe, que toma-se maisvisível apenas por pequenos gestos edetalhes do vestuário, como o uso deuma toalha branca, que dá destaque àsentidades. As mudanças de identidadesão pouco perceptíveis e seexteriorizam principalmente no modo decomunicação da entidade em transecom outras dançantes, com a assistên-

cia e pelo uso de alguns símbolos comocolar, rebenque, bengala, lenços, etc.pela entidade incorporada.

Na Casa das Minas-Jêje e naCasa de Nagô, apenas mulheres entramem transe e dançam com seu vodum.Comenta-se que, no passado, algunshomens da casa Jêje entravam em tran-se, mas permaneciam sentados e seusvoduns eram saudados em particular,em ambiente privado. Diferentementedos demais terreiros, na Casa das Mi-nas só os voduns é que dançam. Antesde entrar em transe as vodunsis per-manecem sentadas, com roupas co-muns, geralmente brancas.

Nos outros terreiros de Mina asdançantes já entram no salão com avestimenta ou farda. Após o cântico"Imbarabô" e/ou outros cânticos deabertura, que duram cerca de meia hora,canta-se freqüentemente cânticos dechamada, após o quê o transe costumaocorrer, às vezes quase ao mesmo tem-po, em diversas dançantes. A vodunsi,quando entra em transe, procura a toa-lha, que levou e deixou dobrada sobreuma mesa próxima. Em algumas ca-sas, uma atendente, chamada toalheira,é quem amarra a toalha, para firmar aentidade. Antes de receber a toalha, avodunsi se mostra desequilibrada, va-cilando como se fosse cair ao chão.Colocada a toalha, passa a dançar commaior firmeza. Uma vez firmada a in-corporação é comum a entidade, quan-do se trata de um caboclo, rodardiversas vezes em tomo de si mesma,algumas com coreografia muito bonita.A maioria das entidades permaneceincorporada até o término do ritual pú-blico, que dura diversas horas.

Cad. Pesq., São Luis, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 113

Page 9: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

4 O TRANSE DOS VODUNSNA CASA DAS MINAS

Na Casa das Minas dizem que aforça da chegada do vodum" ocorreprimeiro no assentamento", que só de-pois a filha recebe o reflexo, e que nascasas onde o transe é mais violento,provavelmente não foram feitos assen-tamentos adequados. Quando o vodumchega, fora do momento da dança, can-ta alto seu cântico de chegada e vai ao"corné", ou quarto dos segredos, fazersaudações, batendo palmas ritualizadasdiante dos assentamentos.

Embora o transe seja um fenôme-no sócio-cultural, aprendido e controla-do no interior do grupo, é ao mesmotempo uma experiência pessoal e indi-vidual, variando com cada pessoa.Como diz D. Deni, que dirige os rituaisna Casa das Minas:

"Quando o vodum vempela primeira vez a pessoanão sabe. Outras vezes ficaapreenstva e nervosa, mas

o vodum vem num momentode distração. Sente dor decabeça, medo e a pessoafica como se estivesse comtaquicardia, como se fossemorrer. No início' o corponão está acostumado, masaos poucos o vodum vai seadaptando ao corpo davodunsi. "

Na Casa das Minas sempre hou-ve pessoas que dançaram desde a ida-de de sete ou oito anos, como a falecidaD. Amância, ou a finada Dedé (Antôniade Nochê Decé, irmã de D. Enedina).D. Amélia, nascida em 31 de dezem-bro de 1903, recebeu seu vcdum pelaprimeira vez com doze anos, em janei-ro de 19156. Sua bisneta Elizabete, tam-bém dançou na Casa com 'doze anos,em 1985.

Segundo D. Deni:

"Um médium já nasce comeste dom. Nasce com umguia e o corpo pertence aos

4 Na Casa das Minas os voduns conhecidos e cultuados são em número de aproximadamente sessenta e seagrupam em famílias, a saber: a família real ou de Davice, chefiada por toi Zomadonu, o dono da casa, afamília de Dambirá, chefiada por toi Acossi Sakpatá, a família de voduns nagôs, ou de Quevioçô, que sãohóspedes e cuja maioria dos voduns são mudos, chefiada por Badé, e ainda duas famílias menores, a deAladanu e a de Savalunu. Os voduns de cada família possuem características e cânticos específicos, cadauma toma conta de uma determinada parte da casa e se responsabiliza por determinadas atividades.

5 Os assentamentos são preparados com pedras "vivas", como afirmam as vodunsis. Dizem que "a pedraé como se fosse um ímã que tem a força do vodum". Na Casa das Minas dizem que as pedras de assentamen-to ficam guardadas ocultamente em degraus, no quarto do segredo, recobertas com jarras e louças. Existemtambém assentamentos em outros pontos da casa e do quintal, marcado por árvores com a cajazeira ginja,e pinhão branco. Costuma haver assentamentos nos alicerces, nas paredes e no centro do barracão dedanças, muitas vezes marcado por um ladrilho colorido que se destaca dos demais. Fala-se que na Mina oscaboclos não têm assentamentos e que estes se destinam especialmente aos voduns e orixás.

6 D. Amélia contava que, quando recebeu seu vodum pela primeira vez, estava sentada no muro da varandada Casa das Minas assistindo a dança dos voduns. O pai dela, seu Gregório era tocador chefe. Sua avó, D.Maria Cecília do Nascimento Bandeira, ex-escrava africana, morreu quando ela tinha nove meses, éconsiderada uma das fundadoras da Casa das Minas. Sua tia, D. Maria Quirina, morreu em dezembro de1914, na festa do pagamento do barco que dirigira. Toi Doçú, o vodum de D. Quirina, incorporou emAmélia e fez com que ela pulasse do muro para a "gurna" ou varanda de danças. Ela só soube o que ocorreu,no dia seguinte.

114 Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000.

Page 10: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

dois. Antes de nascer o guiafaz um pacto pois precisadaquele corpo. Assim, oespírito já vem prevenido etem consciência, mas a pes-soa não sabe. Todos têm seuguia mas nem todo mundoé médium, só os que entramem transe e recebem seuguia. O médium é comouma área aberta e tem quedar caminho para o guia oupara o que não presta. Porisso quanto mais orar émelhor para a pessoa. "

D. Deni também diz que o espíritoda vodunsi nunca abandona totalmenteo corpo durante o transe:

"O vodum domina o corpo,mas o espírito não se afas-ta, só quando a pessoamorre. Depois do transefica-se normal, as novatasé que não se sentem bem. "

D. Deni diz que é necessário pre-parar o corpo para receber o vodum.

"Tem que tomar banho delimpeza (com "amansi") efazer preces. Deve se con-centrar, procurar esquecero mal e rezar o Pai Nosso. "

Ela aconselha às vodunsis evita-rem comer qualquer coisa três horasantes do início das festas, pois o vodumparalisa a digestão. Diz também que:

"Algumas vezes o transe dámedo, - a pessoa fica in-consciente, como se nãoexistisse, como se não esti-

vesse viva. Dormindo a pes-soa sonha, no transealgumas vezes fica como seestivesse sonhando."

D. Deni diz que o transe nuncaocorre de uma vez. A pessoa vai sen-tindo aproximações e minutos antessente um sinal, mas a manifestação vemrápido. Pessoas acostumadas a assistirfestas em um terreiro, percebem pe-quenas alterações nos gestos que an-tecedem o transe e podem mesmoprever qual vodunsi vai entrar em tran-se.

Na Casa das Minas os voduns seretiram (desincorporam) em grupo, nofim da festa, quando as vodunsis ficamdeitadas no "comé", repousando a ca-beça em pequenos travesseiros. Asvezes, antes de se retirar, os voduns tro-cam as roupas usadas na dança. D. Denidiz que, ao sair do transe, só sabe quedançou porque está com a roupa suadae que algumas vezes sente um vazio noestômago, por ter passado várias horassem comer. Por isso o pessoal da casadeixa sempre na cozinha um prato decomida para quando as vodunsis "acor-darem". Diz que depois, aos poucos,vem um cansaço, como se tivessem tra-balhado muito.

"Quando o vodum passamuitas horas, depois dotranse fica-se meio lerda, eé preciso dormir um poucopara reanimar.

D. Deni diz que quando recebe seusenhor (vodum), ela se sente como seestivesse dormindo, ou como se fosseuma sonâmbula e andasse dormindo.Após o transe só se lembra do que ocor-

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. I, p. I06-127,jan./jun. 2000. 115

Page 11: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

reu se o vodum quiser e a lembrança écomo a de um sonho.

"Dormindo a pessoa algu-mas vezes sonha, outrasnão. No transe também, àsvezes a pessoa lembra, ou-tras não, pois o vodum nãoquer. "

D. Deni também compara o tran-se com uma anestesia e diz que por isso,geralmente, a pessoa depois não se lem-bra do que aconteceu. Conta que a fa-lecida D. Marcolina, perdeu a visão esentia muitas dores nos olhos. O vodumdela, Toi Daco, vinha, e ela parava desentir dores. Depois de muitas horasde transe, as mais velhas diziam quepareciam ter nascido de novo, ou quesentiam como se tivessem chegado deuma longa viagem. O guia ou vodum écomparado por D. Deni, com o anjo daguarda da religião católica e as vodunsisgeralmente são muito católicas.

No Tambor de Mina, além de idéiasdo catolicismo popular, estão difundidasnumerosas idéias do EspiritismoKardecista. Muitas freqüentaram Cen-tros Espíritas durante certo tempo. As-sim o sincretismo com o Espiritismo écomum no Maranhão, mas depende docontato maior ou menor das pessoas comCentros Espíritas. A doutrina da reencar-nação geralmente é aceita pelos partici-pantes da Mina. Os voduns, entretanto,não são identificados com espíritos dosmortos nem com santos católicos. NaCasa das Minas, como diz D. Deni:

"Os espíritos dos mortosnão baixam porque os gui-as não permitem. Na Minaos mortos só se comunicamcom os vivos através de so-nhos ou da vidência. Osvoduns não gostam de con-tatos com os mortos. "

Os voduns representam forças danatureza ou ancestrais divinizados 7 enunca são vistos como espíritosdesencarnados. Quando morre alguémda casa durante as festas, quem estácuidando do morto não pode entrar emcontato com os voduns. Quando morredançante de Mina faz-se um Tamborde Choro" para, entre outras coisas in-formar ao espírito que a pessoa ~or-reu. Vemos, portanto, que o sincretismoentre o Espiritismo e o Tambor de Minaexiste em alguns aspectos.

A vidência é um dos elementos damediunidade, mas nem todos a possu-em. Dizem que uma médium videntevê todos os voduns que estão na casa eque às vezes não baixam porque nãotêm filhas. Alguns médiuns não vêemmas sentem sinais. Para se chefiar umacasa é preciso ser médium vidente.Segundo D. Deni, a vidência é um dome muitas crianças vêem seres sobrena-turais sem o saber. É um dom que semanifesta desde o nascimento e a pes-soa se desenvolve aceitando o que vê.

"O vidente vê muito, masdeve falar pouco, para nãoficar perturbado e não pas-

7 Indagada se o voduns que tinham nomes de antigos reis do Daomé, eram espíritos dos reis, D. Deni disseque os reis e os voduns unham o mesmo nome, mas eram seres distintos.

8 O tambor d~, chor~, é uma das partes mais importantes do complexo ritual fúnebre. Na Casa das Minasdenomina-se zelirn", quando de corpo presente, e "sirrurn", quando o corpo do morto está ausente.

116 Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127,jan./jun. 2000.

Page 12: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

sar por louco. A vidência éperigosa pois ataca os ner-vos. É preciso que a pessoatenha autocontrole e se do-mine. Há voduns poucocivilizados, que aparecempara amedrontar e algunsvidentes ficam doentes, ten-do que ir para o hospital. "

D. Deni diz também que ninguémgosta de ser vidente pois há coisas quenão se tem vontade de ver. Muitasvodunsis e tocadores são videntes. Nãohá ritos nem obrigações especiais paraquem é vidente. A vidência, como otranse, não tem hora certa, pois do con-trário daria medo. Na Casa das Minasa maioria dos filhos de voduns da famí-lia de Dambirá são videntes, mas avidência às vezes diminui com o tem-po.

D. Deni lembra que no começo fi-cava apavorada e mãe Andresa? dizia:- "Nasceu com isso, vai ficar assim".Dava-lhe banhos e remédios e o ner-voso foi passando. Andresa tinha mui-ta paciência e quando Deni dançou,

com 16 anos, já não tinha mais medodo transe e da vidência. D. Deni, quan-do tem visões, procura decifrar. Diz quea finada D. Filomena, sabia decifrartudo o que via e a ajudava a decifrarsuas visões".

D. Deni diz que sonha muito commãe Andresa, que lhe explica coisasda casa. Costuma também acendervelas no "corné", pedindo aos vodunsque mostrem a solução ou a respostapara algum problema e vê a respostana luz da vela. As vezes a resposta nãovem logo e ela deixa de pensar no as-sunto. Depois de algum tempo, outrapessoa dá uma informação que é a res-posta, mas que precisa ser entendida.A vidência deve ser desenvolvida coma ajuda de uma mãe-de-santo, pois asfilhas que não têm experiência, nãopodem compreender. Muitas pessoasde terreiro costumam contar casos devidência. D. Amélia, que também eravidente, nos contou vários casos. NaCasa das Minas, como em geral noTambor de Mina, não se usa a adivi-nhação 11 pelo processo do jogo de bú-zios, como no candomblé.

9 Mãe Andresa famosa chefe da Casa das Minas, que dirigiu entre 1915 e 1954.

10 D. Deni conta que tinha visões desde criança. Ela e seus irmãos viam o vodum de sua mãe, toi Bedigá.Via "assim de punho, bem de perto e ele é um homem claro". Depois passou a ver seu senhor, toi Lepon,que é um homem escuro, pobre e velho. Ela o vê mesmo fora da Casa das Minas. Na sua família muitos sãovidentes, como sua falecida mãe e seu filho mais velho. Lembra desde pequena de ter visto a "Mãe d'água",com um cabelo preto enorme como uma nuvem. Na cidade de Rosário, quando criança, Deni via Surrupira,como uma sombra pequena que protege a caça. Houve épocas em que freqüentava outros terreiros e viaPomba Gira e Exu Caveira. D. Deni diz que ficou um tempo sem ir à Casa das Minas e neste tempo suavidência aumentou. Uma vez viu um polvo enorme que queria arrastá-Ia, e lutou com ele. Em sua casahavia uma corrente de espíritos que atormentavam a ela e seus filhos. As vezes também vê pessoas antigasda casa. Uma vez viu uma senhora, que D. Amélia identificou como mãe Hozana, que dirigiu a casa até1915, antes de mãe Andresa, e que teria ficado aborrecida com D. Amância por ter ido morar numa parteque pertencera a mãe Hozana e onde só deveriam morar pessoas ligadas aos voduns da farru1ia real.

11 Na Mina a adivinhação é feita por outros processos, como a interpretação de sonhos, consulta aosvoduns e exame da luz de velas. Atualmente nas casas fundadas nos últimos trinta anos, costuma-se utilizaro jogo de búzios, difundido, em toda parte, nas religiões afro-brasileiras, mas que na Mina tradicional, nãose costuma consultar.

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 117

Page 13: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

Na Casa das Minas as vodunsisrecebem apenas um vodum. No passa-do, as que haviam passado por uma ini-ciação especial, recebiam uma "tobôssi",ou menina, cujo transe comentaremosadiante. Afirma-se que ali uma pessoanão pode receber várias entidades, comoocorre em outros terreiros. Na Casa dasMinas se diz que um vodum pode vir aomesmo tempo em várias vodunsis 12 eque pode começar a conversar com umapessoa, "na cabeça" de uma dançante,e continuar a conversa "ria cabeça" deoutra vodunsi. ,

Na Casa das Minas o vodum in-corporado não come, não bebe, nãodorme e não sente outras necessida-des fisiológicas. Alguns voduns fu-mam. Em outros terreiros de minasempre há diversas entidades que co-mem e bebem. Antes do início das fes-tas as vodunsis costumam receber umbanho de limpeza ("amansi"), feito comervas e com água das jarras do"corné", cuja composição varia com aépoca do ano e as festas a que se des-tinam. Fala-se que se a filha não sebanhou antes, quando o vodum chegapede água, para se banhar. Ao térmi-no das festas há um banho feito parase voltar para casa, o que tambémocorre nas cerimônias fúnebres. Osvoduns gostam muito de talco, perfu-mes e usam diversas jóias, além dosrosários com as cores ou marcas pró-prias de cada um e da casa.

Como diz D. Deni, na Casa dasMinas os voduns têm que vir calma-

mente e não podem aleijar as pesso-as, pois o corpo não é deles. Em al-guns terreiros às vezes as pessoasficam deformadas e se retorcem. NaCasa das Minas o transe é sempretranqüilo. Muitas pessoas de fora nemdistinguem as vodunsis que estão comvodum das que não estão. As vezesuma vodunsi vai à igreja com o vodum,para participar de um batizado em queo padrinho é o vodum e ninguém per-cebe a presença dele. Outras vezes ovodum chega na filha na Igreja (comocostuma acontecer com toiAverequete em D. Celeste, no fim daprocissão da festa de S. Benedito) ealguns vão cumprimentá-lo e pedir-lhea bênção.

Os voduns não se deitam em redee nem passam por baixo de punho derede, não vão perto do fogo e nem deaparelho sanitário. Os voduns tambémdizem que não ficam doentes, não en-velhecem e não precisam trabalhar parasobreviver. Dizem que isto são coisasdos pecadores, que são mortais. Ovodum é uma força e o espírito do mé-dium precisa estar preparado pararecebê-Ia. Na Casa das Minas osvoduns não podem passar tempo de-masiado com a pessoa. Mãe Andresareclamava e pedia que eles não se ex-cedessem. Afirma-se que se a pessoapassar mais de dois dias em transe 'como vodum, pode ficar obcecada, pois aforça do vodum é muito grande e pre-judica a médium. Dizem que se o vodum

12 Toi Poliboji tinha até quatro filhas na casa. Os voduns Bedigá, Boça,'Doçu, Daco, Lepon, Aboji,Agongone, Topa, Toçá e outros, tinham ou têm mais de uma filha e às vezes vêm ao mesmo tempo emambas.

118 Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106·127, jan./jun. 2000.

Page 14: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

ficar sempre na pessoa, ela destrói ovodum e o vodum destrói a pessoa".

Como diz D. Deni:

"Onde existe manifestaçãode vodum, tem que haverdança. Nas festas osvoduns cantam, dançam ebrincam. Com isso, o fardofica mais leve e suportável,a vida do médium se tornamais tolerável e mais huma-na. Brincando, os vodunsse comunicam melhor como povo e entram em conta-to com os que não sãomédiuns, para dar conse-lhos. O tambor e oscânticos chamam osvoduns, mas eles vêm sequiserem, pois ninguémmanda neles. Os tamboresnão têm poder sobre osvoduns, pois quem podesão eles próprios. Eles fa-zem o que querem e achamconveniente. Costumamchegar na hora dos toquesou pouco antes, pois dizemque os donos da festa têmque vir na frente. Cadavodum tem devoção a umsanto católico. Por isso O

povo diz que o vodum e osanto são um só, mas o san-to é um e o vodum é outro.

Os santos são mais puros,são adorados pelos vodunse não baixam. Os vodunspedem coisas aos santos ea Deus. Os voduns tomamconta das coisas da natu-reza, das águas, dasplantas, das doenças, dosanimais. "

Cada grupo ou família de vodunspossui cânticos próprios, com estilosdiferentes de danças. Na Casa dasMinas, os voduns mais jovens, ou"toquenos", dançam como se estives-sem brincando, correndo de um ladopara outro, dando voltas na varanda echamando os mais velhos. Os vodunsda farm1ia real, ou de Davice, cantam edançam de forma mais solene, pois sãonobres. Muitos dançãm encurvados,outros, que são cavaleiros, em certosmomentos dançam mostrando o chico-te para os tocadores. Os voduns da fa-rm1ia de Quevioçô, que representam oraio e as tempestades, dançam em roda,com agitação. Há uma dança simulan-do uma luta entre Liçá, o sol e Badé, atempestade, quando ambos dançampulando numa perna só e agitando umdos braços, como se lutassem com es-.padas. As danças dos voduns da farní-lia de Dambirá, que curam as doenças,são também lentas, em roda ou num"vai e vem". O vodum que está sendosaudado, ou o que o representa, dança

J3 Vimos numa festa grande D. Celeste, permanecer cerca de vinte hora com seu vodum. Ouvimos contarcasos de castigo em que o vodum apanhou a vodunsi em outra cidade e veio com ela de navio, de Beléma S. Luís, só a deixando ao chegar na Casa das Minas, depois de quase quinze dias. D. Enedina conta que seusenhor Jogoroboçú, já a apanhou no Rio de Janeiro e veio com ela de ônibus até ~ Maranhão, numa viagemque dura quase três dias. Verificamos portanto que, diferentemente do Candomblé, no Tambor de Mina osvoduns e também os orixás e caboclos, costumam permanecer muitas horas incorporados, ficam com osolhos abertos, conversam entre si e com pessoas que os procuram, dando bênçãos, conselhos e deixandorecados.

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 119

Page 15: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

na frente dos tambores e algumas ve-zes é saudado pelos outros com agita-ção de lenços. Há momentos em queos voduns formam duas filas paralelas.Existem danças próprias para o iníciodo toque e outras de encerramento.Existem também inúmeros gestos queacompanham as danças e variam con-forme a casa 14.

No Tambor de Mina do Maranhão,voduns e outras entidades dançam des-calços ou calçados". Na Casa dasMinas, como também na Casa de Nagô,até hoje, o piso da varanda de danças ede algumas outras partes da casa é deterra batida. A vestimenta ritual da Minaapresenta detalhes conforme a catego-ria das entidades 16. Na Casa das Mi-nas e na maioria dos terreiros de SãoLuís, não se troca paramento das en-tidades incorporadas, como no Can-domblé. Em muitas grupos, entretanto,o chefe da casa mudam algumas vezesde roupa durante o ritual, principalmentequando recebem outra entidade.

No Tambor de Mina, a maioria dasdançantes é mulher, ou a sua totalidadeem.diversas casas. Entretanto, a maio-

ria das entidades por elas recebidas édo sexo masculino. Nas casas funda-das depois dos anos cinqüenta, é co-mum dançarem também algunshomens. Durante o transe, a entidadese refere à vodunsi ou médium, comosua filha ou seu filho, ou sua mulher(tratamento usado na Casa das Minaspor vodum masculino). Fora do transea vodunsi se refere à sua entidade como"Meu Senhor" ou "Minha Senhora" e"meu guia", ou pelo nome com que éconhecida. As entidades costumam terdiversos nomes e nunca dizem todoseles, pois alguns nomes são secretos".As filhas da Casa das Minas tambémrecebem um nome privado africano, quenão costuma ser divulgado, diferindoassim da "dijina", nome pelo qual o ini-ciado é conhecido, que o CandombléNagô costuma ter o maior interesse emdivulgar.

As vodunsis gonjaís da Casa dasMinas recebiam também uma"tobôssi'?", entidade feminina infantil,a quem chamavam de "sinhazinha" oumenina, recebida por quem havia sesubmetido a todos os rituais de inicia-

14 Nas casas que recebem caboclos, estes podem dançar juntos com orixás e voduns, mas cada um usasímbolos e tem estilos de danças diferentes. Os caboclos no Tambor de Mina também se diferenciam nocomportamento e nas danças, de acordo com a família a que pertençam.

is Na Casa das Minas, para não prejudicar a saúde das mais idosas, dizem que os voduns consentiram emdançar calçados com sandálias.

16 Na Casa das Minas, quando o vodum é jovem, a toalha é mais curta e amarrada na cintura. Se o vodumé homem, é dobrada e metida na faixa que se leva na cintura. Se é mulher, a toalha é amarrada com um nó.Quando o vodum é velho a toalha é presa abaixo dos braços, sobre os seios. Se o vodum for velho, umchefe, ou estiver recebendo homenagem especial, 'usa preso ao ombro, um lenço colorido, da cor da saia.Se o vodum é homem, usa cabelo penteado para trás, e se é mulher, cobrindo as orelhas. Voduns idososcarregam bengala, como símbolo de idade e status, os que são cavaleiros usam chicote ou rebenque. Badéusa um lenço com guizos na cintura.

17 Toi Doçú, que corresponde entre os jêjes ao orixá nagô Ogum, é conhecido como Agajá (nome de umrei do Daorné), Huntó (tocador), e ainda Maçon, Poveçá, Agaivé, Patafô.

18 Atualmente este termo é aplicado a entidades semelhantes, geralmente meninas ou princesas, cultuadasem outros terreiros de mina de São Luís. Nestas casas existem entidades femininas infantis, chamadas"tobossas" ou princesas, que falam pouco, gostam de bonecas e vêm em festas especiais chamadas

120 Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127,jan./jun. 2000.

Page 16: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

ção. Lá, esta categoria se extinguiu emfins da década de 1960, com a mortedas últimas "gonjaís", pois não forampreparadas outras. Na Casa das Mi-nas, cada "gonjaí" possuía, além de seuvodum, uma "tobôssi". Além de teremnome complicado, elas falavam numalíngua diferente da língua dos voduns edavam o nome africano às novasvodunsis. Eram consideradas filhas dosvoduns. A "tobossi" só vinha em umavodunsi e quando esta morria ela dei-xava de vir, pois sua missão se encer-rava ali.

As "tobôssis" vinham geralmenteuma vez por ano, em festas grandesque duravam de quatro a nove dias, eque ocorriain no Natal, no Carnaval,antes da Quaresma, ou no S. João, nomês de junho. A possessão pelas"tobôssis" ocorria antes da vinda dosvoduns, ou depois que estes haviamdeixado as "gonjaís" e durava váriosdias. Durante sua permanência dormi-am, comiam (em pequenos pratos,acompanhadas pelos seus convidados),cantavam seus cânticos próprios, dan-çavam, mas não participavam dos to-ques, nem dançavam com voduns aosom dos tambores. Eram meninas pe-quenas. Gostavam de brincar com bo-necas e com louças de brinquedo decrianças. Usavam pano da costa nobusto e cobriam os ombros com man-tas de miçangas coloridas. Traziam nacabeça um lenço colorido dobrado emforma de rodilha, ou de trouxa (com aspontas amarradas). Pareciam prince-

sas e eram chefiadas por Sinhá Velha,ou Nochê Naê, vodum que tem filhasmas não incorpora.

5 O TRANSE DE CABOCLONA MINA MARANHENSE

Como foi dito anteriormente, forada Casa das Minas-Jêje os médiunspodem entrar em transe com mais deuma entidade espiritual e as entidadespodem ser de categorias diversas:voduns (como toi Averequete), orixás(como Ogum), voduns-gentís (como D.Luís), caboclos nobres (como Rei daTurquia), caboclos "de pena" (comoJurema). Os médiuns que têm "linhade Cura/Pajelança" recebem muitasentidades, umas conhecidas na Mina eoutras que só "descem" em rituais de"pena e maracá" (como a Mãed'água).

Na Casa de Nagô e terreiros maisapegados ao modelo por ela desenvol-vido, quando um médium tem váriasentidades espirituais só recebefreqüentemente uma delas e nunca en-tra em transe com mais de duas em ummesmo ritual de Mina. Naqueles ter-reiros, quando há ocorrência de transecom mais de uma entidade durante umtoque, a primeira a ser recebida pelofilho-de-santo é sempre a de nível hie-.rárquico mais alto - recebe primeiro umvodum, depois um caboclo, ou primeiroo guia-chefe (caboclo principal) e de-pois outro caboclo. Na Mina maranhen-se, a ocorrência de vários transes em

"arrarnbã" ou bancada, em que se distribuem muitas frutas e doces. Depois do "arrarnbã" elas cantam emvoz baixa, cânticos suaves, e dançam algum tempo, sendo então despachadas. Só as filhas com maior graude iniciação recebem estas princesas. Durante o "arrambã" elas permanecem sentadas em tronos, acom-panhadas por ajudantes, que distribuem doces e frutas da bancada

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 121

Page 17: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

um mesmo ritual indica desvio da tradi-ção africana ou sincretismo com outradenominação religiosa afro-brasileira:Terecô (Mata de Codó), Cura (Paje-lança), Umbanda, etc. Os terreiras ondeocorrem esses transes múltiplos sãomais conhecidos como "de curador" doque como "de Mina", como acontececom a maioria dos encontrados atual-mente em Cururupú.

Fora da Casa das Mina-Jêje o tran-se ocorre, geralmente, durante os ritu-ais, com os médiuns dançando nobarracão, vestidos com a roupa esco-lhida para aquela ocasião. Depois dotranse, como já foi mencionado, osmédiuns costumam receber a toalharendada, que é amarrada em sua cintu-ra ou em seu peito, quando se trata depessoa do sexo feminino, ou é usadadobrada no braço ou no ombro, quandoo médium é do sexo masculino. Nosterreiros onde se recebem só entida-des caboclas ou nos toques realizadospara caboclos (sem vodum) é comum,após a incorporação, o uso de "panas"ou de "espadas" - grandes lenços deseda que são enrolados no punho, colo-cados na cintura, no ombro e, às vezes,do ombro para a cintura, em diagonal.Quando o médium tem várias entida-des espirituais e não estava usando orosário (colar) da que acaba de chegar,costuma sair do barracão logo após otranse, em busca do rosário e de outrosdistintivos da entidade manifestada (len-ço de pescoço, bengala, chicote - usa-dos só por algumas, geralmente pelasentidades de "status" mais alto).

O transe na Mina tem, normalmen-te, grande duração e não é facilmentepercebido por pessoas que não conhe-

122

cem os médiuns ou as entidades espiri-tuais que se manifestam neles. E, em-bora haja padrões de comportamentodiferentes para voduns e caboclos ecada entidade tenha uma forma pró-pria de manifestação, só os que conhe-cem bastante o terreiro podemidentificar, com maior segurança, asentidades que estão sendo recebidas.Também na Mina, apontar quem estáem transe e quem está representando("mistificando") é algo que só pode serfeito por quem tem vidência e isso, ge-ralmente, só é feito por pais-de-santoincorporados com a entidade que che-fia espiritualmente o terreiro e depoisde submeter o médium, supostamenteincorporado, a várias provas (comomergulhar a mão em azeite fervendo).

Embora nos toques, orixás, vodunse caboclos dancem de olhos abertos,cantem e falem com as pessoas queestão no barracão, as entidades africa-nas e os gentis (nobres europeus asso-ciados a orixás) comunicam-se maisentre si, falam pouco e com poucaspessoas da assistência. Contudo, nosterreiros mais antigos, fundados porafricanos, elas costumam permanecermanifestadas após o encerramento,atendendo a todos os que desejam fa-lar com elas - quando dão conselhos,transmitem ensinamentos, fazem pedi-dos, escolhem pessoas para funçõesrituais, orientam o pessoal do terreiro esatisfazem o desejo de contato delescom elas e, algumas vezes, abençoamou dão "passes" em quem necessita(como Badé, na Casa das Minas, ePedra Angassu, na Casa de Nagô).

Nos transes com caboclos há mai-or comunicação entre pessoas incor-

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000.

Page 18: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

poradas e não incorporadas. Os cabo-clos da Mina gostam de cumprimentara assistência, abraçar os que são tam-bém seus "cavalos" (que entram emtranse com eles), seus amigos, e os fa-miliares e amigos de seus "cavalos".No barracão, costumam dançar comgrande animação, dando rodadas, "bra-dando" (emitindo sons que identificamo seu grupo). Na Casa de Nagô, po-dem ser vistos, após o toque, fumandocharuto, ou cachimbo, mas nunca be-bendo. Em outros terreiros de Mina,muitos caboclos bebem cachaça, cer-veja e bebidas fortes mas o fazem apóso ritual ou fora do barracão. Fumar oubeber incorporado, no barracão, só évisto no Maranhão em ritual que nãopertence à Mina, como: CuraJPajelan-ça, Samba Angola (Candomblé de Ca-boclo) e outros. Na Mina, um médiumem transe de vodum ou de caboclo nun-ca é visto comendo. Já as "tobôssis"da Casa das Mina-Jêje comiam alimen-tos preparados especialmente para elas,e hoje, em muitos terreiros que reali-zam "tambor de índio", médiuns incor-porados com entidades selvagens (quesó participam de toques de Mina quan-do acabocladas), podem ser vistos co-mendo mel, batata doce, melancia eoutros alimentos.

O transe de caboclo, tal como ode voduns e orixás no Tambor de Mina,é acompanhado por alteração de cons-ciência e troca de identidade. O mé-dium incorporado apresenta-se comosendo outra pessoa e, geralmente, exi-bindo características não apresentadaspor ele fora do transe. Na Mina, as di-ferenças entre o comportamento emtranse e fora dele são vistas como pro-

va de que, em transe, o médium deixade ser ele e que seu corpo está sendousado por uma entidade espiritual. Anova identidade, contudo, não é sem-pre assumida plenamente. Observa-sefreqüentemente, depois do toque, umacerta confusão entre o médium e a en-tidade por ele incorporada, principal-mente quando aquele se refere àpessoa em que a entidade está mani-festada (ao "cavalo").

Embora alguns transes pareçamsúbitos, de modo geral percebe-se an-tes dele um estado semelhante ao dosono, em que a pessoa reage lentamen-te e de modo débil aos estímulos exter-nos e parece profundamente vulnerávela estímulos apresentados no ritual(como, por exemplo, à música). É co-mum, neste estado, o médium apresen-tar perda de equilíbrio é de orientaçãotemporal e espacial. Entrando em tran-se, sai rapidamente daquele estado,passando a dar provas de acuidadeperceptiva ou intuitiva e grande capa-cidade de evocação de fatos ocorridosem outros momentos em que estavanaquele estado (em transe com a mes-ma entidade). Nos terreiros de SãoLuís, costuma-se afirmar que tudo o quese diz a uma entidade espiritual é lem-brado por ela quando retoma ao "mun-do dos pecadores" e que, por issomesmo, quando alguém deve algo a ela,pode ter certeza de que será cobradona primeira oportunidade. Fala-se tam-bém que as entidades costumam alertaras pessoas do terreiro a respeito decoisas que estão acontecendo com elasou em tomo delas e são freqüentes osrelatos de diagnósticos precoces de gra-videz feitos por vodum ou caboclo.

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 123

Page 19: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

o estado que precede o transe é,muitas vezes, acompanhado de sinais degrande perturbação, principalmentequando se trata de médiuns em desen-vol vimento (palidez, mãos frias,sudorese, falta de ar, contrações faciais,tontura, fraqueza nas pernas, pressão nanuca e no estômago, etc.) e, não rara-mente, o médium tenta dele escapar.Quando um médium entra em transedespreparado, costuma ser ajudado poroutros que já estão em transe ou queainda estão "puros", a equilibrar o corpoe a sair daquele estado intermediário edesagradável, pela entrada definitiva notranse. Em alguns terreiros os pais-de-santo facilitam o transe fazendo a pes-soa rodar sobre si mesma, tocando suanuca ou em determinados pontos de suacabeça ou coluna, "assustando-a" combarulho ou com um empurrão, etc. Aosair do transe, freqüentemente, a pes-soa esfrega os olhos, como se desper-tasse de sono profundo.

Quem está fora da roda e não de-seja entrar em transe tenta bloquear oprocesso pela concentração em algoexterno ou por manobras especiais,como dar um nó na saia, cruzar braçose pernas, fechar as mãos, tomar água,etc. Alguns, antes de saírem de casa,tomam várias providências para nãoentrarem em transe durante o ritual(acendem vela para seu anjo de guar-da, etc.). E, se o transe começar a ocor-rer no terreiro, sem ser esperado, podeser inibido pelo pai ou mãe-de-santo, oque, geralmente, é feito reservadamen-te, fora do barracão.

Para os adeptos do Tambor deMina, o que se faz em transe é de res-ponsabilidade da entidade espiritual, daí

porque nunca se deixa quem está "atu-ado" sozinho, ou somente com pessoasque também estão em transe, princi-palmente quando incorporadas comentidades violentas (como os turcos) ouinfantis. Depois do toque, não raramen-te, acontecem brigas entre encantadose podem ocorrer agressões físicas apessoas que permanecem no terreiroapós o encerramento dos rituais parabeber com os caboclos (em dias de fes-ta) ou que estão aguardando a saída dotranse de alguém com quem deverão irpara casa. Fala-se em São Luís que asentidades caboclas tanto podem se afei-çoar como ter raiva das pessoas e que,não raro, punem seus "cavalos" atiran-do-os ao chão ou contra a parede, jo-gando-os na lama, em espinheiro ou nofogo, batendo suas mãos contra umapedra ou até decepando-Ihes um dedo,como temos conhecimento de um caso.Podem também agredir as pessoas quefizeram alguma coisa ruim a seus "ca-valos", que trataram mal um encanta-do ou que desrespeitaram sua religião.Alguns "mineiros", no entanto, escla-recem que os voduns e caboclos nuncafazem o mal mas que, quando o mé-dium não cumpre com suas obrigações,afastam-se dele, deixando-o sob o do-mínio de espíritos pouco evoluídos, ca-pazes de grandes crueldades. Outrosafirmam que um médium em transenunca faz nada realmente contra seusprincípios morais e que ninguém podejustificar seus atos responsabilizando osseus encantados por eles.

6 CONCLUSÃO

Procuramos apresentar aqui a vi-são de quem entra em transe (com ên-

124 Cad. Pesq., São Luís, v.ll, n.l,p.l06-127,jan./jun. 2000.

Page 20: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

fase no depoimento de D. Deni, vodunsida Casa das Minas) e de quem, comoantropólogo, pesquisa Religião Afro-Brasileira há vários anos e tem obser-vado numerosos transes (enfatizandoseus aspectos exteriores e públicos).

Analisando as duas visões, pode-mos concluir que o transe é compará-vel ao sonho e ao sonambulismo e,freqüentemente, ao entrar e sair dele apessoa age como quando está comsono ou está acordando (esfrega osolhos, etc.)

As alterações de consciência notranse parecem ocorrer em níveis dife-rentes. Como no Tambor de Mina, otranse tem longa duração e se prolon-ga, geralmente, por muito tempo apóso encerramento dos rituais, é de se es-perar que essas alterações sejam mai-ores no início do transe e durante otoque (principalmente quando o médiumrecebeu a entidade espiritual que estásendo homenageada), do que muitotempo após encerrado o ritual (quandoos médiuns ainda em transe conversamcom amigos ou voltam para as suasresidências) .

A questão da normalidade dequem entra em transe quase não foidiscutida aqui. Embora muitos médiunsapresentem perturbações mentais e al-guns deles tenham várias entradas emhospitais psiquiátricos, acredita-se quetranse e alucinação são fenômenos di-ferentes e independentes. Contudo, amediunidade não reconhecida e assu-mida, ou não desenvolvida, pode levara pessoa à loucura, pela falta de doITÚ-nio sobre o medo experimentado dian-te do que vê (quando vidente) e sente,pela não aceitação de si, pela discrimi-

nação social de que é alvo, freqüente-mente, em seu meio.

Sobre a responsabilidade moral dosatos praticados por pessoas em transe,com entidade espiritual da Mina, advo-ga-se que, em transe, a pessoa fazmuitas coisas que jamais faria fora des-te estado, mas que a entidade incorpo-rada não pode levá-Ia a praticar atoscontrários a seus princípios morais ouque extrapolam seus limites.Exemplificando: como se tem conheci-mento, na Mina, que as entidades afri-canas falam línguas estranhas e que D.Luís fala francês, ninguém se surpre-ende se uma pessoa que as incorporafalar em uma língua que o médium nun-ca aprendeu, mas ninguém duvida daautenticidade de um transe com elas,se o médium não falar a língua da enti-dade incorporada. '

Gostaríamos de destacar que otranse depende de muitos fatores e quepode apresentar profundas diferenças,mesmo quando experimentado pelamesma pessoa, no mesmo terreiro, eem contexto ritual semelhante. Muitasdessas diferenças são organizadas naMina em tomo dós conceitos de "linha",que enfatiza a existência de tradiçõesreligiosas diferentes, e em tomo do per-fil das entidades espirituais recebidaspelo médium, capazes de assegurarcoerência e continuidade em sua expe-riência de transe (com cada uma desuas entidades espirituais, em caso deocorrência de transes múltiplos).

Apresentamos aqui inúmeros de-talhes específicos sobre o Tambor deMina do Maranhão, porque sabemosque ele apresenta diferenças em ou-tros Estados da Amazônia e do Brasil

Cad. Pesq., São Luís, v. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 125

Page 21: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

e se diferencia de outras religiões afro-brasileiras mais conhecidas. Para fina-lizar, lembramos que é difícil fazerafirmações ou generalizações sobre otranse. Achamos interessantes as com-parações que têm sido feitas entre oestado de transe e a anestesia e tam-bém com a hipnose, sobretudo consta-tando-se que certo número de pessoasnão são hipnotizáveis e que tambémalgumas pessoas não entram em tran-se, o que nas religiões afro-brasileiraschega a ser institucionalizado, porexemplo, com os cargos de ogan ou

equedi, ocupados por pessoas iniciadasnos candomblés, que não entram emtranse e desempenham funções espe-cíficas.

Falar do transe é sempre difícil earriscado, tanto para quem o experimen-ta quanto para quem o observa de fora.Uns e outros percebem determinadosaspectos e têm consciência de que ou-tros lhes escapam, ou pela alteração deconsciência, ou pela falta de experiên-cia e de capacidade para avaliar o queocorre no íntimo de um médium incor-porado.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de.Carajás: a guerra dos mapas: reper-tório de fontes documentais e comen-tários para apoiar a leitura do mapatemático do seminário-consulta"Carajás: desenvolvimento ou destrui-ção?". Belém: Falangola, 1994.

BARRETTO, Maria A. P.Os voduns doMaranhão. São Luís: FUNC. 1977.

CARNEIRO, Edson. Candomblés daBahia. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro,1961.

CARVALHO SANTOS, Maria do R. &SANTOS NETO, M. dos.Boboromina:. terreiros de São Luís:uma interpretação sócio cultural. SãoLuís: SECMA;SIOGE, 1989.

CAVALCANTI, Maria Laura V.de C. Omundo invisível: cosmologia, sis-tema ritual e noção de pessoa no Es-piritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

DANTAS SILVA,L. (Org.) Estudos so-bre a escravidão negra l. Recife:Ed. Massangana; F.J.N., 1988.

FERRETTI, Mundicarmo M.· Rocha.Desceu na guma: O caboclo do tam-bor de mina no processo de mudan-

ça de um terreiro de São Luís: a casaFanti-Ashanti. São. Luís: SIOGE,1993.

__ o De segunda a Domingo: minauma religião de origem africana. SãoLuís: SIOGE, 1985.

FERRETTI, Sergio F. Querebentã deZomadonu: etnografia da casa dasminas. 2.ed. rev. São Luís:EDUFMA, 1996.

__ o Repensando o sincretismo:.estudo sobre a casa das minas. SãoPaulo: EDUSP;FAPEMA, 1995.

FURUYA, Yoshiaki. Possessão e Discur-so: os "caboclos" nas religiões afro-amazônicas. Latin AmericanStudies Tókyo, n.13, p.73-88,1994.

GOLDMAN, Márcio. A construção ri-tual da pessoa: a possessão no Can-domblé. Religião e Sociedade. Riode Janeiro, v. 12, n.l, p.22-54, ago.1985.

HALPERIN, Daniel. Analysis of anafro-brazilian dance and spiritpossession cerimony: comparationwith dance therapy. Thesis presented

126 Cad. Pesq., São Luís, v. lI, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000.

Page 22: Artigo Transe No Maranhao Ferreti Ler

in partial fulfillment of the degreeMaster of creative arts in theory. Thefaculty os the graduate schoolhahnemann university, 1992.

__ o Dancing at the Edge of Chaos:an ethnography of wildness andceremony in an afro-brazilianpossession religion. Dr. in Philosophyin Latin American Studies of theUniversity of Califomia at Berkeley,1995.

PIERRE Fatumbi Verger: mensageiroentre dois mundos (filme). Direçãode Luiz Buarque Holanda; Narraçãode Gilberto Gil. [S.I.]: CNT;Globosat. 1999. 60min., color., son.,36mm.

OLIVEIRA, Maria r. c. Quem eram os"negros da Guiné"?: A origem dosafricanos na Bahia. Áfro-Ásia, Sal-vador, v.19, n.20, p.37-73, 1997.

PARÉS, Luis Nicolau. Thephenomenology of sprit possession

in the tambor de mina: anethnographic and audio-visual study,London, 1997. 252f. Thesis (PhD)- University ofLondon, SOAS.

PEREIRA. M. Nunes. A casa das mi-nas:. culto dos voduns jêjes do Ma-ranhão. Petrópolis: Vozes, 1979.

ROUGET, Gilbert. La musique et Iatranse:. esquisse dune théoriegénérale des relations de Ia musiqueet de Ia possession. Paris: Ed.Gallimard, 1980.

SOGBOSSI, Hyppolyte Brice. Minas-Jêjes em São Luís do Maranhão,Brasil: contribuição ao estudo deuma tradição daomeana. Rio de Ja-neiro, 1999. 142f. Dissertação(Mestrado em Antropologia Social)- Universidade Federal do Rio de Ja-neiro, UFRJ; PPGAS/Museu Nacio-nal.

SALLES, Vicente. O negro no Pará. Riode Janeiro: FGV;UFPA, 1971.

caã. Pesq., São Luís, V. 11, n. 1, p. 106-127, jan./jun. 2000. 127