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FEC - FACULDADE DE ENGENHARIA CIVIL ARQUITETURA E URBANISMO HUMANIZAÇÃO DA HABITAÇÃO DE BAIXO CUSTO Arq. Míriam Morata Novaes Resumo O objetivo desta pesquisa é tentar compreender o cenário em que se desenrola dois grandes desafios para a arquitetura e a ciência - o déficit habitacional e a degradação ambiental ocasionada pela construção civil. A partir daí discutir a qualidade do ambiente construído, focando na casa popular. Uma possível solução para esse impasse seria construir casas de baixo custo, buscando alternativas para a construção civil, segundo uma nova ótica, alinhada com uma ética, seguindo a estética da sustentabilidade (SATTLER, 2007), e a utilização de conceitos humanizadores na arquitetura. Palavras-chave: Déficit habitacional. Casa popular. Sustentabilidade. Humanização da arquitetura. Meio Ambiente. Abstract The objective of this research is to try to understand the scenario that plays out two major challenges for architecture and science-the housing shortage and environmental degradation caused by the construction. From there discuss the quality of the built environment, focusing on the people's House. A possible solution to this impasse would be to build low-cost houses, seeking alternatives for the construction, according to a new optics, aligned with an ethic, following the aesthetics of sustainability (SATTLER, 2007), and the humanization. Keywords: housing shortage. Popular House. Sustainability. Humanization of architecture. Environment. Introdução Qual a quantidade de pessoas que a Terra pode sustentar? Como abrigar toda essa população? Durante 99,9% da história da humanidade fomos menos de 10 milhões de pessoas habitando o planeta; só muito recentemente chegamos aos 7 bilhões de pessoas, a tendência da população mundial está sendo dobrar a cada 35 anos aproximadamente. (RELATÓRIO, 2011)

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FEC - FACULDADE DE ENGENHARIA CIVIL ARQUITETURA E URBANISMO

HUMANIZAÇÃO DA HABITAÇÃO DE BAIXO CUSTO

Arq. Míriam Morata Novaes

Resumo

O objetivo desta pesquisa é tentar compreender o cenário em que se desenrola dois grandes

desafios para a arquitetura e a ciência - o déficit habitacional e a degradação ambiental

ocasionada pela construção civil. A partir daí discutir a qualidade do ambiente construído,

focando na casa popular.

Uma possível solução para esse impasse seria construir casas de baixo custo, buscando

alternativas para a construção civil, segundo uma nova ótica, alinhada com uma ética,

seguindo a estética da sustentabilidade (SATTLER, 2007), e a utilização de conceitos

humanizadores na arquitetura.

Palavras-chave: Déficit habitacional. Casa popular. Sustentabilidade. Humanização da

arquitetura. Meio Ambiente.

Abstract

The objective of this research is to try to understand the scenario that plays out two major

challenges for architecture and science-the housing shortage and environmental degradation

caused by the construction. From there discuss the quality of the built environment, focusing

on the people's House.

A possible solution to this impasse would be to build low-cost houses, seeking alternatives for

the construction, according to a new optics, aligned with an ethic, following the aesthetics of

sustainability (SATTLER, 2007), and the humanization.

Keywords: housing shortage. Popular House. Sustainability. Humanization of architecture.

Environment.

Introdução

Qual a quantidade de pessoas que a Terra pode sustentar?

Como abrigar toda essa população?

Durante 99,9% da história da humanidade fomos menos de 10 milhões de pessoas habitando o planeta; só

muito recentemente chegamos aos 7 bilhões de pessoas, a tendência da população mundial está sendo

dobrar a cada 35 anos aproximadamente. (RELATÓRIO, 2011)

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“O rápido crescimento da população mundial é fenômeno recente. Há cerca de 2.000

anos, a população mundial era de cerca de 300 milhões. Foram necessários mais de

1.600 anos para que ela duplicasse para 600 milhões. O rápido crescimento da

população mundial teve início em 1950, com reduções de mortalidade nas regiões

menos desenvolvidas, o que resultou numa população estimada em 6,1 bilhões no ano

de 2000, quase duas vezes e meia a população de 1950. Com o declínio da

fecundidade na maior parte do mundo, a taxa de crescimento global da população tem

decrescido desde seu pico de 2,0%, observado no quinquênio 1965-1970.”

Fonte: Divisão de População do Departamento de Economia e Assuntos Sociais das

Nações Unidas

Isto significa mais moradias, alimentos, entulho, energia e milhões de famílias morando em

condições sub-humanas.

Como abrigar toda essa população em uma moradia adequada, na qual o cidadão possa ter

atendidas as suas necessidades básicas e fundamentais de subsistência, com dignidade e sem

causar danos ao planeta?

“De acordo com o 4º Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos do

Milênio, em 2008, o déficit habitacional estimado era de 5,8 milhões de domicílios,

dos quais 82,2% estavam localizados em áreas urbanas. Sendo que, 89,2% do déficit

habitacional incidindo sobre a população com renda média familiar mensal até três

salários mínimos.”(MINISTÉRIO, 2008)1

Como abrigar toda essa população sem causar danos ao planeta?

O segundo desafio que a história nos apresenta é diminuir o impacto da construção civil. As

atividades relacionadas à construção civil são as maiores responsáveis pela degradação

ambiental, que ocorrem por meio do consumo excessivo de recursos naturais, pela demanda

por matéria prima industrializada e pela geração de resíduos. O setor é atualmente um dos

maiores causadores de impactos ambientais, consome 75% dos recursos naturais extraídos,

gera 80 milhões de toneladas de resíduos por ano e, devido à queima de combustíveis fósseis,

sua cadeia produtiva contribui de forma significativa para a emissão de gases de efeito estufa

(GEE), como o CO2, também responde por 40% do consumo mundial de energia e por 16%

da água utilizada no mundo.

1 Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Habitação; elaborado pela Fundação João

Pinheiro, com base nos microdados da PNAD/IBGE 2008.

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De acordo com Lester Brown, “A questão não é‚ o quanto consumimos, mas como

produzimos o que consumimos.” (ESTADO, 2010). Podemos acrescentar “como descartamos

o que consumimos?”. A busca por novos materiais, sistemas construtivos e tecnologias de

baixo custo para construção de casas populares sustentáveis pode apontar saídas, para

equacionar os problemas de déficits habitacionais e degradação ambiental.

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Como interpretar as necessidades e sonhos dessa população e criar um projeto que

responda a essa expectativa?

A casa é mais que uma construção para abrigar. A casa é a extensão do homem e, através da

relação que cria com ela, o seu universo é construído, desconstruído e reconstruído

constantemente.

Casa é o território, o lugar no mundo, é o lugar que vai proteger o sentimento de estar vivo e

abrigar a descoberta e a invenção do mundo. Casa não é desenho, casa é escultura. Casa é a

textura. Essa casa não nasce na fundação, mas na ideia de melhorar a vida do homem através

do ambiente construído.

O principal objetivo da edificação deve ser garantir a qualidade de vida da população, sem

causar nenhum dano ao planeta. O projeto é a ponte entre esse objetivo e a realidade

construída com blocos, telhas e janelas.

Em sua grande maioria, as casas populares não são projetadas, um mesmo modelo é

reproduzido em qualquer região do país, para famílias compostas por 2 ou 10 pessoas; a

prioridade é a quantidade e não a qualidade, portanto não existe nenhuma preocupação com

conforto, eficiência energética, proteção ambiental, ou estética. Também é mínima a

preocupação com materiais utilizados seja no que se refere à origem, toxicidade ou custo final

da obra.

A utilização de princípios arquitetônicos para fundamentar os projetos é a base da

humanização da arquitetura. “Os princípios escolhidos pelos humanizadores emergem do

reexame da história da arquitetura e são: a estética, a natureza, o porte reduzido das

construções e o ambiente de moradia tradicional ou domesticidade. (houseness)”

(KOWALTOWSKI, 1989)

Ainda que os princípios arquitetônicos fundamentem o projeto, o homem deve ser o centro e o

fim de todo processo, ou seja, o ambiente construído deve buscar a satisfação das

necessidades humanas, físicas, cognitivas, sensoriais, emocionais e espirituais.

Diretrizes que orientam a arquitetura sustentável

Um projeto arquitetônico de uma casa de baixo custo, orientado a partir de diretrizes gerais

relacionadas a projetos sustentáveis inclui:

Acessibilidade – todos os espaços de passagem e banheiros permitem a movimentação

segura de idosos e cadeirantes. Dê “possibilidade e condição de alcance, percepção e

entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço,

mobiliário, equipamento urbano e elementos” (ABNT, 2004)

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Adequação Climática - adequação ao local e ao clima, visando o combate à radiação

solar excessiva, à grande luminosidade e privilegiando a ventilação e iluminação

natural.

Águas – Captação e utilização de água de chuva, redução do uso e tratamento de águas

residuárias.

Energia –Redução do consumo de energia e desenvolvimento de tecnologias de baixo

custo, para utilização de energia solar e eólica, de acordo com a região.

Materiais e Tecnologias de Construção - Identificar os materiais locais, recursos

naturais, e desenvolver novos materiais e componentes; proporcionar a interação dos

moradores da comunidade e seus saberes com o processo construtivo.

Saneamento eficiente – desenvolver fossa séptica mais eficiente e, ao mesmo tempo,

acessível às populações mais pobres.

Sistema construtivo - adoção de sistemas de construção otimizados que possibilitem a

auto construção e a diminuição de perdas de material.

A hipótese Gaia formulada pelo cientista inglês James Lovelock e fortalecida pelos estudos da

bióloga norte-americana Lynn Margulis, afirma que o planeta Terra é um imenso organismo

vivo, capaz de obter energia para seu funcionamento, regular seu clima e temperatura,

eliminar seus detritos e combater suas próprias doenças, ou seja, assim como os outros seres

vivos, um organismo capaz de se autorregular. De acordo com a hipótese, os organismos

bióticos controlam os organismos abióticos, de forma que a Terra se mantém em equilíbrio e

em condições propícias de sustentar a vida.

Essas diretrizes são eficazes para reverter o processo de destruição ambiental e “salvar” Gaia,

mas, o homem deve ser o centro e o fim de todo processo, portanto um projeto humanizado

requer outros princípios.

Diretrizes que orientam a arquitetura humanizada

Para os humanizadores da arquitetura, as necessidades exigidas do ambiente físico são:

conforto das necessidades sensoriais de calor, luz som e cheiro; territorialidade e privacidade;

segurança, orientação espacial e constância; estimulo visual estético e beleza; variedade de

estímulos sensoriais. (KOWALTOWSKI, 1989)

Enquanto a arquitetura de um modo geral está aparelhada para atender às necessidade físicas

do homem, os princípios da arquitetura sustentável não tem a preocupação em atender a duas

necessidades - o estimulo visual estético e a beleza e a variedade de estímulos sensoriais. No

entanto, a sustentabilidade e a humanização tem em comum, a tentativa de resgatar a relação

homem-natureza, como elemento fundamental para atender as necessidades emocionais,

cognitivas e espirituais do homem.

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“O arquiteto Otávio Urquiza (2007), que concebeu e construiu uma Ecovila na cidade

de Porto Alegre, projetou, para as residências locais, um sistema de ventilação

convectiva natural, no qual o ar circula através de um jardim de plantas aromáticas,

antes de ingressar nos recintos internos. Da mesma maneira, ao trabalharmos com a

natureza, não poderíamos, com o paisagismo, enriquecer ainda mais os projetos,

estimulando o sentido da audição, agregando sons (água, pássaros, etc.), e do

paladar (com frutos comestíveis, que adicionalmente podem veicular estímulos

olfativos, visuais, táteis)?” (SATTLER, 2007)

A natureza como um principio de humanização da arquitetura está relacionada não apenas

com a percepção estética, mas também com processos cognitivo e afetivo, uma vez que o

homem possui uma relação dialética com o ambiente, onde ambos constroem-se mutuamente

através dessa interação.

Nesse sentido, a natureza oferece mais do que paisagismo, alimento, conforto térmico; ela é

“capaz de ensinar a geometria transcendental através de sua uniformidade não monótona, a

ordem ecológica com diversidade, que tem agido historicamente como estimulo ao

pensamento criativo.” (KOWALTOWSKI, 1989)

“As árvores tem um significado muito profundo e crucial para os seres humanos. A

importância das árvores é arquetípica: em nossos sonhos ela muitas vezes

representam a integridade da personalidade(...) As árvores junto com as casas e

outras pessoas, constituem uma das três partes ais fundamentais do meio ambiente

humano.” (ALEXANDER, 2013)

Conclusão

Gaia está viva, mas precisa de cuidados, para não sucumbir aos rastros deixados pela ganância e

ignorância dos seus filhos humanos. Os filhos de Gaia dependem da saúde da Mãe para continuar

existindo como civilização.

A crise pela qual passamos não é ambiental, mas civilizacional. O planeta retoma seu equilíbrio, mas a

humanidade não. Nossa carência não é unicamente de casas e educação ambiental, mas de valores,

ética, identidade e respeito pelo planeta.

A arquitetura é um instrumento para ajudar nesse processo de cura do planeta e resgate da dignidade e

qualidade de vida do ser humano. A casa é o primeiro abrigo, depois do útero e pode se tornar a porta

para a descoberta de ser e estar no mundo. Construir casas que permitam essa experiência, sem agredir

o planeta é o desafio da arquitetura.

O grande desafio da Sustentabilidade e Humanização da Arquitetura é adequar a casa ao lugar, em

harmonia com a natureza, respeitando a cultura e as expectativas da comunidade; é atender as

necessidades de sobrevivência e dignidade.

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“Você pode levar um cavalo para a água, mas não pode fazê-lo beber." Yogananda

Não podemos obrigar o cavalo a beber água, não temos nenhum poder sobre a sede, mas temos as

condições necessárias e responsabilidade de construirmos bebedouros com qualidade e quantidade

suficientes, para que a natureza se encarregue do resto.

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Referência Bibliográfica

ALEXANDER, C. et al. – Uma linguagem de padrões. Porto Alegre: Bookman, 2013, 1171

págs.

ABNT-ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 9050 . Rio de

Janeiro, 2004

Estado do Mundo, 2010: estado do consumo e o consumo sustentável - Worldwatch

Institute; Introdução: Muhammad Yunus. Organização: Erik Assadourian; tradução: Claudia

Strauch. Salvador, BA: Uma Ed., 2010. 298 págs. 1ª edição

KOWALTOWSKI, D.C.C.K - Transferência de inovação tecnológica na autoconstrução

de moradias Coletânea Habitare - vol. 2 - Inovação, Gestão da Qualidade & Produtividade e

Disseminação do Conhecimento na Construção Habitacional

KOWALTOWSKI, D.C.C.K. - Arquitetura e Humanização – revista projeto, outubro de 1989

Relatório sobre a Situação da População Mundial 2011 - produzido pela Divisão de

Informações e Relações Externas do UNFPA, o Fundo de População das Nações Unidas.

SATTLER, Miguel Aloysio - Habitações de baixo custo mais sustentáveis: a casa

Alvorada e o Centro Experimental de tecnologias habitacionais sustentáveis. Coleção

Habitare, vol. 8. Porto Alegre: ANTAC, 2007.

SATTLER, Miguel Aloysio - Moradia e sustentabilidade sócio-ambiental -