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  Acta Sci. Human Soc. Sc i. Maringá, v. 29, n. 1, p. 41-50, 2 007  A  A  A  A tradução l iterária tecendo sua p rópria história tradução literária tecendo sua própria história tradução literária tecendo sua própria história tradução literária tecendo sua própria história Leoné Astride Barzotto Centro Universitário de Maringá, Av. Guedner, 1610, Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected] RESUMO. Tendo por base um referencial teórico da tradução literária sob a perspectiva cultural, o presente estudo visa investigar a tradução literária como ‘parceira’ dos estudos culturais e da literatura pós-colonial, abordando, em maior tom, a questão da identidade cultural e de que forma a mesma tem sido constituída e estudada dentro do campo da tradução literária construída como conhecimento científi co ao longo dos anos. Palavras-chave: tradução literária, cultura, identidade.  ABSTRACT.  The literary translation building its own history. Being in touch with a theoretical framework of literary translation based on a cultural perspective, the present essay aims at investigating literary translation as a ‘partner’ of cultural studies and post- colonial literature, giving a special focus on the cultural identity assumption and to what extent it has been fulfilled and studied within the field of literary translation built as scientific knowledge through the years. Key words: literary translation, culture, identity.  Introdução Introdução Introdução Introdução  A tradução é um palimpsesto cada nova tradução apaga traduções anteriores e produz sua própria interpretação do original. É impossível julgar qual é a melhor, ou se há melhor (Arrojo, 1986).  A tradução literária há muito tempo contribui para o desenvolvimento de literaturas e línguas de  vários países, inclusive como oportunidade de alargar o conhecimento do homem em direção a aspectos bem distintos. Além do mais, um mundo globalizado exige cada vez mais pessoas capacitadas na área de tradução, com habilidade de valorizar o contexto histórico, social e cultural do trabalho que fazem. Contudo, sua importância e atividade ficaram relegadas às outras disciplinas, como a Lingüística ou a Literatura Comparada, causando certa dependência e, até mesmo, privando a Tradução Literária de seguir o seu próprio caminho. Todavia, tal situação parece estar finalmente acontecendo, visto que tal área do saber já consta como disciplina acadêmica em muitas universidades e em muitos países, do ocidente ao oriente. Há algum tempo, especialistas em tradução técnica afirmavam que a Lingüística seria o campo mais adequado para o trabalho da tradução, ao passo que os estudiosos da área literária defendiam que a Literatura Comparada deveria ser a responsável por tal atividade quando se tratava de textos literários a se traduzir. E, assim, a polêmica prosseguiu por muitas décadas, cada qual defendendo sua área de conhecimento e criticando a do outro. Ao final do século XX, depois de muitas pesquisas e publicações, parece que finalmente surgiu o bom senso entre essas linhas do saber e a certeza de que a Tradução Literária deveria ter realmente seu próprio espaço devido às características peculiares que apresenta, as quais serão analisadas e relatadas a seguir.  A tradução literária 1  apresentou, então, uma nova perspectiva de estudo diante das mudanças culturais do mundo moderno, como na literatura pós-colonial e na importância da TL para uma nação recém- independente e também para a consolidação da própria literatura e da identidade nacional. Assim, a TL encontra no texto literário o caminho para desenvolver-se e conquistar o próprio espaço de âmbito intelectual, ligando-se ao choque de culturas presente e inerente ao encontro de diferentes línguas. Tal fator é evidenciado em um encontro cultural e enfatizado por autores como Susan Bassnett e André Lefevere, com o que denominam ‘virada cultural’, ou seja, isto é um aspecto dentro dos estudos literários em que a preocupação não é mais com a tradução técnica e literal, palavra por palavra a ser analisada, mas com todo o aspecto sociocultural que envolve as culturas (fonte e alvo) e que deve ser altamente considerado em um processo tradutório, abordando-se as sociedades e os indivíduos que as constituem (Bassnett, 1980, passim). Mona Baker (1999, p. 15-35, passim) faz uma 1  A partir desse parágrafo usar-se-á a sigla TL para o termo Tradução Literária.

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  Acta Sci. Human Soc. Sci. Maringá, v. 29, n. 1, p. 41-50, 2007

 A  A  A  A tradução literária tecendo sua própria históriatradução literária tecendo sua própria históriatradução literária tecendo sua própria históriatradução literária tecendo sua própria história

Leoné Astride Barzotto

Centro Universitário de Maringá, Av. Guedner, 1610, Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected] 

RESUMO. Tendo por base um referencial teórico da tradução literária sob a perspectivacultural, o presente estudo visa investigar a tradução literária como ‘parceira’ dos estudosculturais e da literatura pós-colonial, abordando, em maior tom, a questão da identidadecultural e de que forma a mesma tem sido constituída e estudada dentro do campo datradução literária construída como conhecimento científico ao longo dos anos.Palavras-chave: tradução literária, cultura, identidade.

 ABSTRACT. The literary translation building its own history. Being in touch with a

theoretical framework of literary translation based on a cultural perspective, the presentessay aims at investigating literary translation as a ‘partner’ of cultural studies and post-colonial literature, giving a special focus on the cultural identity assumption and to whatextent it has been fulfilled and studied within the field of literary translation built asscientific knowledge through the years.Key words: literary translation, culture, identity. 

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

 A tradução é um palimpsesto – cada nova traduçãoapaga traduções anteriores e produz sua própriainterpretação do original. É impossível julgar qual é amelhor, ou se há melhor (Arrojo, 1986).

  A tradução literária há muito tempo contribuipara o desenvolvimento de literaturas e línguas de

  vários países, inclusive como oportunidade dealargar o conhecimento do homem em direção aaspectos bem distintos. Além do mais, um mundoglobalizado exige cada vez mais pessoas capacitadasna área de tradução, com habilidade de valorizar ocontexto histórico, social e cultural do trabalho quefazem. Contudo, sua importância e atividade ficaramrelegadas às outras disciplinas, como a Lingüística oua Literatura Comparada, causando certa dependênciae, até mesmo, privando a Tradução Literária deseguir o seu próprio caminho. Todavia, tal situaçãoparece estar finalmente acontecendo, visto que talárea do saber já consta como disciplina acadêmicaem muitas universidades e em muitos países, doocidente ao oriente.

Há algum tempo, especialistas em traduçãotécnica afirmavam que a Lingüística seria o campomais adequado para o trabalho da tradução, ao passoque os estudiosos da área literária defendiam que aLiteratura Comparada deveria ser a responsável portal atividade quando se tratava de textos literários a setraduzir. E, assim, a polêmica prosseguiu por muitasdécadas, cada qual defendendo sua área de

conhecimento e criticando a do outro. Ao final doséculo XX, depois de muitas pesquisas e publicações,parece que finalmente surgiu o bom senso entreessas linhas do saber e a certeza de que a TraduçãoLiterária deveria ter realmente seu próprio espaço

devido às características peculiares que apresenta, asquais serão analisadas e relatadas a seguir. A tradução literária1 apresentou, então, uma nova

perspectiva de estudo diante das mudanças culturaisdo mundo moderno, como na literatura pós-coloniale na importância da TL para uma nação recém-independente e também para a consolidação daprópria literatura e da identidade nacional. Assim, aTL encontra no texto literário o caminho paradesenvolver-se e conquistar o próprio espaço deâmbito intelectual, ligando-se ao choque de culturaspresente e inerente ao encontro de diferentes

línguas. Tal fator é evidenciado em um encontrocultural e enfatizado por autores como SusanBassnett e André Lefevere, com o que denominam‘virada cultural’, ou seja, isto é um aspecto dentro dosestudos literários em que a preocupação não é maiscom a tradução técnica e literal, palavra por palavra a seranalisada, mas com todo o aspecto sociocultural queenvolve as culturas (fonte e alvo) e que deve seraltamente considerado em um processo tradutório,abordando-se as sociedades e os indivíduos que asconstituem (Bassnett, 1980, passim).

Mona Baker (1999, p. 15-35, passim) faz uma

1 A partir desse parágrafo usar-se-á a sigla TL para o termo Tradução Literária.

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análise entre a lingüística e os estudos culturais queabriram caminho para os estudos da tradução e concluique, mesmo ocorrendo evolução na lingüística, nãohouve por parte dos lingüistas uma abordagem maiorcom relação ao estilo e à beleza do texto e às ideologiasque ele apresenta. Igualmente, concorda que os estudosculturais desempenham melhor tarefa nesse sentido, oque faz surgir um novo paradigma de exame para osestudos tradutórios.

Durante os anos 90, à medida que a tradução emergecomo disciplina autônoma, dois paradigmas bastantediferentes parecem orientar as pesquisas. De um lado,identifica-se uma abordagem que pode serdenominada, genericamente, lingüística textual, em queconceitos de equivalência fundamentam-se naclassificação de tipologias e funções textuais. De outro,

observa-se uma abordagem que costuma serdenominada, genericamente, estudos culturais, cujapreocupação básica consiste em examinar o modocomo os valores, ideologias e instituições resultam empráticas diferentes em momentos históricos distintos.[...] é provável que os estudos culturais dominem aspesquisas sobre tradução nos Estados Unidos.

  Aparentemente, nenhuma outra abordagem estádespertando tanto interesse, a ponto de atrair estudiososde disciplinas que, até agora, tinham ignorado atradução - apesar da sua importância política e culturalamericana (Venuti apud Baker, 1999, p. 18).

Pode-se, assim, considerar a TL como uma

espécie de vertente dos estudos culturais, uma vezque visualiza a pluralidade e a diferença, enfatizaformas não-canônicas de escritura e mostra grandeinteresse pela questão da identidade dos grupos,cujos textos são traduzidos sob um viés não-elitista epolítico. Portanto, esclarece Baker (1999, p. 22):

Os estudos da tradução associados ao paradigma dosestudos culturais diferem daqueles que tambémpriorizam o ambiente cultural, principalmente pelofato de terem uma pauta política definida, seja estarelacionada a questões de gênero, raça, colonialismo,pós-colonialismo, estratégias editoriais ou resistência

à perda da especificidade cultural do texto-fonte.  A atividade da TL consiste em traduzir não

somente línguas, mas também culturas, e pode pôrem xeque a validade do poder hegemônico cultural,gerando forças de resistência ou, até mesmo, derevide. Desta forma, pode servir como umaestratégia de denúncia e de combate às mais diversasformas de opressão, deixando vir à tona a funçãosocial e humanizadora da literatura.

Não obstante, conclui Baker (1999, p. 30),revelando que “não há a necessidade de colocardiversas disciplinas em posições antagônicas”, poiscada uma deve desempenhar seu papel da melhor

forma possível, já que é uma utopia pretenderresponder a todas as perguntas advindas de umprocesso intercultural e tradutório.

Relevantes percursos da tradução literáriaRelevantes percursos da tradução literáriaRelevantes percursos da tradução literáriaRelevantes percursos da tradução literária

  A atividade de tradução parece ter começado deforma lenta e isolada, desprendida dainterdisciplinaridade e do decorrer histórico,permitindo a progressiva assimilação dos valoresculturais hegemônicos de cada época.

  Em seus primórdios, a partir do século IX, astraduções eram feitas em mosteiros europeus(Alemanha, Bélgica, França e Suíça), com o intuito de‘copiar’ autores gregos, pelo uso do latim, e, por outrolado, autores latinos eram traduzidos para o latim

  vulgar. Deste modo, formava-se a base de toda a

literatura medieval. A Antigüidade Clássica transforma-se, então, no maior modelo de inspiração.No século XV, Alighieri, Petrarca e Boccaccio

foram largamente copiados e imitados, transformandoa literatura européia, que via nos clássicos greco-latinos o ideal de perfeição literária. Boccaccio foi omais traduzido e seu  Decamerone era encontrado emcatalão (1429), alemão (1472), francês (1485),espanhol (1496), holandês (1564) e inglês (1620).

  Ainda no século XV, Geoffrey Chaucer, poetainglês, torna-se o ‘europeizador’ da Inglaterra comsuas ‘traduções’ que viriam a fundir o estilo

germânico ao italiano, comum na literatura inglesa,amalgamando modos estrangeiros e modos ingleses(Carpeaux  apud Wyler, 1999, p. 98). A Inglaterra

  vivia na época de Chaucer sob a influêncialingüística latina e francesa e, quando Chaucerdecide escrever em inglês, tal fato simboliza orestabelecimento do inglês como língua oficial(Delisle e Woodsworth, 1995, p. 40). Para Chaucer,a tradução consistia em “arar velhos campos paracultivar uma nova colheita” ( apud Delisle e

  Woodsworth, 1995, p. 3). Portanto, desde o iníciodesta atividade textual, torna-se clara a preocupação

dos tradutores com o aprimoramento da língua e dasliteraturas nacionais.Nesse período, não havia problema algum com a

questão da autoria de uma obra ou de um texto, poisse copiava, imitava-se, adaptava-se ou transformava-se um texto totalmente, sem a mínina referênciaautoral, como se o ‘tradutor/imitador’ fosserealmente o ‘dono’ do texto. Dessa maneira, ocorreuque muitos tradutores vieram a ser mais famososque os próprios autores. De acordo com Delisle e

  Woodsworth, (1995, p. 80) “[...] os tradutoresreligiosos defendiam a tradução literal, liderados porSão Jerônimo e Boécio”, em que a única

preocupação era, simplesmente, transmitir a

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  A tradução literária tecendo sua própria história 43

  Acta Sci. Human Soc. Sci. Maringá, v. 29, n. 1, p. 41-50, 2007

informação intelectual. Por outro lado, os tradutoresliterários interessavam-se pela criação de novasformas, como Chaucer, imitando e deslocandoidéias, usando e abusando do viés poético que o

texto fonte poderia inspirar. Na história da TL, aadmiração pelo texto original sempre esteve

  vinculada à idéia de recriá-lo, de se fazer algodiferente a partir dele; o texto de partida seria umaespécie de válvula propulsora para a inspiração semlimites deste poeta/tradutor. Porém, de uma formaou de outra, os tradutores contribuíram para aformação das literaturas nacionais e, muitas vezes,colaboraram para o estabelecimento de um gruposocial, em luta, determinar-se como uma nação.

Tais características impulsionavam a cultura-alvoem uma nova direção já que os países recém-

formados tinham a urgência de construir a própriahistória, resgatar e afirmar sua cultura e identidade,

  visto que a literatura é um dos melhores campospara fomentar tal processo por envolver a sociedadecomo um todo, uma vez que abrange seus aspectossocial, cultural, histórico e político. A luta deindependência da Irlanda caracteriza-se por taisassertivas, pois usa a estratégia da tradução literáriacomo ‘arma’ antiimperial para buscar não somente aindependência, mas também para livrar-se dacolonização cultural. Even-Zohar  apud Delisle e

 Woodsworth (1995, p. 93) menciona que:

[...] o papel gerador e recriador da tradução noprocesso de emergência de uma literatura nacionaltornou-se um tema familiar para os intelectuaisirlandeses preocupados com a independênciacultural do seu país, que viam na tradução um meiode fortalecer a língua-meta debilitada, tornando-aoutra vez funcional como meio de expressãoliterária.

 Alguns fatores contribuíram para o fortalecimentoda atividade tradutória no Renascimento e para aformação dessas nações, como: a descoberta daimprensa e a difusão da palavra impressa; o

enaltecimento da erudição greco-latina; a conquista dosnovos mundos e a ‘necessidade’ de divulgação da Bíbliaem línguas nacionais.

  William Shakespeare é o grande destaque daRenascença. Como poucos, soube utilizar aoralidade para transformá-la em literatura, fazendouso de histórias adormecidas no folclore inglês paraconstruir suas tragédias e comédias.   Plutarch’s Lives, de Sir Thomas North (uma tradução), ditou as basesde suas tragédias romanas. Júlio César, Tito Andrônico,

  Antônio e Cleópatra e Coriolano e muitas comédiasforam inspiradas em peças de teatro menores, jáesquecidas (Milton, 1993, p. 21). Seus temasuniversais de amor, ódio, traição e poder

influenciaram escritores de todas as partes,principalmente na França, onde houve apropriaçãototal das obras shakespearianas. Por conseguinte,estas obras eram representadas por Alfred de Vigny,

tradutor e imitador de Othello, constituindo-se emum simulacro puro da inspiração dramática. VitorHugo parece ter sido mais crítico, pois suspeitavaacerca das traduções porque viveu em um períodoem que elas eram feitas com base em textos cada vezmais adaptados às preferências do público-alvo. Talsituação parece ter ocorrido com maior freqüênciaem peças teatrais e, algumas vezes, quando otradutor tentava conciliar o tradicional/original aoinovador/tradução; porém, acabava criando um textoincapaz de ser classificado.

Diante deste panorama, a preocupação autoral só

começou a se efetivar a partir do século XVII,quando o tradutor tem um papel público adesenvolver e busca, então, profissionalizar-se.Neste período, o tradutor considera a obra e o autororiginais com mais ênfase e respeito para garantir asemelhança entre os textos em línguas de partida ede chegada.

 Em   Escândalos da Tradução (2002, passim),Lawrence Venuti aborda a questão da autoria, pois amesma era comumente definida, nos primórdios dosestudos da tradução, como originalidade. Emprincípio, a tradução ficaria atrelada ao conceito de

imitação desse suposto texto primeiro, sendoconsiderada por vezes uma afronta ao conceitopredominante de erudição, vinculada à autoriaoriginal e, raramente, considerada uma forma deerudição literária.

Contudo, quando o texto-fonte é traduzido comqualidade por um tradutor experiente e competente,que se faz visível em seu trabalho, sem aculturar oudomesticar outras culturas e seus sujeitos, esse texto,ao ser traduzido, passa a ser um novo texto, com amesma história; mas com nova originalidade, a daTL. O maior temor a respeito da tradução é a

possibilidade de erros ou escândalos que ela possadesenvolver; não obstante, mais uma vez esseproblema paira sob o talento do tradutor, ocorrendocasos em que a tradução da obra literária se tornamais atraente ou até mesmo mais interessante que a‘original’, exercendo maior fascínio sobre o leitor.

Portanto, um texto literário nunca podesimplesmente expressar o significado pretendidopelo autor num estilo pessoal. O texto, ao contrário,coloca em funcionamento as formas coletivas nasquais o autor pode, de fato, ter um investimentopsicológico, mas que, por sua própria natureza,despersonalizam e desestabilizam o significado(Venuti, 2002, p. 25).

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Com a ascensão da burguesia, aos poucos atradução invade outras áreas do saber, indo dafilosofia à medicina, buscando o crescimento dasciências no ocidente já que o mercado é propício

para a tradução na Europa devido ao maior consumoda classe média que se estabelece.

 A TL contribuiu, em muito, para a formação daliteratura nacional inglesa e da própria língua, comincorporação e melhoria do vocabulário. Contudo,no Brasil e em outras ex-colônias européias omesmo não ocorreu porque houve a totalsubstituição da língua e da cultura, como imposiçãodo poder hegemônico, sendo uma espécie de‘recorte cultural’ que retardou e prejudicou aascensão dessas literaturas.

Por 300 anos os brasileiros foram proibidos de

importar e imprimir livros se não fosse via Portugal.Nesse período, houve o domínio da cultura francesaem nosso território, propagada pela Companhia de

 Jesus, composta de jesuítas de formação francesa queexerceram o monopólio da educação brasileira até1759 (Wyler, 1999, p. 99). Tal situação ficou maisevidente com a vinda da corte portuguesa, em 1808,para o Brasil, patrocinando missões artísticas,literárias, científicas, militares e religiosas de origemfrancesa, inclusive ocupando a direção deestabelecimentos de ensino. Dessa maneira, a Françacolonizou o Brasil por idéias, tornando-se cultura de

modismo entre os intelectuais e florescendo aindamais na  Belle  É  poque, quando a maioria dosbrasileiros desejava se ‘afrancesar’,  deglutindo

  valores externos sem questioná-los. Até mesmo oRio de Janeiro fora reformulado visando àarquitetura parisiense; as brasileiras de cáliteralmente copiavam o estilo de vestir das francesasde lá, o que foi muito criticado nos contos de LimaBarreto, já que o estilo europeu da época em nadacombinava com a mulher brasileira. TambémMachado de Assis, de forma nacionalista, defende aestratégia das belles infidèles, estilo tradutório em que

se evita o estrangeirismo e se valoriza a cultura local;portanto, a língua de chegada.Depois da Primeira Guerra Mundial, a

importação cultural francesa entra em declínio e,paralelamente, os Estados Unidos começam a sua‘invasão’ econômica e cultural, atingindo o ápice doprocesso após a Segunda Guerra Mundial,desempenhando a função de neocolonizador até osdias de hoje. Para que isso se efetivasse, o governonorte-americano subsidiou inúmeras traduções deseu interesse, do inglês para o português, salvando aindústria editorial brasileira que na época seencontrava em péssima situação financeira. Assim, obrasileiro tornou-se um grande consumidor de

livros norte-americanos traduzidos, época em quesurgem diferentes formatos de ‘clubes do livro’, fatorque colaborou indiretamente para o processo dedominação cultural, uma vez que as obras eram

selecionadas por norte-americanos parasupostamente servir aos seus propósitos (Wyler,1999, p. 101-103, passim).

O períodoO períodoO períodoO período  Augustan Augustan Augustan Augustan 

De acordo com John Milton (1993), o período Augustan compreende o fim do século XVII e oséculo XVIII e se refere à tradução de poetasingleses.

 Em tal período surge a idéia de ‘espírito’ na TL,ou seja, os tradutores de poesia poderiamtransformar um autor clássico em autor

contemporâneo, usando uma linguagem maisnatural e menos rebuscada, mas que revelasse toda aprofundidade greco-latina e que mantivesse oideário da Antigüidade em uma espécie de transportetemporal poético de idéias, mas com a modificação ea atualização escrita. William Guthrie (1708-1770),ao traduzir Cícero, acreditava que se ele morasse naInglaterra falaria como membro do parlamento e,por isso, resolveu assistir às reuniões na Câmara dosComuns por três anos para saber como Cícero seexpressaria para ser capaz de traduzir o autor romano(Milton, 1993, passim).

Com a intenção de revitalizar a cultura nacional,os  Augustan idealizaram, mais do que nunca, osmodelos da Antigüidade Clássica. John Dryden, umdos maiores tradutores dessa época, estipula trêsformas tradutórias: metáfrase (tradução de palavrapor palavra, literal); paráfrase (sentido ampliado, masnão alterado) e imitação (tradução livre). Dryden

 apud Milton (1993, p. 28-29, passim) defende que omais importante é que o poeta seja mestre em ambasas línguas com as quais trabalha, acreditando que otradutor pode melhorar o texto original, definindoque “uma coisa é traçar os perfis verdadeiros, as

características semelhantes, as proporções, as corestalvez toleráveis, e outra coisa é fazer com que tudoisso seja encantador através da postura, das sombras,e principalmente através do espírito que o todoinspira”. Para tal, é preciso que o tradutor tenhaempatia pelo texto e pelo autor que traduz porque,acima de tudo, necessita agradar seu público leitorpara garantir sua atividade.

Outro tradutor muito importante da época Augustan é Alexander Pope (1688-1744), que defineo espírito como ‘a chama do poema’, apelando aobom gosto na tradução. Pope aconselhava tradutores,argumentando que a paráfrase deveria ser evitada aqualquer custo e que se admitiria a inclusão de

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expressões da língua traduzida, fator comum naatualidade, uma vez que ele não fazia da línguainglesa uma exclusividade, como o fazia Dryden.Pope reforçava a exatidão na tradução, mas não de

forma servil e sim para manter o ‘espírito do autor’.  Essay on the Principles of Translation (1790), de

  Alexander Fraser Tytler, foi a primeira obra emlíngua inglesa destinada à análise da arte da tradução,no século XVIII. Inicialmente, esta obra estabelecetrês leis de tradução para a época: 1- a tradução comotranscrição completa da obra original; 2- o estilo deescrita com mesmo caráter do original; 3- umatradução que deveria parecer original na línguatraduzida e não uma tradução declarada. Tais ‘leis’ainda estão em voga no presente, juntamente comuma idéia de contribuição por parte do tradutor;

acreditando-se que é possível contribuir, desde quecom cautela, para não se afastar demasiadamente dotexto original. Tytler  apud Milton (1993, p. 35)afirma:

  Entendo ser o dever de um tradutor de poesia nuncadiminuir o seu original. Ele deve manter uma perpétuadisputa com o gênio; deve acompanhá-lo em seus vôosmais altos, se puder, além do seu autor; e quandoperceber, a qualquer momento, uma diminuição emsuas forças, quando vir uma asa se curvar, deve erguê-loem suas próprias asas (grifo meu).

Os tradutores  Augustan recomendavam um elo

forte entre o original e o tradutor, que precisavaadotar a alma do próprio autor, garantindo o espíritodo texto. Se ocorressem omissões ou acréscimos,tudo deveria ser feito em nome da qualidade datradução porque, conforme acreditavam eles, cadalíngua tem sua característica e a tradução deveria serregida pelo ‘gênio’ do original. Mesmo assim, os

 Augustan não consideravam o original como algosagrado e não acreditavam haver a obrigatoriedade naforma contemporânea do inglês, privilegiandosempre a questão do bom gosto para agradar aoleitor, pauta comum aos  Augustan, que atribuíram

um caráter comercial ao período para manter a vidaluxuosa de alguns poetas e tradutores da época. Talperíodo marca a TL porque estabelece a traduçãocomo uma profissão e por isso os tradutores, mesmocom suas adaptações, não defendiam a totalliberdade na tradução e iam construindo lentamenteas proposições que regem a TL hoje em dia.

Les Belles InfidèlesLes Belles InfidèlesLes Belles InfidèlesLes Belles Infidèles

O conceito de   Belles Infidèles diz respeito aoapogeu da tradução francesa no século XVII, quandoos tradutores alteravam demasiadamente seus textos

de forma a garantir clareza, beleza e harmonia,tornando-se ‘belas traduções, mas infiéis’, o que

parece mascarar um tom pejorativo e machista por setratar de uma analogia às mulheres, principalmenteas francesas, consideradas muito belas em todo omundo. Insinuação à parte, é sabido que les belles

infidèles fugiam demais do texto original, mudandoaté mesmo a idéia central em defesa do culto ao belo,à apologia da elegância. Nicolas D’Ablancourt foiseu mais forte expoente, sendo um tradutorextremamente preocupado com a forma, o ritmo, arima e os adornos textuais para produzir um efeitoestilístico raro, dotado de indistinta beleza, como setal artifício proporcionasse a mais absoluta felicidade,não só ao tradutor como também ao leitor dessatradução.

  Atuantes da mais alta sociedade francesa, ostradutores sentiam-se na obrigação de ‘atenuar’

termos e ‘civilizar’ o texto original advindo da  Antigüidade Clássica. Dessa forma, estupros,adultérios, práticas sexuais e atitudes bizarras seriameufemizadas em uma espécie de ‘contribuição socialpara manter a ordem e os bons costumes’. Alémdessas mudanças explícitas, D’Ablancourt tambémcostumava acrescentar certo moralismo às suasadaptações e a tradução lhe servia, então, como ummanual de etiquetas. Apesar de tudo, teve boarecepção: “Os eruditos consideravam as traduçõeslivres de D’Ablancourt não como uma traição, mascomo um serviço que ele lhes prestava” (Milton,

1993, p. 52). A erudição era uma busca constante e atradução literal era desprezada como se aniquilasse o‘espírito’ do autor e encobrisse a sua eloqüência, nãopermitindo o aspecto divino da tradução quealmejavam.

Os alemães usaram a tradução para colaborar naformação da língua e das literaturas nacionais. Noentanto, na Alemanha a preferência era por umatradução mais literal, sem ‘fugir’ do autor, pois seentendia que o processo tradutório tem muito aensinar. Humboldt  apud Milton (1993, p. 54)considera “a tradução como uma maneira de

proporcionar ao indivíduo experiências com as quaisele nunca teria contato”. Nesse contexto, o tradutoré mais bem-visto e admirado, sem haver adegradação de seu trabalho uma vez que colaborapara o processo de conhecimento de sua nação eacontece, às vezes, de exaltar mais o trabalho dotradutor que o de próprio autor. Wolfgang vonGoethe chega a estipular três tipos de tradução: a-uma simples e prosaica; b- criar uma obra a partir datradução, imitação ou paródia; e, por fim, c- deixar otexto idêntico ao original, com a manutenção decerta estranheza, o que para os alemães seria, estaúltima, a tradução sublime e ideal. Porém, sabe-se na

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contemporaneidade que esse não é o tipo maisindicado.

 A essa altura percebe-se, então, que os alemães secontrapunham diretamente ao ideário francês detradução. Para os franceses, a beleza poética sópoderia ser encontrada em uma tradução mais livre einspiradora, ao passo que para os alemães a beleza seencontrava na maior proximidade e semelhança como texto original, ou seja, quanto mais literal, melhor.Todos esses fatores realmente importam para que ahistória da TL seja estabelecida e registrada, traçandoas marcas de constituição dessa disciplina acadêmicacom o fim de reforçar sua importância e suascontribuições ao longo da história do conhecimentohumano.

No Brasil, Augusto e Haroldo Campos muito

acrescentaram aos estudos da tradução e à suaconstituição e ‘independência’ enquanto disciplina.Os irmãos Campos enfatizavam o caráter político natradução, sofrendo fortes influências de Benjamim,com a idéia da língua-fonte sobre a língua-alvo; de

  Jakobson, em traduzir a forma da língua-fonte nalíngua-alvo; e de Pound, tendo o tradutor como umrecriador. Outros nomes brasileiros importantespodem ser citados no campo da tradução, como JoséPaulo Paes, Silva Ramos, Geir Campos, Jamil

  Almansur, Ledo Ivo, entre outros. Haroldo deCampos e Silviano Santiago criam o conceito de

tradução antropofágica, ou seja, após a ‘deglutição’do texto original ocorreria a tradução por meio demarcas distintivas nacionais.

Como Pound, a tendência contemporânea é deque a voz do tradutor seja ouvida e seu trabalhoevidenciado. Mas toda essa análise ainda se detinhano limiar da poesia, porque atualmente o campo daTL, em relação aos romances, dramas e textosmaiores vem aumentando gradativamente e, assim, ateoria da TL pode se aprofundar e crescer mais nesseespaço que proficuamente colabora às pesquisascientíficas. Além do mais, a característica

socioantropológica está fortemente aliada à TL apósa institucionalização dos estudos culturais naInglaterra com a escola de Birmingham visto que, apartir de então, há a possibilidade de se expandir,investigar e questionar o valor da TL enquantoformadora de pensamento crítico acerca de umanação e de seus sujeitos.

Tanto os estudos da tradução quanto os estudosliterários por muito tempo negligenciaram o papel ea importância da tradução do texto literário. Napoesia, muitos consideravam um ultraje a suatradução porque, se assim fosse, haveria a ‘morte’ dapoética. Considerada uma atividade inferior, eraincapaz de resgatar a ‘alma’ ou o ‘espírito’ do texto

literário, como já mencionado. Para algunstradutores, a tradução só teria validade se nãoalterasse em nada o original, como se dessa formafosse ilusoriamente possível ‘construir’ um autor

medieval ou renascentista em pleno século XX,devendo ser totalmente invisível o trabalho dotradutor; premissa esta raramente aceita atualmente.

 Arrojo (1986, p. 31) repensa o literário e afirma que:

  A literatura seria, portanto, uma categoriaconvencional criada por uma decisão comunitária.[...] O que será, em qualquer época, reconhecidocomo literatura é resultado de uma decisão,consciente ou não, da comunidade cultural sobre oque será considerado ‘literário’.

Tal assertiva permite, ainda, levantar a questão docânone porque, dentro dessa justificativa, pode-se

encontrar a categorização do texto canônicoenquanto convenção comunitária e temporal,podendo ser ou não revisitado e redescoberto nofuturo, mas que enquanto cânone estabelecido ditaas regras de valor ao texto literário mundial. Dentroda perspectiva de tradução de um texto literário, háde se levar em conta a interpretação que se constrói apartir dele, sendo que essa etapa pode diferenciar oque é prosaico do poético, dando qualidade e

  validade ao texto literário. Arrojo (1986, passim)também discute a questão da fidelidademencionando Pierre Menard como um tipo de

tradutor que se julga extremamente fiel, a ponto deinviabilizar a própria tradução, uma vez que éimpossível evitar o contato do tradutor com o texto,suas inferências sociais, históricas, culturais e todo orestante.

Nesse momento, é salutar lembrar a definição depalimpsesto ao texto literário, presente na aberturadeste estudo, pois cada vez que o texto é traduzido,uma ‘nova’ leitura e interpretação passam a ser feitase, assim, uma ‘nova’ tradução, supostamente afastadadas anteriores, mas com o mesmo núcleo dedirecionamento de idéias. Naturalmente, quanto

mais se traduz mais idéias podem surgir e seremacrescentadas àquelas que, no curso da atividade,foram elaboradas. Por conseguinte, o texto literário ésemelhante ao palimpsesto (manuscrito antigo;pergaminho que registra escritas anteriores), já que acada nova versão acrescenta-se um pouco mais erevela-se o que já foi traduzido nas versõesanteriores, como uma espécie de revisita constanteda mesma obra.

Seria uma utopia pensar que o autor do textooriginal poderia ser ‘resgatado’ de forma íntegra, já quea interpretação que se faz dele é individual e produto damente do leitor, afastada temporal e culturalmente doautor. Sendo assim, o autor é aquilo que se pensa ou se

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quer que ele seja, mas isso não é garantia alguma deque o conceito sobre esse autor seja completamente

 verdadeiro. Dessa maneira, como sugere Arrojo (1986,p. 41), “nossa leitura ou tradução expressa nossa visão do

autor e de suas intenções”, levando em conta a históriade cada um, as experiências, o conhecimento e umleque de informações pessoais que certamentediferenciarão essa visão.

 Em   Escândalos da Tradução (2002, p. 26-27),  Venuti explana ainda que o inglês é a língua maistraduzida, mas para a qual menos se traduz. Ressalvao aspecto da heterogeneidade do texto traduzidoporque o simples fato de um texto-fonte partir dasua cultura de origem e atingir outra cultura alvo járesulta na impossibilidade de ele ser homogêneo,pois esse é um processo de constante variação e

diferentes contatos. Assim, a boa tradução conservao caráter estrangeiro do texto que é estrangeiro,liberando o resíduo sem afetar a originalidade datradução. Venuti levanta a questão do ‘resíduo’, ouseja, resquícios da língua dominada presentes nalíngua dominadora, porque qualquer uso da línguaexpressa uma relação de poder que acaba pordesvelar esse procedimento. Assim sendo, “[...] se oresíduo é liberado em pontos significativos numatradução, que é de forma geral legível, a participaçãodo leitor só será interrompida momentaneamente”(Venuti, 2002, p. 29).

Possivelmente, a heterogeneidade e aestrangeirização da TL causem estranheza diante desua leitura, mas acredita-se que justamente é esse omomento de maior desafio e emprendedorismo daatividade do leitor enquanto agente cultural e social,pois tem a oportunidade de crescer intelectualmente,ficando o tradutor e seu trabalho expostos de forma

  visível, a ponto de o leitor perceber que se trata deuma tradução e de não criar a ilusão de se tratar deuma obra original.

Contudo, a comunicação (ou mesmo acompensação) não descreve bem o remédio dotradutor, que mais parece com o ventriloquismo,uma reescritura do texto estrangeiro de acordo comas inteligibilidades e interesses domésticos (Venuti,2002, p. 46-47).

 A tradução literária em países dependentes e ex A tradução literária em países dependentes e ex A tradução literária em países dependentes e ex A tradução literária em países dependentes e ex----colôniascolôniascolôniascolônias

O exemplo da Irlanda, já citado, expõe a idéia deque através da literatura traduzida para o irlandês anação buscava ensinar e firmar a língua para efetivara independência e, para tanto, um projeto foracriado. Os criadores de tal projeto nacional seapropriavam de textos estrangeiros e os

domesticavam para que fossem lidos pelo públicoirlandês como original, em sua língua. Lawrence

 Venuti  apud (Delisle e Woodsworth, 1995, p. 93)chama esse processo de ‘estratégia de fluência’, ouseja, a retirada total de qualquer vestígio da língua-fonte na obra. Dessa forma, os tradutores evitavam

drasticamente os anglicismos, porém poucas pessoaspodiam ler em irlandês e, quando o faziam, eramcapazes de ler também em inglês. A tendência era ade se traduzir autores ingleses mais conhecidos e depreferência da era vitoriana e, por conseguinte, ainfluência cultural inglesa prosseguia por mais umtempo na Irlanda independente, até o fortalecimentoda língua e da literatura que hoje compõem essanação.

  A experiência da tradução na Irlanda, nas décadas de1920 e 1930, revela assim as dificuldades específicas daslínguas minoritárias, pondo em foco questões de

influência, competência, identidade lingüística,autoridade e aceitação, as quais precisam ser levadas emconta em qualquer crônica da emergência de literaturasnacionais (Delisle e Woodsworth, 1995, p. 96).

 As literaturas africanas são marcadas pela tradiçãooral, ou oraturas. Portanto, não possuem uma longahistória de tradução, fato que começou a acontecercom a vinda dos missionários cristãos no século XIX e com a adoção do alfabeto latino. A partir de então,houve o surgimento de uma cultura baseada naforma escrita de representação. Falar em língua eliteratura nacionais, no continente africano, é bem

delicado porque são várias as línguas nacionais.Muitas vezes a língua do colonizador é estipuladacomo oficial, coexistindo com línguas nativas deigual poder; com isso, codificar uma literaturanacional fica ainda mais difícil.

Chinua Achebe, reconhecido escritor nigeriano,argumenta que é possível escrever em língua inglesae isso se faz necessário também, mas deve ser umnovo inglês, um inglês africanizado, com as marcasda experiência africana contidas nele, para que omundo possa ‘ler’ as revelações ali guardadas. Esteescritor ainda difere literaturas nacionais de étnicas,

porque ele acredita que as literaturas nacionais,escritas em inglês, podem abranger todo umterritório, uma nação; enquanto as étnicas, emidioma nativo, alcançam somente um grupo étnicoespecífico, em um espaço territorial menor. Outroponto de vista surge com Richard Bjornson, emanálise a respeito dos Camarões e do termo‘literatura nacional’ que, para ele, compreendeescritas em línguas africanas que revelam valores e

  vozes culturais de grupos distintos (Delisle e Woodsworth, 1995, p. 105-106, passim).

Um exemplo interessante de adaptação, ainda em

Camarões, foi a tradução da Bíblia para o mungaka (atividade que levou trinta anos), feita por Adolf 

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  Vielhauer, cuja principal estratégia de evangelizaçãofoi a de trocar elementos desconhecidos pelosnativos por elementos que faziam parte de suanatureza, como mudar ‘lobo’ para ‘leopardo’,‘trepadeira’ ao invés de ‘vinha’ e assim por diante.

Um dos primeiros tradutores nativos dosCamarões foi Isaac Moumé Etia que, por conhecerfluentemente quatro línguas, em muito colaboroupara a literatura duala, com seus valiosos registrospopulares e dicionários bilíngües. Etia objetivavaperpetuar provérbios e textos dualas para que seusdescendentes herdassem a própria história e aprópria cultura, assumindo sua identidade culturalpara disseminar e promover a literatura nacional tãodesejada e, mais intensamente, perpetuar seu povo esuas origens. Com efeito, a TL serviu como uma

estratégia perceptível para a recuperação daidentidade cultural de vários povos em todo omundo, o que será abordado a seguir.

Sobre a identidade culturalSobre a identidade culturalSobre a identidade culturalSobre a identidade cultural

Discute-se hoje, como nunca, a questão daidentidade em meios acadêmicos e, de maneira geral,entende-se que o sujeito unificado do passado éagora fragmentado pela força da pós-modernidade eda globalização. O que deveria ser uma identidadepassa a compor-se de múltiplas identidades,carregadas de diferentes ideologias. O conceito do

termo ‘identidade’ é por si só, polêmico e difícil dedesenvolver, não compreendendo somente oscaracteres de um indivíduo, mas vai muito além,sem aceitar afirmações absolutas sobre isso ouaquilo, o que faz com que muitas vezes o sujeitocontemporâneo se sinta deslocado e descentrado dopróprio eu.

Stuart Hall, em   A identidade cultural na pós-modernidade (2004, p. 10), estipula três concepções deidentidade para o sujeito: do sujeito do Iluminismo;do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno. Osujeito do Iluminismo estaria centrado em si

mesmo, individualista e unificado no próprio ser. Osujeito sociológico entenderia seu centro em relaçãoao centro de outras pessoas importantes para ele,interagindo com a sociedade. Já o sujeito pós-moderno apresentaria várias identidadesfragmentadas e, às vezes, contraditórias. O processodessa mudança é histórico, e, conforme a época, decaráter provisório e problemático.

  A globalização veio a ser um dos maioresimpactos sobre a identidade cultural, porque associedades se encontram em constante mudança, deforma rápida e permanente. Giddens  apud Hall(2004, p. 15) assevera que “as práticas sociais sãoconstantemente examinadas e reformadas à luz das

informações recebidas sobre aquelas própriaspráticas, alterando, assim, constitutivamente, seucaráter”. Os valores do passado tradicional sãoesquecidos ou reformulados devido às adaptações

que o sujeito precisa ou é forçado a fazer paraacompanhar o ritmo de mudanças sociais no grupoem que está inserido. Tais mudanças agem comoum rolo compressor.

Na era da globalização ocorre um processoinfinito de conexões entre diferentes partes doplaneta, aumentando o ritmo de fragmentação dosujeito com as rupturas sucessivas de seus conceitos.

  Essa proposta do sujeito ‘interno e externo’, decaráter social interativo, é fruto do começo do século

  XX, com as Ciências Sociais atingindo o papel dedisciplina e o indivíduo sendo posto como parte do

meio social.Descartes, pela assertiva, ‘Penso, logo existo!’,

inspirou o sujeito cartesiano, ou seja, aquele serracional, pensante e consciente, situado no centro doconhecimento, distinguindo as diferenças entre suamatéria e sua mente. Tal sujeito cartesiano encontra-se descentrado na pós-modernidade, segundo aperspectiva de Hall (2004, passim), autor que usacinco explicações para esse deslocamento do sujeitona pós-modernidade, conforme tal processo foiocorrendo ao longo da história, do homem e dasociedade. A primeira explicação postula o sujeito

como centro da história econômica e da sociedade,com Marx; depois, o sujeito aparece no centro dapsicanálise, com Freud e com a descoberta doinconsciente; também há o sujeito no centro dalinguagem, com Ferdinand de Saussure, para quem alíngua é um sistema social e não individual; somadoao sujeito no centro da filosofia, com a ‘genealogiado sujeito moderno’, de Michel Foucalt, e o que elechama de poder disciplinador da sociedade, queserve para garantir o seu controle; e, por fim, osujeito no centro dos novos movimentos sociais,como no exemplo de Hall, o feminismo pelacontestação política que fez, abrangendo outrosgrupos sociais marginalizados e subjugados, os quaisdeveriam fazer parte da mesma identidade, ahumana.

O significado é inerentemente instável: ele procura ofechamento (a identidade), mas ele é constantementeperturbado (pela diferença). Ele está constantementeescapulindo de nós. Existem sempre significadossuplementares sobre os quais não temos qualquercontrole, que surgirão e subverterão nossas tentativaspara criar mundos fixos e estáveis (Derrida  apud Hall, 2004, p. 41).

No período comprendido como pós-moderno, pela

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forma como é constituída essa sociedade e como se éconstituído por ela, não há dúvida de que o indivíduo,sem uma identificação nacional e sem uma culturanacional, perde seu sentido de ser, pois já que pertencea lugar nenhum, como então estruturar as bases de suaidentidade? Um exemplo dessa situação acontece comos descendentes de japoneses que nascem no Brasil etrabalham por muito tempo no Japão, pois perdem areferência brasileira e, inevitavelmente, não adquirem a

 japonesa, pois estão subjugados aos interesses daquelesque desejam mão-de-obra bem mais barata. Por isso,para Hall (2004, p. 51), “as culturas nacionais, aoproduzir sentidos sobre a “nação”, sentidos com osquais podemos nos identificar , constroem identidades”.

Renan  apud Hall (Ibidem, p. 58) estabelece arelevância de três princípios para a unificação de umanação: as memórias do passado; o desejo de viver emconjunto e a perpetuação da herança. Não importa oquão diferentes são os integrantes dessa suposta nação,até mesmo porque não há como haver igualitarismonesse assunto, a cultura nacional tenta unificá-los emuma identidade cultural, como forma de representaçãodesse grande grupo. No caso do Brasil, vários aspectosnos identificam como brasileiros diante de outrasnacionalidades, como: o samba, a herança indígena e acolonial, a alegria do povo, a exuberante natureza, aculinária típica de regiões distintas, a garra do povo para

ultrapassar tantas dificuldades, o famoso ‘jeitinho’, a violência em algumas metrópoles, a corrupção e tantosoutros itens que nos conduzem ao que chamamos denação brasileira e, de certa forma, delimitam a nossaidentidade.

Fica implícita a suposição de que é preciso‘pertencer’ a algum lugar para ser possível aidentificação com esse espaço e com os demaismembros que o ocupam, porque se o ser humanoestivesse ligado ao vazio não teria como possuir umreferencial de identidade, nítido em movimentosdiaspóricos em todo o planeta. Quando se menciona

a questão de uma nação unificada, não se pretendedesenvolver o termo como uno, único ou onipotente,mas como forma de um grande sistema conseguirabranger todos os seus diversos representantes paracoexistir com o mínimo de harmonia e respeito paracom as diferenças na medida do possível, já que épraticamente impossível, no mundo atual, haver umaconstituição única de povo, cultura ou etnia: “Asnações modernas são, todas, híbridos culturais” (Hall,2004, p. 62).

Os espaços ficaram menores e o tempo maiscurto; as fronteiras hipotéticas são facilmentecruzadas, principalmente pela facilidade tecnológicade ficar interligado a todo o momento. Tais

características evidenciam o binarismo daglobalização: por um lado, muitas nações enaltecema mistura, tornando-se cada vez mais híbridas; poroutro, algumas nações temem o declínio de sua

típica identidade e resistem arduamente contra afúria de deslocamento da globalização.

 Algumas identidades gravitam ao redor daquilo queRobins chama de “Tradição”, tentando recuperar suapureza anterior e recobrir as unidades e certezas quesão sentidas como tendo sido perdidas. Outrasaceitam que as identidades estão sujeitas ao plano dahistória, da política, da representação e da diferençae, assim, é improvável que elas sejam outra vezunitárias ou “puras”; e essas, conseqüentemente,gravitam ao redor daquilo que Robins (seguindoHomi Bhabha) chama de “Tradução” (grifo meu)(Hall, 2004, p. 87).

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

Procurou-se demonstrar neste estudo acerca datradução literária que a produção de culturas híbridas éinevitável no choque entre tradição e tradução, o queparticularmente entende-se como positivo para ahumanidade, visto que fundamentalismos,nacionalismos exacerbados, ortodoxias religiosas eprincípios de pureza racial ainda ameaçam os indivíduose assombram a formatação deste novo século.

Fica evidente, assim, que os sujeitos diaspóricos

constituem sujeitos traduzidos, pois são ‘revistos’,‘reformulados’, ‘re-identificados’ com base nasconstantes dispersões que sofrem. Todavia, quantomais híbrido for o indivíduo, mais traduzida será suaespecificidade. Salman Rushdie  apud Hall (2004,p. 89) observa a etimologia da palavra ‘tradução’,oriunda do latim com o significado de ‘transferir’ ou‘transportar entre fronteiras’, descrição que seadequa aos indivíduos traduzidos, como o próprioRushdie e também Hall, por exemplo; sujeitosmigrantes pós-coloniais, escritores diaspóricos, que‘pertencem’ a dois mundos ao mesmo tempo.

  Ambos deixam suas marcas nesses mundos e delesagregam influências. Por fim, ao defender sua obra,Versos Satânicos, Rushdie  apud Hall (op. cit., p. 92)defende sua postura em favor da hibridação:

O livro Versos Satânicos celebra o hibridismo, aimpureza, a mistura, a transformação, que vêm denovas e inesperadas combinações de seres humanos,culturas, idéias, políticas, filmes, músicas. O livroalegra-se com os cruzamentos e teme o absolutismodo Puro. [...] É uma canção de amor para nossoscruzados eus.

Desses ‘cruzados eus’ foram se solidificando osestudos da tradução literária que, ao longo dos

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séculos, conquista um espaço digno de trabalho,discussão e propagação visceral para o crescimentoda literatura e de tantas outras artes em nível global,

  visto que muitas nações se formaram e se

propagaram pelo estudo de milhares de textostraduzidos até atingirem a soberania de sua línguaoficial e de todas as outras áreas da ciência naqueleidioma. A tradução literária é ainda hoje e sempre oserá de suma importância para a propagação doconhecimento em nível mundial. Tal fator se tornaainda mais singular na era da globalização. Sendoassim, a tradução literária continua a tecer suaprópria história, não somente em rumo àindependência acadêmica, como outrora, mastambém como campo do conhecimento que serveeximiamente de interface às mais longínquas e

diversas nacionalidades, etnias e saberes.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferências

 ARROJO, R. Oficina de Tradução. São Paulo: Ática, 1986.BAKER, M. Lingüística e estudos culturais: paradigmas

complementares ou antagônicos nos estudos da tradução? In: MARTINS, M. (Org.). Tradução e multidisciplinaridade.Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. p. 15-35.BASSNETT, S. Translation studies. London: Methuen,

1980.DELISLE, J.; WOODSWORTH, J. Os tradutores na

 história. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1995.HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Traduçãode Tomaz Tadeu da Silva Guaracira Louro. 9. ed. Rio de

 Janeiro: DP&A, 2004.MILTON, J. O poder da tradução. São Paulo: Ars Poética,1993.

  VENUTI, L.  Escândalos da Tradução. São Paulo: Edusc,2002.

 WYLER, L. Uma perspectiva multidisciplinar da traduçãono Brasil.  In: MARTINS, M. (Org.). Tradução emultidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

p. 96-105.

 Received on March 26, 2007.

 Accepted on May 30, 2007.