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    KAFKA METAMORFOSEADO EM QUADRINHOS

    Selma Martins Meirelesrea de Alemo DLM/FFLCH - USP

    RESUMO: Considerando linguagem como um sistema de signos que pode compreender mais que acomunicao verbal, pode-se afirmar que histrias em quadrinhos possuem uma semntica e uma sintaxeprprias (ECO 2004). A partir da verso quadrinstica de A metamorfose, procura-se ilustrar como algunselementos visuais desses dois eixos so utilizados concretamente e seus efeitos em relao narrativa.

    Palavras-chave: linguagem pictrica; quadrinhos; quadrinizao; ritmo de leitura.

    Introduo

    Embora a lngua seja claramente o pilar principal dos estudos da linguagem, apossibilidade de abranger mais do que a comunicao verbal abre novos campos deinvestigao na lingstica, possibilitando a explorao de meios de comunicao at entorelegados a um limbo no que se refere sua sistemtica enquanto linguagem. Entre essesmeios de comunicao esto as histrias em quadrinhos, que comeam a conquistar a atenodos lingistas e no to somente dos cientistas sociais.

    Por muito tempo estigmatizadas, as histrias em quadrinhos tm-se revelado comouma linguagem complexa altamente convencionalizada e exigente para sua compreenso.

    Herdeiras diretas de tradies que combinam signos visuais com a narrativa, como asiluminuras, tapearias e histrias ilustradas, inserem-se no mundo contemporneo como umalinguagem na qual texto e imagem se complementam mutuamente, do mesmo modo que nocinema, no vdeo e no hipertexto. No Japo, onde os quadrinhos ultrapassaram h muitotempo a barreira entre os textos considerados informativos e os de entretenimento, fala-se emuma mutao antropolgica, uma gerao de usurios de uma nova informao, baseada

    j no na palavra escrita, mas sim na imagem (SCOLARI 1999, p.117).Assim, no de admirar que as histrias em quadrinhos passem a constituir um novo

    campo de pesquisas acadmicas. Embora os estudos mais numerosos sejam ainda os de cunhosociolgico, cada vez mais se impe a necessidade de estudar os quadrinhos como umalinguagem autnoma.

    1. Linguagens da temporalidade: texto, cinema e quadrinhos

    Ainda no h uma definio unnime e decisiva sobre o que sejam os quadrinhos (cf.GRNEWALD, 2000), mas, se entendemos linguagem como um sistema de signos e regras queserve a uma sociedade como meio de comunicar idias ou sentimentos atravs de signosconvencionais, sonoros, grficos, gestuais etc. (cf. HOUAISS 2002), indiscutvel o fato de elesrepresentarem uma linguagem prpria. O italiano Daniele Barbieri, estudioso de quadrinhos,

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    v neles uma interao entre estruturas grficas, lingsticas e narrativas. Segundo ele, osquadrinhos aglutinam caractersticas do que denomina linguagens da imagem (desenho,caricatura, pintura, fotografia e editorao), linguagens da temporalidade (msica, poesia eprosa) e linguagens da imagem e temporalidade, como o cinema e o teatro (cf. BARBIERI1998). Podemos dizer que os quadrinhos so uma linguagem que utiliza elementos pictricose textuais, em maior ou menor proporo, combinando-os de maneira harmoniosa eindissolvel, e que, a semelhana da linguagem verbal, possui uma sintaxe e uma semnticaprprias.

    Barbieri no o nico autor a aproximar linguagens diferentes na anlise dosquadrinhos. A unio de texto e imagem freqentemente leva comparao com a linguagemdo cinema, e sabido que h influencias mtuas. Como o autor ressalta, apesar de ser

    constitudo basicamente de imagens, o trao caracterstico do cinema o fato de essasimagens se moverem no eixo temporal (ao contrrio do que ocorre, por exemplo, na ilustraoou na pintura), apresentando-se em uma seqncia contnua, da mesma forma que acontecenos quadrinhos. Por esse motivo, Will Eisner, roteirista americano de histrias em quadrinhos,cunhou a denominao arte seqencial para esta nova linguagem. Contudo, Humberto Ecoressalta que os quadrinhos no tendem a:

    resolver uma srie de enquadramentos imveis num fluxo contnuo, como nocinema, mas realiza uma espcie de continuidade ideal atravs de umadescontinuidade factual. A estria em quadrinhos quebra o continuum empoucos elementos essenciais. O leitor, a seguir, solda esses elementos naimaginao e os v como continuum (ECO, 2004, p. 147).

    Nesta caracterstica de seqencialidade reside a interseco entre as linguagens verbale quadrinstica. A linguagem verbal , necessariamente, linear, caracterizando-se peladisposio de seus segmentos em relao ao contnuo do tempo. Do mesmo modo, osquadrinhos dependem da segmentao dos elementos visuais para criar um contnuo na mentedo leitor, ao mesmo tempo que incorporam tambm a linguagem verbal e sua linearidade.

    Desse modo, nosso objetivo neste artigo mostrar como os elementos visuais seguemuma sintaxe prpria e os autores de histrias em quadrinhos utilizam diversos recursos paraconstruir uma seqncia narrativa linear, a exemplo da linguagem verbal. Do mesmo modoque um escritor, o quadrinista utiliza estruturas que acrescentam ritmo narrativa e omodulam, contribuindo de forma decisiva para a comunicao e os efeitos pretendidos.

    2. Semntica e sintaxe dos quadrinhos

    Em qualquer linguagem, muito do que se comunica ou apreende no est explcito. Alinguagem dos quadrinhos, assim como a linguagem verbal, seleciona e apresenta smbolosconcretos (seqncias de sons, letras ou imagens) que servem como indicativo para que oreceptor complete as informaes a partir de suas experincias prvias, do seu conhecimentodo mundo e da linguagem em questo. Do mesmo modo que um escritor seleciona aspalavras, construes sintticas e estruturas narrativas que lhe paream mais apropriadas para

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    atingir os seus objetivos estticos, o quadrinista precisa segmentar a histria nos elementosque julga essenciais para serem apresentados ao leitor: os quadros,painis ou quadrinhos.Em seu livroDesvendando os quadrinhos, uma das mais completas reflexes sobre o

    tema, Scott McCloud ressalta que, tomadas individualmente, as figuras ou quadros dashistrias em quadrinhos so apenas figuras estticas; porm, apresentadas em seqncia,passam a ser interpretadas como uma narrativa, atravs de um processo mental que denominaconcluso:

    Os quadros das histrias fragmentam o tempo e o espao, oferecendo umritmo recortado de momentos dissociados. Mas a concluso nos permiteconectar esses momentos e concluir mentalmente uma realidade contnua eunificada (McCLOUD, 2005, p.67).

    Dentro dos quadros possvel apresentar apenas informaes visuais, mesmo que elasrepresentem informaes sonoras (como bales de fala e onomatopias). no espao entre osquadros que os outros sentidos so ativados a partir das informaes visuais e o leitor compeuma mensagem continuada e integrada.

    Definidos os quadros, preciso decidir como ser organizada a seqncia, ou seja,como os quadros sero dispostos dentro de cada pgina ou segmento. tambm necessriodefinir, dentro de cada quadro, a forma de apresentao dos elementos que o iro compor, demodo que o leitor possa construir o seu contnuo de uma maneira compatvel com osobjetivos do autor. Temos aqui os principais elementos do que Eco denomina semntica esintaxe dos quadrinhos (cf. ECO, 2004, p. 144-147).

    A semntica se revela atravs de diversos aspectos formais convencionais, vlidosapenas dentro do universo dos quadrinhos e imprescindveis para seu entendimento. Comoexemplo, podemos citar as linhas de movimento, uma das primeiras solues encontradas pararepresentar movimentos: desenham-se linhas para marcar a trajetria de algum objeto ou partedo corpo, do ponto de incio ao final do movimento. No entanto, tais linhas s podem serentendidas como movimento atravs de uma conveno prpria da linguagem dos quadrinhos,assim como acontece com os bales de fala, as onomatopias ou mesmo a direo de leituradas seqncias de painis. McCLOUD (2005, p. 128) ressalta que estes e muitos outroselementos similares j se tornaram signos prprios da linguagem dos quadrinhos,denominando-os metforas visuais. Tambm ECO dedica-lhes grande ateno, afirmando que

    constituem uma iconografia prpria (2004, p. 144s).Contudo, o elemento mais caracterstico e conhecido da linguagem dos quadrinhos provavelmente o balo de fala. Considerados por Eco como elemento fundamental, os bales defala certamente so o divisor de guas entre as narrativas ilustradas e as histrias em quadrinhos.Sua introduo constituiu o passo decisivo para tornar os quadros acusticamente vivos, aorelacionar visual e espacialmente as palavras queles que as proferem (cf. HAVLIK 1981, p. 8).

    Os bales tm ainda outras funes alm de ligar a personagem sua fala. A formadas bordas do balo e das letras dentro dele podem ainda representar discurso expresso oupensado (ECO, 2004, p.145), volume e tom da voz e sentimentos como medo ou raiva, entreoutros. Por outro lado, textos fora de qualquer balo so entendidos como uma voz emoffefreqentemente identificados com um narrador.

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    A sintaxe dos quadrinhos estaria nas relaes entre os diversos quadros e namontagem dos elementos dentro deles. Conforme mencionado anteriormente, no espaoentre os quadros que o leitor completa e relaciona mentalmente as informaes atravs daconcluso. McCLOUD (2005, p. 70-74) apresenta e exemplifica seis categorias de transioquadro a quadro e suas conseqncias para a concluso:

    1. Momento a momento: exige pouqussima concluso do leitor, pois os quadrossegmentam a ao em intervalos mnimos de tempo.

    2. Ao a ao: transies que apresentam um nico tema em progresso. O intervalode tempo entre os quadros maior, mas ainda apresentam o mesmo tema.

    3. Tema a tema: o grau de envolvimento do leitor para dar sentido s transies setorna maior, j que os quadros trazem temas diferentes, embora ainda ligados entre si pela

    manuteno do tempo / espao onde se desenrola a ao.4. Cena a cena: os saltos no tempo e no espao representados nos painis exigem que

    o raciocnio dedutivo do leitor seja ativado para recuperar a narrativa.5. Aspecto a aspecto: aqui h grandes saltos temporais e se estabelece um olho

    migratrio (p.72) que enfoca diferentes aspectos de um lugar, idia ou atmosfera.6. Non-sequitur: neste caso, no h uma seqncia lgica aparente entre os quadros, a

    qual acaba sendo, porm, desenvolvida pelo leitor, que procura dar um sentido juno deimagens.

    Alm da segmentao da ao e do estabelecimento do nvel de concluso exigido, otamanho, forma e disposio dos painis so elementos que exercem grande influncia sobre anarrativa.

    3. Quadrinizao, ritmo de leitura e narrativa

    O tamanho dos quadros tem efeitos sobre a forma como o leitor decodifica amensagem. Barbieri aponta para o fato de que, assim como em um texto escrito, necessrioum certo tempo para leruma imagem, ou seja, para compreender o que ela representa:

    [...] Lo que sucede aqu es que [...] el tiempo empleado en la lectura setransforma en duracin de la imagen: la imagen representa la duracin (y nosolo la cuenta), y podemos ver una duracin en su interior, porque es laduracin de nuestra lectura la que se transforma en la duracin de la imagen.

    (BARBIERI 1998, p. 229).

    Barbieri ressalta que o tempo de leitura no se refere ao tempo que cada leitorefetivamente leva para ler cada quadro, mas sim a um tempo mdio, ideal, de leitura da obra(cf. 1998, p.243). O tamanho e a forma dos quadros influenciam o tempo mdio de leitura econtribuem de forma decisiva para o ritmo da narrativa: quadros maiores e mais complexoscriam a sensao de maior tempo decorrido, de uma ao mais pausada, j que demandammais tempo para serem apreendidos, enquanto quadros menores parecem representar perodosde tempo mais breves e, em conseqncia, uma ao mais rpida (McCLOUD, 2005, p. 101s).Do mesmo modo, a presena de textos aumenta a complexidade do painel e, por conseguinte,desacelera a narrativa.

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    A seguir, ilustramos algumas consideraes aqui expostas sobre a sintaxe e asemntica dos quadrinhos a partir da obra de Franz Kuper, com nfase no uso da diagramaoe montagem dos quadros e a manipulao do ritmo da narrativa.

    4.A Metamorfose em quadrinhos

    A surreal transformao de Gregor Samsa em um inseto certamente um dos enredosmais conhecidos da literatura mundial, tendo sido traduzido no s para diversas lnguas, mastambm encontrado sua expresso em filmes, curtas de animao, histrias em quadrinhos eat mesmo na msica pop. Peter Kuper um ilustrador americano com trabalhos em diversasrevistas e jornais e que j realizou outras quadrinizaes de obras literrias, inclusive de

    Kafka.A Metamorfose de Kuper um comic bookou graphic novel, termo cunhado por Will

    Eisner para designar uma obra em quadrinhos em formato de livro, contendo uma s histria(no serializada, como ocorre com grande parte das histrias em quadrinhos tradicionais), altaqualidade grfica, estrutura similar ao romance e dirigido a um pblico adulto. A ediobrasileira da Editora Conrad, de 2004, tem 88 pginas em preto e branco. A adaptaopermanece bem prxima ao original de Kafka, mantendo os principais momentos da trama.

    O texto original inicia-se da seguinte maneira: Numa manh, ao despertar de sonhosinquietantes, Gregrio Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Oincio da narrativa de Kuper acompanha o texto de Kafka, porm, com alguns recursosespecficos dos quadrinhos: ao segurarmos o livro aberto, vemos, na pgina direita (p.11),completamente negra, o seguinte texto em letras brancas: Ao acordar naquela manh desonhos perturbadores, Gregor Samsa viu-se transformado...

    Em histrias em quadrinhos do estilo comic book ou graphic novel, a pgina aunidade bsica a ser considerada (diferentemente do que acontece, por exemplo, nas tiras dequadrinhos em jornais). A sintaxe, ou seja, a organizao dos quadros, leva em conta a pginasimples ou a dupla, utilizando o virar das pginas para a criao de efeitos, sobretudo deexpectativa e tenso. Neste caso, o uso de reticncias cria um gancho (ou cliffhanger), ummomento de grande interesse colocado antes de um intervalo, de modo a instigar acuriosidade do leitor e criar efeitos dramticos. Alm disso, a pgina negra e o texto emnegativo reforam a idia de noite, opresso, gerando uma inquietao frente ao que pode

    acontecer em seguida.Ao virar a folha, temos esquerda um grande painel ocupando toda a pgina, no qualse v um dormitrio, com a janela ao centro e uma cama no canto inferior esquerdo(ilustrao 1). A cama est de costas para o leitor, mas fica claro que a figura que l estdeitada a mesma que domina um pequeno painel redondo ocupando o canto superioresquerdo da pgina e que mostra um enorme inseto deitado de costas em uma cama. Umbalo de pensamento traz o texto O-o que aconteceu comigo?, enquanto fora do balo e notopo da pgina temos, novamente em negativo, as palavras no era um sonho1.

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    Ilustrao 1 -A Metamorfose - pgina 12

    Diferentemente do que acontece na obra de Kafka, aquilo no que Samsa setransformou no narrado com palavras, mas apenas mostrado em destaque no canto superioresquerdo da pgina, o local do incio convencional da leitura no ocidente (da esquerda para adireita e de cima para baixo). A conveno de direo da leitura importantssima para osquadrinhos, pois ela que permite ao leitor estruturar mentalmente a seqncia dos quadrospara decodificar a narrativa, interpretando a figura do inseto como aquilo no que Samsa setransformou.

    Freqentemente, utiliza-se a terminologia do enquadramento cinematogrfico para adescrio dos painis. Nesta pgina, temos primeiramente um close up (ouprimeiro plano ou

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    plano de pormenor) no painel pequeno, usado principalmente para destacar um objeto ouao, bem como emoes dos personagens. No quadro que domina a pgina, temos um longshot, ou plano geral, que abarca todo o cenrio (o quarto de Samsa). A alternncia entreplanos abertos e closes uma tcnica cinematogrfica bastante usada para intensificar atenso e os sentimentos dos personagens.

    A abertura do plano, ao apresentar a cama de costas e reproduzir o quarto de umngulo de viso aproximado ao de Samsa, fora a identificao do olhar do leitor com o dopersonagem e, por conseguinte, gera um certo grau de empatia. O quarto, seus mveis e adecorao fornecem indcios sobre a situao social e a personalidade de Samsa, ao retratarum dormitrio pequeno-burgus do incio do sculo passado.

    Este incio da histria j nos permite levantar alguns aspectos fundamentais da obra deKuper. Em primeiro lugar, a soluo para a figura de Samsa: ele retratado como um inseto,muito semelhante a uma barata, porm com um rosto humanizado. Na obra original de Kafkano h qualquer meno ao tipo de inseto e em nenhum momento se pode depreender do textoque esse inseto tenha algo de humano em sua aparncia. No entanto, ao optar por atribuir umrosto ao personagem, Kuper conseguiu manter a humanidade de Samsa presente, mesmo queeste tenha agora um corpo de inseto. Atravs deste expediente, o autor pode usar asexpresses faciais como um importante elemento de identificao com o leitor, criandosimpatia pelo personagem, ao mesmo tempo em que mantm o aspecto repugnante essencialpara o desenvolvimento da trama.

    Em segundo lugar, Kuper optou por manter a poca e local originais da histria, semmoderniz-la ou adapt-la Amrica. Alm disso, fugindo regra das histrias emquadrinhos mais difundidas, impressas a cores e com o desenho das personagens bastanteprximo da figura humana real, o desenhista optou por um trabalho em preto-e-branco, comum trao deliberadamente tosco, duro e anguloso, expresses exageradas e fortes contrastesde luz e sombra. Isto confere grande expressividade ao desenho e cria um clima opressivo,reproduzindo a atmosfera que permeia a obra original. Contrastes violentos de luz e sombra,claro e escuro so usados para definir espaos e emoes. O recurso da imagem e do texto emnegativo, por exemplo, freqentemente usado para Samsa e seu quarto, contrastando com o

    resto da casa e o mundo exterior, sempre iluminados. O trao lembra a xilogravura,possivelmente influenciado pela figura que ilustrava a primeira edio da Metamorfose emalemo.

    Neste momento da leitura, teramos em nossas mos o livro aberto, com as duaspginas nossa frente. A terceira pgina (ilustrao 2), novamente direita, tem sua alturadividida em quatro faixas horizontais, nas quais os painis apresentam a seguinte disposio:- primeiramente, um nico painel horizontal que ocupa toda a largura da pgina, sem margem,mostrando o inseto-Samsa na cama, visto de lado, mais ou menos altura dos olhos do leitor,com um balo de pensamento;

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    - novamente uma faixa (ou tira) de mesmo formato e extenso que o primeiro quadro, masagora dividida ao meio em dois painis: o primeiro, sem bales, mostra Samsa tentando virar-se na cama (o que indicado por linhas de movimento ao redor do corpo, terminando emflechas marcando a direo); o segundo, totalmente em negativo, traz um texto do narradorsobre o desconforto de Samsa;- seguem-se, ento, no espao que corresponderia terceira tira na qual foi dividida a pgina,oito pequenos painis retangulares dispostos regularmente em duas filas, com margem e semtexto, representando uma seqncia quadro a quadro de nova tentativa de Samsa virar-se nacama, sem sucesso.- na tira inferior, temos novamente um nico painel sem margem, onde vemos Samsapraticamente na mesma posio do quadro inicial da pgina, com bales de pensamento, nos

    quais ele comea a refletir sobre sua profisso.

    Ilustrao 2 -A Metamorfose - pginas 12 e 13

    No que se refere concluso, ou seja, a necessidade de o leitor complementarmentalmente as informaes entre os quadrinhos, temos aqui um bom exemplo de transiode ao para ao, ou seja, de algo acontecendo diante de nossos olhos, com pouca variaoentre o que apresentado nos quadros (principalmente nos oito pequenos quadros quemostram o esforo de Samsa para virar-se na cama). O uso de planos mdios (com a viso dapersonagem at a cintura) enfoca a ao, mas ainda possibilita ver bem as expresses emovimentos de Samsa, ainda bastante humanos (as patas parecem mos, as antenas so comocabelos). Em toda a obra, Kuper utiliza tambm freqentemente transies de tema para tema,

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    cena a cena e aspecto a aspecto, exigindo um grau bem maior de envolvimento do leitor paradar sentido seqncia de quadros.Nesta terceira pgina, h bons exemplos de elementos da sintaxe e semntica dos

    quadrinhos. Dentro dos painis, temos as metforas visuais como, por exemplo, as linhas demovimento ou as pequenas gotas de suor prximas ao rosto de Samsa no ltimo painel daterceira pgina, representando esforo / cansao / medo. Os bales de fala esto tambmpresentes no caso, bales de pensamento, como se percebe pelas bordas arredondadas,lembrando uma nuvem, e pela srie de bolinhas que liga o balo ao personagem. A ausnciade bales no texto em negativo do terceiro quadrinho caracteriza uma interveno do narradore o texto verbal causa uma desacelerao na leitura, o que acaba por ampliar,psicologicamente, o tempo que Samsa fica deitado de costas, antes de reiniciar seus esforos

    para virar-se na cama.

    No restante da obra, nota-se que os bales no apenas contm os dilogos epensamentos das personagens, mas exercem ainda a funo de caracterizar as suas vozes epersonalidades. Os bales de fala da me de Samsa tm formas curvas, suaves e letras emitlico, sugerindo delicadeza e uma certa melodia. Os bales de fala de seu pai, ao contrrio,tm bordas dentadas, letras em negrito, sem serifa, sugerindo uma voz potente e um carterrigoroso. Grete, a irm mais nova de Samsa, sussurra, conforme sugerido pelas linhaspontilhadas de seus bales, enquanto a voz de Samsa mostra-se estranha e irregular como asletras e o contorno de seus bales de fala.

    No s as formas dos bales e das letras conferem ao texto um elemento grficocarregado de significaes. As onomatopias so usadas freqentemente para fazer a ligaoentre uma cena e outra, inclusive interagindo com a paginao. Outras vezes, o texto integrado ao desenho, como nesta seqncia na qual o inseto-Samsa caminha pelas paredes epelo teto (ilustrao 3). A esta altura da narrativa, ele j se movimenta bem como um inseto eo texto o segue, na horizontal, na vertical e at de cabea para baixo, levando o leitor amovimentar-se junto com ele e apreciar a sua perspectiva do quarto, acentuano sua crescenteperda de humanidade.

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    Ilustrao 3 -A Metamorfose pgina 46

    Tamanho, forma e disposio dos painis so usados por Kuper para manipular oritmo de leitura, criando padres que no s levam o leitor a identificar-se com as aes esensaes da personagem principal, com tambm o induzem a envolver-se com a histria emum nvel menos consciente. Kuper utiliza em sua maioria quadros bastante regulares, com acalha (espao entre os painis) bem definida, porm, em diferentes tamanhos e com grandevariao do numero de quadros por pgina.

    As opes do quadrinista na escolha da forma, tamanho e complexidade dos quadros e

    de sua combinao criam uma variao do ritmo da narrativa. Isso pode ser claramentepercebido na pgina 13 analisada anteriormente (ilustrao 2), na qual a srie de oito painispequenos parece acelerar a ao, voltando a uma calmaria no ltimo quadro. Essa variao doritmo da narrativa, gerada apenas atravs do tamanho dos painis, reflete e refora assensaes do personagem.

    Em um artigo chamadoZeit und Rhythmus in der Bildererzhlung [Tempo e ritmo nanarrativa por imagens], partindo das consideraes do lingista alemo Harald Weinrich sobreo tempo na linguagem, Barbieri constata que obras que tm um pano de fundo mais complexotendem a apresentar um ritmo narrativo menos intenso do que outras (como, por exemplo,

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    histrias de aventuras e lutas). Contudo, nas obras menos intensas pode-se freqentementeperceber a presena de dois ou mais padres rtmicos bsicos, cuja interao acaba porcompensar a pouca intensidade em termos de apelo ao leitor (cf. BARBIERI 2002, p. 133). Estepadro rtmico duplo pode ser percebido ao longo da obra de Kuper: seqncias de quadrosrelativamente regulares alternam-se com quadros e diagramao irregulares, linhas diagonaise curvas, criando uma montanha russa visual que induz o leitor a envolver-se nas atribulaesdo personagem e a identificar-se com seu drama. A alternncia destes dois ritmos bsicosconstri um claro padro narrativo: o autor utiliza quadros regulares e diagramaorelativamente tradicional para trechos narrativos mais calmos, levando criao deexpectativas. Por outro lado, a introduo de quadros e diagramao irregulares coincide commomentos de crise, intensificando o ritmo da narrao e o envolvimento do leitor. Nestes

    momentos, freqentemente desaparecem os quadros, sendo demarcados apenas por uma linhahorizontal, por exemplo, ou eles se apresentam sobrepostos, ou ainda ultrapassam as margensdas pginas, transmitindo ao leitor a sensao de caos e de um turbilho de emoes eacontecimentos. A sintaxe da forma e disposio dos quadrinhos anda a par com a histriasendo narrada, complementando-a e fazendo com que o leitor se torne, inconscientemente,parte dela.

    Consideraes finais

    Neste artigo, procurou-se demostrar como as histrias em quadrinhos representamuma linguagem com signos, convenes e regras prprias, integrando elementos verbais,grficos e visuais que se complementam para a composio de uma mensagem. A breveexemplificao atravs da obra de Peter Kuper teve por finalidade tematizar aspectosimportantes dessa linguagem que, no entanto, so raramente explorados nos estudos sobrehistrias em quadrinhos, os quais se atm mais freqentemente aos aspectos sociolgicos.Para tanto, foram levantados temas como a escolha do estilo de desenho, a integrao entreelementos grficos e textuais nos bales e, sobretudo, as opes de paginao, dediagramao e da forma e tamanho dos painis como meios de construo de um padrortmico da narrativa.

    ABSTRACT: If one understands language as a system of signs that can comprise more than verbalcommunication, comics can be said to have semantics and syntax of their own (ECO 2004). Based on a comicbook version of KafkasMetamorphosis, this paper illustrates how some visual elements on those two axes wereused in the adaptation, as well as their effect on the narrative.

    Key-words: pictorial language; comics; comics adaptation; reading rhythm.

    1 Todas as ilustraes apresentadas neste artigo provm da edio brasileira da Editora Conradde 2004 e soutilizadas apenas para efeitos de resenha.

    Referncias bibliogrficas

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