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133 Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Preconceito lingüístico e cânone literário, no 36, p. 133-143, 1. sem. 2008 A CONTÍSTICA DE SONIA COUTINHO E SUAS IMPLICAÇÕES IDENTITÁRIAS Daisy da Silva César RESUMO O conto é um gênero literário importante nos estudos da literatura Latino-americana, por sua capacidade de representar melhor do que no romance e na poesia as questões de identidade. Será analisada aqui a contri- buição da contista brasileira Sonia Coutinho para estas questões com relação à mulher brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Identidade; América Latina; conto. O conto é o gênero literário que desperta grande interesse entre estu- diosos da literatura Latino-americana. Especula-se que a razão dis- to seja a capacidade que tem de apontar, mais clara e diretamente, aspectos de identidade regional, nacional ou mesmo individual. A literatura brasileira se insere nessas discussões ao tratar de assuntos que dizem respeito a essa busca de identidade, especificando-se nos modos diferenciados como cada autor aborda essa temática. Dentre os diversos contistas brasileiros da atualidade, destaca-se Sonia Coutinho, contista e romancista baiana, natural de Itabuna, que vive atual- mente no Rio de Janeiro. Alguns de seus contos estão publicados em antologias no Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Polônia, México e Canadá. É considerada criadora do novo gênero chamado Romance de crime. Seus prin- cipais romances neste gênero são Atire em Sofia (1989), O caso Alice (1991) e Os seios de Pandora (1998). Entretanto, ainda na década de 90, produz contos intimistas e psicológicos, como O último verão de Copacabana (1985). A escri- tora ganhou duas vezes o prêmio Jabuti de literatura.

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133Cardernos de Letras da UFF – Dossiê: Preconceito lingüístico e cânone literário, no 36, p. 133-143, 1. sem. 2008

A contíSticA de SoniA coutinho e SuAS implicAçÕeS identitáriAS

Daisy da Silva César

RESUMO

O conto é um gênero literário importante nos estudos da literatura Latino-americana, por sua capacidade de representar melhor do que no romance e na poesia as questões de identidade. Será analisada aqui a contri-buição da contista brasileira Sonia Coutinho para estas questões com relação à mulher brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; América Latina; conto.

O conto é o gênero literário que desperta grande interesse entre estu-diosos da literatura Latino-americana. Especula-se que a razão dis-to seja a capacidade que tem de apontar, mais clara e diretamente,

aspectos de identidade regional, nacional ou mesmo individual. A literatura brasileira se insere nessas discussões ao tratar de assuntos que dizem respeito a essa busca de identidade, especificando-se nos modos diferenciados como cada autor aborda essa temática.

Dentre os diversos contistas brasileiros da atualidade, destaca-se Sonia Coutinho, contista e romancista baiana, natural de Itabuna, que vive atual-mente no Rio de Janeiro. Alguns de seus contos estão publicados em antologias no Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Polônia, México e Canadá. É considerada criadora do novo gênero chamado Romance de crime. Seus prin-cipais romances neste gênero são Atire em Sofia (1989), O caso Alice (1991) e Os seios de Pandora (1998). Entretanto, ainda na década de 90, produz contos intimistas e psicológicos, como O último verão de Copacabana (1985). A escri-tora ganhou duas vezes o prêmio Jabuti de literatura.

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A contística de Sonia revela o modo de ser e de pensar da mulher brasi-leira na atualidade. Mostra o universo feminino, do ponto de vista da própria mulher, que é o sujeito da enunciação. E este lugar de onde fala lhe permite abordar com maior autoridade as questões do feminino.

O corpus utilizado nesta discussão inclui seus mais recentes livros de contos1: Mil olhos de uma rosa2, de 2001 e Ovelha negra e sua amiga loura3, de 2006. Nessas compilações, os contos estão carregados de sentimentos, impressões, relatos de traumas de infância, julgamentos sociais sobre as mais diversas atitudes tomadas ao longo da vida das mulheres. O tipo fe-minino retratado tem uma série de características comuns: são mulheres de uma geração posterior à década de 70, que sofrem muito com as dificulda-des de ser uma mulher independente e moderna numa sociedade machista. Entretanto, muitos dos dramas expostos nas tramas podem ser observados nas mulheres das gerações posteriores também, pois, perante à sociedade, mudanças de comportamento costumam ser bastante lentas e exigem uma assimilação muito grande por parte de todos os envolvidos e, em especial, exige uma aceitação da própria mulher, quanto ao que ela é e o que ela quer tornar-se.

O processo de desconstrução é uma constante na contística de Sonia Coutinho, estando bastante evidente na obra analisada.

A desconstrução4 proposta pelo filósofo francês Jacques Derrida faz parte do movimento pós-estruturalista, e considera que o texto literário subverte as próprias suposições deste texto, reconstituindo os movimentos paradoxais dentro da própria linguagem.

Derrida fez repensar a forma como a linguagem opera. Descon-juntando os valores de verdade, significado inequívoco e pre-sença, a desconstrução aponta para a possibilidade de escrever não mais como representação de qualquer coisa, mas como a

1 Todas as citações das obras foram extraídas desses dois livros de contos de Sonia Coutinho.2 COUTINHO, Sonia. Mil olhos de uma rosa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001. p. 1-1153 COUTINHO, Sonia. Ovelha negra e a amiga loura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.4 ABRAMS, Meyer Howard. A glossary of literary terms. 6. ed. Orlando: Harcourty Brace,

1993. p. 225-230.

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infinitude do seu próprio “jogo”. Desconstruir um texto não é procurar o seu sentido, mas seguir os trilhos em que a escri-ta ao mesmo tempo se estabelece e transgride os seus próprios termos, produzindo então um desvio [dérive] assemântico de différance. (Ceia, 2005)5

No gênero conto, de forma geral, poder-se-ia dizer que a desconstrução pretende acabar com certezas do texto, desconstruindo a noção de conto tra-dicional, questionando o conceito acabado de narrador e personagens, mas, acima de tudo, destacando a multiplicidade dos sentidos contidos nele, que não precisam mais ser necessariamente coerentes.

Desta forma, a desconstrução não se caracteriza apenas por ser um mé-todo de leitura, mas aponta características do texto que são inerentes a ele e à linguagem que o constitui.

É interessante observar, neste sentido, como foi construído o conto Mil Olhos de uma Rosa, que é também o título do livro de contos. Nele, tanto a temática quanto a forma mostram o que Woodward (2004)6 chama de visão não-essencialista da identidade. Em oposição à visão essencialista, que trata a identidade como algo imutável, este ponto de vista considera a identidade um processo em constante transformação. Nele, a identidade é produzida cons-tantemente, porque as características que servem de base para a formação da identidade não são fixas, mas são o produto de uma reconstrução ao longo do tempo, que está sendo sempre atualizada.

Observa-se no conto, um meticuloso trabalho de metalinguagem, des-crevendo o processo de criação. O conto inicia com uma página de um conto, onde Tina (personagem da trama) está no Jardim Botânico. O leitor pode imaginar que lê o próprio conto, porém logo percebe que é apenas a primeira página do conto que o escritor (também um personagem) está escrevendo. Na segunda página, segue-se: “Foi a primeira coisa que o escritor escreveu, quando

5 CEIA, Carlos. “Desconstrução”. E- Dicionário de Termos Literários. http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/D/desconstrucao.htm 14/05/2007.

6 WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004. p. 7-69

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chegou em casa...” (Coutinho, 2001, p.10). Desta forma, os dois contos vão sendo construídos simultaneamente: o do escritor (dentro da trama) e o conto em si. Observamos que o escritor está sendo inventado, como exemplificado no trecho: “O escritor (José? Pedro? Carlos?) é publicitário, mas no momento vive de frilas” (COUTINHO, 2001, p. 10).

É narrado, igualmente, o ambiente onde o escritor se encontra quando pensa no que escrever, no caso, Jardim Botânico, assim como a relação de as-suntos a serem abordados. O escritor está lendo a biografia da fotógrafa italia-na Tina Modotti, morta nos anos 70, de parada cardíaca. O ponto em comum entre os dois focos são as flores, que foram fotografadas por Modotti e que o personagem observa em seu passeio pelo Jardim Botânico. Assim, os elemen-tos são mesclados, porém o escritor decide que recriará a morte de Tina em seu conto e anuncia, desde logo, que será um assassinato. Passa, então, uma grande parte do conto averiguando as possibilidades de desfecho de sua histó-ria, que poderá resultar, inclusive, em um romance policial. Também contri-buem para a construção do conto o interesse do personagem escritor pelo ato da escrita, bem como por passagens de sua vida, especialmente as relativas à sua infância. E segue mesclando fatos reais com aqueles que vai construindo através da imaginação. Ao final da leitura, percebe-se que o elemento principal do conto é o próprio processo criativo.

Em Gilda, seu passado negro, em primeira pessoa, o narrador, um homem que procura Gilda, seu antigo amor, revela a busca por sua identidade através da procura por essa mulher. Apesar de ser um homem, o narrador apresenta traços de personalidade bastante similares aos encontrados em outras narrado-ras mulheres, também personagens de Sonia. O conto inicia às duas da manhã, com o narrador insone, devido aos seus pensamentos obsessivos em relação à Gilda. São narrados pensamentos que tentam reproduzir o fluxo de consci-ência de uma pessoa desesperada. E isto vai definir a forma do conto através das tentativas frustradas de sua busca. Os fatos não são narrados linearmente e tornam-se mais confusos à medida que aumenta o desespero do narrador pela impossibilidade de encontrá-la. E Gilda é descrita como uma mulher inteligente, que trabalhava com tradução para vários idiomas em uma redação de jornal. Embora não tivesse formação acadêmica, possuía vocação para o trabalho que realizava. Porém, com o passar dos anos, tornou-se alcoolista e deprimida. Apesar de ser natural de uma família de posses, teve um casamento

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infeliz com um jornalista pobre. Gilda não tinha um bom relacionamento com sua mãe e isso fazia com que fosse bastante amargurada. A impossibilida-de de reencontrar Gilda produz, no narrador, a dúvida de sua existência real. Está sozinho, depois de tantas mulheres e nenhum filho, assim, põe em duvida sua fertilidade. Pensa estar enlouquecendo e passa a reinventar Gilda. A partir deste ponto, o texto desperta no leitor a dúvida se os fatos relatados são reais ou tudo não passa de reinvenção da história. O narrador supõe que o mistério do paradeiro de Gilda é na verdade um mistério de si próprio. Imagina que bloqueou em sua mente a informação que pode possuir sobre tudo isto. Indaga se essa mulher não seria um travesti, mas acaba preferindo a hipótese de que Gilda seja uma figura criada por ele, para encontrar sua própria história, para resgatar seu próprio Eu. Segue recriando a história, levantando a hipótese de ter matado Gilda, que poderia se chamar Eleonora. Modifica a suposta morte dela e termina sonhando que Gilda é uma rainha egípcia.

A forma geral dos contos apresenta uma estrutura multifacetada e foto-gráfica, indicando a tendência geral da contística da autora, o que pode ser mais claramente evidenciado em Mil Olhos de uma Rosa. Em Gilda, seu passado negro, o relato segue uma forma não-linear, como um fluxo de consciência.

No conto D de descoberta, é interessante notar que o próprio narrador está construindo a si mesmo durante o processo da escrita. E admite isso ao leitor, demonstrando a liberdade que possui de ser quem quiser. A narração inicia com a seguinte citação: “Eu, o escritor. Preparado para começar a minha história. Antes de mais nada, inventando a mim mesmo. Serei um fotógrafo. Sem-pre tive vontade de viver de fotografia.” (Coutinho, 2006, p. 21).

Este dado também vem ao encontro do processo não-essencialista de identidade, pois o narrador-personagem está ciente de que sua personalidade é complexa e vai além de sua própria trajetória histórica e cultural. Está ciente de que seu modo de ser como pessoa está sendo repensado constantemente, nesta incessante busca pela identidade, que poderá ser analisada muitas vezes, entretanto nunca esgotada, já que está em processo.

As personagens de Sonia reúnem algumas características comuns como o interesse por fotografia, a tentativa de resgate de fatos do passado, a busca por paz interior, quer seja na arte ou pelas religiões orientais. Encontramos também mulheres que conseguiram a independência financeira, contudo não se realizaram afetivamente.

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A presença de personagens escritores que utilizam dados autobiográficos para a construção da obra literária sugere a possibilidade da existência de rela-ções entre a obra de Sonia Coutinho e sua vida pessoal. De acordo com uma análise mais tradicional da psicanálise, existe uma tentativa de autoconheci-mento que pode ser buscada através da construção das personagens. Entretan-to, é sabido que a literatura não se reduz a um autoconhecimento do autor, indo muito além dele. A busca de traços autobiográficos na obra costuma ser redutora das possibilidades que o texto literário oferece. Mesmo em caso de obras comprovadamente baseadas em fatos reais vividos pelo autor, não há dúvidas de que a obra literária é um ato de criação, advindo daí o seu status ficcional.

O tipo comum, nos contos da autora, é a mulher com má sorte na vida, que possui apenas amigas invejosas e infiéis, que vive solitária, apresenta diver-sos problemas psicológicos como depressão, fobias e inclusive idéias suicidas. Esta mulher não sabe dizer não aos homens, quando sabe que precisa fazê-lo, sofrendo com esta atitude. Assim, não se quebra o círculo vicioso, apesar da busca constante por um equilíbrio mental em alguns frustrados processos psicanalíticos, na arte, em religiões orientais, na nostalgia da juventude ou mesmo na aceitação da morte. Seu interesse é discutir esses assuntos e não fornecer respostas superficiais a eles. O desfecho trágico é uma constante, com raras exceções.

Os caracteres, encontrados nas personalidades das mulheres descritas, demonstram uma preocupação excessiva em mostrar elementos que podem ser tratados como pontos comuns e recorrentes em identidades inseridas em determinadas culturas. As personagens femininas de Sonia Coutinho exempli-ficam como a sociedade ocidental ainda enxerga a mulher, a partir dos vários estereótipos e clichês com os quais as mulheres modernas precisam lidar, ape-sar de viver no século XXI. Mostra o “mito” da mulher inteligente, indepen-dente e moderna que não é bem sucedida no casamento, como uma espécie de punição da sociedade machista frente às mulheres que pretendem igualar-se aos homens, como se fosse vedado às mulheres o sucesso profissional e afetivo-sentimental ao mesmo tempo. Também encontramos a presença da solteirona na família, que vive com a mãe a vida inteira e tem a incumbência de cuidar dela quando doente, como forma de pagamento. Como isso já faz parte do senso comum, ninguém discute ou questiona essa situação. Numa sociedade

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em que a função maior da mulher é a de ser esposa e mãe, quem não realiza tais funções não apenas é censurada como alguém que não cumpriu seu papel, mas, também, como alguém que está em dívida com a sociedade, pois não foi capaz de dar aquilo que era esperado dela. Um terceiro mito que Sonia denuncia em sua obra é a impossibilidade de ter sucesso financeiro realizando o trabalho que gosta. A personagem homossexual de Igor, em Sem entrar em pânico, é um ator que tem uma vida profissional instável e que sofre por ser constantemente comparado ao seu irmão médico bem sucedido e ajustado à comunidade onde está inserido.

Muitas das mulheres descritas são adeptas da cultura hippie dos anos 70, ou ao menos sofrem influência direta desta tendência. Usam roupas in-dianas, colares artesanais e mantêm papos-cabeça. Problemas familiares com mães e/ou filhas também são uma constante. Existem dois contos que dia-logam entre si, presentes em Ovelha Negra e a amiga loura. Chamam-se, não por acaso: Mãe e filha (I), ou Domingo de Páscoa e Mãe e filha (II), ou Tango na feira. A trama, em linhas gerais, pode ser resumida desta forma: a mãe da personagem principal, que vive na cidade de Solinas, citada freqüentemente nos contos de Coutinho, conquista a neta, afastando-a do convívio com sua mãe, deixando-a abandonada e ressentida. Por sentir-se isolada, muda-se para o Rio de Janeiro. Em ambos os contos, a perspectiva da história é a da mulher que se sente sabotada e injustiçada, que não aceita as tentativas de reaproximação da sua família, desconfiando sempre dos motivos que as fazem querer esta aproximação. O drama vai se acentuando e o leitor não espera outro desfecho, a não ser um final infeliz, seguindo o modelo dos contos anteriores. Sônia, porém, nos surpreende, apresentando-se como o narrador, ou mesmo criando um escritor que tem autoridade para modificar o desfecho de seu texto, no momento que julga conveniente. Assim, no conto (I) resolveu dar um desfecho alegre. A mulher adoece, como uma con-seqüência de seus sentimentos negativos, vendo na doença a purificação de sua alma. Reconcilia-se com sua mãe e com sua filha. Termina o conto com a frase: “Não sei se gostam deste final, mas é o que posso contar. Mais não me perguntem” (Coutinho, 2006, p. 37). No conto (II), a personagem principal é uma apreciadora de tango, de Piazzola especialmente, e associa a vida da personagem aos “gemidos de bandoneón”. Tal como no tango, o conto vai se tornando cada vez mais dramático, até que, outra vez, o escritor se coloca na

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história. Está cansado de ouvir Piazzola, por isso o troca pelo jazz, fazendo com que opte por um final mais alegre. A personagem principal desenvol-ve um câncer no estômago, conseqüência de sentimentos de raiva, porém, sobrevive. Volta a Solinas e observa o nascimento de mais uma mulher na família, sua neta, mantendo a tradição das quatro mulheres na família. Já havia presenciado a morte de sua avó. Terminam as quatro, sorrindo uma para a outra. Mesmo que com sorrisos amarelos, apresentam aquilo que é descrito como a sinceridade trazida pelo sofrimento e pela passagem do tempo, repetindo as palavras finais do conto.

A contística de Sonia Coutinho, além de reunir elementos como a ten-dência ao conto mutifacetado, à visão fotográfica da vida, inclui a musicalida-de, pois freqüentemente seus contos fazem referência a alguma música, cantor ou estilo musical. Essa escolha ajuda a compor o ambiente descrito no conto, conferindo-lhe características sugeridas pela sonoridade escolhida, como no caso de “My Funny Valantine” no conto de mesmo título. Em alguns contos, conforme relatado anteriormente, o curso da fábula pode ser modificado devi-do à influência da música. O que nos sugere que o processo criativo depende também, ou pode sofrer influência, do ambiente no qual o autor está inserido no ato da composição.

A contribuição de Sonia Coutinho para a discussão e análise da iden-tidade latino-americana é bastante importante, pois seus textos representam traços da identidade do brasileiro de uma forma bem abrangente, detendo-se mais particularemnte na questão da mulher. O Brasil é um país plural, devido à sua grande extensão e a enorme diversidade cultural, sendo con-siderado, não raras vezes, um continente em si. A cultura, por sua vez, está constantemente sendo reconstruída a partir do passado histórico, sofrendo profundos processos de releitura, a que se somam os intercâmbios com ou-tros países e regiões e do contato de uma região com outra. Os avanços tecnológicos, a situação da problemática mundial também interfere no pro-cesso de reconstrução de identidade e fornece subsídios para a continuidade e para a manutenção destas modificações, seja no caráter nacional, regional ou mesmo individual. A mulher descrita por Sonia Coutinho mostra várias facetas da identidade das mulheres no Brasil a partir da década de 70. A personalidade da mulher, bem como o tipo de vida que leva e o seu destino mostram uma mulher brasileira bastante distinta dos padrões conhecidos e

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estereotipados como brasileiros. De acordo com este estereótipo, a mulher brasileira costuma ser vista pelo senso comum como uma mulher alegre, consciente de seu poder de sedução, inserida num contexto de samba e car-naval com todas as alegrias de um país tropical. Na literatura costuma ser representada como uma mulher inferiorizada frente ao homem. A contística de Sônia, ao contrário, não trata da mulher do povo; não destaca a mulher dependente do homem, que é submissa e que pode, inclusive, sofrer violência. A mulher escolhida, conforme é mostrado na obra, é uma mulher em trans-formação. Ela está definindo sua personalidade e precisa enfrentar diversos conflitos com os quais tem de conviver nesta busca por seu espaço no mun-do e pela valorização de quem é como ser humano.

Aparecem, como tema freqüente na sua obra, questões ligadas ao modo de viver da classe média brasileira, como a luta pela casa própria e a questão econômica do país em que os filhos das classes mais abastadas saem de casa, mas continuam dependendo dos pais, ou pelo menos, contando com essa possibilidade da ajuda financeira. Outras questões ligadas à estrutura e orga-nização social do país também aparecem nos contos da autora, como a busca de emprego, melhor qualidade de vida e satisfação pessoal através da saída do interior em busca da cidade grande.

A obra de Sonia permite igualmente uma leitura simbólica, na medida em que a cidade de Solinas, origem da maior parte das personagens, pode ser vista como representante da tradição, em contraponto ao Rio de Janeiro, como um espaço de liberdade em relação a padrões socialmente impostos. As-sim, é freqüente a existência de personagens que tentam desligar-se do passado e das tradições, porém sofrem as conseqüências de sua escolha. Este conflito se refere, não apenas aos padrões impostos pela sociedade tradicional, mas também a própria dificuldade que tem o ser humano de romper com o pas-sado, mantendo uma dívida a resgatar com suas raízes. O ser que sai do seu local de origem, ou que rompe com uma antiga forma de vida, passa por um processo de adaptação ao novo, sendo considerado por si mesmo e por aqueles que não seguiram este caminho, um desajustado, que não encontrou seu lugar no mundo, mas que busca incessantemente por ele. Assim, é necessário um longo processo reflexivo para reconstruir o próprio Eu e a sua relação com o mundo, a partir destas modificações que, sem dúvida, interferem na maneira como cada um vê a própria identidade.

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Uma forma interessante de olhar a obra de Sonia Coutinho é tratando este conjunto de contos como uma única narrativa heterogênea, de forma que cada um dos contos contribui para a construção da história de um tipo de personagem: mulher, branca, classe média, que tem uma profissão, mora na cidade, mas suas origens estão no interior. Sua personalidade e o desfecho dos acontecimentos de sua vida, a partir de diversos pontos de vista podem ser entendidos também como múltiplas possibilidades plausíveis de desfecho. Nesta possível perspectiva, o narrador teria a incumbência de tentar contar os fatos de uma única personagem, que podem todas elas ser uma única mu-lher com as características comuns. De forma que todos os contos reunidos, podem ser vistos como tentativas de se contar uma mesma história e, de que as personagens repetidas seriam a forma como o narrador (que poderia ser a personagem central) se vê, escrevendo na expectativa de encontrar-se nas suas personagens. Conforme vemos no final do conto Sem entrar em Pânico: “Sim, eu sei, claro que sua história não é essa, Igor, nem se parece com a sua. Coloquei nela alguma coisa do que aconteceu com você, mas o que importava ficou de fora, não foi isso? Os acontecimentos, em sua totalidade, para você (para mim) continu-am obscuros. Mas fique calado, não diga nada, sossegue. Pare de incomodar todo mundo falando disso sem parar. É verdade que tentei contar e não consegui, mas pode ter certeza de que tentarei outra vez” (Coutinho, 2006, p. 93). Este trecho mostra uma profunda identificação do narrador com os fatos ocorridos com a personagem, podendo sugerir que ela seja uma representação de seu Eu, sugerindo um diálogo de um ser para com ele mesmo, sem no entanto, excluir outras interpretações. Podemos entender que um relato é apenas uma versão que não necessariamente condiz com o que de fato aconteceu, sendo, assim, somente um dos diversos pontos de vista possíveis.

Dessa forma, vemos que a obra de Sonia Coutinho, mesmo em apenas duas antologias de contos de sua bibliografia, nos traz um riquíssimo material para pensar sobre a situação da mulher brasileira na atualidade, na proble-mática familiar, profissional e financeira do país, no lugar do ser humano no mundo, sua busca por identidade, e sua tendência natural que é a de dar significado a seu trajeto na vida e na história. Sonia conjuga o conteúdo de seu texto a um elaborado jogo narrativo, que realiza com muita propriedade, chamando atenção para a imprecisão do texto e para a comprovação das idéias de que a linguagem é incapaz de dizer tudo e que, ao mesmo tempo, através

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dela, se diz mais do que se pretende dizer. Tudo isso faz com que os sentidos da obra ou do texto sejam multiplicados, podendo ser imprecisos ou mesmo considerados como incoerentes. Assim, o narrador não pode mais ser apre-sentado como uma entidade confiável, ao contrário, dentro da perspectiva da desconstrução, existe a noção da inconfiabilidade do narrador, que não mais é visto como o detentor da verdade narrada, mas como alguém que também é consciente de que possui um ponto de vista, que é problematizado, inclusive por ele mesmo. A obra de Sonia Coutinho mostra-se muito representativa da modernidade narrativa, sobretudo quando pretende destacar e discutir a própria linguagem, não tratando a indefinição como um problema, mas como uma paradoxal e inerente qualidade, que, se bem explorada, como nos contos tratados, demonstra que o trabalho com a linguagem por parte do sujeito da enunciação é, sem dúvida, um elemento essencial para pensar a questão da identidade nos seus mais diversos âmbitos.

RÉSUMEN

El cuento es un género literario importante en los estu-dios de la literatura Latinoamericana, por su capacidad de representar mejor do que en la novela y en la poe-sía las cuestiones de identidad. Será analizada aquí la contribución de la cuentista brasileña Sonia Coutinho a estas cuestiones, sobretodo con relación a la mujer bra-sileña.

PALABRA-LLAVES: Identidad; América Latina; cuento.

Recebido em 11/02/2008Aprovado em 05/06/2008