Artigo7 - Revista Todavia

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Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul. 2010, p. 119-124 119 GÊNERO, MASCULINIDADES, VIOLÊNCIAS 1 Vanessa Flores dos Santos 2 Resumo: este artigo tem por objetivo uma breve contribuição ao debate acerca das articulações possíveis entre gênero e violência, especificamente as múltiplas construções de masculinidade e as distintas relações com o fenômeno da violência contemporânea. Palavras-chave: violência; gênero; masculinidades Neste artigo, buscar-se-á uma breve explanação acerca das construções sociais de gênero, as múltiplas masculinidades e o fenômeno da violência contemporânea em suas variadas caracterizações. Primeiramente, se introduzirá a reflexão sobre a relevância de se teorizar acerca das masculinidades e o conceito de gênero enquanto categoria relacional. Em seguida, a reflexão se pautará sobre o entendimento da violência como processo de sociabilidade masculina e a separação entre esfera pública e privada, e sua crítica. A partir disso, as velhas e novas formas de articulação entre valores da tradição ocidental e da alta modernidade. Por que pensar as masculinidades? Autores como Medrado e Lyra (2008) apontam o quão recente é o debate acerca das masculinidades no campo dos estudos de gênero. Pelo caráter engajado da produção intelectual feminista, algumas autoras 3 inicialmente travam esse debate em termos de 1 Trabalho de conclusão da disciplina de Estudos de gênero, ministrada pela professora Drª Fátima Cristina Vieira Perurena. 2 Acadêmica do curso de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] 3 Cecília MacDowell Santos e Wânia Pasinato Izumino no artigo “Violência contra as mulheres e violência de gênero: notas sobre estudos feministas no Brasil” identificam três correntes teóricas acerca dos estudos sobre violência contra mulheres e violência de gênero que exemplificam perspectivas onde os papéis de gênero são vistos de maneira dualista e fixa.

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Revista Todavia, Ano 1, nº 1, jul. 2010, p. 119-124

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GÊNERO, MASCULINIDADES, VIOLÊNCIAS 1

Vanessa Flores dos Santos 2

Resumo: este artigo tem por objetivo uma breve contribuição ao debate acerca das

articulações possíveis entre gênero e violência, especificamente as múltiplas construções de

masculinidade e as distintas relações com o fenômeno da violência contemporânea.

Palavras-chave: violência; gênero; masculinidades

Neste artigo, buscar-se-á uma breve explanação acerca das construções sociais de

gênero, as múltiplas masculinidades e o fenômeno da violência contemporânea em suas

variadas caracterizações. Primeiramente, se introduzirá a reflexão sobre a relevância de se

teorizar acerca das masculinidades e o conceito de gênero enquanto categoria relacional. Em

seguida, a reflexão se pautará sobre o entendimento da violência como processo de

sociabilidade masculina e a separação entre esfera pública e privada, e sua crítica. A partir

disso, as velhas e novas formas de articulação entre valores da tradição ocidental e da alta

modernidade.

Por que pensar as masculinidades?

Autores como Medrado e Lyra (2008) apontam o quão recente é o debate acerca das

masculinidades no campo dos estudos de gênero. Pelo caráter engajado da produção

intelectual feminista, algumas autoras3 inicialmente travam esse debate em termos de

1 Trabalho de conclusão da disciplina de Estudos de gênero, ministrada pela professora Drª Fátima Cristina

Vieira Perurena. 2 Acadêmica do curso de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:

[email protected] 3 Cecília MacDowell Santos e Wânia Pasinato Izumino no artigo “Violência contra as mulheres e violência de

gênero: notas sobre estudos feministas no Brasil” identificam três correntes teóricas acerca dos estudos sobre

violência contra mulheres e violência de gênero que exemplificam perspectivas onde os papéis de gênero são

vistos de maneira dualista e fixa.

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dominadores e vítimas, em um sentido dicotômico e que não dá conta do caráter relacional

das construções sociais de gênero.

As masculinidades são construções culturais, sujeitas a contradições internas, e daí a

importância de se pensar múltiplas masculinidades. Mas diversos autores acreditam que isso

não impeça o reconhecimento de um modelo de masculinidade hegemônica, legitimado pelas

relações de poder e apresentado como modelo a seguir (WELZER-LANG, 2001; CONNELL

e MESSERSCHMIDT, 2005). As críticas a este conceito de masculinidade hegemônica

baseiam-se na problematização do conceito de hegemonia, de matriz gramsciana:

O adjetivo “hegemônico”, derivado de Gramsci, surge como um sério problema teórico, uma vez que o termo implica constante luta pela posição de preponderância.

Se é fato que ainda existe uma forma hegemônica de masculinidade, trata-se de

refletirmos a respeito da questão: formas distintas de masculinidade, ao se

contraporem à predominante, buscam ocupar tal posição hegemônica ou, será que o

que pretendem é, sobretudo, reconhecimento como uma forma também legítima e

possível de experienciar a masculinidade? Pretendemos, ao recuperar o sentido

original de hegemonia, refletir de forma crítica sobre as implicações de tal

apropriação teórica aos estudos sobre masculinidades (FIALHO, 2005).

Joan Scott (1995), em conhecido artigo, conceitua gênero a partir de duas proposições:

o gênero como elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas

entre os sexos, e gênero como uma forma primária de dar significado às relações de poder. A

partir desta primeira definição, podemos pensar o gênero enquanto conceito relacional,

construído e reconstruído constantemente por e através das relações sociais, entre homens e

mulheres. Mas como é colocado por Medrado e Lyra (2008), relacional não implica

complementaridade, mas assimetria de poder. Por isso, a importância de uma matriz feminista

para os estudos sobre homens e masculinidades.

Machado (2001) destaca a categoria relacional da “honra” como fundante da

construção simbólica dos gêneros no Brasil. Para ser um homem respeitado, deve-se ter o

controle de “suas” mulheres e viver a constante ameaça de conflito com outros homens, em

nome dessa honra.

Em Violência e estilos de masculinidade, Cecchetto (2004) analisa a pluralidade de

construções de masculinidades entre homens jovens no Rio de Janeiro. Para isso, enfoca em

três grupos que considera representativos: os grupos charmeiros de jovens do subúrbio

carioca, os lutadores de jiu-jitsu da zona sul e a galera do baile funk da periferia. Sua

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conclusão é da impossibilidade de uma ligação direta e não problematizada entre violência,

pobreza e etnia: “Foram estudados diferentes etos masculinos vinculados ao lazer, na mesma

camada social, para demonstrar a complexidade da correlação entre pobreza, masculinidade e

violência”. (p. 208)

Esfera pública, privada e as violências de gênero

Para Welzer-Lang (2001), a violência pode ser entendida como processo de

sociabilidade masculina. Há um certo rito de passagem, quando meninos aprendem as regras e

“aprendem a ser um homem”. Essa aprendizagem se faz no sofrimento. Pelos abusos físicos e

psicológicos e a agressividade que se espera de um homem. Os espaços que se configuram

como os da construção dessas masculinidades, e principalmente de imposição do modelo de

masculinidade hegemônica, são chamados de “casa-dos-homens”. Mas a casa-dos-homens

não é somente onde se vivencia essa aprendizagem do que é ser homem através do

sofrimento. É também onde se constrói a solidariedade masculina, o lugar de transmissão de

valores positivos e o sentimento de pertencimento. Por isso, a dificuldade em se relativizar

esse modelo legitimado.

Souza (2005) apresenta pesquisa com dados impressionantes acerca das mortes por

causas externas no Brasil. A maioria esmagadora das vítimas são homens. “Dos 15 aos 19

anos, os homens morrem 6.3 vezes mais que as mulheres; dos 20 aos 24 anos suas taxas são

10.1 vezes maior que a das mulheres” (2005, p. 62). Esse padrão se confirma em causas como

suicídio, homicídio, acidente de transporte, queda, lesões, ferimento com arma de fogo. A

partir desses dados, pode-se legitimar discursos que associem homens à esfera pública e

mulheres à esfera doméstica, refletindo-se nas diferentes caracterizações do fenômeno da

violência. Mas como nos lembra Rosaldo (1995), “quando nos voltamos para casos concretos,

o modelo baseado na oposição destas duas esferas pressupõe – lá onde deveria antes ajudar a

iluminar e explicar – demais sobre como as relações de gênero realmente funcionam”.

Velhas e novas formas de articulação

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Machado (2001), em pesquisa onde realiza entrevistas com apenados por crimes de

estupro, homens agressores de suas companheiras e jovens infratores, problematiza “a

construção social de violências em contexto urbano contemporâneo”. A já citada categoria

relacional da honra diz respeito a valores de longa duração, da sociedade ocidental, em que

tradicionalmente homens controlam “suas” mulheres e as disputam e defendem de outros

homens. A honra do homem depende do cumprimento de sua obrigação enquanto pai e

marido, de “não deixar faltar nada” e de ter uma “mulher respeitada”. Machado também

discorre acerca de novas formas de sociabilidade, valores da “alta modernidade”, citando

Giddens, Debord, Harvey, relacionando ao fenômeno da violência:

estes jovens revelam a sua total adesão a um novo conceito de “tempo social”. Seus

projetos se inserem num tempo curto, que lhes abra imediatamente a porta para o

sucesso, o hedonismo das sensações, daí, o fascínio pelas drogas, e o

reconhecimento instantâneo do seu “poder”. A agressividade física, o exibicionismo do desafio corporal, o poder sobre a vontade dos outros e a indiferença em relação às

vítimas, que servem apenas para “contar vantagens”, são valores fortemente

conectados com “não ser bundão”, isto é, com a concepção de masculinidade. (2001,

p. 22)

Às questões da violência e novas subjetividades, a autora correlaciona aspectos que

dizem respeito ao mal-estar das sociedades contemporâneas4 e assim também estão inscritos

nos processos de produção dessas novas subjetividades, tais como: expansão do

individualismo e consumismo, enfraquecimento das utopias e dos sentimentos de

solidariedade. Giddens (1993), apesar de considerar como positiva a crescente autonomia

individual dessa sociedade pós-tradicional, nos alerta para o perigo da crescente generalização

de comportamentos viciados ou compulsivos.

Machado (2001) aponta que essa reinvenção do masculino, essas novas configurações

de subjetividades e sociabilidades machistas e o entendimento do masculino como puro poder

arbitrário podem ser entendidos justamente como uma contraposição à crescente

desconstrução e questionamento da masculinidade hegemônica.

Em diálogo com a produção de Machado, Minayo (2005) aponta dois instrumentos

servindo a esse “machismo pós-moderno”: o carro, enquanto símbolo de mobilidade,

potência, velocidade e liberdade, que é significativo para se analisar os jovens de classe média

e a virilidade associada à figura do carro. Um homem precisa ser tão potente quanto seu carro;

4 Ver Debord (1997), Dumont (1985), Harvey (1990), Giddens (1993).

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e segundo, a arma de fogo, como representação dos jovens de periferia muitas vezes

envolvidos com gangues e tráfico de drogas, como o símbolo do poder arbitrário, do tempo

curto e da performance exibicionista.

Desta forma, evidencia-se a relevância de se teorizar acerca das múltiplas

masculinidades e múltiplas violências, que dêem conta das diferentes formas de estar no

mundo, viver e representar o que é ser homem, o que é violência e a possibilidade de

relacionar esses conceitos, levando em conta a persistência de velhas formas de construção

simbólica dos gêneros e também a emergência de novas configurações, com valores da “alta

modernidade”.

Referências

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Alegre: v 20, n 2, p 185-206, 1995.

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ROSALDO, Michelle. O uso e o abuso da antropologia: reflexões sobre o feminismo e o

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