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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE RACIAL SOUZA, Cássia Fabiane dos Santos1.

Este artigo apresenta uma parte da minha pesquisa de Mestrado pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Federal de Mato Grosso que tinha como objetivo identificar quais foram os fatores determinantes na trajetória escolar de negros que conseguiram romper com o processo de exclusão e ingressar numa universidade pública, a UFMT. Foram analisadas trajetórias de vida de alunos de três cursos: História, Economia e Direito, que ingressaram, nesta universidade, no período de 1998 a 2002. Através do estudo de suas trajetórias escolares verificou-se os processos de construção da identidade, as situações de preconceito e discriminação vivenciadas, o significado da entrada na universidade e suas aspirações.

Para a realização dos objetivos propostos, a pesquisa foi realizada em dois momentos, igualmente importantes. O primeiro se constituiu num levantamento de dados para traçar o perfil destes alunos, identificando quantos alunos negros há em cada curso. Para isso, analisou-se a fotografia 3X4 contida em seus documentos, arquivados em um setor da universidade, classificando-os a partir das categoriais raciais utilizadas no Censo do IBGE2: branca, parda, preta, amarela e indígena, acrescida pela categoria mulata, utilizada por Teixeira (2003a). Ao classificá-los, levou-se em consideração a cor da pele que apresentavam nas fotos, bem como traços e formato dos olhos, lábios e nariz e o tipo de cabelo.

Assim, traçou-se o perfil dos alunos dos cursos de História, Economia e Direito no que se refere ao lugar de origem, tempo que levaram para concluir o Ensino Médio, a idade de entrada na universidade e a trajetória dos mesmos, no ensino superior, no que diz respeito a trancamento de matrícula, mudança de curso, reprovações.

No segundo momento, foram realizadas entrevistas com os alunos negros destes cursos, a fim de identificar quais fatores foram fundamentais na constituição da identidade e na busca de realizar o projeto de ingressar numa universidade.

Especificamente, neste artigo, apresentarei os resultados da pesquisa no que se refere a construção da identidade racial.

1 Raça, identidade e mobilização racial.

A mobilização de um grupo social nasce geralmente da busca de melhores condições socioeconômicas pelos segmentos sociais desprivilegiados e da eliminação dos mecanismos que perpetuam sua condição de subordinação na sociedade. Os movimentos sociais dos anos 60 vão estar ligados a uma “política de identidade”, isto quer dizer que o referencial desses movimentos passará pelo entendimento de suas posturas políticas e pela construção de identidades específicas por parte de cada grupo social. Dessa forma, novas identidades sociais surgiram e outras foram reelaboradas. Segundo Hall (2002) as questões relacionadas às identidades culturais e às culturas nacionais vão suscitar um novo status para o papel das identidades e a classe passa a não ser a única categoria mobilizadora através da qual todas as identidades possam ser representadas.

É nesse contexto que a mobilização racial no Brasil dos anos setenta vai se inserir, juntamente com uma conjuntura nacional de contestação do autoritarismo e de abertura política vivenciada pela sociedade civil. Os anos 70 vão marcar o momento em que vários segmentos

1 Professora da rede municipal de Cuiabá, Ms. Em Educação. 2 O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – é o órgão governamental responsável pela

formulação e coletânea dos censos populacionais a cada década.

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minoritários da sociedade vão iniciar sua luta pelo reconhecimento das desigualdades sócio–econômicas e culturais, sobretudo no que diz respeito às populações negra e indígena.

Nesse momento, a questão racial vai passar a ser um elemento importante nos discursos dos movimentos sociais, e o conceito de raça terá um viés não mais biológico e sim sócio-cultural.

A utilização do conceito de raça é ainda corriqueiramente mal visto, sobretudo porque ele conduz à lembrança de uma ideologia de superioridade racial muito difundida na Europa de fins do século XIX, baseada em teorias evolucionistas e deterministas, hoje reconhecidamente equivocadas, mas que foram importadas por alguns intelectuais brasileiros, sobretudo no pós-abolição, e serviram, naquele contexto, para enfraquecer a idéia de igualdade e fortalecer os rótulos depreciativos de negros e mestiços, atribuindo-lhes os “males da nação” (SCHWARCZ, 1993). Um resquício deste tipo de pensamento pode ser verificado no conceito de raça de Van den Berghe (1994 apud MAY, 2003) que a define enquanto um grupo de indivíduos que é definido como diferente dos outros grupos por características físicas inatas e imutáveis. Estas são relacionadas a habilidades ou atributos morais, intelectuais, entre outros, e, portanto, podendo definir qual raça é “melhor” ou “superior”. Este conceito de diferentes raças humanas, baseado em diferenças biológicas reais ou não, é insustentável. A raça é uma categoria cuja noção biológica já foi substituída nos últimos tempos por definições culturais, mais de acordo com os movimentos sociais da segunda metade do século XX e a valorização da questão das identidades. Assim, conforme Hall (2002) raça vai passar a ser

(...) uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro (p.63).

Diante disto, uma coisa não se pode negar: as raças vão continuar existindo, ao menos na cabeça das pessoas. Para Telles (2003),

Embora a raça não tenha valor científico nem tampouco exista na natureza, sua idéia é amplamente compreendida. Mesmo que não mais represente diferenças genéticas, a idéia de raça continua a gerar diferenças de comportamento, atitudes e entendimento. Guiados por ideologias de hierarquia e de dominação racial, os seres humanos impõem categorias raciais e tratam os outros de acordo com elas. Como resultado, os efeitos desse conceito inventado, longe de serem inimagináveis, têm conseqüências bastante reais. Em particular, essa idéia leva à discriminação racial que, por sua vez, aumenta as probabilidades de que uma pessoa sofra humilhação, viva na pobreza e acabe morrendo com pouca idade (p.301).

Segundo Guimarães (2002a) raça não é apenas “uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de ‘cor’ enseja são efetivamente raciais e não apenas de classe” (p.50).

Assim, neste trabalho, quando se fala em raça, deve-se ter em mente que se tratam de construções sociais, que devem ser entendidas dentro de contextos históricos específicos.

O mesmo pode-se dizer com relação ao racismo, que deve ser analisado tendo em vista os significados políticos que o tempo imprime em sua configuração. Para Baptista (2002)

o racismo não é uma simples herança da escravidão e do colonialismo, uma série de atitudes inerentes à cultura dominante, inclui práticas que são produzidas, discutidas e valorizadas de múltiplas formas e têm múltiplos efeitos. O racismo, portanto, caminha ao largo do tempo, modificado por interesses, estratégias e por interações entre indivíduos e grupos (p.33).

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Dessa forma, é a partir do entendimento de como se constroem, historicamente, as

categorias raciais e os significados que assumem o racismo no Brasil que se pode entender o processo de formação de identidades entre a população negra.

Um dos autores que oferecem estudos que permitem fazer a análise do conceito de identidade referido a grupo étnico ou racial é Stuart Hall. Autor de trabalhos importantes no campo dos estudos culturais remete, através de sua obra, a algumas reflexões que, acredita-se, sejam fundamentais a respeito dos discursos gerados em torno do processo de construção da identidade da população negra.

Para Hall, o termo negro “funciona como linguagens”, uma vez que as formações nas quais situa o termo, baseadas em sua “própria experiência tanto no Caribe quanto na Inglaterra, não encontram uma correspondência exata na situação americana” (HALL, 2003 p.187) e, poderia-se acrescentar, muito menos no Brasil. Os próprios tradutores de Hall para o português preferiram traduzir black por negro, e não por preto, por exemplo.

O autor de “Da Diáspora”, tem uma ascendência diversificada, mestiça, hibridizada, para usarmos suas palavras, e talvez por isso tenha chegado à conclusão de que “não existe um eu essencial, unitário - apenas o sujeito fragmentário e contraditório que me torno” (Hall, 2003: 188), contrariando a impressão que, às vezes temos, de que a identidade possui uma essência fixa e imutável ou uma substância inerente ao sujeito.

Decorre dessa concepção de identidade como mutável, transitória, contraditória e como resultante das relações sociais entre os sujeitos a afirmação de que “(...) as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (Hall, 2002: 7).

Desta forma, Stuart Hall propõe um repensar a questão da identidade, levantando pontos fundamentais para a análise dos discursos que os universitários negros fazem acerca da identidade.

2. A Construção da Identidade

Para Schwarcz (1999), entender a questão racial significa enfrentar o tema da identidade. As análises mais atuais sobre identidade dão conta de que estas estão sendo constituídas

culturalmente (HALL,2002). Este autor procura demonstrar que a nova paisagem cultural que se delineia produz um impacto significativo na subjetividade humana, principalmente no que tange à identidade. Na peculiaridade do quadro contemporâneo atual, ocorre uma “descentração do sujeito” tanto do ponto de vista como indivíduo como de seu lugar social. Isso significa abalos sensíveis na identidade individual e coletiva. As certezas perdem sua estabilidade, dando lugar a uma era de incertezas. Em termos identitários, representa admitir que há múltiplas identidades em nós, dialogando, conflitando e aflorando de acordo com circunstâncias específicas que as convoquem no cenário social.

Durante a entrevista, abordou-se a questão da identidade em três momentos. O primeiro foi quando se perguntou sobre a impressão que os entrevistados tinham acerca do termo, a fim de observar se a questão racial seria utilizada. Depois, se perguntava aos alunos qual era sua identidade a partir da definição que adotaram. Para, assim, solicitar que, dentre as categorias do IBGE, escolhessem uma que os identificassem. Para tratar dessas questões, tornam-se necessárias explicações que possam esclarecer conceitos centrais envolvidos nessa discussão, bem como um quadro teórico que possa dar uma compreensão mais ampla dos processos que estão envolvidos na construção da identidade.

A formação de identidades entre a população negra terá início justamente na luta contra o racismo. Nasce como um ideal democrático, em que a questão das desigualdades raciais estará

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atrelada às desigualdades sócio-econômicas nos discursos das diversas organizações negras surgidas a partir dos anos 20 e, principalmente, nas últimas décadas do século XX. Como não poderia deixar de ser, nasce diante de enormes desafios e talvez o maior deles venha do fato de que ao se falar em identidade racial no Brasil é impossível fugir da discussão da fragmentação do processo de formação de identidades da população negra, uma vez que vivemos num país de "muitas cores" e de categorias fluidas quando se trata de identificação racial.

Se os processos históricos de construção de identidades são sempre em alguma medida processos políticos, a fluidez e ambigüidades das categorias raciais no Brasil, certamente cultivadas no bojo de uma ideologia do branqueamento, tornavam a identificação racial especialmente dispersa e fragmentada entre a população negra. (BAPTISTA, 2002). Dessa forma, uma análise sobre a questão da construção de identidades entre a população negra está ligada a uma série de elementos que se relacionam com a própria natureza fragmentária da identidade racial no Brasil e com a construção da identidade nacional brasileira.

Dentre os trabalhos que se dedicaram à questão da formação de identidades entre a população negra no pós–abolição, utilizando fontes cartorárias e jornais da região Sudeste brasileira, destaca-se o de Mattos (1995), que aborda a questão do desaparecimento da cor nos registros de óbito e batismo nos últimos anos da escravidão até os anos 40 do século XX, e nos dá uma pista de como é complexa a questão da formação de identidade racial entre a população negra, sobretudo no que diz respeito às categorias raciais. Segundo a autora, o desaparecimento da cor nos registros mencionados está ligado à busca do afastamento do estigma da escravidão que marcava os ex-escravos, e que indicava, sobretudo, origem e classe social.

“Negro”, neste contexto, era muito mais que a cor da pele, era sinônimo de escravo (MATTOS, 1995). É, portanto, uma estratégia de afastamento do preconceito que, entre seus inúmeros desdobramentos, ocasionará um distanciamento de boa parte da população negra do passado escravista e, portanto, das origens.

A fragilidade da forma como se vê a questão da raça no Brasil exige uma discussão em que se conjugam elementos de cunho político-social, econômico e ideológico. Como coloca D’Adesky (2001),

Na realidade, o modo de racialização brasileiro traduz-se por uma instabilidade das categorias intermediárias (mulato, moreno, jambo, sarará etc.) e por uma maior fixidez das categorias branco e negro, devido à polarização hierárquica que representam. É justamente essa maior fixidez dos pólos que faz com que os negros, diminuídos pela dupla denegação a que são submetidos, tendam a se identificar através de novas categorias (mulato, moreno, jambo etc.), consideradas mais positivas e, portanto, mais atraentes. É por isso também que o peso negativo sustentado pela categoria negro fragiliza, entre os negros, a assunção de uma identidade coletiva, de um nós, isto é, a formação de uma autorepresentação étnica diferenciada e positiva. Dessa forma, apresenta-se como instrumento de nivelamento e de uniformização pela mestiçagem inter-racial, rejeitando na negatividade do pólo negro (...) (p.150).

Um outro fator a ser analisado no processo de formação de identidade da população negra é o papel imperativo que a identidade nacional ocupa no cenário brasileiro.

A respeito, Hall (2002) coloca que “as culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades” (p.81). Ainda que a idéia de nação como identidade cultural unificada seja um mito, uma vez que as nações são compostas por um hibridismo cultural, com culturas nacionais atravessadas por diferenças internas, nos deparamos com um depoimento na qual uma aluna defende o conceito de identidade enquanto lugar de origem, cidade, nação.

(...) Eu acho que (...) a pessoa precisa ter uma identidade. (...) Você tem que falar da onde que você é, o que você é e o lugar também precisa ter a sua identidade. Porque vai vir pessoas de fora (...) aí vem paulista, vem carioca, vem mineiro aí

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vai falar qual que é a identidade cuiabana? Aí tem que ressaltar essa identidade, esse jeito de ser, essa maneira de ser daqui, as culturas daqui para também diferenciar de outras, né? Acho que foi isso identidade. Não é só identidade sua, porque envolve cidade, nação, que ela precisa ter uma identidade, criar essa identidade. A gente constrói ela. (R.A. A.).

Ao analisar a cultura nacional e a formação da identidade nacional brasileira, Renato Ortiz (1996) mostrou como a política cultural do Estado pós-64 vai ressaltar o caráter mestiço da formação cultural brasileira, reiterando uma política cultural do governo Vargas, nos anos 30, em que a mistura de raças é vista como elemento positivo da formação nacional, argumento esse que viu nascer na obra de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, o que Ortiz (1996) chama de "ideologia do sincretismo”, a qual vai forjar o mito da democracia racial na sociedade brasileira.

A questão da mistura de raças na construção de nossa identidade nacional parece ser uma constatação que não engendra grandes dificuldades de ser certificada, já que aparece em livros didáticos, na literatura, na música, na mídia, enfim faz parte do nosso dia-a-dia. Deparamo-nos com este fato no depoimento de uma aluna de história que, ao mencionar sua identidade, diz: eu não sou branca, eu não sou negra, eu sou uma mistura de raças. A minha identidade seria isso, por causa dessa mistura aí que deu a minha identidade (D.R.R.).

O problema reside no fato de que esse discurso sobre a heterogeneidade da formação nacional forjou o mito da democracia racial, o qual é o grande desafio não só dos movimentos de mobilização racial, mas também de toda sociedade, uma vez que esconde as desigualdades raciais sob o signo da hipocrisia.

No caso brasileiro, como ressalta Ortiz (1996), a política cultural do Estado pós-64 vai preservar o retrato harmônico da pluralidade cultural brasileira, forjando uma ideologia da mestiçagem que pretende dar um caráter de unidade à identidade nacional, assumindo o papel de “guardião da memória nacional” e da “identidade que se encontra definida pela História” (p.100).

O entendimento do efeito da ideologia da mestiçagem é de extrema importância, pois seus traços são facilmente identificáveis no senso comum do brasileiro. A percepção da comunidade nacional como uma “mistura” de três raças torna as fronteiras étnicas menos palpáveis - mesmo que continuem existindo – e vai gerar as dificuldades de auto-identificação racial entre a comunidade negra, cuja compreensão passa pelo entendimento das identidades individuais e de memória. As histórias de vida, a localização espacial da população, o contato com a herança cultural africana e com a memória do cativeiro serão elementos que definirão a existência ou não de identidade racial entre os negros.

Segundo a aluna de Economia E.M.S., saber a história do seu povo, conhecer a cultura negra, toda a contribuição histórica foi fundamental para construir sua identidade.

Hoje me identifico como preta mais por causa da conscientização que passei a ter. Com o passar do tempo eu fui aprendendo, conhecendo e isso era algo que me faltava muito porque se me perguntassem alguns anos atrás da minha identidade, eu não saberia responder e hoje eu sei (...), a questão da minha raça, de saber que eu sou negra mesmo e meu pai era negro e tudo e, apesar disso não ter sido discutido, hoje a partir das leituras, dos ensinamentos, você vai conhecendo mais a cultura do negro e a gente vai se identificando e querendo viver isso mais plenamente. Porque antes eu não conhecia, agora que eu conheço, eu quero viver tudo isso. Então você vai se fortificando: agora eu tenho uma identidade, agora eu sou mais feliz porque agora eu me conheço, sei quem eu sou, conheço a história do meu povo. Quando eu penso em identidade eu penso na questão racial mesmo e não é só por uma questão de cor de pele, não, e nem de traços físicos, mas por tudo aquilo que a minha família trouxe, de toda a história, de toda a dificuldade que nós passamos, porque essa é a característica do povo afro-descendente nesse país.

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Em outro pólo, ao contrário desta afirmação convicta de possuir uma identidade negra, de pertencer a um grupo, ouvimos depoimentos que mencionam a identidade como um processo, ainda em formação.

Eu acho assim que a identidade pra mim ainda está em formação (E.G.A.N.).

Nossa, eu acho assim identidade é uma palavra muito difícil de citar um exemplo, identidade, até porque eu acho que a minha própria identidade ainda não foi construída, não foi ainda propriamente definida (...) eu acho que ainda estou num processo de aceitação. (S.D.A.).

Eu venho me debatendo com ela há tanto tempo (risos). Identidade ela muda. (...) Mas a minha identidade pode se dizer que não tem uma definição (A.C.S.B.).

Neste sentido, Hall (2002) defende a idéia de que identidades nunca estão completas; nunca são conceitos acabados, estão sempre, assim como a subjetividade, em processo de formação. Para ele, identidade é um processo, uma narrativa ou como um discurso (p.49).

Na fala da aluna de História R.A.A., chama a atenção o fato dela ter mencionado a perda de sua identidade. Segundo Souza (1983) “o negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade (...). O negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de “tornar-se gente”3 (p.18). As barreiras encontradas pelo negro na busca da ascensão social contribuíram para distanciá-lo de sua identidade enquanto indivíduo e enquanto grupo. Conforme diz esta mesma autora “é a história de uma identidade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de sua negação”(p.23).

Eu acho que eu já perdi a minha identidade (risos). [ Por que R?] Porque eu sou cuiabana, mas eu já não falo mais o cuiabano, por conviver muito com os mineiros e tal, comecei a pegar muito a maneira deles. (R.A.A.).

É importante destacar que ao se perguntar o conceito de identidade, quatro alunas relacionaram diretamente este termo a questão racial. E.M.S., aluna de Economia, afirma com convicção:

Pra mim o termo identidade está muito relacionado com a questão da raça, o que eu sou enquanto pessoa, enquanto minha raça e hoje eu tenho consciência que a minha identidade é negra, não é simplesmente pela cor da pele, como as pessoas aqui no Brasil vêem, mas é uma questão da cultura mesmo, pela história dos meus ancestrais, por aquilo que eu herdei deles também. Então isso foi formando minha identidade. Pra mim identidade é você se reconhecer enquanto o que você é, saber que eu sou negra, saber que eu sou pobre (I.A.O.).

No entanto, as outras duas alunas, mesmo tendo relacionado identidade à raça, demonstram um certo receio ao definir identidade como raça e, até mesmo, uma delas expressa a opção pela “mistura de raças”.

A minha identidade? Como eu me identifico? Que cara eu tenho? (risos) Complicado! (...) Sobre a cor da pessoa é muito complicado a pessoa se declarar! A pessoa fica em dúvida. Em que sentido é essa palavra identidade? Eu tô confusa

3 Expressão usada por FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978.

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sobre isso... Aí eu não sei como vou te responder, se é sobre cor, se é sobre outra coisa (P.L.S.).

Pra mim identidade é o que define a pessoa, o que você se identifica. Você quer que fale se é branco, se é negro? É isso? [Para você, o que é identidade?] Ah, pra mim eu considero a minha identidade que sou.... eles falam que é parda né? Na minha certidão está parda. Eu me considero que eu sou branca, mas puxando para o negro, mas não tão negra, é uma mistura de raças. Então, se fosse pra eu me identificar eu falaria: eu não sou branca, eu não sou negra, eu sou uma mistura de raças. A minha identidade seria isso, por causa dessa mistura aí que deu a minha identidade (D.R.R.).

Esta aluna, em particular, está aceitando a idéia de que somos uma sociedade “misturada”. Este mito que persiste até os dias atuais e intervém no direcionamento das relações raciais, não tem suas origens em tempos tão recentes.

Segundo Oliveira (1994), sua gênese pode ser encontrada em meio às discussões político-abolicionistas, entre políticos e intelectuais preocupados com o alto índice de negros compondo a população brasileira. “Se o fato de ter uma grande quantidade desses homens como escravos era um sinal de riqueza durante o período da escravidão, após a assinatura da Lei Áurea, isto passou a ser um problema” (p.92), ou seja, eram vistos como um segmento que “manchava” a sociedade brasileira. Aos traços físicos do negro, especialmente à cor da pele, eram associadas características morais negativas. Não querendo que essas características se espalhassem por toda a sociedade, “esses intelectuais e políticos apresentam como solução a eliminação do ‘elemento negro’do povo brasileiro, por meio do ‘embranquecimento’” (p.92) essa nova ideologia favoreceu a miscigenação entre “brancos” e “negros”. Segundo José Veríssimo4, a miscigenação criou no “negro” o desejo de ser “branco”.

Assim, pode-se perceber que a fuga da negritude tem sido a medida da consciência de sua rejeição social e o desembarque dela sempre foi incentivado e visto com bons olhos pelo conjunto da sociedade. É como se cada negro claro ou escuro que celebra sua mestiçagem ou suposta morenidade, contra a sua identidade negra, tem uma maior aceitação.

Para Cunha (1985), a identidade é construída pela tomada de consciência das diferenças e não pela diferenças em si. Woodward (2000) complementa esta idéia ao afirmar que “as identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença” (p.39). Para esta autora, a identidade não é o oposto da diferença e, sim, que esta depende da diferença.

Nesse sentido, ao se considerar o depoimento de alguns depoentes que relacionam identidade ao fato de possuir uma diferença, uma característica que os diferencia de alguém, pode-se observar que, ainda que não verbalizada, uma possível associação com uma identidade racial, evidenciando que a questão racial foi muito mais abordada do que se esperava.

Ah, eu acho que com relação a pessoa, se a pessoa no caso tem uma identidade, ela tem uma diferença entre as pessoas, um posicionamento dela, opinião, identidade me faz lembrar disso. [E você tem alguma identidade?] Ah, eu creio que sim porque, sei lá, o meu jeito, o meu modo de pensar é diferente. Só o fato de a gente ter essa diferença isso já marca a identidade da pessoa (R.V.I.).

Hoje se eu fosse traçar um perfil de mim eu ia me ver como uma exceção (...) (G.E.F.S).

Eu penso que identidade é aquilo que te diferencia em relação a outras pessoas. Você é um ser humano como qualquer outro, mas você tem alguma coisa de diferente em relação a elas. (...) (F.F.S.).

4 Artigo publicado em Cadernos de Pesquisa, nº 69, Fundação Carlos Chagas, p. 30-35.

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Ainda sobre uma identidade racial, duas alunas de história relacionam identidade com a

atitude de se pertencer a um grupo.

Identidade pra mim mesmo é você se reconhecer enquanto o que você é e como você é em um grupo. A identidade só faz sentido em um grupo, né?(...) e o grupo precisa ser forte pra você se firmar. A identidade perpassa a sua vida inteira, se você não se reconhece fica difícil você lidar com o que está ao seu redor, com o contexto (I.A.O.).

Para Helms (apud Ferreira, 2000 p. 67) identidade está associada à qualidade de relação, ao grau de compromisso ou ao modo como a pessoa se identifica com o seu grupo racial. Para ele, o aspecto racial da identidade refere-se à percepção do negro de pertencer a um grupo cujas pessoas compartilham a mesma origem racial.

Esta aluna menciona a dificuldade que a criança negra tem para se auto-afirmar, uma vez que não tem um ambiente propício para isso. Florentino (2002) reforça esta idéia ao dizer que ninguém em sã consciência se identificará com um povo sofrido, torturado, massacrado e explorado durante séculos: “Você acha que uma criança negra ao abrir seu livro de escola e se deparar com a figura de um negro maltratado, explorado e humilhado, irá se reconhecer? Não há como. Ela se identificará com os príncipes e princesas, que eram brancos. É isto o que acontece na prática”.

Fica difícil uma criança se identificar com aquilo, ter uma identidade negra. É mais fácil ela ter identidade branca do que identidade negra. Então pra ela causa problema depois, que foi o que aconteceu comigo.

I.A.O relata sua experiência enquanto criança e o quanto foi difícil construir e manter uma identidade negra, já que convivia muito com pessoas brancas e de situação financeira estável.

Eu convivia mais com pessoas brancas ali, com nível social elevado, diferente do meu, que sou de nível baixo, convivia com pessoa de nível mais alto, financeiramente falando, e brancas ainda por cima. Então pra mim era muito difícil me reconhecer ali. E quando eu saía, ia pra algum lugar estava com pessoas de bem, bem que eu falo é financeiramente, e brancas, quando eu chegava em casa tinha uma família pobre e negros também. Meu ambiente ali era negro. Então pra mim era difícil eu me reconhecer enquanto tal (I.A.O.).

Assim, pode-se destacar que conviver com pessoas negras, participar de comunidades negras ajuda a construir a identidade, como é bem frisado por estes dois entrevistados.

Quando a gente tem a oportunidade de manter contato com afrodescendentes, pessoas que vivenciam os mesmos problemas, a gente vai aprendendo muito sobre a questão do negro, da identidade. (...) Porque à medida que você está com outras pessoas você vai se afirmando ainda mais. Você sabe que você não está sozinha, você já não sonha mais sozinha, você tem um grupo pra sonhar. Então é um grupo que sonha junto (E.M.S.).

Quando eu tinha dez anos eu vi um colega meu brigando com outro de outra turma e ele era negro, brigando com ele, chamando ele de negrinho, falando que ele não devia tá ali. Eu não entendi no momento. Depois eu fui conversar com ele, eu o acompanhei até a sua casa, depois desenvolvemos uma amizade muito grande, estávamos sempre juntos e a maioria da comunidade que ele vivia era negra. Então comecei aquela coisa normal, então me achei, tô aqui. Comecei a me identificar com aquela cultura. A partir daí eu tive um relacionamento com todos

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os negros que passaram pela minha vida, colegas de trabalho, de escolas. Aí nasceu junto essa identidade negra, me sinto negro na verdade (M.D.M.).

A família tem um destaque importante no processo de construção da identidade. Para a maioria dos entrevistados foi fundamental.

Na minha casa o meu pai sempre teve todo um cuidado com essa questão da discriminação racial mesmo, (...) desde pequena você cresce com o seu pai te chamando sei lá de africana, rainha da África, minha princesa negra sabe? Minha jóia rara. Então assim a palavra negro, preto lá em casa ela sempre surgiu como uma qualidade, como uma coisa boa, uma coisa que é da gente, uma coisa nossa, que a gente nasceu, acho que meu pai conseguiu passar de uma forma tão boa que não é aquela diferenciação que você tem entre negro e branco, entre preto e branco, ou qualquer coisa ligada à vítima, ou os pretos sempre foram muito ofendidos ou discriminados. Não, ele passou sempre assim de uma forma tão simples, de uma forma tão delicada que é como se você fosse, como se todo mundo fosse diferente, cada um tivesse a sua identidade de uma certa forma e que a gente pertence a esse tipo de grupo, a gente é negro, a gente é preto. (A.C.S.B.).

Lá em casa é bem discutido isso porque até mesmo a família é negra. Sempre os meus pais conversam, sentam pra conversar A minha mãe sempre fala: não é pra você abaixar a cabeça, se envergonhar se alguém vier a fazer esse tipo de coisa com você. . Eles sempre me orientam (A.L.F.B.).

Contudo, a família pode ter um papel negativo no processo de construção de uma identidade racial negra. Duas depoentes do curso de História e Economia, ao mencionarem a questão da identidade, lembram que, ao contrário do que foi constatado acima, nunca contaram com o apoio da família para a formação da consciência dessa identidade racial. E, sim, a família passa a desenvolver um outro papel, o de negar esta identidade, numa tentativa de aproximar-se do “branco” como uma forma de escapar às mazelas que a cor escura pode trazer.

Meu pai é negro, a minha mãe também é negra, ela difere um pouco na tonalidade da cor da pele, ela é um pouco mais clarinha, mas meu pai não se vê enquanto negro, ele acha que ele é branco. Até um dia assim foi engraçado, eu tava na sala, ele olhou a canela dele, canela negra né? Ele olhou e falou assim: nossa, mas a minha canela tá preta, eu tô parecendo um preto. Eu olhei pra ele assim (risos) e achei graça, fiquei quieta, eu vou falar o que, né? Assim, eu achei interessante! (....) E isso foi um problema que eu tive, pelo fato dele não se aceitar enquanto negro, como eu disse, meu pai não se aceita e eu me aceito. Então é problemático isso porque, ao mesmo tempo que ele quer se negar, eu quero que ele se veja enquanto negro e que ele tem o mesmo valor que as outras pessoas, ele pode chegar a ser o que as outras pessoas são. (...) É um pouco traumatizante essa questão pra mim. Já tive muitas brigas por causa disso. Teve uma vez que me magoou muito, fiquei muito chateada porque, as brigas na minha casa era a coisa mais normal do mundo. Eu queria que meu pai se assumisse enquanto negro, brigamos muito. Dessa vez que foi quase uma barbárie, aconteceu que nós brigamos porque eu queria namorar um menino negro e ele não queria e eu falei: pai, o senhor é negro, o senhor é igual a ele. Eu sou, toda nossa família é, o senhor tem que aceitar. Aí ele foi e começou a gritar: sabe por que que eu não gosto de você? Porque você é preta! Depois daquilo, ele tentou continuar brigando, mas parei, porque senão partiríamos para a barbárie. (Choro) (pausa longa). Isso foi muito forte, mas agora eu o compreendo, acho que ele sofreu muito preconceito quando era jovem e não queria que nós passássemos por isso. Hoje eu respeito essa visão dele, mas não concordo (I.A.O.).

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Meu pai que era bem negro, minha mãe que era parda. Nós sempre crescemos sabendo que papai era negro. Embora ele negasse essa identidade. Ele sempre usava sapato e roupa branca porque ele queria ser doutor (risos), então como ele não conseguiu todo mundo falava lá vem o homem de sapato branco.Então o meu pai sempre quis ser doutor, se achava um doutor, mas assim eu via as pessoas chamando ele de negro, de preto, mas isso não era trabalhado dentro da nossa casa, assim nós somos negros né, isto não era muito trabalhado (E.M.S.).

Oliveira (1999) destaca que crianças e jovens mestiços são originários de uniões inter-raciais, onde a questão racial é colocada com muita dificuldade. “Sendo mediadores dos filhos na construção de sua identidade, parece que os casais mistos relativamente à cor não têm condições emocionais, na maioria das vezes, de sustentar um diálogo em família no sentido de desinvestir-se dos ideais de branqueamento” (p.51). Petruchelli 5 conclui que “o conjunto dos resultados das nossas análises, sintetizadas aqui, tende a confirmar a hipótese inicial de que apesar do aumento aparente de casais mistos na população brasileira, a manutenção das fronteiras inter-raciais e a reprodução das desigualdades, são asseguradas a partir da importância da seletividade marital no comportamento nupcial por grupos de cor da população brasileira (p.20)”.

Quanto ao espaço escolar, dois alunos vêem a presença do professor como um dos responsáveis pela formação de sua identidade racial:

Eu tive uma professora chamada Cida, não me lembro do sobrenome dela, ela fez mestrado aqui na educação, já está fazendo doutorado parece, aí ela é uma negrona e tal e ela sempre participou do movimento negro. Então pra mim foi uma experiência legal, porque ela sempre me incentivou e, assim, essa professora Cida ela foi um marco na minha vida, ela me ajudou bastante a me identificar como negra (I.A.O.).

O meu processo de identificação, na verdade, eu sempre me achava negro, minha mãe sempre falava, mas começou mesmo no cursinho. Eu tinha uma professora chamada Helena, ela trabalhava muito essa questão comigo, eu sempre conversava com ela e ela sempre falava para eu ter consciência e nunca ficar escondendo dos outros que eu sou negro (A.L.F.B.).

Moita Lopes (2002) chama atenção para o papel central que os professores desempenham na construção da identidade nas salas de aula, apontando como fatores principais: a sua posição como líder nas assimetrias interacionais da sala de aula e a autoridade textual nas leituras em relação à construção social dos significados (p.30). Se as identidades sociais são construídas, elas estão sujeitas às mudanças, a um processo de reposicionamento e reconstrução constantes e, nesse sentido, considerando a relevância da instância educativa e do espaço escolar, é patente pensarmos que este, pode ser potencialmente um lugar de reprodução e/ou transformação social. O autor afirma: “As identidades sociais construídas nas escolas podem desempenhar um papel importante na vida dos indivíduos quando depararem com outras práticas discursivas nas quais suas identidades são reexperienciadas ou reposicionadas” (p.38).

Segundo Oliveira (1994),

de um modo geral, os profissionais que trabalham com Educação têm abordado questões relativas à não-aceitação do aluno por parte de ‘si próprio’ ou de aspectos de ‘si próprio’ como altamente prejudiciais ao desenvolvimento de uma personalidade ‘sadia’. Seja por considerar que interferem em seu desempenho como aluno, seja por considerar que dificultam seu desenvolvimento como ‘pessoa’, defendem que essas questões (problemas) devem ser trabalhadas pela escola (p.95).

5 PETRUCCELLI, José Luís. Casamento e Cor no Brasil atual: a reprodução das diferenças. Trabalho apresentado no GT Relações Raciais e Etnicidade no XXIV Encontro Anual da ANPOCS. Petrópolis, 2000

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Todavia, esta não tem sido uma prática constante no cotidiano escolar. Prova disso são os

índices denunciadores, já mencionados, que revelam que o negro está em desvantagem em relação ao branco em todos os aspectos, seja moradia, ocupação e renda e, não sendo diferente, no acesso à educação, cujo papel exercido pela escola é o de interromper o ciclo de estudos do aluno negro.

Nessa perspectiva, quando se pensa na escola como um espaço específico de formação, inserida num processo educativo bem mais amplo, encontra-se mais do que currículos, disciplinas escolares, regimentos, normas, projetos, provas, testes e conteúdos. A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da identidade negra. Gomes (2003) nos mostra que “o olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las” (p.171).

Assim, estes dois professores, citados pelos depoentes, tornam-se uma exceção à regra, já que os demais relatam lembranças de professores enquanto reprodutores de discriminação.

Observa-se que os professores tiveram duas atitudes ao se deparar com um aluno negro: ou ele o isola completamente ou o cobra mais que os demais alunos. Ambas as situações foram possíveis de serem observadas na fala dos entrevistados.

A partir do momento que você começa a estudar mais, que você passa a ter uma conscientização sobre essa questão da discriminação, você vai percebendo o quanto foi discriminada na escola, através dos meus professores. Eu lembro como se fosse hoje as musiquinhas que eram cantadas pra gente no recreio: negra preta do subaco fedorento, coisas assim. Que a gente fingia não ouvir ou então saía correndo, mas que ficou muito forte na minha alma e que isso acaba influenciando negativamente, pra eu me achar inferior a outras pessoas, me achar mais feia e foi o que aconteceu comigo. A gente ia reclamar com a professora que estavam xingando a gente, que a gente tinha o subaco fedorento, ela dizia: ah, é porque são crianças. Mas não é isso! Se aquelas crianças dizem aquilo ali é porque um dia elas foram formadas pelos adultos. E era o momento da professora, da escola fazer algo, mas não faziam. Se calavam! Então é algo que vai passando de geração em geração (E.M.S.).

Na escola, da 5ª a 8ª série principalmente, eu era taxada como duas coisas: Era uma menina que tinha que correr atrás, se destacar por causa das notas, porque eu me destacava pelas notas, então, eu era aquela menina que os professores pressionavam entendeu? Porque eu era negra, eu tinha que mostrar mais pras pessoas. Eu tinha uma professora de Português que, nossa, como ela me perseguia! E eu era a que tirava a melhor nota da turma dela. E ela me perseguia de uma forma! Aí depois que eu fui descobrir: ela tinha adotado uma menina negra, então ela queria que a menininha dela se destacasse, então ela passou isso pra mim. Depois que eu fui entender ela, ela queria que eu me destacasse, porque eu era negra. Eu era a única negra da sala, a única (I.A.O.).

Nos demais depoimentos, a questão racial relacionada à identidade não aparece logo de início. Para Teixeira (2003a) talvez isto indique “uma forma de negar essa característica como sendo fundamental para compor esta definição” (p.55). A definição de identidade mais utilizada pelos alunos refere-se a personalidade. Esta, sim, seria importante para definir a identidade de alguém e não a questão da raça e/ou cor, como diz o aluno de Direito M.G.P.

Cor não tem nada a ver. Não classifica ninguém. Não tem nada a ver falar que um é branco e outro é negro.

Eu acho que identidade assim pra mim tá relacionada assim um pouco com personalidade também, porque identidade tem que estar assim relacionada com alguma característica de alguma pessoa (E.G.A.N.).

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Identidade? Pra mim, a palavra identidade em si significa (pausa) pessoal, a personalidade da pessoa, você fala a identidade de fulano é essa, as características que relaciona as pessoas, os adjetivos né? Por exemplo, a identidade de fulano é explosivo, é alegre, ele é autêntico, então pra mim é isso. É a característica que a pessoa tem, só dela (J.F.C.).

A minha identidade? Puxa, que pergunta! (risos) [Como que você se identifica?] Sei lá, uma pessoa sossegada, que está tentando estudar um pouquinho mais (L.G.S.L.J.).

Embora haja diferentes formas de conceituar identidade em uma coisa todos concordam: ela é essencial. Um ser sem identidade é um ser sem essência, porque sem essência não existe nada (M.D.M.).

Uma pessoa sem identidade é uma pessoa perdida, que não sabe o que quer e nem o que é. Quando uma pessoa não tem identidade ela não tem nada, não sabe pra onde vai, não sabe o que seguir, o que fazer e nem sabe onde está, o que é pior de tudo (A.C.S.B.).

O movimento negro é citado por um aluno de História como um espaço onde se pode buscar esta identidade racial. No entanto, destaca que

Não é nada de militância muito forte assim, tem um evento lá, vou assistir a palestra, vou participar dos cursos, ouvir os professores, discutir as políticas, mas nada assim muito forte de brigar com a policia, jogar pedra (M.D.M.).

Através deste relato se quer demonstrar a relação que estes alunos estabelecem com o movimento negro6. Uma das perguntas do roteiro de entrevista era se os alunos já haviam mantido contato com o movimento negro e o que pensavam a respeito. Praticamente todos os entrevistados demonstram uma certa aversão a este tipo de movimento. As expressões “nunca tive interesse”, “faltou oportunidade”, “já tive interesse, mas não tenho tempo”, “acho interessante, mas não tenho nenhum contato” estão presentes nas narrativas. Uma aluna, em particular, faz menção a sua participação no movimento negro, mas ressalta:

Eu já participei assim, não como direção, mas só de assistir mesmo e acreditava! Só que aí você vê algumas situações que você passa a não acreditar mais. Aí fica complicado você participar daquilo. Eu me afastei, não vou mais (...) porque eu parto do princípio (...) da coletividade. Então quando você, isso é humano mesmo, em qualquer lugar você vê isso. Mas pra mim é muito chato ver isso. Quando a pessoa parte de um coletivo, pra se apropriar de algumas coisas do coletivo, pra levar só pro pessoal dela, eu acho muito complicado. Se você está no coletivo você tem que lutar pelas coisas para o coletivo. Então eu me decepcionei nesse sentido de ver que algumas pessoas estavam ali aproveitando do coletivo, para se vangloriar, ou ter algum proveito próprio (I.A.O.).

Somente uma aluna de História, diz sentir falta de se envolver nestas discussões:

Foi lá (na escola do Ensino Médio) que eu tive maior contato com os grupos de consciência negra. Lá que eu assisti a primeira comemoração da morte de Zumbi dia 20 de novembro, então pra mim ficou muito forte, quando eu tinha

6 Utilizou-se a expressão “movimento negro” conforma Ferreira (2000) referindo-se ao conjunto de grupos organizados, com objetivos culturais, políticos, religiosos, ou acadêmicos voltados para a valorização das matrizes culturais africanas

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oportunidade de assistir alguma coisa sobre esse tema, eu sempre ia. (...) Só que como meu pai não gostava, eu nunca quis ter um envolvimento maior, assim fazer parte mesmo do movimento negro, mas eu sinto que fez falta pra mim e ainda faz. Eu queria ter um envolvimento maior.

No entanto, destaca:

Quando eu vim pra faculdade, eu pensei em ter esse envolvimento. Mas aí teve a questão do projeto que eu tenho, a questão da graduação, ficou meio complicado (I.A.O.).

Dois alunos relatam que, futuramente, isso pode fazer parte dos seus planos:

É até é uma vergonha pra mim, ser negro e não participar desses debates. Eu estou decidido sim a engajar em algum desses movimentos pra conhecer mais sobre a cultura negra (A.L.F.B.).

(...) estou pensando porque é difícil também não participar porque você fica isolado quando não participa de alguma coisa. Então eu estou pensando em participar de alguma filiação, alguma coisa assim, no sentido de movimento negro mesmo. Eu estou estudando ainda (I.A.O.).

A aluna de História, A.C.S.B., destaca que

Eu não me aderi ainda a nenhum tipo de movimento negro ou de coisa nesse sentido, até porque eu não tenho essa questão de identidade, de identidade assim de negros, vamos lutar pra gente ter melhores condições de vida, porque o meu tipo de bandeira é outra. Meu tipo de bandeira é social, uma bandeira de pobres ter melhores condições de vida, independente de ser branco, de ser preto, de ser qualquer coisa. É ter sabe, melhor qualidade de ensino. Eu acho que minha bandeira é muito mais ligado à esse tipo de coisa, (...) eu não sou contra, na verdade eu acho que são lutas paralelas sabe? O negro, o índio, qualquer tipo de coisa, eu acho que tudo na verdade é uma questão social, mas elas são meio que específicas e eu já pego uma bandeira muito mais abrangente, muito mais geral. Assim, eu não devido por grupos, eu acho que não é tão diferente assim. Eu acho que deveria todo mundo se unir que a luta seria mais forte.

Aqui fica evidente um dos maiores dilemas7 do movimento negro, que é, segundo Baptista (2002) “engajar a maior parte da população negra na luta política, num cenário problemático de categorias raciais diluídas por uma ideologia do branqueamento historicamente construída e de uma identidade nacional que encontra sua essência numa cultura sincrética e plural que, muitas vezes, mascara os conflitos e a desigualdade social e racial na sociedade brasileira” (p.36).

Como observa Santos (1988),

“não é fácil localizar este núcleo pesado da cultura popular brasileira, a cultura negro – brasileira; não o era mesmo no passado, em que a população negra permanecia relativamente segregada e constituía a quase totalidade da população. Sintomaticamente, um bom número das entidades do movimento negro se dedica à pesquisa ‘das culturas negras’, mas o objeto – fluido e em permanente interação com outras; submetido, ademais, a incessante disputa de hegemonias – parece escapar” (p.305).

7 Dilema, entendido, aqui, como dúvida teoricamente insolúvel sobre caminho a seguir; a qual só se decide pela aplicação da vontade política hegemônica, em circunstâncias gerais favoráveis.

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Este autor ainda afirma que os dilemas com que se depara o movimento negro

organizado e suas estratégias políticas estão invariavelmente ligadas à questão da identidade, seja ela coletiva ou a do próprio movimento e diz:

“São muitos, explicavelmente, os dilemas em que se debate, na atualidade, o movimento negro brasileiro. Para começar, este: o movimento negro é racial, ou étnico, ou social, ou político, ou a combinação de todas ou algumas dessas naturezas? Pode haver, contudo, uma questão prévia: o que é ser negro no Brasil?” (p. 291).

São muitos os elementos para se entender esta questão, isto porque é um movimento que surge em meio a um grupo social que constrói sua identidade no bojo do próprio movimento, pois tem como pilar de identificação inicial entre os membros do grupo o contato com manifestações da cultura africana e/ou as experiências de discriminação vivenciadas e/ou a percepção das difíceis condições sócio-econômicas em que vive no Brasil a maioria da população negra.

Na verdade, parece haver, no movimento negro, uma simultaneidade de formação de identidades. Existe a afirmação da identidade racial através do fortalecimento da auto-estima negra, a formação de uma identidade política do grupo e, ao mesmo tempo, ambas se interpenetram para dar sustentação a um sentimento de comunhão étnica, com a conseqüente tentativa de afirmação do grupo étnico. (BAPTISTA, 2002).

Mesmo que a auto-identificação da população negra tenha uma série de complicadores, a identidade nacional brasileira, por mais que fortaleça a percepção das desigualdades sócio-econômicas em detrimento da percepção das desigualdades raciais, não consegue eliminar o passado escravista, a herança cultural africana, enfim, a memória. E é esta memória, muitas vezes adormecida, que aflora quando confrontada com situações de discriminação e racismo.

Nos depoimentos dos alunos percebemos que há este reavivar da memória quando alguns relatam situações de discriminação que vivenciaram.

A questão da aparência, como eu falei, é bem complicada. Lembro das minhas buscas por um emprego, fui muito discriminado. (...) Então isso foi um motivo a mais para que eu estudasse e fizesse o curso de Direito. Porque as pessoas cobram essa questão da boa aparência, isso é uma discriminação. Por isso que eu pensei em entrar para Direito para que eu possa até mesmo me defender e até mesmo ajudar as pessoas que por fim venham sofrer algum tipo de discriminação (A.L.F.B).

Assim, consideramos que a identidade racial entre a população negra não se forma do nada, ela tem raízes que vão se fortalecer de acordo com as circunstâncias. E que o processo de construção da identidade negra é muito mais complexo, instável e plural do que se pensava. Apesar das marcas negativas deixadas pelas experiências de discriminação, o aluno negro se reconstrói positivamente e busca realizar seus projetos. Aqui, o peso da discriminação é de alguma forma revertido – não sem grande sofrimento por parte desses indivíduos – e transformado em estímulo, ou algo a ser superado, e que é isso que faz a diferença entre as pessoas que prosseguem com seus projetos e aquelas que desistem no meio do caminho. É claro que esse processo não se dá no isolamento e varia de pessoa para pessoa. Existem diferentes espaços e agentes que interferem no processo de rejeição/aceitação/ressignificação do ser negro. Pode ser a família, a participação em espaços políticos, a atuação de um professor ou professora ou a construção de uma amizade. Detectou-se que estas redes de apoio que o aluno constrói são de fundamental importância para a realização de seus projetos, acabam desempenhando o papel de impulsionar estes alunos para a realização dos mesmos. Neste caso, a universidade apresenta-se como um dos principais instrumentos que possibilita a construção de um projeto de ascensão social.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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