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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS modalidade à distância Sônia Maris Rittmann CAIXA DE PANDORA: DA NARRATIVA TEXTUAL À NARRATIVA VISUAL Porto Alegre 2012

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trabalho realizado durante a gradução em artes visuais-

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS modalidade à distância

Sônia Maris Rittmann

CAIXA DE PANDORA: DA NARRATIVA TEXTUAL À NARRATIVA VISUAL

Porto Alegre

2012

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CAIXA DE PANDORA: DA NARRATIVA TEXTUAL À NARRATIVA VISUAL

Sônia Maris Rittmann 1

RESUMO

O artigo resgata parte da memória poética de uma contadora de histórias, em que a linguagem presente nas narrativas era, inicialmente, somente as palavras. No texto é enfocada a transformação ocorrida durante o curso de formação em Artes Visuais, no Curso de Licenciatura em Artes Visuais modalidade à distância da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde a imagem ganha lugar de destaque e passa a ser a principal linguagem utilizada para que essas histórias se transformem em ferramenta indispensável para o ensino e aprendizagem de arte. O livro-objeto Caixa de Pandora é abordado na sequência ao ser colocado como um símbolo dessa transformação em função das escolhas realizadas. São focalizadas as narrativas visuais ao lado das narrativas verbais, evidenciando e articulando a relação entre a imagem e a palavra, vista como uma apropriação essencial ao professor de artes visuais, em que a Caixa de Pandora passa a ser apresentada como um objeto de aprendizagem fundamental nesse processo.

Palavras chave: Objeto de aprendizagem. Narrativa visual. Linguagem. Palavra.

Imagem. Livro-objeto.

1 A memória

Os Meus Pensamentos são Todos Sensações Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.

1 Professora de Língua e Literatura, formada em 1989 e estudante de Artes Visuais, formanda em Artes Visuais no Curso de Licenciatura em Artes Visuais modalidade à distância da UFRGS, dentro do convênio REGESD-UFRGS, em 2013/02.

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Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema IX" Heterónimo de Fernando Pessoa2

(PESSOA, 2007, p.212)

“Eu sou uma contadora de histórias”. Ao ouvir essa frase, proferida por

Chimamanda Adichie3, sou transportada para minha própria história, como ouvinte

e contadora de histórias, que mistura pensamentos e sensações, razão e emoção,

tal qual o poeta português Alberto Caeiro (2007), um dos heterônimos de

Fernando Pessoa. O ano se perde na poeira do tempo, mas a imagem ainda é

nítida na memória: minha mãe lendo enquanto me preparava para dormir. Ver e

ouvir. Outro tempo e espaço, porém a mesma relação de amor incondicional com

o mundo da palavra – escrita ou falada - e da imagem, da fabulação, dos contos

de fada, das narrativas de viagens, das lendas mitológicas, dos universos

inventados, em que, por conta da imaginação, as primeiras conexões/

manifestações começam a se formar, configurando quem somos e nossa relação

com o mundo e as pessoas que nos cercam.

Hoje eu sei que fui uma criança privilegiada. Minha infância foi povoada de

histórias. Meu pai tinha uma pequena biblioteca, espaço sagrado de sonho e

magia, em que ficavam guardados aqueles objetos mágicos - os livros - e que nos

transportavam para diferentes mundos todas as noites. Não lembro quando

comecei a decifrar aquelas pequenas letras pretas impressas na folha branca,

mas, lembro que, antes mesmo de juntá-las com algum sentido, já manuseava

aqueles volumes enormes e as suas páginas em busca de alguma pista que me

levasse ao seu conteúdo. Lembro que subia em uma escada com um livro na mão

e “fingia” ler, inventando histórias para meus irmãos menores. Lembro-me dos

2 Fernando Pessoa (1888 - 1935) - poeta e escritor português, nascido em Lisboa. É considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa e da literatura universal. 3 Chimamanda Ngozi Adichie - escritora nigeriana (1977-). Nasceu em Abba, no estado de Anambra, mas cresceu na cidade universitária de Nsukka, no sudeste da Nigéria. A romancista, na atualidade, tem seus livros editados em países de língua inglesa e nos adverte sobre o perigo de ouvirmos uma história única sobre outra pessoa ou país. Disponível em http://www.ted.com/talks/lang/pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html

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olhos deles brilhando enquanto eu ia recriando pedaços de histórias, ouvidas e

repassadas, nem sempre fieis aos originais, mas que maravilhavam meus

ouvintes. Virava as páginas do livro enquanto “lia” as histórias e o fascínio só

aumentava. Aos poucos criei meu próprio método de contar histórias: com um

lápis na mão ia traçando caminhos entre as palavras, formando labirintos nas

páginas dos livros me apropriava fisicamente do livro, da história que ia

inventando.

Fig. 01 – Mapas imaginários nas páginas da infância:

Interferência no livro As aventuras de Tibicuera, de Erico Veríssimo, Editora Globo, 1963

A maioria dos livros não tinha imagens. Os poucos que tinham imagens

eram os mais manuseados, gastos de tanto uso. Muitas dessas imagens poderiam

ser aterrorizantes para a maioria das pessoas, eu ficava encantada. As imagens

em preto e branco despertavam ainda mais minha curiosidade e imaginação.

Desenhos e fotografias se misturavam às letras que eu desconhecia. As histórias

contadas pela minha mãe e as incursões pelos livros e enciclopédias fizeram com

que eu lesse as imagens com a mesma curiosidade e fascínio que inventava

narrativas fantásticas. Creio que a leitura de textos e de imagens despertou meu

lado mais inventivo e criador. Herdei o gosto pelos livros de meu pai e o gosto de

contar histórias da minha mãe.

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Fig. 02 – Alguns livros do acervo de meu pai que encantaram minha infância

Hoje, penso que minha opção pelas artes, literatura e artes visuais, tenha

uma forte influência dessas vivências com o mundo do encantamento das

palavras e das imagens, das histórias ouvidas, lidas, apreciadas, imaginadas e

inventadas.

2. As linguagens

O essencial é saber ver

O que nós vemos das cousas são cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?

Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê Nem quando se pensa.

Mais isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),

Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender (...)

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos – Poema XXIV" Heterônimo de Fernando Pessoa

(PESSOA, 2007, p.217-218)

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Hoje, sou professora de Língua e Literatura e estudante de Artes Visuais e

trabalho com estudantes, economicamente carentes, da região metropolitana da

Grande Porto Alegre, que são muito capazes quando envolvidos, acolhidos e

motivados por alguma proposta capaz de valorizar seus diferentes saberes e

possibilitar uma ampliação de seu universo cultural e social. Talvez, como a

aprendizagem de desaprender de Alberto Caeiro (2007), eu tenha retornado aos

caminhos que me trouxeram até aqui e, na tentativa de rever os percursos,

selecionar aqueles que me fizeram ver e pensar na criação de um Objeto de

Aprendizagem em Artes Visuais.

Criar um objeto único, que pudesse dar conta da diversidade de linguagens

propostas a partir de um eixo articulador que enfatiza um Atelier de Artes Visuais –

abordando, prioritariamente, as linguagens artísticas da pintura, escultura e

fotografia, e tendo por base três pranchas de imagens de obras4, conforme as

figuras 03, 04 e 05 que são referenciais da arte latino-americana e européia –

Candido Portinari5, Retirantes, Óleo s/ tela, 176 x 190cm, 1944; Claudia Andújar6,

Série Marcados, fotografia (políptico), 1981-1983; Michelangelo Buanarotti7, Pietá,

escultura em mármore, 1448; – em um conjunto de sete projetos educativos em

artes visuais desenvolvidos com foco no ensino médio, pareceu-me, em um

4 As pranchas são elaboradas a partir das imagens e contextualizações das seguintes obras de arte: Retirantes, de Candido Portinari, arte modernista brasileira, Marcados, de Claudia Andujar, arte contemporânea e Pietá de Michelangelo, arte renascentista. 5 Candido Portinari (Brodósqui SP 1903 - Rio de Janeiro RJ 1962). Pintor, gravador, ilustrador e professor, Portinari é um dos maiores nomes da pintura brasileira, alcançando fama internacional pela qualidade e pela temática social de sua obra. Sempre preocupado em caracterizar o tipo brasileiro, retratou a vida rural brasileira, a tragédia das migrações nordestinas e o trabalho duro nos portos. http://www.mercadoarte.com.br/artigos/artistas/candido-portinari/candido-portinari-vida-obras-biografia-exposicao-galeria/ 6 Claudia Andujar (Neuchâtel, Suíça 1931). Fotógrafa. As tradições e o modo de vida dos yanomamis são o tema central de sua obra. Com bolsas de estudos brasileiras e internacionais, passou períodos extensos na companhia desses índios, realizando ensaios fotográficos que constituem, por si, um capítulo na história da fotografia brasileira. http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=875&lst_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=1 7 Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475 - 1564) Considerado um doa maiores criadores da história da arte do ocidente, foi pintor, escultor, poeta e arquiteto italiano. Sua carreira se desenvolveu na transição do Renascimento para o Maneirismo, e seu estilo sintetizou influências da arte da antiguidade Clássica, do primeiro Renascimento, dos ideais do Humanismo e do Neoplatonismo. http://pt.wikipedia.org/wiki/Michelangelo

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primeiro momento, uma tarefa, se não impossível, bastante difícil devido a sua

abrangência e complexidade. Difícil, porém não impossível.

Fig. 03 - Cândido Portinari, Retirantes, pintura a óleo sobre tela,190cm X 180cm, 1944.8

Fig. 04 - Claudia Andújar, Série Marcados, fotografia (políptico), 1981-1983. 9

8https://www.dropbox.com/sh/ii5z5e96o3w8qzf/gSovthwWJV/seminario_7/Pranchas%20em%20pdf

/SONIA%20MARIS%20RITTMANN.pdf

9https://www.dropbox.com/sh/ii5z5e96o3w8qzf/9XdbePYbPT/seminario_7/Pranchas%20em%20pdf/NEUSA%20LORENI%20VINHAS.pdf

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Fig. 05 - Michelangelo Buanarotti, Pietá, escultura em mármore, 1448.10

Falar em linguagens é também lembrar que o homem é um ser simbólico, e

como tal, capaz de criar símbolos, que têm a função de ordenar e interpretar o

mundo em que vive. Usar a linguagem, verbal e não-verbal, para nos

expressarmos sobre o que pensamos e sentimos em relação a nós mesmos, ao

outro e ao mundo em que vivemos, dá-se em uma tentativa de re-ordenar a

dimensão do mundo a nossa volta. Dito de outra forma é através da linguagem

que se interage com o outro, consigo mesmo e com o mundo. Miriam Celeste

Martins (2009) afirma a penetração na realidade através da mediação não

somente da linguagem, mas de linguagens:

(...) nossa penetração na realidade, portanto, é sempre mediada por linguagens, por sistemas simbólicos. O mundo, por sua vez, tem o significado que construímos para ele. Uma construção que se realiza pela representação de objetos, ideias e conceitos que, por meio dos diferentes sistemas simbólicos, diferentes linguagens, a nossa consciência produz. (MARTINS, 2009, p.32-33)

10https://www.dropbox.com/sh/ii5z5e96o3w8qzf/jRMdfDZHzF/seminario_7/Pranchas%20em%20pdf/Maristela%20Lain%20Cesar.pdf

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A arte é criação das linguagens – visual, musical, cinema, dança, poesia –

as quais se articulam, se conectam e dão corpo ao que o homem pretende dizer.

Lembremos que o homem utiliza as linguagens11 desde os remotos tempos das

cavernas, manifestando seus medos, desejos, sonhos e ideias.

A partir dessas reflexões surgiu a ideia de criar um Objeto de Aprendizagem

que levasse em conta parte dessa história que move o homem desde os tempos

mais remotos até os dias de hoje, com uma carga simbólica que remetesse tanto

ao ser humano, nas figuras do homem e da mulher – quanto às crenças e medos

que nos acompanham desde sempre. Foi a partir dessa lógica que o Objeto de

Aprendizagem Caixa de Pandora foi criado, e que, além da vontade de abordar o

mito do conhecimento, sendo este um objeto de desejo e estudo de toda uma

vida, ainda traz, em suas várias versões, as ideias de paradoxo, incompletude,

precariedade da vida e da arte.

Fig. 06 - Pandora - Chauncey Bradley Ives (1812-1894), EUA,

Estátua de mármore - 147,3 X 43,2 X 42,5 cm, 1871, Brooklyn Museum.12 11 A linguagem humana – “sistema de representação arbitrário, de significados coletivos e compartilháveis, variáveis ao longo do tempo de acordo com mudanças culturais, sociais e históricas de cada povo ou nação” - é considerada o mais complexo sistema de signos e através dela podemos representar não apenas o mundo vivido mas o imaginado. “(...) Sem a linguagem – considerada em sentido amplo, seja ela escrita, verbal ou de qualquer outro ramo semiótico – impossíveis se tornariam a unidade, a continuidade e a evolução social; trata-se pois de um dado constitutivo das sociedades humanas.” (SILVA, 2009) 12http://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/217/Pandora/set/a2c4b37977ce58745016ff0071ec8ea3?referring-q=pandora

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Pandora, representada por Chauncey Bradley Ives na fig. 0613, a que possui

todos os dons, proveniente da mitologia Grega14, possui várias versões, uma das

mais difundidas, e, particularmente, a que mais gosto, narra o mito afirmando ser

Pandora uma divindade doadora de talentos divinos e, simultaneamente, de todos

os males da humanidade. Pandora foi criada pelos deuses do Olimpo, recebendo

de cada um deles um “dom” específico: Hefesto, Deus da Arte, criou-a como uma

estátua parecida com as deusas, de Afrodite recebeu a beleza, de Atenas, a

sabedoria e a habilidade em todos os terrenos, de Hermes, a palavra fácil e a

engenhosidade.

Por ordem de Zeus, numa trama que envolve uma vingança contra a

humanidade, por esta ter recebido de Prometeu o segredo do fogo, Pandora foi

enviada a Terra para seduzir Prometeu, recebendo uma “caixa” que não deveria

ser aberta. Abriu e com essa atitude – que muitos atribuem a um símbolo de

curiosidade feminina - espalhou todo o sofrimento sobre a humanidade. Ao

perceber o que acontecia Pandora fechou a caixa, deixando dentro dela a

Esperança. Pandora, possuidora de todos os dons aliada à esperança faz pensar

em surpresa, em inovação, em mudança, em transformação, em capacidade de

sonhar com o diferente, com o inusitado, com a arte.

Como professora, eu parto do pressuposto que seres humanos motivados

estão mais propensos para a aprendizagem, e que toda aprendizagem deva tentar

estabelecer um processo de inferências entre os conhecimentos que se possui e

os novos conhecimentos a serem construídos. Ao apresentar uma lenda, com sua

narrativa e a exploração dos símbolos presentes na mesma, pode-se dar início a

toda uma conversa sobre Arte, Humanidade, Narração, Mito, História, despertando

dessa forma o interesse dos alunos para as artes visuais. O mito serve como

ponto de partida para uma viagem pela história, cultura, costumes, crenças,

13 Dentre as inúmeras obras de arte que reproduzem a imagem de Pandora, a escolha para ilustrar o artigo foi mais emocional do que racional. A escultura de Chauncey Bradley Ives, a meu ver, além de representar um clássico revisitado, representa alguns dos paradoxos presentes no texto: sagrado e profano, humano e divino, razão e emoção. 14 Pandora e Prometeu, disponível no Livro de Ouro da Mitologia (BULFINCH, 2001, p.19-26)

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sociedade e humanidade. O ponto de chegada, diferente para cada individuo que

se aproxima da caixa, passa pela ideia de atelier como espaço de escolhas, como

tão bem nos relata Ana Angélica Albano

Associo o atelier à caixa tão temida, que abriga a imaginação. Um lugar onde todas as possibilidades estão presentes e, portanto, onde o caos pode imperar. No atelier, ideias e materiais estão à espera de uma forma. Dar forma ao desconhecido é função da arte. A imaginação sem controle é assustadora e, talvez, seja esta uma leitura possível dos monstros libertos pela mão de Pandora. Porém, é preciso lembrar que a Esperança, que ficou presa no fundo da caixa pode guiar a imaginação, com cuidado, para a construção de uma nova ordem, quando a curiosidade será, então, premiada. Criar é dar forma ao caos e para criar é preciso poder fazer escolhas. A escolha é o limite que cria a forma. Só aprendemos a escolher o próprio caminho, quando temos liberdade de opção. O atelier compreendido, assim, como lugar de escolhas, refúgio de esperança. (ALBANO, 2005)

Dentro dessa perspectiva, o Objeto de Aprendizagem Caixa de Pandora -

com a proposta de apresentar obras de arte contextualizadas, como produto

cultural e histórico, situadas em tempos e locais diferentes, com formas e

conteúdos distintos, através da leitura de imagens, da exploração e criação de

mapas conceituais ou do desenvolvimento dos projetos - possibilita uma maior

compreensão das diferentes linguagens e códigos utilizados pelos artistas.

Explorando e apreendendo esses códigos, imagina-se que os alunos serão

capazes de, além criar seus próprios trabalhos artísticos, relacionando-os ao

mundo em que vivem, as suas concepções de vida, expressando-se através das

diferentes linguagens com as quais tiveram contato no atelier de Artes Visuais,

ainda refletir sobre o papel da arte para a humanidade e relacionar esses

aprendizados com sua própria história de vida.

Para esse aprendizado, dentro da Caixa de Pandora, foram disponibilizados

diversos materiais e projetos - pensados e criados ao longo do curso de formação

em Artes Visuais e ressignificados através da prática pedagógica, da pesquisa

reflexiva e da relação estabelecida com o Objeto de Aprendizagem Caixa de

Pandora - que servem de suporte para a prática e a reflexão em Artes Visuais.

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O Objeto de Aprendizagem Caixa de Pandora partiu de uma pesquisa sobre

os livros de artista e livros objetos, entendendo que o livro-objeto ”não precisa ser

um livro, bastando ser a ele referente, mesmo que remotamente” (SILVEIRA,

2001, p. 25). Anne Moeglin-Delcroix15 em entrevista concedida a Paulo Silveira

também nos fala sobre o sentido do livro como obra

O livro é uma obra no sentido pleno do termo, ou seja, é concebido de tal maneira que todos os aspectos do livro participam da significação. O livro não é ai um simples continente ou suporte para uma mensagem que seria independente dele (...) (SILVEIRA, 2001, p. 287)

Desta forma o livro-objeto, teria sua função ressignificada a partir de um de

um processo de abstração, transformando-se em uma linguagem artística. Nessa

pesquisa houve ainda a apreciação de inúmeros livros de artistas e livros-objetos.

Fig. 07 - Susan Collard, Tripytch for Michael, 2004.

15 Professora da Sorbone de Paris, organizadora do catálogo Livres d’artistes. Paris: Centre Georges Pompidou/Bibliothèque Publique d’Information; Éditions Herscher, 1985. E do livro Esthétique du livre d’artiste: 1960/1980. Paris: Jean-Michel Place/Bibliothèque Nationale de France, 1997. (Tese de doutorado transformada em livro).

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O objeto de aprendizagem Caixa de Pandora se constituiu a partir da

construção de um livro-objeto, tendo como principal referência artística os

trabalhos desenvolvidos por Susan Collard, Fig. 07, artista e arquiteta

estadunidense, residente em Portland, Oregon, USA, e que, desde 1991, nas

horas vagas dedica-se à criação de livros de artista. Os livros criados por Collard

são pequenas caixas, confeccionados sobre suportes de madeiras e papelão,

onde a artista agrega objetos inusitados encontrados ao acaso em criações

esculturais com composições instigantes que mesclam vidros, metais, papéis,

cordões e elementos naturais. Segundo a própria artista16

Sempre me disseram os meus livros são "de arquitetura." (...) Talvez, a coisa mais importante que aprendi na escola de arquitetura foi o hábito de pensar em edifícios como uma série de espaços em que se move através. Expansão e contração, variedade e repetição, caráter aberto e encerramento: todas essas abstrações, que emprestam forma e ordem a um projeto, são finalmente sentidas em um nível visceral. No final, o que importa é o movimento, memória e percepção. Tendo aprendido a visualizar os caminhos através de um edifício, desta forma, é natural interpretar outras experiências de forma semelhante: a leitura de uma cidade, cânion, poema, jardim, ou livro como uma série de fluidos espaços. Para mim, os livros tendem a se desdobrar como os quartos de uma casa, enigmática, inacabada. (...) (COLLARD, 2012)

Partindo da ideia de movimento, memória e percepção trazida por Collard,

foi pensada e posta em prática a construção de uma “caixa” articulada como um

pequeno biombo, que evocasse a percepção sensorial e visual, em que cada

“folha-página” traria alguns materiais significativos das linguagens exploradas nos

projetos de ensino e aprendizagem.

16 http://susancollard.com/section/74265_Book_Arts.html

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Fig. 08 - Primeiros esboços da Caixa de Pandora, Fotografia de Sonia Maris Rittmann,

2012.

As dimensões do Objeto, aproximadamente 50cmx40cmx30cm, sofreram

pequenas alterações durante a construção do mesmo, de acordo com as

necessidades de espaço para cada objeto inserido na mesma. Desta forma, o

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livro-objeto, Caixa de Pandora, tal qual um livro, ficou em sua versão final com

quatro núcleos tridimensionais (10cm de profundidade) com nichos individuais

para os referidos materiais.

Fig. 09 – Caixa de Pandora: alguns nichos. Fotografia de Sonia Maris Rittmann, 2012.

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No primeiro núcleo, com materiais que se destacam pela ênfase na

apreciação da arte, estão colocadas as três pranchas de imagens que tenho

denominado: Retirantes, Marcados, Pietá, em uma alusão ao título das obras

escolhidas; material educativo da Fundação Iberê Camargo17: projetos, pranchas e

postais de Iberê Camargo18, fichas cartonadas de cada um dos projetos, fichas

com material de apoio e algumas imagens (bidimensionais); acervo em DVD do

projeto Arte na Escola19.

Fig. 10 – O Objeto de Aprendizagem: Caixa de Pandora (um atelier em processo) 17 A Fundação Iberê Camargo foi criada em 1995, um ano após a morte do artista, com o objetivo de preservar e divulgar sua obra. Além de aproximar o público deste que é um dos grandes nomes da arte brasileira no século 20, a instituição procura incentivar a reflexão sobre a produção contemporânea. http://www.iberecamargo.org.br/site/a-fundacao/default.aspx 18 Iberê Camargo: artista de rigor e sensibilidade únicos, Iberê Camargo, natural de Restinga Seca-RS, é um dos grandes nomes da arte brasileira do século 20. Autor de uma obra extensa, que inclui pinturas, desenhos, guaches e gravuras. http://www.iberecamargo.org.br/site/o-artista/default.aspx 19 O Instituto Arte na Escola é uma associação civil sem fins lucrativos que, desde 1989, incentiva e qualifica o ensino da arte, por meio da formação continuada de professores da Educação Básica. Tem como premissa que a Arte, enquanto objeto do saber, desenvolve nos alunos habilidades perceptivas, capacidade reflexiva e incentiva a formação de uma consciência crítica, não se limitando à auto-expressão e à criatividade. http://artenaescola.org.br/institucional/

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Os núcleos centrais, com ênfase na produção artística, no fazer concreto,

estão constituídos de uma maleta com material de pintura a óleo e acrílico -

pinceis, tintas, solventes, um mini-cavalete de pintura, uma tela pequena; material

desenho: lápis de desenho (diversos números), carvão, lápis de cor, pasteis e

mostra de papeis de desenho, além de um boneco articulado de madeira; material

de fotografia: máquina fotográfica digital e analógica, cabos, cartão de memória,

filme fotográfico, folha de contato e pendrive para conexão com computadores.

No último núcleo, as proposições de trabalho da Caixa de Pandora dispõem

os Projetos Educativos em Artes Visuais, os quais estão articulados também a um

projeto em andamento denominado Projeto Interdisciplinar LER É ARTE20: Sete

Pecados Capitais. Dessa forma, os projetos estão desdobrados em sete micro-

projetos:

1- Mapa Conceitual – Objeto de Aprendizagem – que busca a construção

de relações significativas em artes visuais;

2- Corpo e Alma: oficina de desenho e criatividade – cujo objetivo principal

é o desenvolvimento expressivo através do desenho, partindo da exploração de

materiais e técnicas diversas, com ênfase especial na figura humana;

3- Pintando o Sete – oficina de pintura – em uma proposta que possibilita

aos alunos a pesquisa, a apreciação e a produção da pintura a partir de diferentes

materiais e técnicas em pintura artística (óleo, acrílica, guache);

4- Fotografia: olhar que olha para dentro e para fora, adaptado a partir do

projeto de Lea Miasato21. O projeto propõe a exploração da linguagem fotográfica

a partir do olhar cotidiano dos alunos sobre o mundo que os cerca;

5- Arte Postal – estudo e produção de postais a partir da pesquisa sobre a

função política deste tipo de obra artística durante um breve período da história;

20 Projeto Ler é Arte: projeto cultural, criado pelos professores da EEEB Profº Gentil Viegas Cardoso, em Alvorada-RS, desde 2004, incentiva o hábito da leitura através de atividades interdisciplinares e artísticas de literatura, teatro, dança, teatro, música, fotografia etc. http://projetolerearte.blogspot.com.br/ 21 Lea Misato Professora de Arte. Licenciada em Artes Visuais e Pós-Graduada em Arte Educação. Atua na Rede Estadual e Municipal de Ensino de São Paulo com turmas de Ensino Fundamental, Médio, Jovens e Adultos.

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6- Atelier de Linguagens Tridimensionais – em que está sendo proposta a

exploração, a pesquisa e a criação de objetos tridimensionais a partir de diferentes

técnicas e materiais;

7- Retratos Encenados - projeto de recriação de cenas de obras de arte e

da cultura visual em fotografia, vídeo, teatro, onde os alunos são

motivados/solicitados a representar através de paródias relacionadas às imagens

das obras de arte estudadas. A inspiração e fonte de pesquisa parte dos Video

Portraits22 de Bob Wilson23 e do vídeo da banda Hold Your Horses24.

3. O corpo (o objeto de aprendizagem)

Tudo o que vemos na vida corrente sofre mais ou menos a deformação

que os hábitos adquiridos provocam, e o fato é talvez mais sensível

numa época como a nossa, em que o cinema, a publicidade e as

revistas nos impõem diariamente uma quantidade de imagens já

prontas, que são de certo modo, no âmbito da visão, o que é o

preconceito no âmbito da inteligência. O esforço necessário para se

libertar disso exige uma espécie de coragem; e essa coragem é

indispensável ao artista, que deve ver todas as coisas como se as visse

pela primeira vez: há que ver toda a vida como quando se era criança; e

a perda dessa possibilidade impede-vos de vos exprimir de maneira

original, isto é, pessoal. (MATISSE, 2007, p.370)

Ver as coisas que nos cercam como se fôssemos crianças, com um olhar

liberto dos pré-conceitos, das convenções, das limitações impostas pela cultura e

pela sociedade, valorizando as sensações e percepções mais subjetivas é um dos

desafios a que me proponho ao apresentar a Caixa de Pandora como objeto de

22 http://www.youtube.com/watch?v=0fz-BuCY7Fk 23 Robert Wilson (Waco, Texas, 1941) também conhecido por Bob Wilson, é um encenador, coreógrafo, escultor, pintor e dramaturgo norte-americano. Suas peças são conhecidas mundialmente como experiências inovadoras e de vanguarda. É conhecido por seus vários trabalhos em colaboração com Philip Glass como "Einstein on the Beach". Realizou montagens dos trabalhos dos poetas e músicos Allen Ginsberg, Tom Waits, Willima S. Borroughs, Lou Reed e David Byrne, assim como com o dramaturgo alemão Heiner Müller. http://robertwilson.com/about/biography 24 Banda de músicos franco-americanos que produziram uma paródia que mistura artes visuais e música de forma muito criativa. http://www.youtube.com/watch?v=erbd9cZpxps

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aprendizagem em artes visuais. Resgato a ideia de Matisse que enriquece essa

reflexão, e nos coloca diante da beleza e da surpresa que só os olhos de uma

criança podem nos trazer.

O Objeto de Aprendizagem Caixa de Pandora foi concebido como uma

pequena caixa, que encerra em seu interior múltiplas possibilidades de utilização

para o desenvolvimento das aulas de Artes Visuais. Interna e externamente a ideia

é aguçar os sentidos dos alunos para a percepção da importância da leitura da

palavra, falada e escrita, e da imagem para o conhecimento do mundo da arte.

Correndo o risco de ser utópica penso que a Caixa de Pandora pode provocar nos

estudantes um exercício de pensamento através do pensar, fruir e produzir arte.

Talvez esta utopia esteja conectada com o sentido positivo do dom da esperança,

único que restou na caixa de pandora, conforme o mito que, de certa forma,

conforma o objeto Caixa de Pandora.

Devido a sua construção que privilegia a transformação, a Caixa de

Pandora pode ser adaptada em seu conteúdo e utilização às diferentes situações

de aprendizagem, dentro e fora da escola, desde que, nos projetos, fichas,

materiais de apoio sejam realizados os necessários ajustes.

A parte externa da Caixa de Pandora foi pensada para suscitar a

“curiosidade” de quem se aproxime da mesma, tal qual a caixa presente no mito.

A Caixa de Pandora, por fora, tem o formato que lembra um livro. Na capa desse

livro objeto, o destaque fica por conta de uma pintura de uma figura feminina de

uma mulher alada, que poderia ser vista como a própria Pandora - aquela que

possui todos os dons - ou quem sabe Lilith – representação simbólica e pictórica

do arquétipo feminino - ou ainda Nikè - deusa grega que simboliza a vitória, pois

estas outras imagens do feminino enfatizam a liberdade que estaria presente na

representação das asas. Penso que esta “indefinição” e ambiguidade construída

sirvam mais aos propósitos de um projeto em Artes Visuais que se pretende

provocador e aberto às muitas possibilidades de leitura, que sirva de contraponto

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aos paradigmas culturais vigentes na sociedade de consumo atual. Importa mais

que essa imagem faça pensar em Arte, Mitologia, História, Cultura Visual,

Sociedade e Educação do que dar respostas prontas, muitas vezes contestadas e

de difícil compreensão, tanto para alunos como para professores.

Por dentro, a Caixa de Pandora está estruturada em módulos que se

articulam como um biombo que se abre e fecha deslizando sobre as diferentes

superfícies (mesa, balcão, piso, etc.). Cada módulo, em separado, é composto por

diversos nichos, ou compartimentos “secretos”, que se abrem revelando os

materiais referentes ao Atelier de Artes Visuais.

Os símbolos presentes no Objeto de Aprendizagem são muitos, entre eles

destaco os paradoxos presentes: feminino-masculino, sagrado-profano, luz-

escuridão. As possibilidades de leitura, embora múltiplas, dependem da situação

de aprendizagem enfocada no momento da utilização da Caixa de Pandora, sendo

que poderá se dar plenamente ao construirmos um conhecimento significativo,

conforme nos lembra Barreto25:

construir significados é relacionar, apropriar, ressignificar, ou seja, é o

próprio processo, que, por outro lado pode ser visto também através da

forma de se construir estes significados – podendo ser enfocado de uma

forma mais subjetiva, em um caráter mais emocional, ou em uma forma

mais objetiva, em um caráter mais racional (sendo que, em ambos, está

presente o intelecto e a intuição, ou, a própria razão e a emoção) como

uma construção de conhecimento, tal como está colocado na

aprendizagem significativa. (informação verbal - 2013, durante a

orientação do trabalho de conclusão de curso de Artes Visuais)

Essa é apenas uma das possíveis Caixas de Pandora, fruto de inúmeras

idas e vindas, de leituras infindáveis, de questionamentos sobre o estudo, a

25 Umbelina Maria Duarte Barreto (1954 -): artista plástica, professora e pesquisadora do Instituto de artes da UFRGS, Atualmente é Coordenadora do Curso de Artes Visuais modalidade presencial e à distância na UFRGS. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4755500P2

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pesquisa e a prática em artes visuais que emergiram durante o curso de formação,

mas, que acredito que sempre estiveram em estado embrionário, adormecidas em

meu ser, e que despertaram para não mais me deixar sossegada.

4. A alma

Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes. Pessoas fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas… (SALGADO)26

Como Sebastião Salgado, que nos insere a todos em uma única raça

humana, penso que o ser humano deva ser o centro de interesse de qualquer

projeto, e o projeto de aprendizagem que foi pensado para a Caixa de Pandora

não foge a regra: seres humanos querendo aprender, querendo sobreviver,

querendo ser felizes. Não importa a origem, a crença, a língua, a cor. Essa é a

alma da Caixa de Pandora: o ser humano aprendente e feliz. O ser humano que

pensa, que sofre, que aprende, que se transforma e se transformando, transforma

o mundo em que vive.

Partindo do pressuposto que toda aprendizagem deva tentar estabelecer

um processo de inferências entre os conhecimentos que se possui e os novos

conhecimentos a serem construídos, as possibilidades de utilização do Objeto de

Aprendizagem Caixa de Pandora são múltiplas e os objetivos principais são o

desenvolvimento estético e gráfico-plástico dos alunos através da experiência

concreta de aprendizagem. Dessa maneira, cada uma das obras escolhidas para

compor o objeto de aprendizagem Caixa de Pandora, com suas especificidades -

pintura modernista, escultura renascentista, fotografia contemporânea - possibilita

26 Sebastião Ribeiro Salgado Júnior. Nascido em Minas Gerais em 1944, é um dos mais respeitados fotojornalistas da atualidade. http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=3293&lst_palavras=&cd_idioma=28555&cd_item=1

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a abordagem dos conhecimentos da arte a partir de pelo menos um fio condutor,

contido na imagem através da representação do ser humano no tempo, pois as

obras apresentam distintas formas de representação da figura humana. Para

tanto, é necessário apresentar as obras de arte contextualizadas, como produto

cultural e histórico, situadas em tempos e locais diferentes, com formas e

conteúdos distintos, possibilitando uma maior compreensão das diferentes

linguagens e códigos utilizados pelos artistas.

Michelangelo Buonoratti, com a obra Pietá, escultura renascentista

realizada em 1448, nos possibilita a abordagem histórica e artística de um dos

períodos que considero mais importantes para a História da Arte: o Renascimento,

ponto de grandes transformações no mundo e na arte. Explorar a linguagem

tridimensional e seus elementos constitutivos, tais como forma, volume, superfície,

equilíbrio, escala, dimensão, material, tantas vezes deixada de lado nas escolas,

por falta de espaço, materiais específicos ou até mesmo interesse, pode contribuir

para o desenvolvimento estético e plástico dos alunos.

Em Retirantes, obra de Cândido Portinari (1944), nós podemos investigar

os elementos constitutivos da arte modernista, partindo do estudo da pintura,

observar os traços expressionistas, as figuras esquematizadas, as linhas

vigorosas e o uso de uma paleta de cores escurecidas; a dramaticidade da

representação de um universo singular: vida-morte, memória-criação, sagrado-

profano, arte-história.

Em Marcados, obra de Claudia Andújar (1981-1983), podemos pensar

sobre a fotografia na arte contemporânea como uma linguagem artística e não

como meio de reprodução do real; e, no quanto essas imagens podem perturbar,

provocar ou incitar, no enquadramento utilizado, na forma escolhida pela artista

para compor suas imagens, na escolha do preto e branco, na questão temática,

para além do óbvio, a partir de uma população específica. Além disso, também

podemos desenvolver uma pesquisa sobre a história da fotografia, do registro

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histórico e documental, da fotografia experimental, chegando até as pesquisas

mais recentes da fotografia contemporânea.

As relações político-sociais presentes tanto na tela Retirantes de Candido

Portinari (1944), quanto na fotografia da série Marcados de Claudia Andujar (1981-

1983) apresentam um engajamento desses artistas com seu próprio tempo, que

remete ao mundo atual e no papel que a arte pode desempenhar ao tratar dessa

temática. Penso muito especificamente no ir e vir de jovens alunos trabalhadores,

que desde muito cedo cumprem jornada diária de estudo-trabalho e mesmo assim

ainda alimentam uma esperança e fé inabalável em um mundo melhor.

Dentro dessas relações, remeto ainda a outro grande fotógrafo brasileiro,

Sebastião Salgado (1944), que ao produzir suas fotos também aborda esse

paradoxo relacionado à esperança, que é importante ressaltar também como

constitutivo do mito enfocado:

Algumas pessoas sabem para aonde estão indo, confiantes de que as espera uma vida melhor. Outras estão simplesmente em fuga, aliviadas por estarem vivas. (SALGADO, 2000)

Através dessa seleção de imagens - inicialmente pensada para estudantes

do 1º ano do Ensino Médio, de uma escola pública na região metropolitana de

Porto Alegre – e que pode ser adaptada para outros contextos e públicos – pensei

na elaboração de um trabalho de percepção, sensibilização, cognição e reflexão a

partir das obras e dos diferentes contextos históricos, culturais e artísticos (século

XV, início e final do século XX), tendo como fio condutor a representação do ser

humano, que leve em conta os diferentes períodos da História da arte – do

Renascimento ao Contemporâneo, envolvendo a Arte Renascentista, Moderna e

Contemporânea; Arte Brasileira e Arte Universal – as diferentes linguagens,

técnicas, materiais e contextos de produção das mesmas.

A articulação interdisciplinar, tão necessária na escola atual, está sendo

proposta através da História (linha do tempo; influência da Igreja e do Estado na

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Arte, Política e Arte, os Mecenas das Artes); da Sociologia (Movimentos Sociais,

Urbanização, Migrações, Povos Indígenas, Imigrantes); da Literatura (Movimentos

literários correspondentes aos períodos); do Ensino Religioso (a mudança de

paradigmas da antiguidade para o Renascimento, o novo papel do Homem); da

Geografia (política, social, espacial; as migrações dos povos, os grandes centros

urbanos); da Língua Portuguesa (influências do tupi-guarani, do italiano e do grego

na língua portuguesa); da Língua Estrangeira (o Latim e o grego na constituição

de diversas línguas); da Biologia (teorias genéticas e ambientais); da Química

(processo de produção de tintas e emulsões fotográficas), da Educação Física (o

corpo, o movimento). Mas, dentro da proposta cabe destacar que a disciplina de

Artes Visuais, além de catalisadora de todo o projeto interdisciplinar é a

responsável pela concepção, fomento, desenvolvimento e execução de todas as

atividades, ultrapassando o trabalho necessário nestas disciplinas.

Devo lembrar a importância de que os alunos tenham acesso a

experiências artístico-estéticas através de atividades culturais fora dos muros das

escolas, seja em museus, instituições ou fundações culturais, pois conforme

Anamelia Buoro (2002) a apreciação de uma obra de arte original se equivale à

própria produção de objetos como um fazer concreto.

Olhar as obras de arte significativamente implicou dar-lhes visibilidade, tendo sido tão importante quanto produzir objetos; ao deixarem o museu, as próprias crianças perceberam que a produção da leitura também se constituía num fazer concreto. Elas já não eram mais as mesmas que haviam entrado no recinto. (BUORO, 2002, p.44)

Dessa forma, como atividades extramuros a inclusão da visitação a

algumas instituições artísticas e culturais é essencial no ensino de artes visuais. O

Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS), o Museu de Arte

Contemporânea (MAC), a Casa de Cultura Mario Quintana, a Fundação Iberê

Camargo, a Fundação Vera Chaves Barcellos - são instituições artístico-culturais

de Porto Alegre que realizam diversas exposições, com uma amplitude que

envolve desde o paradigma acadêmico até o contemporâneo, que enriquecem o

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repertório visual dos alunos, possibilitando experiências concretas de

aprendizagem, com a apreciação in loco de obras de diversos períodos, estilos e

orientações estéticas.

CONCLUSÃO

Esperança

Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem Atira-se

E — ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada, Outra vez criança...

E em torno dela indagará o povo: — Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?

E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

(QUINTANA, 1998)

Tal como a metáfora poética de Quintana, a experiência estética e artística

vive da esperança presente na mudança, na transformação do mundo, mesmo

que esta mudança, a princípio seja iniciada apenas como um voo de intenções a

cada passagem de ano.

Este voo de intenções também está presente na experiência estética e

artística envolvendo a criação proporcionada a partir do Objeto de Aprendizagem

Caixa de Pandora, com o desenvolvimento de seus projetos, a prática em

diferentes linguagens artísticas, a leitura de imagens, a interpretação do mundo

contemporâneo a partir das relações entre arte e educação, a possibilidade de

ensinar e aprender arte através da experiência em arte e da arte, a reflexão sobre

como o humano produz, pensa e contextualiza arte são requisitos indispensáveis

para pensar e fazer arte.

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Nesse ir e vir do pensamento, da criação, da pesquisa, da escuta do outro e

do prazer em fazer arte, aprender em conjunto, duvidando das certezas, tentando

entender esse mundo em que vivemos muitas vezes tão caótico e

incompreensível, como uma possibilidade de transgressão - segundo

HERNANDÈZ (2000) - de mudança de paradigmas, de “des-automatização”, de

“des-rotinização” de nossas práticas escolares, de ver as coisas com outros olhos,

ou pelo menos, a partir de outros pontos de vista, de forma mais poética27, penso

que a arte cumpre um papel muito importante, se não de transformar o mundo,

pelo menos de humanizar um pouco nosso planeta e tornar os corações e mentes

mais sensíveis.

Impossível falar em Arte sem pensar em estesia28. Lembro-me das palavras

da professora Umbelina Barreto, logo no início do curso, tentando fazer com que

víssemos além do visível, que percebêssemos todo encanto por trás da aspereza

da vida. E eu, tola, sempre privilegiando mais a razão do que a emoção, cheia de

certezas, achando que toda aquela conversa nunca me afetaria, que minha visão

de mundo, real, concreto, cheio de dureza e injustiças, nunca seria afetada da

forma poética como a professora tentava nos seduzir, encantada. Dizia ela, que

deveríamos sim ter um pé na realidade, mas que nem por isso, deveríamos deixar

de sonhar e de possibilitar que nossos alunos também pudessem sonhar e criar

de forma mais prazerosa. Que pudéssemos ver com todos os sentidos, aguçados,

atentos, sensíveis ao que o mundo oferece para quem está disposto a enxergar.

Penso que essa seja uma das funções da arte, pois se não tem o poder de

transformar completamente o mundo e acabar com todo sofrimento, ao menos ela

27 Poética aqui utilizada com o sentido de poiética, construção artística, segundo Heiddeger: “um modo de desvelamento”, que dá lugar a “uma produção a medida que algo de oculto se presentifica no não oculto” (...) “o conhecimento no seu sentido mais amplo... o fato de poder se reencontrar em alguma coisa e ai se reconhecer” (VETTORAZZO, 2009) 28 Estesia: do grego aesthesis – experiência que nos vem pelos sentidos. Aisthēsis compreende a percepção geral com todos os sentidos. http://www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/lexico/entry.php?entryID=80

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pode amenizar o mal do mundo, tornando nossos corações mais sensíveis e

humanos. Creio que essa seja também a mensagem da Caixa de Pandora: que

mesmo com todo o mal, com todo o sofrimento infringido aos seres humanos,

ainda guardamos dentro de nossos corações a esperança, e é ela que nos move

que nos faz querer ser, e, a cada vez, seres humanos melhores.

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Disponível em http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v61n2/a16v61n2.pdf