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Artigo sobre arquitetura e urbanismo

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As grandes cidades brasileiras sempre foram marcadas pela disputa por terra

Intervenes urbansticas para a populao de baixa renda: ampliao do direito cidade ou reproduo da espoliao urbana?

Ivan Marques da Silva.

RESUMO

O presente artigo est orientado pelas seguintes questes: poderiam as intervenes urbansticas baseadas em padres urbansticos especficos para a populao de baixa renda se constiturem em propostas capazes de reduzir a situao de excluso e desigualdade vivenciada pelos moradores de reas centrais carentes de urbanizao? Estariam tais intervenes urbansticas adotando princpios contraditrios no que concerne aos ideais de justia social e igualdade, uma vez que tais padres urbansticos especficos se diferenciam dos padres legais do urbanismo? Nesse sentido, o conceito de Direito Cidade do Iderio da Reforma Urbana e o conceito de Espoliao Urbana de Kowarick so referncia para uma anlise comparativa de duas intervenes urbansticas na Cidade do Recife voltadas para a populao de baixa renda, implementadas no incio do sculo XXI, onde se investiga a percepo dos moradores quanto aos atributos espaciais especficos presentes no modelo de interveno proposto pela atual Poltica Urbana do Brasil. Tais atributos espaciais so reconhecidos pelos seus usurios como estigmatizantes e como formas reprodutoras da espoliao urbana, ou como ampliao do direito cidade?

Palavras-chave: espoliao urbana; habitao popular; intervenes urbansticas; direito cidade.

INTRODUO, na virada desse Sculo, com o ressurgimento do Estatuto da Cidade e a o reaparecimento dos Planos Diretores no debate do Planejamento Urbano, que a questo do lugar dos mais pobres na cidade parece materializar-se - legitimar-se - nos instrumentos urbansticos e assumir uma posio mais relevante nas polticas pblicas promovidas pelos vrios nveis de governo, principalmente com a criao do Ministrio das Cidades em 2003.

Nesses ltimos anos (a partir de 2003) so reconhecidas mudanas na Poltica Urbana desenvolvida por esse Ministrio. Ainda que de forma sutil, nota-se um direcionamento ampliao do direito Cidade, destacando-se aes do poder pblico para a regularizao de reas pobres centrais e para a promoo da participao popular (LAGO, 2004). De acordo com Santos Jnior:

Um olhar sobre as polticas urbanas do Brasil envolvendo as polticas de habitao, regularizao fundiria, saneamento ambiental, transporte e mobilidade no deixa dvida a respeito das significativas transformaes que estas vm passando nos ltimos anos. Tais mudanas parecem caminhar em duas direes: primeiro, na direo do aprofundamento do processo de descentralizao, iniciado com a reforma constitucional de 1988; segundo, na adoo de uma agenda de reformas sociais, identificada como agenda da Reforma Urbana, na qual se destacam aprovao do Estatuto das Cidades (2001) e a criao do Ministrio das Cidades (2003) e a implantao dos Conselhos das Cidades (2003). (SANTOS JNIOR, 2009, p.08).

Assim, compete ao Ministrio das Cidades tratar da poltica de desenvolvimento urbano e das polticas setoriais (habitao, saneamento ambiental, transporte urbano e trnsito) de forma articulada, proporcionando uma arena de participaes, com a Caixa Econmica Federal, com os estados e municpios, alm dos movimentos sociais, organizaes no governamentais, setores privados e demais segmentos da sociedade (MINISTRIO DAS CIDADES).

Nesse sentido, grandes investimentos do poder pblico vm sendo realizados, incentivando novas intervenes urbansticas destinadas a transformar, ou aliviar, a realidade da crise urbana vivida nas cidades brasileiras. Por exemplo, O PAC (Programa de Acelerao do Crescimento) que, longe das velhas prticas do Planejamento Urbano tecnicista de erradicao das favelas, tem como base as aes alternativas do poder pblico para o dficit habitacional, onde as intervenes urbansticas em reas pobres da cidade tm surgido como a materializao do discurso da poltica urbana (local e nacional) de ampliao do direito Cidade, objetivando urbanizar reas centrais carentes, dotando-as de condies bsicas de habitabilidade e de regularizao fundiria.

Assim, tais intervenes urbansticas possuem dois princpios bsicos, respectivamente: a adoo de padres urbansticos especficos para rea pobre em questo, buscando o respeito s singularidades e s especificidades do local; e, na maioria dos casos, o regime de concesso da moradia, uma vez que essas reas pobres so vistas como ocupaes ilegais.

Todavia, a urbanizao de favelas, como lembra Maricato,

[...] pode resolver problemas de saneamento ambiental e de segurana urbana, mas no melhora o nvel de escolaridade ou de alfabetizao, no organiza as mulheres para melhorar o padro de vida, nem ajuda na organizao de cooperativas de trabalho, ou no lazer dos jovens. A excluso um todo econmica, cultural, educacional, social, jurdica, ambiental, racial e no pode ser combatida de forma fragmentada (MARICATO,2006).

Assim, inegvel que a Poltica Urbana implementada pelo Ministrio das Cidades apresenta-se favorvel a um novo projeto de cidade, visando ao alvio da pobreza e da desigualdade, buscando a inverso de prioridades, favorecendo a implementao de instrumentos urbansticos progressistas - como os do Estatuto da Cidade , propiciando a consolidao e a regularizao de assentamentos de baixa renda nas reas centrais. Contudo, o modelo de interveno urbanstica adotado por tal poltica - (urbanizao de reas pobres da cidade com padres especficos para a populao de baixa renda)- estaria favorecendo a justia social e a igualdade entre os indivduos da cidade, ou proporcionando uma cidadania inferior para a populao de baixa renda, favorecendo estigmatizao, consolidando o imaginrio da cidade dual dos cidados e dos subcidados, reproduzindo, assim, a desigualdade?

Diante do exposto, o presente artigo parte da idia-hiptese de que as intervenes urbansticas voltadas para a populao de baixa renda desenvolvidas pela Poltica Urbana atual, esto gerando um efeito perverso: a reproduo da desigualdade e, num certo sentido, da espoliao urbana. O problema proposto, dessa forma, envolve dois conceitos-chaves: o conceito de direito cidade do Iderio da Reforma Urbana, compreendido aqui, como igualdade de acesso aos recursos urbanos, e o conceito de espoliao urbana de Lcio Kowarick, compreendido como a conjuno da precariarizao do trabalho e da vida urbana resultante da lgica capitalista de produo do espao urbano no Brasil.

Para refletir sobre a hiptese acima, o artigo prope realizar uma anlise comparativa entre duas intervenes urbansticas implementadas pela Prefeitura da Cidade do Recife, nos anos de 2000 e 2001, as quais culminaram nos conjuntos habitacionais de interesse social Cafespolis e Josu Pinto, preconizando o modelo base seguido pelo poder municipal para as novas intervenes urbansticas financiadas pelo PAC, na Cidade do Recife. A anlise comparativa proposta visa a avaliar se os moradores dessas intervenes reconhecem os atributos espaciais adotados de forma positiva ou negativa, ou seja, se os atributos espaciais especficos para a populao de baixa renda so percebidos pelos moradores como ampliao da cidadania ou refletem para eles uma cidadania desigual e inferior.

1. O DIREITO CIDADE

A Reforma Urbana trata de uma nova tica social, valores bsicos que orientam a vida na cidade, condenando prticas econmicas que a tornam objeto de lucro e, universalizando a todos o seu acesso (SILVA, 1993). Esse acesso cidade passa a ser compreendido como um direito: o direito de todos vida urbana digna, onde a cidade deixa de ser fonte de lucros para uma minoria e de pauperizao para muitos (ABREU, apud Ana Amlia da Silva, 1991, p.07).

Segundo Grazia de Grazia, o Iderio da Reforma Urbana luta para a Institucionalizao de um novo padro de poltica urbana, onde a cidade seja reconhecida de forma real, isto , formada pela desigualdade e pelo conflito entre os variados atores do espao urbano, onde o Estado responsvel por assegurar, a todos, os direitos urbanos, universalizando o acesso aos equipamentos e servios urbanos, proporcionando condies de vida urbana digna.

Destaca-se ento, que o Iderio da Reforma Urbana compreende que a lgica social e espacial da cidade encontra-se cada vez mais regulada pela lgica do mercado, fazendo da cidade um grande depsito de pessoas, tornando-a a cidade da excluso, do apartheid, marcada pela fragmentao, dualizao, violncia, poluio e degradao ambiental (MARICATO, SANTOS JNIOR, 2006 e TEXEIRA FERREIRA apud Silva,1991). Nessa cidade dual do sculo XXI, torna-se imprescindvel o direito Cidade, entendido em sntese, como

[...]o direito moradia digna, a terra urbanizada, ao saneamento ambiental, ao trnsito seguro, mobilidade urbana, infra-estrutura e aos servios e equipamentos urbanos de qualidade, alm de meios de gerao de renda e acesso educao, sade, informao, cultura, esporte, lazer, segurana pblica, trabalho e participao (PNDU, MCIDADES, 2003)

2. A ESPOLIAO URBANA

O conceito de espoliao urbana foi apresentado por Lcio Kowarick na dcada de 1970, dentro do pensamento marxista, onde os problemas urbanos da grande So Paulo da poca so compreendidos luz da dinmica de acumulao de capital. Nesse sentido, o conceito de espoliao urbana apresenta-se relacionado a um enfoque sociolgico centrado num determinismo econmico estrutural, onde o referido autor busca mostrar como a autoconstruo e a periferizao - solues de sobrevivncia da fora de trabalho numa cidade dominada pela expanso do modelo de urbanizao capitalista favoreceram extrao da mais-valia e dilapidao da fora de trabalho.

Kowarick define ento, a espoliao urbana como:

[...] o somatrio de extorses que se opera atravs da inexistncia ou precariedade de servios de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessrios em relao aos nveis de subsistncia e que agudizam ainda mais a dilapidao no mbito das relaes de trabalho (KOWARICK, 1979, p.59).

E define ainda o Estado como o agente que tem por encargo criar o suporte de infraestrutura necessrio expanso industrial (...) e geras os bens de consumo coletivos ligados s necessidades da reproduo da fora de trabalho (ibid, p.59). Assim, quando o Estado passa a canalizar os recursos estatais para os imperativos da acumulao de capital em detrimento daqueles mais diretamente acoplados reproduo da fora de trabalho, o processo de espoliao urbana acirrado, relegando populao de baixa renda a autoconstruo e a periferizao como formas de acesso casa prpria e de sobrevivncia no espao urbano.

Vale destacar que para o autor acima, a dimenso da espoliao urbana no se restringe apenas autoconstruo da casa. Para Kowarick, a espoliao urbana se consolida no ambiente precrio da cidade que sobra para a populao de baixa renda. Os espaos carentes, desprovidos de infraestrutura, de saneamento, marcados pela pobreza e pela subnutrio, alm das condies urbanas espinhosas, caracterizam a espoliao urbana e favorecem a acumulao do capital, uma vez que o desgaste da fora de trabalho submetida a jornadas de trabalho prolongadas e as espinhosas condies urbanas de existncia tornam-se possveis na medida em que a maior parte da mo-de-obra pode ser prontamente substituda (Ibidem, p.42).

Esse artigo, por sua vez, compreende a espoliao urbana como um fenmeno de referncia para tematizar os processos de estigmatizao e de distino social vivenciados nas cidades brasileiras atuais, caractersticos da viso hegemnica da cidade partida, aquela onde se coloca a segregao social como um valor, onde o espao urbano se concretiza como a representao e a projeo da hierarquizao social e o lcus da expanso capitalista (RIBEIRO E LAGO, 1999), onde uma minoria vive de privilgios e uma grande maioria vive cada vez mais processos e formas (espoliativas) de excluso social, se tornando uma classe estigmatizada, no-reconhecida e vista hegemonicamente como subcidados (JESS DE SOUSA, 2004).

3. AS INTERVENES URBANAS: O CONJUNTO CAFESPOLIS E JOSU PINTO.

Entregue em 2000 e atendendo s 214 famlias que tiveram suas casas atingidas pela expanso do metr do Recife, o conjunto habitacional Cafespolis uma ao da CTTU (Companhia de Trens e Transportes Urbanos) e do Metrorec (Metr do Recife) na Regio Poltica Administrativa 6 (poro mais ao Sul, distante aproximadamente 8Km do marco zero da cidade), para indenizao dos moradores beira de linhas de trens do bairro da Imbiribeira afetados pelas suas obras.

O conjunto habitacional Josu Pinto atende s famlias desabrigadas pelo inverno do final da dcada de 90 e incio do ano 2000. Moradores de todas as partes do Recife (morros, encostas, reas non aedificande) tiveram suas casas destrudas pelas chuvas e pela queda das barreiras, sendo alojados, durante aproximadamente 09 meses, em abrigos da Zona Norte, como os antigos blocos da Fbrica da Macaxeira, com 308 famlias. Em maro de 2001, 208 dessas famlias foram contempladas com a moradia no Conjunto Josu Pinto, no bairro de Nova Descoberta, na Regio Poltica Administrativa 3, mais ao Norte da Cidade, distante aproximadamente 12Km do marco zero da cidade.

Vale destacar que o Conjunto Habitacional Josu Pinto a primeira interveno em rea pobre da cidade entregue pela primeira gesto do PT, do antigo prefeito Joo Paulo (1999 at 2004), o qual foi reeleito permanecendo at 2008, quando Joo da Costa, tambm petista, assume. Esse conjunto foi planejado pela Diretoria de Habitao (DIRHAB), a qual produz as intervenes em reas pobres financiadas pelo PAC Recife. De acordo com a Secretaria de Habitao da Prefeitura da Cidade, pelo menos 16 intervenes urbansticas resultaram em conjuntos habitacionais, as quais seguiram o modelo preconizado pelo Conjunto Josu Pinto.

As visitas e observaes em campo, os levantamentos fotogrficos, as entrevistas e os questionrios aplicados aos moradores de tais reas sero os instrumentos de anlise para identificar os atributos espaciais que favorecem ou no a estigmatizao e a reproduo da desigualdade, ou seja, como os moradores dessas intervenes percebem a adoo de atributos espaciais especficos, positivamente ou negativamente.

4. O QUE DIZEM OS MORADORES

Com base nas entrevistas realizadas com 30 moradores de cada conjunto habitacional, segue abaixo algumas falas, as quais expressam as caractersticas principais de suas percepes quanto aos atributos espaciais adotados nas intervenes.

4.1. A REGULARIZAO FUNDIRIA E A APROPRIAO ESPACIAL DOS MORADORES

No caso do Conjunto Habitacional Cafespolis, destacaram-se as seguintes respostas no que concerne ao espao de morar:

bom! Me sinto mais seguro que antes. A casa boa d at pra alugar um quarto pelos fundos;

bonzinho o lugar, tem colgio e posto de sade;

Gosto muito daqui, a localizao tima, perto da cidade, de tudo;

Aqui bom, eu conheo esse vizinho mesmo h 20 anos, e quando a gente veio pra c a gente ainda continuou sendo vizinhos.

As respostas acima indicam que os moradores do conjunto Cafespolis estabeleceram e reforaram vnculos com o lugar onde esto. Elas ilustram a importncia das relaes de vizinhaa do antigo assentamento para o novo, pois atravs de um cadastro, aqueles moradores que moravam juntos continuaram lado a lado, reforando os laos de vizinhana pr-estabelecidos, a ponto que alguns moradores at se confundiam acreditando permanecerem no mesmo lugar, e no no terreno adjacente interveno urbanstica. Alguns at falavam: praticamente nasci aqui; eu tinha 09 meses quando vim pra esse bairro, conheo todo mundo.

Essa permanncia na mesma localizao foi decisiva para a ampliao do direito Cidade, pois so preservadas as facilidades da proximidade da cidade. E devido a essa localizao estratgica do assentamento, o tempo de fadiga e de percurso, citados como formas de espoliao urbana, so minimizados, pois, segundo os moradores, perto de tudo.

Vale destacar, que em nenhum momento das entrevistas os moradores do conjunto Cafespolis mencionaram o acesso legal propriedade, o ttulo da casa, pelo contrrio, as falas acima demonstram uma apropriao do espao de morar, demonstram que eles se reconhecem como os donos do lugar pela lgica do uso e no pela lgica do ttulo, pois para eles, aqui j conhecido da gente!. Dentre os trintas moradores entrevistados do Cafespolis, apenas dois venderam e/ou alugaram suas casas para alunos da Faculdade UNIVERSO (Universidade Salgado de Oliveira), e duas das 214 casas do conjunto habitacional se transformaram respectivamente em uma lojinha de papelaria e fotocpia, e numa mercearia.

No que concerne interveno do Conjunto Josu Pinto, com relao ao espao de morar, destacaram-se as seguintes respostas:

Eu detesto esse lugar, aqui no lugar para gente morar!;

Isso aqui irmo, pra falar a verdade, um inferno!.

Eu mermo no gosto no, uma comunidade desunida. A gente fica triste, com medo de sair, num d pra ningum morar n, muita gente, confuso....

Onde eu mora antes o meu lugar;

A minha casa que minha mesmo era prpria n, quem perdeu fui eu que t aqui. E l no meu terreno, construram trs casas separadas, se eu soubesse no tinha aceitado no!

As respostas acima indicam que os moradores do conjunto Josu Pinto no estabeleceram vnculos com o lugar onde esto. O fato dos moradores do conjunto serem de reas de risco prximas, porm diferentes, foi decisivo para o no estabelecimento de vnculos e para a ausncia do sentimento de comunidade. Dessa forma, ao invs de laos de vizinhana, no Conjunto Josu Pinto so criadas verdadeiras rupturas, favorecendo a constantes conflitos entre os vizinhos. Mesmo que os moradores no tenham comentado nas entrevistas sobre a importncia da localizao do assentamento como forma de acesso cidade, foi percebido que muitos gostariam de voltar para o lugar anterior; evidenciando a sensao de perda vivenciada pelos moradores. Perda da liberdade, da tranqilidade, da propriedade, da vizinhana.

Tal fato sugere o respeito aos vnculos e laos de sociabilidade como determinantes para ampliao do direito Cidade, uma vez que com esses laos reforados, a comunidade pode se estabelecer enquanto atores polticos, facilitando a luta pela conquistas dos seus direitos, pois para a populao de baixa renda a vizinhana um fator determinante para reproduo da famlia, justamente por no terem acesso aos recursos pblicos, ou seja, a vizinhana/laos de sociabilidade os fortalecem enquanto sujeitos sociais e polticos.

Alm disso, se encontram nas respostas dos moradores do Josu Pinto, as reclamaes sobre a ausncia do ttulo da casa, pois segundo eles, onde eles moravam era prprio, e no modelo de interveno urbanstica onde o regime de concesso real de uso adotado, quem sai perdendo, na percepo dos moradores, so eles prprios, pois nem a casa prpria.Diante do exposto, percebe-se que os moradores do conjunto habitacional Josu Pinto, - diferente do que foi encontrado no Conjunto Cafespolis-, no reconhecem o lugar da interveno como seu, no se apropriaram do espao de morar, pois quando ocorre a apropriao espacial, o espao definido por uma relao de posse, so criados vnculos perceptveis e imperceptveis, passando o humano, em alguns casos, at a vivenciar uma simbiose com o espao (MARQUES DA SILVA, 2005).

O exposto acima remete dialtica de Lefebvre sobre apropriao versus dominao do espao. Segundo esse autor, a lgica de uso, de vivncia, apropriao do espao j leva condio da posse, pois essa ltima surge como uma condio, um desvio desta atividade apropriativa. Ou seja, para Lefevbre, a apropriao e a dominao do espao deveriam aparecer juntas. Contudo, a lgica da acumulao tambm a lgica da sua separao, da sua contradio (LEFEBVRE apud HAESBAERT 2002). E essa lgica que parece influenciar a poltica urbana, fazendo com que em alguns casos - a apropriao do espao acontea para os moradores das reas das intervenes, mas no a dominao, uma vez que, ao invs do ttulo, eles assinam um contrato renovvel de concesso de uso. A apropriao foi separada a dominao.

Seguindo essa linha de raciocnio, os moradores dessas reas de interveno sero sempre os dominados e nunca os dominantes, pois podem at se apropriarem do espao, como o caso do Conjunto Cafespolis, mas nunca domin-lo, ter a posse; uma vez que no possuem o ttulo e esto proibidos de vender ou alugar suas casas. Tal regime parece, ento, no fortalecer estruturalmente os moradores dessas reas, condenando-os a no-autonomia, reafirmando a hegemonia da elite capitalista, como aquela que pode ter o direito propriedade privada, bem como vender ou alugar sua casa. Os efeitos dessa fora normatizadora da interveno estatal nesses espaos parecem, ento, reforar a desigualdade e a distino social, pois conforme expe Lago (2004), o regime de concesso pode favorecer a instituio de uma outra classe de cidados: os que s possuem o direito de uso da casa e do solo.

claro que o regime de concesso criado pelo Decreto Lei 271 de 1967, est visando conteno da expulso branca, isto , devido situao de vulnerabilidade em que esses moradores se encontram, eles facilmente seriam expulsos pelo mercado imobilirio, indo para novas reas ilegais. Contudo, o modelo de interveno proposto baseado nesse tipo de regularizao fundiria desfavorece aos moradores, ao invs de regular as aes do mercado imobilirio.

Observa-se, ento, o Estado assumindo a tal face repressora e autoritria presente no processo de espoliao urbana. A no possibilidade de vender a sua casa, se constitui em uma extorso de direito, direito esse constitucional, uma vez que todos so iguais na Carta Magna. Em outras palavras, o Estado est at realizando, atravs dessas intervenes urbansticas, seu papel de promotor de subsdios sociais. No entanto, ele no atua, no regula o mercado imobilirio, e sim espolia o morador, dando-lhe uma propriedade semiprivada, continuando a lubrificar as engrenagens do Capitalismo - usando emprestada a expresso de Kowarick no caso, o mercado de terra.

No estudo de Lago, a autora sugere a forma mais democrtica de proteo [da expulso branca] como o prprio gravame [da rea como Zona Espacial de Interesse Social], com normas especiais de uso do solo (lote mximo, coeficiente de edificao etc.) inibidoras do interesse dos empreendedores imobilirios por essas reas (INSTITUTO PLIS APUD LAGO 2004).

4.2. A CASA E A RUA

Quando interrogados sobre a casa, muitos moradores do conjunto Cafespolis mostraram-se satisfeitos com a unidade habitacional. Segundo eles:

Ela muito bonita, parece uma vilinha;

Acho ela um ovinho, no gosto, tudo muito pequeno.

Ela bem divididinha, n; mas a cozinha muito pequena, a gente tem que botar a geladeira na sala;

Eu gostei muito da casa, eu ampliei e fiz um quartinho pro meu filho e pra mulher dele, l atrs.

Eu gosto da casa, mas muito pequena, os espaos pequenos; a eu cresci ela e perdi o quintal, s ficou um corredorzinho, mas d pra estender as roupas.

boa, a casa que eu morava, dormia todo mundo no mesmo vo, aqui tudo divididinho. No tinha terrao, mas eu fiz, s falta agora rebocar.

Eu amo esse lugar, meus vizinhos aqui tudo pertinho e agora tem rua,no beco;

Para muitos moradores do Cafespolis, a casa onde eles estavam era ruim, no era de alvenaria, nem tinham os espaos divididos, sendo tudo em um nico vo e a casa oferecida, embora tenha as dimenses reduzidas (quarenta e dois metros quadrados) - pois a unidade habitacional tem como referncia os padres mnimos de habitabilidade-, proporcionou aos moradores criarem fortes vnculos com ela. Muitos chegaram a pint-las, adorn-las com plantas, e demais elementos responsveis por atribuir uma identidade a casa. O maior alvo de reclamaes foi a cozinha, de acordo com os moradores do Cafespolis, a cozinha muito pequena, a gente tem que botar a geladeira na sala.

O fato de a unidade habitacional permitir a ampliao parece ser decisivo para os moradores empregarem a sua identidade na casa, pois eles podem fazer as reformas segundo suas vontades. A ampliao da casa garantida porque as unidades habitacionais foram entregues com a estrutura preparada para mais um pavimento, alm de serem conjugadas duas a duas pela rea social, isto , pela parede da sala e da cozinha, preservando-se a privacidade dos quartos, graas a recuos laterais.

As falas acima sugerem alguns atributos espaciais percebidos positivamente pelos seus usurios: os recuos laterais, a possibilidade de expanso da casa, a presena de rua com caladas. Contudo, as dimenses reduzidas da casa, so percebidas negativamente, pois eles tm que optar entre uma rea pra estender roupas ou mais um quarto para a famlia, uma vez que a famlia da populao de baixa renda apresenta caractersticas diferentes da famlia da classe mdia, referncia do projeto de arquitetura da casa com dois cmodos.

No que concerne rua, muitos moradores responderam que gostavam da rua por ela ter calada e ser pavimentada, fatores que segundo os moradores, favorece a eles deixarem as crianas brincarem, pois a rua est sempre limpinha. Destacaram-se as seguintes respostas:

boa, tudo calado!

boa, mas teve uma obra no colgio que acabou quebrando a rua.

A rua boa com exceo do esgoto quando estoura e enche a rua todinha;

boa, essa daqui quando chove no entope, a coleta de lixo diria.

Essa rua a melhor, sem confuso de vizinhos. Esse vizinho era de l de onde eu morava, a gente se conhece desde l.

De acordo com as respostas acima, nota-se que nos dias de chuva algumas ruas entopem, embora que a interveno do Conjunto Cafespolis seja dotada de redes de esgoto, mas nem sempre elas funcionam, demonstrando o quanto a questo do saneamento ambiental responsvel pela ampliao do direito Cidade, muitas vezes negligenciada por essa modelo de interveno.

No que concerne ao conjunto habitacional Josu Pinto, muitos moradores comentavam que daqui pra dentro, meu filho, (referiam-se da porta da casa pra dentro) timo, agora, da pra fora..., ou ainda, eu no tenho muito a dizer no sobre a casa, ela at boazinha... eu no gosto mesmo do ambiente, do pessoal daqui. Ou seja, a maioria das respostas sugere que embora a casa no atenda s expectativas dos moradores, mas importante, era a questo do ambiente e das pessoas que ali moram, reafirmando as relaes de vizinhana como determinantes na apropriao do espao de morar.

Os moradores embora dizendo que gostaram da unidade habitacional, estavam insatisfeitos com algumas caractersticas. Segundo eles, seria melhor se fosse casa separada, porta com porta ruim demais, pois l no meu terreno, construram trs casas separadas, se eu soubesse no tinha aceitado no!.

As seguintes respostas se destacaram:

Pra quem tem famlia pequena boa, mas pra quem tem famlia grande, a casa muito pequena, a gente chega se sente sem liberdade;

como eu disse a voc, eu gosto da casa, mas o cara vem procurar outro aqui pra matar, no tem nmero nas casas, a vai na casa errada. como j aconteceu a varias vezes, n. O cara matou um pensando que era outro, ele bateu na porta errada.

A interveno urbanstica ao adotar casas conjugadas, sem serem soltinhas, acaba incentivando a existncia de cdigos entre os moradores baseados na lei do mais forte, pois os atributos espaciais adotados no conseguem definir claramente o pedao de cho de cada um. O conjunto Josu Pinto marcado pela existncia de toques de recolher, pelo ganguisterismo, vandalismo e pichaes; verdadeiras manifestaes de plena guerra vivenciada pelos moradores, um espao de morar no s precrio, mas principalmente, perigoso e hostil, onde os atributos espaciais como a repetio da mesma tipologia, reafirmam as condies urbanas espinhosas descritas por Kowarick.

A anlise neste estudo mostra, ento, o quanto forma de parcelar o solo importante para criao de um espao de morar de qualidade. A ausncia do lote unifamiliar condena os moradores do conjunto Josu Pinto a viverem em conflitos constantes, proporcionando pssimas condies urbanas de moradia. por isso que ao retornarem do dia de trabalho, eles dizem: quando eu venho pra c, chega sinto um peso nas costas, no corpo. So aqueles desgastes e fadigas descritos por Kowarick agora no mais no deslocamento trabalho casa, mas dentro do prprio espao de morar.

Neste caso estudado, a adoo de uma tipologia verticalizada e multifamiliar, estaria reafirmando as condies urbanas espinhosas descritas por Lcio Kowarick, favorecendo a baixa reproduo da fora de trabalho.

Nesse sentido, essa interveno urbanstica do Conjunto Josu Pinto, a qual visa ampliao do direito Cidade e a reduo da desigualdade, acaba afirmando seus moradores como subcidados, pois eles so obrigados a conviverem diariamente com a violncia urbana no espao de morar. Devido a isso, eles se sentem inseguros, amontoados feito casas de pombo. O fato de a unidade habitacional ser um embrio morto, isto , colada dos dois lados e com outra famlia acima, sem permitir a possibilidade de ampliao, decisivo para a baixa aceitao do espao de morar pelos seus usurios. Com isso, os moradores que ampliaram suas casas para fazerem um terracinho para as crianas brincarem ou uma barraquinha pra gente ganhar um dinheirinho, acabaram invadindo a rua, o espao pblico, acarretando em mais conflitos. As entrevistas demonstraram tambm uma insatisfao dos morados quanto idia da separao da pia do banheiro. Segundo eles, essa pia do lado de fora muito feio n, e muita falta de higiene. Tal fato ilustra que uma atitude de racionalizao do projeto, (pois colocar a pia separada do banheiro, permite uma otimizao do uso enquanto um usa o banheiro, outro escava os dentes), percebida pelos moradores de maneira estigmatizante.

As falas dos moradores do Conjunto Josu Pinto esto simplesmente evidenciando a precariedade do espao de morar, pois eles convivem constantemente com o barulho dos vizinhos, e com isso os meninos no dorme direito, um bate-bate medonho da outra casa; zoada de rdio, de televiso, isso aqui um inferno, irmo. Esses atributos espaciais acima descritos favorecem ao surgimento de duas comunidades: os moradores daqui mesmo referente queles que moram no bairro -, e os moradores do Carandiru referente aos residentes no Conjunto habitacional Josu Pinto, pois os moradores do bairro apelidaram o conjunto habitacional de Carandiru, nome tambm assumido pelos prprios moradores, uma vez que eles dizem que cada famlia tem a sua cela, que eles se sentem presos, sem liberdade.

Vale destacar que os moradores tambm batizaram o conjunto habitacional de Cingapura, o que remete as intervenes urbansticas implementadas desde o incio da dcada de 1990 na cidade de So Paulo, atravs do projeto PROVER (Programa de verticalizao de Favelas do Municpio de So Paulo) adotado na Gesto Paulo Maluf (1993-1997) e Celso Pitta (1997-2001), uma vez que o padro de tipologia do entorno do conjunto de casas terras e de lotes individuais adaptados ao relevo, fortalecendo a diferena entre as comunidades.

Outros atributos espaciais tambm parecem condenar seus moradores a serem marginalizados permanentemente, e inseguros. De acordo com eles, ... as casas aqui todas iguais, uma parecida com a outra, o ladro pode at entrar na casa errada n, mas Jesus no deixa n irmo, mas eu gosto da minha casa! Tal fala sugere que a mesma tipologia repetida vrias vezes alm de confundir os moradores, gera risco de morte nesses lugares dominados pela trfico e pela bandidagem.

No que diz respeito ao espao da rua, a entrevista revelou a existncia de outros atributos espaciais percebido como estigmas pelos seus habitantes. Como a malha do Conjunto habitacional Josu Pinto predominantemente marcada por linhas retas, caracterizada pela rigidez e pela uniformidade, as ruas assumiram a configurao de um espao montono e igual em todas as direes, se constituindo para seus moradores no corredor da morte. Como a calha da rua constante, isto , comeam com cinco metros de rolamento e segue aproximadamente setenta metros de comprimento sem variaes, ela se constitui num espao de confinamento, principalmente quando se considera a altura dos prdios habitacionais. So verdadeiros espaos de abandono, onde os moradores ficam sentados, parecendo pessoas esquecidas, assemelhando-se, de fato, a um presdio e seus detentos.

Um outro atributo espacial destacado nas falas dos moradores foi a rede de esgoto localizada no centro da rua. De acordo com eles, para saber se o lugar uma favela, se lugar de pobre, basta ver se tem esse esgoto no meio da rua. Fica evidente que a soluo adotada para a rua sem caladas e com a rede de esgoto central -, se constitui em um atributo espacial estigmatizador.

A questo da rede de esgoto passar no meio da rua influencia principalmente no saneamento ambiental da interveno urbanstica do Josu Pinto. Segundo seus moradores, a rua fica cheia de lixo, o pessoal quebra o piso, entope o caminho que passa no meio, fazendo do conjunto habitacional um lugar que s presta pra quem gosta de sujeira e povo. O conjunto habitacional Josu Pinto , ento, totalmente insalubre, reafirmando as condies urbanas espinhosas caractersticas da espoliao urbana. No h um espao apropriado mesmo que minimamente reproduo da fora de trabalho. O espao de morar do conjunto Josu Pinto est longe de ser a moradia digna compreendida pelo direito Cidade.

5. O QUE DIZ O AUTOR

Comecemos pela seguinte fala de uma moradora do conjunto de Cafespolis:

Aqui no favela no, como se fosse um condomnio fechado de pessoas de bem!

A fala acima sugere que para os moradores do Cafespolis, a rea no mais percebida como favela, eles no se percebem mais como favelados, mas sim como pessoas de bem. Contudo, tal fala tambm ilustra uma luta pelo reconhecimento da cidadania, uma luta contra o preconceito e os estigmas existentes sobre a favela, uma luta para se afirmar como cidados. Luta essa, constante, numa sociedade marcada pela dualizao social, conforme exposto pela teoria abordada neste trabalho. Essa fala ainda guarda outra revelao: um condomnio fechado. Tal expresso sugere que a populao de baixa renda assumiu o imaginrio da cidade dual, pois ela luta pelo seu reconhecimento como cidado, como pessoa de bem, e pelo seu direito de morar tambm num espao condomnio fechado. No entanto, a moradora sabe que o conjunto Cafespolis no se trata de um condomnio fechado, pois tal espao, como se fosse um condomnio fechado. Cabe, aqui ento, a seguinte problemtica: porque o condomnio fechado dos moradores do Cafespolis tem que ser com os atributos espaciais descritos anteriormente? E por que o condomnio fechado das elites urbanas apresenta outros atributos espaciais? Essa fala sugere a coexistncia entre as diferenas ou a reproduo da desigualdade atravs da regularizao/formalizao de um novo padro de bem-estar baseado nos atributos espaciais especficos para a populao de baixa renda?

Percebe-se que o projeto arquitetnico do Cafespolis, mesmo proporcionado grandes melhorias e ampliao do direito Cidade, tambm guarda princpios do planejamento urbano tecnicista, onde a escassez de espao e de recursos naturalizada, e a demanda de moradores a ser atendida por tais intervenes pblicas responsabilizada (culpabilizada) pela reduo do espao de morar; sendo, ento, propostas casas pequenas que no comportam a famlia e que acabam sendo como se fossem um condomnio de pessoas de bem.

Cabem aqui as seguintes questes: porque as casas dessas intervenes so iguais? Porque as necessidades dos moradores dessas reas so vistas de formas consensuais? Ser que a quantidade de pessoas a serem atendidas no refletem um planejamento urbano submisso ao oramento?

Enfim, a fala acima e a anlise dos atributos espaciais do Cafespolis, descritos anteriormente, parecem sugerir que os moradores do Conjunto Cafespolis foram includos de maneira desigual na cidade, pois eles receberam uma cidadania mnima baseada nas condies mnimas de habitabilidade. Embora a percepo dos moradores seja positiva em relao interveno urbanstica (pois eles se sentem mais felizes, mais realizados), ela ainda apresenta caractersticas dos padres mnimos estabelecidos na espoliao urbana, onde os direitos civis, sociais e polticos no so atendidos plenamente (lembrando que os moradores no possuem o ttulo da casa).

No que concerne interveno urbanstica do Conjunto Habitacional Josu Pinto, destacamos a seguinte fala de um morador:

Bem, isso aqui um inferno, mas como pobre esse o meu lugar!

A fala acima sugere a internalizao dos estigmas pelos prprios moradores, uma vez que como pobre, ali seu lugar. Os moradores do Conjunto Josu Pinto se reconhecem como os favelados, como aqueles que no tm direito moradia digna, pois at mesmo eles definem que moram num inferno. A fala acima e os atributos espaciais analisados parecem sugerir que os moradores do Conjunto Josu Pinto foram condenados subcidadania, isto , a uma cidadania inferior e precria, onde os direitos civis, sociais e polticos no so atendidos nem minimamente.

O projeto arquitetnico do Conjunto Habitacional Josu Pinto, embora tenha proporcionado algumas melhorias, tambm guarda princpios do planejamento urbano tecnicista, conforme observado no Conjunto Cafespolis. No entanto, a anlise das falas dos moradores do Josu Pinto sugere que eles vivem em condies urbanas subnormais, precrias, miserveis, ficando evidente no referido conjunto habitacional a presena de atributos espaciais que reafirmam a espoliao urbana, a pauperizao e a estigmatizao da vida, onde mais uma vez, a quantidade de moradores vista como o fator responsvel para a reduo dos padres de bem-estar, da qualidade do espao de morar.

E ficou percebido com a anlise dos atributos espaciais, que muitos desses atributos reforam essa situao de vulnerabilidade social, assumem a face de formas espoliativas e estigmatizantes, no os integrando cidade, mas sim internalizando nos prprios moradores o hiato social, a desigualdade e a marginalizao, condenando-os subcidadania.

CONSIDERAES FINAISDiante da anlise comparativa desenvolvida acima, cabe retornar questo proposta neste artigo: poderiam as intervenes urbansticas baseadas na adoo de padres urbansticos especficos para a populao de baixa renda se constiturem na materializao do discurso de ampliao do direito Cidade presente na poltica urbana desenvolvida pelo Ministrio das Cidades, ou estariam tais intervenes reproduzindo a desigualdade, reafirmando a espoliao urbana? As duas intervenes analisadas, mesmo que em intensidades diferentes, demonstram que existem atributos espaciais baseados nos padres especficos para a populao de baixa renda que so percebidos de formas negativas e estigmatizadoras pelos prprios moradores. Elas sugerem que um dos princpios bsicos dessas intervenes urbansticas o pressuposto da naturalizao da escassez, isto , para atender a muitas famlias faz-se necessrio reduzir ou redefinir padres urbansticos baseados nas condies mnimas de habitabilidade. Parece ser da, e no da idia de respeito s especificidades, que surgem as dimenses reduzidas do espao de morar.

Esse um ponto significativo, pois uma das prerrogativas do PREZEIS e das intervenes urbansticas baseadas em aes de urbanizao e regularizao fundirias de reas pobres centrais o respeito s especificidades locais, e devido a isso, a adoo de padres urbansticos especficos. Um dos princpios contidos na lei do PREZEIS o respeito s caractersticas locais de cada comunidade: respeitar a tipicidade e caractersticas das reas quando das intervenes tendentes urbanizao e regularizao fundiria (PREZEIS, 1997,p.18).

Essa idia de respeitar a tipicidade bastante coerente, uma vez que muitos padres urbansticos da cidade dita formal no se adequam realidade vivida pela populao de baixa renda. A palavra tipicidade, por sua vez, definida no dicionrio Aurlio, como qualidade do que tpico, que distingue uma pessoa. Nesse sentido, compreende-se que a tipicidade de um local, de uma rea, aquilo que a faz distinta, diferente. Ou seja, no a adoo de padres urbansticos baseados nas condies mnimas de habitabilidade que se traduz em respeito tipicidade local, no propondo uma dimenso de cozinha onde tem que se colocar a geladeira na sala, muito menos, atravs de um pequeno banheiro, onde a pia fica do lado de fora, pois para os moradores, isso muito feio, n. Nos casos estudados, de acordo com os moradores, o respeito tipicidade talvez fosse alcanado se a casa tivesse espao pra cuidar de planta e cuidar de cachorro, se fosse soltinha, se no fosse porta com porta, se as unidades habitacionais no fossem todas iguais, pois as casas todas iguais, uma parecida com a outra, o ladro pode at entrar na casa errada n, mas Jesus no deixa n irmo.

Evidencia-se aqui, uma outra problemtica: qual tipicidade deve ser respeitada pelos projetos de arquitetura para a populao de baixa renda? Respeitar a miserabilidade herdada da espoliao urbana se traduz em respeito s especificidades? At que ponto as especificidades da populao de baixa renda no representam as misrias da espoliao urbana, da falta de oportunidade, da ausncia de educao, de renda, de acesso cultura?

A anlise das intervenes estudadas parece sugerir que a populao de baixa renda no sabe morar em condomnio, uma vez que a ausncia de lotes individuais gera conflitos entre eles. E at mesmo a idia de otimizao de projeto (lavabo), muito utilizada para a classe mdia, foi rejeitada e vista como estigma pela populao de baixa renda. Assim, destaca-se a seguinte pergunta: quais diferenas e especificidades devem ser mantidas? As diferenas resultantes da espoliao urbana? A incluso social no vai acontecer apenas proporcionando o acesso casa e cidade. Faz se necessrio uma mudana de paradigmas entre as classes sociais, onde o acesso a cultura e educao sejam efetivados.

A urbanizao de favelas com a adoo de padres urbansticos mnimos, justificados ou no pelo respeito tipicidade local, pode at resolver os problemas de saneamento ambiental, de moradia, mas, como disse Maricato (2006), no melhora o nvel de escolaridade ou de alfabetizao, no organiza as mulheres para melhorar o padro de vida, nem ajuda na organizao de cooperativas de trabalho. Em outras palavras, a urbanizao no necessariamente trs transformaes sociais, uma vez que enfrentar a desigualdade se traduz na redistribuio do poder, em transformar indivduos estigmatizados em sujeitos autnomos, capazes de lutar por seus direitos.

A anlise comparativa das intervenes do Cafespolis e do Josu Pinto sugere que essa transformao social est longe de acontecer no que depende desse modelo de urbanizao, pois esses padres urbansticos mnimos (ou especficos), ao invs de respeitar a tipicidade, regularizam mecanismos espoliativos e atributos espaciais estigmatizantes, onde os direitos urbanos so tratados de maneira desigual, ou inferior cidade legal.

Regularizar um lote de dezoito metros quadrados como estipula o PREZEIS, regularizar uma casa com padres de esttica inferior (revestimentos e acabamentos), regularizar ruas sem caladas e com uma calha central de rede de esgoto, no significa respeito tipicidade, mas sim a institucionalizao dos mnimos de bem-estar produzidos pela espoliao urbana. Nesse sentido, esse modelo de interveno urbanstica reafirma as desigualdades scio-espaciais, e despreza as diferenas. Elas integram os moradores dessas reas como desiguais, como inferiores, pois, como pobre, esse o meu lugar.

Verificou-se tambm, no olhar deste artigo, que tal poltica urbana baseada nas intervenes urbansticas com a adoo de padres urbansticos mnimos, muitas vezes causam verdadeiras cises nas comunidades. O exemplo do desrepeito aos laos de sociabilidade que ocorreu no Josu Pinto tambm acontece em muitas outras comunidades. E essa quebra dos laos de sociabilidade se caracteriza numa reduo da capacidade organizativa da comunidade; favorecendo ao surgimento de cidados individualistas, enfraquecendo o protagonismo da comunidade e a sua capacidade emancipatria no processo de luta por seus direitos. Seguindo essa linha de raciocnio, cabe aqui uma pergunta: essas intervenes urbansticas compreendem a regularizao dessas reas pobres da cidade, como forma de emancipao/mudanas sociais ou como simples formas de incluso com permanncia da vunerabilidade?

Ao que parece, que as intervenes realizadas pelo poder pblico em reas pobres da cidade percebem as aes regulatrias como simples formas de incluso, mantendo-se a situao de vunerabilidade da populao de baixa renda e desprivilegiam aspectos emancipatrios, isto , possibilidades de gerao de renda, de autonomia, de formao de sujeitos sociais e polticos, pois condenam seus moradores cidadania desigual (Interveno do Cafespolis) ou subcidadania (Interveno do Josu Pinto). Esse no privilgio dos aspectos emancipatrios parece ficar mais evidente, quando se percebe que tais intervenes pblicas no se traduzem em verdadeiras inverses de prioridades, no tocante questo da desigualdade scio-espacial, pois nelas, o oramento que determina as aes do planejamento urbano. E no as necessidades e prioridades do planejamento urbano (da populao) que definem os recursos do oramento. Nas palavras de Rose Mariae Inojosa,

[...] atualmente, oramento que determina o planejamento, a partir de embates entre grupos de interesse que definem a distribuio do oramento, assim como definem, depois a liberao dos recursos (CADERNOS FUNDAP, 2001, p.107).

Como, ento, essas intervenes de urbanizao em reas pobres da cidade realizadas pelo Estado, podem se constituir num projeto poltico transformador, se elas no mudam de paradigma, se elas ainda compreendem como inquestionveis os processos de ocupao/uso do solo ditados pela lgica capitalista, onde a moradia, os equipamentos, a infraestrutura e os servios urbanos so objetos de apropriao privada da riqueza socialmente produzida e que espoliam as classes mais baixas do direito Cidade (RIBEIRO,1996). Percebe-se, claramente, uma semelhana com o Estado descrito por Kowarick, onde os recursos estatais so canalizados para os imperativos da acumulao de capital em detrimento daqueles mais diretamente acoplados reproduo da fora de trabalho (KOWARCIK,1979).

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unidades habitacionais do Conjunto Cafespolis.

A cozinha do Conjunto Cafespolis, alvo das maiores reclamas maiores reclamaes, pois a geladeira tem que ser colocada na sala.

Planta baixa das unidades habitacionais do Cafespolis, conjugadas duas a duas pela parede social, e preservando-se os recuos laterais entre os quartos.

Fonte: acervo do autor.

Recuo entre as unidades habitacionais do Conjunto Cafespolis, garantindo a privacidade dos quartos.

Fonte: acervo do autor.

A ausncia de espao para as crianas brincarem. A invaso da rua para cultivo de plantas Conjunto Habitacional Josu Pinto

Fonte: Diretoria de Habitao Prefeitura da Cidade do Recife.

Devido a ausncia de espao para cuidar de animais, os moradores criaram uma pequena coberta atrs das unidades habitacionais.

Fonte: Diretoria de Habitao Prefeitura da Cidade do Recife.

A soluo da rede de esgoto passando no centro da rua percebida como lugar de pobre Fonte:Diretoria de Habitao Prefeitura da Cidade do Recife.

O comprimento muito longo das ruas, aproximadamente 70metros reforam o corredor da morte com a rede de esgoto no centro. Fonte: acervo do autor.

Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade Federal de Pernambuco e especialista em Polticas Pblicas e Planejamento Urbano pelo IPPUR - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional. Orientao: Prof Dr. Luciana Lago. E-mail do autor: HYPERLINK "mailto:[email protected]" [email protected]

As duas intervenes em reas pobres estudadas nesse artigo foram objeto de estudo da monografia de concluso do curso de Arquitetura e Urbanismo defendida em 2005 na Universidade Federal de Pernambuco pelo autor desse trabalho, quando o mesmo integrava a Diretoria de Habitao da Cidade do Recife, nos anos de 2002 2004. Dessa forma, os dados coletados para esse primeiro trabalho serviro de base para o problema aqui proposto.

Essa viso dual da cidade apenas uma das vises de segregao que, inclusive, reduz enormemente a complexidade socioterritorial da grande cidade.

O conjunto habitacional Hlio Seixas na RPA 2, com 200 unidades habitacionais de 36m, sendo entregue em Julho de 2005; o conjunto habitacional Casaro do Cordeiro na RPA 4, com 760 unidades habitacionais de 40m, entregue em dezembro de 2006; o conjunto habitacional Jiqui na RPA 5, com 208 unidades habitacionais de 40m, entregue em abril de 2008; o conjunto habitacional Stio Salamanta na RPA 6, com 64 unidades de 35m, entregue em maro de 2008; e,o conjunto habitacional Abenoada por Deus na RPA 3, com 428 unidades habitacionais de 39m, entregue em julho de 2008 .

O Embora o lder comunitrio do Conjunto Cafespolis tenha falado que muitos moradores repassaram a casa para outros, mesmo sem o ttulo, constituindo uma venda ilegal.

Essa questo da tipologia verticalizada e multifamiliar ser problematizada nas consideraes finais.

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