Artigo_Genesco Alves de Sousa_Ricardo Oliveira de Freitas

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  ALÉM DA CAIXA PRETA: A IDENTIDADE AFRO- BRASILEIRA NA FOTOGRAFIA DE EUSTÁQUIO NEVES Genesco Alves de Sousa  Universidade Estadual de Santa Cruz    UESC [email protected] Ricardo Oliveira de Freitas **  Universidade do Estado da Bahia    UNEB [email protected]  RESUMO: O artigo apresenta uma análise da obra e do processo criativo do fotógrafo afro-brasileiro Eustáquio Neves, tendo como corpus a série fotográfica “Máscara de punição” (2002 -2003). As reflexões são inspiradas na “Filosofia da fotografia” de Vilém Flusser (1985), assim com nas contribuições de Stuart Hall (2005), Muniz Sodré (2005) e Boris Kossoy (1999; 2002). O artigo pretende contribuir para o estudo das referências simbólicas que envolvem os processos de valorização e de reconhecimento das identidades afro-brasileiras no âmbito da cultura nacional. PALAVRAS-CHAVE:  Identidade Afro brasileira   Imagem   Representação BEYOND THE BLACK BOX: AFRO-BRAZILIAN IDENTITY IN EUSTÁQUIO NEVES  PHOTOGRAPHY ABSTRACT: The paper presents an analysis of the work and the creative process of the photographer african-Brazilian Eustáquio Neves, whose corpus the photographic series “ Mask of punishment  (2002- 2003). The reflections are inspired by the “  philosophy of photography by Vilém Flusser (1985), and with the contributions of Stuart Hall (2005), Muniz Sodré (2005) and Boris Kossoy (1999; 2002). The article  Mestre em Letras: Linguagens e Representa ções pela UESC/FAPESB; Especialista em Educação e Relações Étnico-Raciais pela mesma instituição; Graduado em Artes Plásticas pela Escola Guignard/ UEMG; Realizou Residência Artística na EICTV    Escola Internacional de Cinema e Televisão San Antonio de Los Baños/CUBA. Coordenador do projeto Além da Caixa Preta: Interações Audiovisuais/SECULT/BA. **  Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Pós-Doutor pelo Programa Avançado de Cultura Contemporânea    PACC/Fórum de Ciência e Cultura    FCC da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Grupo de pesquisa CARPA   Contemporaneidade em Artes e Pesquisas Articuladas.

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  • ALM DA CAIXA PRETA: A IDENTIDADE AFRO-

    BRASILEIRA NA FOTOGRAFIA DE EUSTQUIO NEVES

    Genesco Alves de Sousa

    Universidade Estadual de Santa Cruz UESC [email protected]

    Ricardo Oliveira de Freitas**

    Universidade do Estado da Bahia UNEB [email protected]

    RESUMO: O artigo apresenta uma anlise da obra e do processo criativo do fotgrafo afro-brasileiro

    Eustquio Neves, tendo como corpus a srie fotogrfica Mscara de punio (2002-2003). As reflexes so inspiradas na Filosofia da fotografia de Vilm Flusser (1985), assim com nas contribuies de Stuart Hall (2005), Muniz Sodr (2005) e Boris Kossoy (1999; 2002). O artigo pretende contribuir para o

    estudo das referncias simblicas que envolvem os processos de valorizao e de reconhecimento das

    identidades afro-brasileiras no mbito da cultura nacional.

    PALAVRAS-CHAVE: Identidade Afro brasileira Imagem Representao

    BEYOND THE BLACK BOX: AFRO-BRAZILIAN

    IDENTITY IN EUSTQUIO NEVES PHOTOGRAPHY

    ABSTRACT: The paper presents an analysis of the work and the creative process of the photographer

    african-Brazilian Eustquio Neves, whose corpus the photographic series Mask of punishment (2002-2003). The reflections are inspired by the philosophy of photography by Vilm Flusser (1985), and with the contributions of Stuart Hall (2005), Muniz Sodr (2005) and Boris Kossoy (1999; 2002). The article

    Mestre em Letras: Linguagens e Representaes pela UESC/FAPESB; Especialista em Educao e

    Relaes tnico-Raciais pela mesma instituio; Graduado em Artes Plsticas pela Escola Guignard/

    UEMG; Realizou Residncia Artstica na EICTV Escola Internacional de Cinema e Televiso San Antonio de Los Baos/CUBA. Coordenador do projeto Alm da Caixa Preta: Interaes

    Audiovisuais/SECULT/BA.

    ** Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Ps-Doutor pelo Programa

    Avanado de Cultura Contempornea PACC/Frum de Cincia e Cultura FCC da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Comunicao e Cultura pela UFRJ. Grupo de pesquisa

    CARPA Contemporaneidade em Artes e Pesquisas Articuladas.

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    contributes to the study of symbolic references that involve the process of recovery and recognition of

    african-Brazilian identities within the national culture.

    KEYWORDS: African-Brazilian Identity Image Representation

    INTRODUO

    A abolio marcou o incio de uma nova era no Brasil, contribuindo para

    romper com a noo de atraso vinculada permanncia do trabalho escravo. A partir

    deste evento, intensificaram-se o desejo e as iniciativas nacionais para provar a

    capacidade brasileira de responder positivamente s exigncias impostas pela

    Modernidade.

    As iniciativas imbricaram-se com os desafios trazidos pelo deslocamento do

    lugar social dos escravizados para a condio de cidados livres, cuja presena exps

    empiricamente as contradies de um projeto de identidade nacional que presumia a

    invisibilidade desta parcela da populao.

    Contradies estas que traduziram uma relao conflituosa e problemtica com

    o tempo armada pela nao brasileira na busca por uma imagem que lhe assegurasse

    coerncia interna e um lugar no rol das naes modernas. Mesclando assim, realidade e

    imaginao atravs das representaes de um passado com o qual no seria sensato

    contar, de um presente com o qual se constatava o indesejvel e de um futuro baseado

    em projees questionveis.

    Na atualidade, estas representaes se materializam em expresses tais como

    brasileiro tem memria curta ou o Brasil o pas do futuro, cujos significados

    aparecem ligados compreenso do papel desempenhado pela fotografia na afirmao

    da identidade brasileira e na divulgao da modernizao do pas.

    Confundindo-se com a prpria modernidade, a fotografia despontou-se no

    cenrio internacional oitocentista, concomitante ao desenvolvimento das teorias

    evolucionistas, como um instrumento de divulgao da imagem ideal do Brasil. Para

    uma nao sem memria, cuja identidade ideal se transformou em uma aposta no futuro,

    a fotografia forneceu provas do desenvolvimento no presente e transformou-as em

    documentos para as prximas geraes.

    A credibilidade das imagens fotogrficas foi decisiva para elaborar um

    contraponto ao legado iconogrfico e aos relatos dos viajantes estrangeiros que

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    transitaram pelo pas durante o sculo XVI e o sculo XVII. Apesar de no romper o

    vnculo com a noo do extico, as novas imagens destacaram o processo civilizatrio,

    contribuindo para diminuir o peso das noes de selvageria e primitivismo veiculadas

    atravs deste mesmo legado e legitimar outras representaes.

    Os resultados deste processo ficaram estampados em uma nova iconografia

    que, paradoxalmente, provou o potencial nacional para o desenvolvimento, embora

    mantendo uma representao hierarquizada dos seus tipos humanos. Dessa maneira, a

    fotografia manteve-se vinculada ao aparato terico utilizado para pensar e definir a

    identidade nacional, sobretudo atravs da relao entre o seu aperfeioamento tcnico e

    a emergncia dos processos de recenseamento e normatizao social da poca.

    Em funo desta hierarquizao justificada pela obsesso cientificista que as

    viam como um entrave para o desenvolvimento, as representaes culturais afro-

    brasileiras quando no foram severamente coibidas, silenciadas ou distorcidas, foram

    cooptadas como um produto genrico da cultura popular brasileira.

    Revisando o vasto histrico de atuaes, confrontos e negociaes de

    diferentes grupos afro-brasileiros, junto com outros Movimentos Sociais, identificamos

    como suas contribuies, atravs de importantes conquistas no campo dos direitos civis

    e avanos do conhecimento acerca da diversidade cultural, sugerem uma reviso da sua

    participao na histria e na formao da cultura nacional.

    Neste contexto, a abordagem da cultura afro-brasileira enquanto cultura do

    outro se destaca, sugerindo que determinadas imagens do afro, elaboradas pelos

    prprios afro-brasileiros podem atuar criticamente sobre a narrativa da nao,

    introduzindo dissonncias e outros cdigos que levam a outras possveis interpretaes.

    Neste trabalho, recorremos obra de Eustquio Neves, fotgrafo afro-

    brasileiro reconhecido internacionalmente, com o intuito de analisar de que maneira a

    presena afro e determinados elementos da cultura negra brasileira referenciam e

    manifestam-se no mbito da produo visual contempornea, vislumbrando

    compreender suas contribuies para o entendimento da questo da identidade nacional.

    A produo de Eustquio Neves apresenta uma abordagem peculiar da

    presena afro que no se enquadra nas representaes estereotipadas sobre o lugar e o

    papel social deste personagem na cultura brasileira, sugerindo ao mesmo tempo um

    rompimento com as convenes da fotografia tradicional.

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    IMAGEM E NAO

    Decorrente das presses internacionais, cujos resultados incluem a proibio do

    trfico internacional de escravos africanos, a abolio do sistema escravocrata

    completou um ciclo de eventos, entre os quais figuram a chegada da Corte Portuguesa

    na Colnia, a elevao da categoria Colnia a Reino Unido e, posteriormente, a

    Proclamao da Repblica, que provocaram rearranjos sociais, concorrendo, cada um

    sua maneira, para a configurao de uma imagem nacional.

    Trata-se da construo de uma imagem nacional definidora da identidade

    brasileira. Uma narrativa da nao cujos significados, mesmo no estando

    literalmente expressos na constituio gentica dos brasileiros, seriam considerados

    como parte da nossa natureza essencial.1

    Destacando-se entre os demais eventos, a abolio forneceu a senha para o pas

    sair do estgio da barbrie escravocrata e assumir o seu lugar no rol das naes

    modernas, apresentando simultaneamente um desafio para a elaborao desta narrativa

    nacional atravs do deslocamento social dos ex-escravizados para a condio de

    cidados livres.

    Os escravizados foram tratados como bens e mercadorias e no como seres

    humanos. Aps a abolio nenhuma medida efetiva foi tomada para o seu

    reconhecimento e a sua integrao socioeconmica, mas sua nova condio social

    despertou o interesse dos intelectuais encarregados de pensar o pas, pois sua

    permanncia como cidados livres constitua a prova emprica dos antagonismos raciais

    brasileiros, problematizando a elaborao de um discurso unificador.

    Se, antes de 1888 j havia um consenso mnimo acerca da noo de um Estado

    unificado e com fronteiras definidas, faltava nao, entretanto, em termos de coeso

    grupal, completar o processo de diferenciao interna pelo qual seria definida e

    afirmada a sua identidade autnoma.2

    Nesse contexto, a temtica racial transformou-se em um poderoso argumento e

    contribuiu para definir e estabelecer as diferenas sociais. Adaptadas realidade

    1 HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo de Tomaz Tadeu da Silva,

    Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 50-51.

    2 SODR, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A,

    2005, p. 40.

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    brasileira, as mximas do evolucionismo social em voga na Europa naquele momento

    exerceram grande influncia sobre a produo dos intelectuais brasileiros, sobretudo a

    partir da noo de que as raas humanas no permaneciam estacionadas, mas em

    constante evoluo.3

    Nos primeiros estudos sobre o negro no Brasil, como aqueles que foram

    realizados pelo pioneiro Nina Rodrigues, os vestgios desta influncia so traduzidos em

    argumentos sobre a inferioridade racial do negro, condenando-o por sua prpria

    morfologia e fisiologia a jamais se igualar o branco.4

    Atualmente estes argumentos passam por revises e ajustes. A noo biolgica

    de raa foi confrontada com outras definies, possibilitando interpretaes mais

    abrangentes do termo, inclusive considerando suas dimenses sociais e polticas.

    Originalmente, a noo biolgica foi utilizada no discurso nacional unificador e

    contribuiu para transformar os africanos e seus descendentes em estrangeiros.5

    No Brasil, este processo assumiu caractersticas bem peculiares, pois enquanto

    o desaparecimento gradual dos indgenas foi dado como certo e inevitvel, a

    permanncia dos negros transformou-se, sob a luz de um descompasso bastante ntido

    entre realidade e imaginao, em problema. Como tornar-se uma nao moderna sem se

    afastar da vergonha e do atraso que a escravido representava? Como imaginar tal

    afastamento sem negar a realidade de um contingente populacional constitudo

    predominantemente por ex-escravos?

    RETRATANDO AS DIFERENAS

    A definio da identidade nacional brasileira insere-se no contexto de acirrada

    concorrncia internacional. As invenes foram utilizadas pelas naes modernas para

    provar e divulgar o seu desenvolvimento. Assim como o telgrafo, o telefone e os

    motores exploso, a fotografia tambm se destacou como testemunha do progresso

    nacional, principalmente pela sua credibilidade.

    3 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das Raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil

    1870-1930. So Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 18.

    4 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1976, p. 268.

    5 NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilgio da cor: identidade, raa e gnero no Brasil. So Paulo:

    Summus, 2003, p. 127.

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    Em relao identidade brasileira, a fotografia contribuiu para transformar a

    imaginao em realidade documentada. Com um passado e um presente que no nos

    favoreciam, restava apostar em uma meta para o futuro. Para isso, nada melhor que um

    sistema de representao que o fizesse de maneira objetiva e irrefutvel.

    Atravs das imagens fotogrficas, a nao produziu as evidncias do seu

    desenvolvimento, registrando os processos de urbanizao, as melhorias na

    infraestrutura de transportes e as riquezas oriundas da cafeicultura. Por outro lado, sua

    diferena no cenrio internacional foi determinada tambm pelo que apresentava de

    novidade em relao s demais naes. As suas paisagens exuberantes, seus recursos

    naturais no-explorados e seus tipos humanos exticos.6

    Atravs da esttica do extico, muitos fotgrafos se destacaram produzindo

    sries etnogrficas que mostravam homens negros e mulheres negras vestidos no padro

    aristocrtico da poca, em contraposio com as imagens produzidas e veiculadas

    durante a escravido.7 Testemunhava-se assim o processo evolutivo de uma parte da

    populao que at pouco tempo atrs nem era considerada como seres humanos.

    Em suas prprias fronteiras, o interesse europeu pelo extico estava

    relacionado com o desenvolvimento da representao e da auto-representao do

    indivduo, decorrente da ascenso da burguesia e da sua crescente necessidade de

    personalizao. A fotografia contribuiu para consolidar o projeto de identidade

    burguesa, sobretudo com a inveno do formato carto de visita em 1850, um

    aperfeioamento tcnico que elevou o retrato fotogrfico categoria de instrumento de

    normatizao social que poderia tanto exaltar os feitos do indivduo como enquadr-lo

    nos mais variados desvios da norma social.8

    Como instrumento de identificao e distino social, a fotografia deu o

    impulso decisivo para afirmar a imagem ideal do burgus, contribuindo

    simultaneamente para intensificar o interesse por outras realidades, atravs do registro e

    da documentao de lugares, situaes, costumes e indivduos no-ocidentais.

    6 TURAZZI, Maria Inez. Poses e trejeitos: a fotografia e as exposies na era do espetculo

    1839/1889. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 138.

    7 KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu: o negro na iconografia

    brasileira do sculo XIX. So Paulo: EDUSP, 2002, p. 67-71.

    8 FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais: uma leitura do retrato fotogrfico. Belo Horizonte:

    Editora UFMG, 2004, p. 28.

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    Nesse sentido, as sries etnogrficas contriburam para divulgar nossa

    capacidade de evoluo aproveitando a curiosidade externa pela nossa diferena e o

    interesse na afirmao da identidade burguesa europia. Ao contemplar estas imagens o

    que se v no apenas a realidade, mas as concepes daquilo que ela deveria ser.

    Como resultado de uma construo o retrato fotogrfico oitocentista atestou a

    determinao exercida pelas normais sociais na elaborao das imagens, sugerindo que

    alm de registrar, a fotografia contribua para instituir novas realidades.

    IMAGEM E TCNICA

    Existem diversas histrias da fotografia e muitos que reivindicaram para si a

    autoria da sua inveno. Dessa maneira julgamos mais prudente considerar a fotografia

    como o resultado de uma srie de tentativas independentes de registrar imagens

    analgicas bidimensionais formadas a partir do aparato da cmera escura, conhecido

    desde a antiguidade.

    Oficialmente, a descoberta da fotografia foi anunciada publicamente na

    Frana em 1839. A partir de 1850, com a inveno do formato carto de visita, a nova

    descoberta deixou de ser um privilgio de um pequeno grupo de amadores e

    interessados com condies de pagar seus altos custos e experimentou uma dimenso

    industrial. Em meados de 1880, a fotografia massificou e transformou-se em um

    fenmeno comercial.9

    Em agosto de 1840, chegou ao Brasil o primeiro equipamento fotogrfico.

    Quatro anos depois, diversos peridicos do Rio de Janeiro j publicavam anncios de

    servios fotogrficos e duas dcadas aps a chegada do primeiro equipamento

    fotogrfico, a cidade j contava com quatro casas especializadas no ramo, demonstrando

    como o desenvolvimento da fotografia imbricou-se com o os imperativos da prpria

    modernidade.10

    O cenrio do desenvolvimento industrial internacional, em que a maioria da

    populao era analfabeta e que a necessidade de informaes visuais era cada vez

    maior, tanto para fins polticos como comerciais, exigiu que a produo de imagens

    9 FABRIS, Annateresa. (Org.). Fotografia: usos e funes no sculo XIX. 2.ed. So Paulo: Edusp,

    1998, p. 17.

    10 TURAZZI, Maria Inez. Poses e trejeitos: a fotografia e as exposies na era do espetculo

    1839/1889. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 151.

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    fosse pautada por critrios de fidelidade, rapidez de execuo, baixo custo e

    produtividade, obtendo no processo fotogrfico uma resposta altura de tais

    demandas.11

    Diferente de sistemas tradicionais, como o desenho ou a pintura, em que a mo

    determina a transferncia das ideias previamente elaboradas na mente, atravs do lpis

    ou do pincel, para os suportes, o sistema fotogrfico combinou conhecimentos

    mecnicos, pticos e qumicos para produzir imagens atravs de um dispositivo tcnico,

    o aparelho fotogrfico.

    Neste processo de transformar imagens mentais em imagens fsicas, a suposta

    ausncia da mediao humana na fotografia garantiu-lhe mais credibilidade, em

    comparao com os sistemas tradicionais. Tal distino insere-se na tradio idealista

    ocidental a partir do pressuposto de que a excluso da subjetividade humana garante

    uma apreenso e um conhecimento do mundo mais confivel, relegando a um plano

    inferior as formas de apreenso que dependem exclusivamente dos sentidos humanos.

    Esta constatao relevante na medida em que ajuda a entender a supremacia

    da perspectiva geomtrica como regra de representao do espao e como a principal

    referncia explicativa do mecanismo da viso ocidental, demonstrando a predominncia

    de um modelo ideal em detrimento da real capacidade humana da viso.

    A diferena da fotografia em relao s imagens tradicionais no se reduz

    supresso da mediao humana, pois o aparelho que a viabiliza resultante do

    aproveitamento e da aplicao de conceitos cientficos. A fotografia uma imagem

    tcnica produzida indiretamente pela teoria.

    Ontologicamente, a imagem tradicional abstrao de primeiro grau:

    abstrai duas dimenses do fenmeno concreto; a imagem tcnica

    abstrao de terceiro grau: abstrai uma das dimenses da imagem

    tradicional para resultar em textos (abstrao de segundo grau);

    depois, reconstituem a dimenso abstrada, a fim de resultar

    novamente em imagem. Historicamente, as imagens tradicionais so

    pr-histricas; as imagens tcnicas so ps-histricas.

    Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as

    imagens tcnicas imaginam textos que concebem imagens que

    imaginam o mundo.12

    11

    FABRIS, Annateresa. (Org.). Fotografia: usos e funes no sculo XIX. 2.ed. So Paulo: Edusp,

    1998, p. 15.

    12 FLUSSER, Vilm. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. So

    Paulo: Hucitec, 1985, p. 10.

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    Esta diferenciao concorre para que as imagens tradicionais sejam facilmente

    identificadas como smbolos, enquanto que as imagens tcnicas so vistas

    superficialmente como resultado da impresso automtica da realidade sobre as

    superfcies, numa correspondncia ponto por ponto com o mundo, fazendo com que o

    observador deposite-lhes tanta confiana.

    Esta credibilidade est relacionada com o aparelho fotogrfico, cujo

    funcionamento pode ser explicado cientificamente. Obstante tal ressalva, tornou-se

    comum confiar nas imagens fotogrficas da mesma maneira que confiamos em nossos

    prprios olhos, mesmo no entendendo a complexa teoria cientfica que viabiliza sua

    existncia.

    Etimologicamente, fotografar o mesmo que escrever com a luz, sem luz no

    h fotografia e o aparelho fotogrfico consiste basicamente em um instrumento

    destinado a captar e controlar a luz. Da a importncia, para a fotografia, dos

    conhecimentos que versam, no mbito da Fsica, da Matemtica e da Qumica, sobre as

    caractersticas, as propriedades, o comportamento e o controle da luz.

    A dificuldade em perceber estes textos transforma os aparelhos em caixas

    pretas, verdadeiros brinquedos cujos modos de usar esto inscritas do lado de fora e

    com os quais podemos brincar facilmente, mesmo sem saber o que se passa no seu

    interior. Fotografar, sem perceber esta teoria, no passa de um gesto automtico graas

    ao qual o mundo vai aparecendo naturalmente.13

    IMAGEM TCNICA E LINGUAGEM ARTSTICA

    Ao diferenciar imagens tradicionais de imagens tcnicas, Vilm Flusser14

    utilizou os termos pr-histria e ps-histria, identificando histria com escrita e

    colocando no mesmo patamar revolucionrio a escrita linear e as imagens tcnicas como

    duas grandes invenes que transformaram a cultura ocidental

    No mbito artstico, o advento das imagens tcnicas contribuiu para acirrar a

    concorrncia entre dois modelos de representao, baseados respectivamente na viso

    monocular das lentes e na viso binocular humana. A insatisfao de alguns artistas com

    o modelo monocular levou-os a romper com o compromisso de representar

    13

    FLUSSER, Vilm. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. So

    Paulo: Hucitec, 1985, p. 5.

    14 Ibid.

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    mimeticamente a natureza e a produo de imagens passou a ser pautada pelos

    interesses individuais dos artistas em afirmar ou criticar a realidade.

    De posse de um olhar individualizado e diante da fragmentao e do fluxo de

    mudanas que caracterizaram a vida moderna, o artista procurou se libertar da tradio

    monocular buscando uma lgica prpria, rejeitando as referncias externas e voltando-

    se para a prpria linguagem numa busca incessante pela sua inovao.

    A inovao da linguagem e a irredutibilidade s definies externas se

    transformaram em pressupostos para afirmar a autonomia da arte e do artista. O debate

    artstico buscou seus fundamentos em pressupostos filosficos relacionados percepo

    sensvel e s novas experincias sobre o tempo e o espao, categorias em constante

    deslocamento.

    A partir do deslocamento destas categorias, muitos artistas passaram a

    questionar o que era a arte e quais os critrios para que a mesma fosse considerada,

    exibida e criticada como tal, questionando a perspectiva teleolgica que definiu e

    organizou os diferentes tipos de arte atravs da histria e abalando as noes de

    autonomia, evoluo, criao, na maioria das vezes atravs de efeitos extra-estticos.

    Este questionamento indicou uma afinidade cada vez maior entre arte e

    filosofia, trazendo consigo todos os riscos de reduzir a experincia artstica a um

    conceito, que como tal poderia ser interpretada como exposio de si mesma, mantendo-

    se encerrada no crculo restrito da arte pela arte. Por outro lado, ampliaram-se as

    possibilidades de interpretao, intensificando o interesse para alm do prprio objeto

    artstico e envolvendo cada vez mais as referncias extra-artsticas.

    At ento o artista fornecia a imagem e a narrativa se encarregava da moldura.

    O enquadramento da arte em uma narrativa histrica e universal da arte, cujos limites

    definiam a importncia e a autenticidade das propostas artsticas, tornou-se to

    importante quanto os prprios acontecimentos artsticos, os artistas e as obras. O que

    estivesse alm desses limites, ou no faria parte desta histria ou seria considerada

    como uma regresso, uma forma primitiva de arte.

    A partir do momento em que esse enquadramento foi minado por

    questionamentos filosficos acerca da natureza da arte, os outros entraram em cena e

    passaram a reivindicar o seu lugar de destaque, principalmente a partir de produes

    artsticas articuladas com a abordagem de temas como identidade, diferena, memria,

    gnero, raa, etnia, entre outros.

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    11

    IMAGENS: ABORDAGENS E INTERPRETAES

    No Ocidente, as imagens fsicas comearam a ser estudadas como

    manifestaes artsticas e desde os tempos mais remotos, sua interpretao esteve

    subordinada interpretao de textos, sejam estes filosficos, religiosos ou crticos

    especializados.

    At o sculo XVIII a discusso se concentrou em torno de uma concepo

    universal e atemporal da arte. As obras de arte no passavam de simples testemunhas

    de uma realidade passvel de ser reproduzida atravs de imagens. A funo do artista era

    produzir imagens cada vez mais fiis desta realidade.

    O advento da fotografia contribuiu para transformar a imagem artstica em

    documento histrico. Inicialmente, este documento manteve-se vinculado s noes

    idealistas tanto de histria como de arte, modificadas posteriormente pelo

    questionamento filosfico que o transformou em objeto de anlise desvinculado destas

    noes.

    A partir desta desvinculao, a idia de arte atemporal foi substituda por uma

    concepo hermenutica do documento histrico, passvel de anlise e interpretao,

    contribuindo para a diversificao das modalidades histricas da arte, entre as quais a

    iconologia ganha destaque.

    Como uma reao anlise predominantemente formal das imagens artsticas,

    a iconologia procurou desvendar seus significados deslocando o foco para a anlise dos

    contedos. Esta vertente ficou conhecida principalmente atravs do trabalho de Erwin

    Panofsky.15

    Em relao s abordagens anteriores, o mtodo desenvolvido por Panofsky

    apresentou importantes contribuies principalmente por que a imagem era concebida

    como um fenmeno cultural que, para ser entendido, impunha um conhecimento prvio

    sobre a cultura da qual fazia parte.

    Resumidamente, a proposta previa a combinao entre iconologia e

    iconografia, associadas respectivamente interpretao e anlise da imagem, cujos

    significados estariam estruturados em trs nveis distintos. O significado natural seria

    15

    PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Traduo Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg.

    So Paulo: Perspectiva, 1991.

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    apreendido atravs da configurao formal dos objetos e de sua relao com os

    acontecimentos. O significado convencional seria apreendido atravs da identificao

    de assuntos e conceitos manifestados nas imagens. Finalmente, o significado

    intrnseco seria apreendido atravs da identificao de valores simblicos, reveladores

    da atitude bsica de uma nao, de um perodo, classe social, crena religiosa ou

    filosfica.16

    Alguns pesquisadores consideram a proposta de Panofsky como uma adaptao

    da hermenutica de Friedrich Ast, cuja proposta de interpretao textual tambm prev

    trs nveis de significados. Esta relao motivou importantes questionamentos em

    relao tendncia logocntrica de considerar as imagens como meras ilustraes de

    ideias.17

    Apesar de suas limitaes, a iconologia constituiu, direta e indiretamente, uma

    referncia fundamental para os estudos das imagens. Resguardadas as respectivas

    adaptaes e atualizaes, encontramos no mbito atual do estudo da prpria histria

    algumas evidncias desta influncia e os seus desdobramentos.

    A proposta de Boris Kossoy18

    prev a utilizao de imagens fotogrficas como

    fontes ou documentos iconogrficos, cujos segredos podem ser desvendados por

    uma desmontagem do signo fotogrfico, atravs da anlise iconogrfica combinada

    com a interpretao iconolgica.

    Para Kossoy,19

    a fotografia um documento histrico dotado de duas

    realidades simultneas, uma realidade aparente, que corresponde dimenso do artefato

    tangvel, e uma realidade oculta, que corresponde dimenso da vida passada registrada

    no documento visual. A anlise iconogrfica consiste na decodificao das informaes

    gravadas no artefato e na recuperao de informaes sobre a sua materializao,

    enquanto que a interpretao iconolgica busca decifrar os significados alm do

    documento, resgatando a histria do assunto registrado e o processo de criao que

    possibilitou o registro.

    16

    PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. Traduo de Maria Clara F. Kneese e J.

    Guinsburg. So Paulo: Perspectiva, 1991, p. 30.

    17 BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. Traduo Rodnei

    Nascimento. So Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 208.

    18 KOSSOY, Boris. Realidades e fices na trama fotogrfica. So Paulo: Ateli Editorial, 1999, p. 20.

    19 Ibid.

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    13

    A grande contribuio desta proposta refere-se insero do processo criativo

    do fotgrafo como elemento constitutivo do documento fotogrfico, de maneira que

    alm das motivaes, concepes, finalidades e recursos tecnolgicos que determinam

    sua materializao, preciso levar em conta que este tambm o produto da

    interpretao do fotgrafo.

    Considera-se o carter ambivalente da fotografia concebendo-a

    simultaneamente como registro e criao. Entretanto, estamos nos referindo utilizao

    de imagens que mantm uma relao de analogia com o real em que prevalecem as

    noes de cone e de ndice. Na medida em que nos deslocamos da anlise dos

    documentos histricos cuja nfase est no texto para as imagens cuja pauta no

    determinada por uma preocupao testemunhal ou por relaes de analogia com o real,

    necessrio enfatizar tanto o processo criativo do fotgrafo como a dimenso simblica

    das imagens.

    Fotografias so imagens tcnicas que transcodificam conceitos em

    superfcies. Decifr-las descobrir o que os conceitos significam. Isto

    complicado, porque na fotografia se amalgamam duas intenes

    codificadoras: a do fotgrafo e a do aparelho. O fotgrafo visa

    eternizar-se nos outros por intermdio da fotografia. O aparelho visa

    programar a sociedade atravs das fotografias para um comportamento

    que lhe permita aperfeioar-se. A fotografia , pois, mensagem que

    articula ambas as intenes codificadoras. Enquanto no existir crtica

    fotogrfica que revele essa ambigidade do cdigo fotogrfico, a

    inteno do aparelho prevalecer sobre a inteno humana.20

    De acordo com Flusser,21

    para decifrar os significados da imagem fotogrfica,

    basta elucidar o processo de combate e colaborao entre as intenes do fotgrafo e do

    aparelho. Aparentemente simplificada, esta tarefa pressupe uma incurso pelas

    sutilezas que envolvem a relao entre as especificidades do meio e da identidade de

    quem produz as imagens, remetendo mais cedo ou mais tarde ao contexto scio-cultural

    no qual esto inseridos.

    ALM DA CAIXA PRETA: A IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA ATRAVS DA

    FOTOGRAFIA DE EUSTQUIO NEVES

    20

    FLUSSER, Vilm. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. So Paulo:

    Editora Hucitec, 1985, p. 25.

    21 Ibid., p. 26.

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    14

    Jos Eustquio Neves de Paula nasceu em Juatuba, Minas Gerais, em 1995.

    Trabalhou inicialmente como fotgrafo autnomo em campanhas publicitrias e

    projetos de documentao visual. Eustquio Neves, como mais conhecido, participou

    de importantes exposies individuais e coletivas no Brasil e no exterior, recebeu

    diversos prmios nacionais e internacionais e suas imagens passaram a fazer parte de

    importantes publicaes. Atualmente, Eustquio Neves vive em Diamantina, Minas

    Gerais, onde desenvolve projetos de fotografia e audiovisual. Sua obra uma referncia

    no universo da fotografia contempornea internacional.

    Em uma entrevista concedida a Sandra Persichetti,22

    Neves assumiu o carter

    autobiogrfico do seu trabalho. Na medida em que vai recuperando e contando sua

    prpria histria, elabora e apresenta reflexes sobre o significado de ser negro no Brasil.

    Pressupondo que a sua obra e o seu processo criativo podem vislumbrar outras

    possibilidades de leitura e interpretao das vertentes imaginrias afro-brasileiras

    contemporneas, este trabalho apresenta um estudo de caso sobre a srie fotogrfica

    Mscara de Punio (2002-2003), que integrou, com outras sries de sua autoria, a

    mostra Eustquio Neves: Exposio Panormica, no Museu de Arte da Pampulha, em

    Belo Horizonte, Minas Gerais, entre dezembro de 2010 e maro de 2011.

    Por ocasio da divulgao da mostra, o diretor do Museu de Arte da Pampulha,

    Rodrigo Reis concedeu uma entrevista destacando como a singularidade do processo

    criativo deste fotgrafo interfere na compreenso da sua proposta artstica. No primeiro

    encontro com o diretor, Eustquio Neves apresentou uma pequena caixa com

    aproximadamente vinte imagens e alguns croquis, a partir dos quais elaborava suas

    imagens. O curador quis saber quando poderia ver o restante do seu acervo e Neves

    respondeu-lhe que o conjunto da sua obra estava naquela caixa.

    A partir deste episdio, identificamos duas noes distintas em relao s

    imagens. Ao perguntar sobre o acervo do fotgrafo, o diretor esperava encontrar

    imagens tradicionais, cujas informaes que lhe conferem valor so indissociveis dos

    objetos que as materializam. O material apresentado por Neves, por sua vez, pressupe

    informaes capazes de se materializarem em diferentes suportes fsicos, cujos valores

    so variveis. Neste caso, o smbolo passa a valer mais que o objeto, provocando um

    22

    PERSICHETTI, Simonetta. Imagens da fotografia brasileira 2. So Paulo: Senac, 2000, p. 67.

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    15

    deslocamento da noo de propriedade e, consequentemente das relaes de poder que

    envolvem a produo de imagens.

    A fotografia enquanto objeto tem valor desprezvel. No tem sentido

    querer possu-la. Seu valor est na informao que transmite. Com

    efeito, a fotografia o primeiro objeto ps-industrial: o valor se

    transferiu do objeto para a informao. Ps-indstria precisamente

    isso: desejar informao e no mais objetos. No mais possuir e

    distribuir propriedades [...]. Trata-se de dispor de informaes

    (sociedade informtica). No mais um par de sapatos, mais um mvel,

    porm, mais uma viagem, mais uma escola. Eis a meta.

    Transformao de valores, tornada palpvel nas fotografias.23

    Em funo desta transformao, os fotgrafos so desafiados a ultrapassar os

    limites da programao original do aparelho fotogrfico. Em sua proposta, Eustquio

    Neves enfrentou este desafio expondo o carter ambguo da fotografia. Em Mscara de

    Punio, o fotgrafo utilizou um antigo retrato da sua me e sobre o mesmo realizou

    diversas intervenes fsicas e qumicas, incluindo a sobreposio da imagem de uma

    mscara de metal utilizada para castigar escravos.

    A srie apresenta trs fotografias isoladas que mostram o processo de fuso do

    retrato materno com a imagem da mscara. Em uma das fotografias possvel

    identificar uma mulher negra enquanto nas outras duas sua imagem confunde-se

    gradativamente com a mscara at o ponto em que no possvel distingui-las.

    No museu, as trs fotografias foram expostas como partes distintas de uma

    mesma composio. Se um expectador decidisse junt-las, na disposio exposta, a

    fuso s seria possvel mentalmente. Como parte dos procedimentos metodolgicos

    desta pesquisa, as trs imagens foram fotografadas separadamente e reunidas

    digitalmente para que fossem vistas em conjunto.

    23

    FLUSSER, Vilm. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. So Paulo:

    Hucitec, 1985, p. 27.

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    16

    Figura 1. Srie fotogrfica Mscara de punio. 110 X 150 (cada imagem).24

    Com este procedimento atestamos a possibilidade de interpret-las como uma

    seqncia cinematogrfica composta por trs fotogramas distintos (Figura 1). Em

    seguida, consideramos as possibilidades de deslocamento do expectador no interior do

    museu e em relao s imagens. Dependendo do percurso escolhido pelo expectador, a

    srie fotogrfica apresentaria duas seqncias possveis: uma fuso que ocultaria o

    retrato materno e mostraria a sobreposio da mscara ou uma sobreposio que aps

    ser desfeita revelaria a pessoa retratada.

    Na perspectiva de uma dinmica cinematogrfica, a srie apresentou duas

    possibilidades de leitura que podem ser relacionadas com diferentes maneiras de

    imaginar a localizao social da populao afro-brasileira e mais especificamente da

    mulher negra na sociedade brasileira, em dois momentos histricos distintos. A imagem

    da mscara sobreposta remete condio social da escrava, vista como um bem ou

    como uma mercadoria. A imagem materna, nos moldes do retrato de identificao

    oitocentista, refere-se condio social desta mesma mulher enquanto cidad livre.

    Completando a seqncia, a imagem intermediria sugere um ponto de vista

    ambguo em relao s duas imagens anteriores, funcionando como uma sntese atravs

    da qual o fotgrafo compartilha o desafio da elaborao de outras representaes da

    identidade afro-brasileira distintas das opes usuais de enquadramento. Expondo,

    portanto um questionamento a respeito dos critrios e das caractersticas que definem

    estas representaes.

    24

    Fotografia digital produzida pelo autor em 05/01/2011 no Museu de Arte da Pampulha, em Belo

    Horizonte.

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    17

    A interlocuo entre o intra e o extra-esttico evidencia-se na medida em que

    as dimenses sociais, polticas e artsticas interpenetram-se na elaborao deste

    questionamento. Tal questionamento elaborado como uma reencenao do passado, na

    qual o fotgrafo recorre tanto ao seu acervo pessoal quanto memria coletiva

    compartilhada pelas comunidades afro-brasileiras.

    O teor autobiogrfico e a interseco com as questes tnico-raciais, do

    colonialismo e do ps-colonialismo aproximam a proposta Neves daquilo que Linda

    Hutcheon25

    denominou metafico historiogrfica, a partir da utilizao de relatos

    ficcionais e historiogrficos e do interesse pelas inseres ideolgicas da diferena

    como desigualdade social.

    Na obra de Neves, a releitura histrica contextualizada com questes

    artsticas e tericas atuais, proporcionando uma reflexo que alm da denncia sobre a

    permanncia e a atualizao dos aportes etnocntricos tangencia a questo da

    impossibilidade de reconciliao da sociedade brasileira com o seu passado colonial.

    Dessa maneira, no tenta estabelecer outras verdades, mas procura tornar visvel os

    desafios que envolvem o processo de representao das identidades afro-brasileiras.

    A fuso do retrato materno com a imagem da mscara envolve uma releitura

    particular da experincia coletiva que expe o desafio de estabelecer uma representao

    convincente e satisfatria destas identidades que contraponha, na atualidade, s

    experincias da desumanizao e da invisibilidade vivenciadas por estas populaes.

    Esta espcie de reciclagem autobiogrfica remete literatura de resistncia

    ps-colonial, vertente em que, segundo Edward Said,26

    os escritores ps-coloniais

    transformam as cicatrizes do passado em estmulos, um tipo de memria em que o

    oprimido, outrora silenciado, fala e age a partir das suas prprias referncias.

    A interseco destas imagens revela um cruzamento de dados histricos

    oriundos de contextos sociais distintos. A noo de uma identidade que se desloca

    contrape-se naturalizao da condio feminina. As noes de raa e gnero so

    utilizadas como categorias relacionais, constitudas politicamente e que incidem no

    25

    HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo: histria, teoria, fico. Traduo de Ricardo Cruz.

    Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 141-168.

    26 SAID, Edward. Cultura e Turismo. Traduo de Denise Bottmann. So Paulo: Cia. das Letras, 1995,

    p. 64.

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    imaginrio social, de acordo com o contexto histrico e as expectativas de cada

    sociedade.

    A maneira como o fotgrafo lida com as experincias do passado em Mscara

    de punio sugere um jogo que subverte a noo de tempo organizado linearmente.

    Formalmente, a tessitura desta reencenao pressupe uma memria organizada por

    camadas temporais oscilantes e o tempo concebido como uma unidade condensada e

    apreendida pela percepo do presente.

    De acordo com Anne Cauquelin,27

    no presente encontram-se cristalizados os

    fatos de uma vida geralmente pensada em sucesso, mas que podemos imaginar sob a

    forma de uma carga, dando som pleno, um corpo pleno, agrupados sobre si mesmo, em

    um todo. Dizer que s existe o presente equivale a dizer que mltiplas camadas

    temporais habitam um nico instante do fluxo contnuo do tempo.

    Em termos espaciais, significa que as posies aqui e l de uma

    determinada trajetria so coincidentes. Equivale a mltiplos pontos de vista que se

    confundem diante de uma mesma configurao espacial. Aqui e l so posies

    espaciais que definem os lugares de algo ou de algum e, consequentemente, a sua

    incluso ou a sua excluso.

    Eleger o tempo como unidade presente e confundir esta localizao provoca

    deslocamentos conceituais e possibilidades de criar representaes mveis, flutuantes e

    indeterminadas. Como resultado de sobreposies e interferncias, as imagens de Neves

    mantm um estreito vnculo com a noo de identidade traduzida.

    Este conceito descreve aquelas formaes de identidades que

    atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas

    que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Estas pessoas

    retm fortes vnculos com seus lugares de origem e suas tradies,

    mas, sem iluso de um retorno ao passado. Elas so obrigadas a

    negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente

    serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas

    identidades.28

    A partir desta definio possvel identificar caractersticas fundamentais da

    cultura afro-brasileira que incidem no processo criativo e na obra de Eustquio Neves.

    Em primeiro lugar, considera-se que sob o termo afro esto reunidas as matrizes que

    27

    CAUQUELIN, Anne. Freqentar os incorporais: contribuio a uma teoria da arte contempornea.

    Traduo de Marcos Marcionlio. So Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 93.

    28 HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo de Tomaz Tadeu da Silva e

    Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 88.

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    organizam as prticas culturais de diferentes segmentos sociais brasileiros, tendo a

    frica como uma referncia unificadora.

    Muito alm da sua territorialidade, este continente assume a configurao de

    uma diferena simblica que marca a cultura afro-brasileira. De acordo com Muniz

    Sodr,29

    esta diferena caracteriza um modo especfico de relacionar-se com o real que

    pode ser traduzida pela noo de ritual.

    O ritual uma aniquilao do valor (portanto, do sentido, da verdade);

    tudo se resolve ali mesmo, nas aparncias, sem deixar resduo para as

    memorizaes histricas ou para as interpretaes em profundidade. A repetio ou a redundncia reiterao de um mesmo gesto, um mesmo ato, um mesmo rito assinala a singularidade (logo, o real) do momento vivido pelo grupo.

    30

    O ritual viabiliza a continuidade simblica da comunidade que, na cultura afro-

    brasileira, significa reciprocidade e reversibilidade em contraposio com as noes de

    acumulao, linearidade e irreversibilidade disseminadas pela cultura ocidental

    moderna.

    Mais que uma reivindicao do pertencimento ou do lugar social do afro-

    brasileiro, o que est explcito no processo criativo e nas imagens de Neves a

    possibilidade de jogar com o carter ambguo das identidades, que pode assumir

    diferentes configuraes, dependendo do lugar da enunciao e da origem scio-cultural

    daqueles que a utiliza. Fora dos enquadramentos, as mais variadas referncias culturais

    afro-brasileiras podem oscilar livremente para materializar processos distintos de

    ressignificao cultural.

    ARTIGO RECEBIDO EM 22/03/2013. PARECER DADO EM 05/07/2013

    29

    SODR, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A,

    2005, p. 100.

    30 Ibid.