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WILHELM VON HUMBOLDT E A INSTITUIÇÃO DO GYMNASIUM NA ALEMANHA DO SÉCULO XIX. Fabiano de Lemos Britto Departamento de Educação PUC-Rio Eixo temático: Práticas pedagógicas, cotidiano escolar e cultura material O fato de que a figura de Humboldt tenha se associado, no imaginário alemão, a das transformações institucionais efetuadas no começo do século XIX, se deve, em grande parte, à maneira como suas idéias parecem ter sintetizado, emblematicamente, o quadro político da cultura alemã de então. Desde a última década do século anterior, a Alemanha vinha sendo submetida à desorganização e às restrições de liberdade civil de um Estado cada vez mais centralizado. A relativa tolerância e o visível desenvolvimento intelectual do reinado de Frederico II na Prússia – ou Frederico, o Grande, como a posteridade registraria – deram lugar, com sua morte, a uma época extremamente reativa nesse sentido: seu sucessor, Frederico Guilherme II, instituiu um governo onde as províncias tinham pouco poder legislativo, dando origem a um Estado que controlava todos os aspectos da vida pública. Isso acabou por destruir o projeto de um Estado esclarecido e cosmopolita e substituí-lo pela “arbitrariedade de estranhos príncipes- tiranos”. 1 Em pouco tempo, a Prússia, como potência mais 1 HOLBORN, H., A history of modern Germany, 1680-1840, p. 306.

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WILHELM VON HUMBOLDT E A INSTITUIÇÃO DO GYMNASIUM

NA ALEMANHA DO SÉCULO XIX.

Fabiano de Lemos Britto

Departamento de Educação PUC-Rio

Eixo temático: Práticas pedagógicas, cotidiano escolar e cultura material

O fato de que a figura de Humboldt tenha se associado, no imaginário alemão, a das

transformações institucionais efetuadas no começo do século XIX, se deve, em grande parte, à

maneira como suas idéias parecem ter sintetizado, emblematicamente, o quadro político da

cultura alemã de então. Desde a última década do século anterior, a Alemanha vinha sendo

submetida à desorganização e às restrições de liberdade civil de um Estado cada vez mais

centralizado. A relativa tolerância e o visível desenvolvimento intelectual do reinado de

Frederico II na Prússia – ou Frederico, o Grande, como a posteridade registraria – deram lugar,

com sua morte, a uma época extremamente reativa nesse sentido: seu sucessor, Frederico

Guilherme II, instituiu um governo onde as províncias tinham pouco poder legislativo, dando

origem a um Estado que controlava todos os aspectos da vida pública. Isso acabou por destruir

o projeto de um Estado esclarecido e cosmopolita e substituí-lo pela “arbitrariedade de

estranhos príncipes-tiranos”.1 Em pouco tempo, a Prússia, como potência mais representativa,

ao lado da Áustria, dos Estados alemães, encontrou seu isolamento diplomático e sucessivas

derrotas militares.

É contra essa paisagem social que Humboldt parece se destacar. Irmão de um dos mais

importantes cientistas naturais alemães do século XIX, Alexander von Humboldt, Wilhelm, por

sua vez, não esteve menos presente na história cultural dos Estados germânicos. Como filósofo

e lingüista, seus trabalhos receberam a atenção entusiasmada de um círculo de intelectuais que

logo o ergueu ao estatuto de jovem promessa da ciência alemã. Mas foi o fato de que

Humboldt pôde conjugar a suas reflexões teóricas uma intermitente atividade política que o

trouxe para frente do cenário social da época. Tendo ocupado vários cargos ligados ao governo

da Prússia, participou de muito perto da formulação conceitual desta nova organização

hierárquica no interior das instituições de ensino. Entre 1809 e 1810, foi diretor do

Departamento de Ensino e Culto Religioso da Prússia, onde promoveu as mais significativas

mudanças estruturais no sistema de ensino – cargo que só deixou quando resolveu acompanhar

1 HOLBORN, H., A history of modern Germany, 1680-1840, p. 306.

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de perto o processo de fundação da Universidade de Berlim que ele mesmo havia planejado

inicialmente. Esse ofício político de Humboldt nos permite compreender melhor que vias ele

encontrou para efetivar sua posições teóricas e ideológicas, que foram amplamente difundidas

na Europa nas décadas seguintes. Na verdade, entre os trabalhos mais influentes de Humboldt,

nem seus escritos sobre lingüística, nem seus esforços em torno do complexo conceito de

formação cultural (Bildung) podem ser adequadamente compreendidos se não levarmos em

conta a base política da qual eles surgem.

No centro de suas propostas para reformas das instituições de ensino, encontramos o

que poderíamos chamar de diretrizes gerais da política neo-humanista. Nelas, trata-se, antes de

mais nada,

“de pôr, desde o presente, um termo às medidas arbitrárias que alguns príncipes da Alemanha se permitem contra seus súditos, e em particular contra antigos Estados aliados, mediados por príncipes e condes;

de determinar os direitos pessoais [les droits personnels] de que devem desfrutar todos os alemães, assim como os seus mediadores (...)”.2

Essa nova e emergente reformulação do papel do Estado na sociedade tinha como

horizonte a crise política que havia acabado por submeter a Alemanha ao poder da França, após

a invasão de Napoleão e a derrota da batalha de Jena em 1806.3 Para enfrentar essa crise e

resgatar a imagem dos Estados alemães diante da comunidade européia, Frederico Gulherme

III tentava, desde sua subida ao trono em 1797, implementar uma política interna mais sólida e

descentralizada, retomando os ideais de Frederico, o Grande, como emblema de seu governo e

acompanhando, de tão perto quanto possível, o destino do modelo administrativo francês, que

havia sido recebido com simpatia por seus súditos. Uma série de medidas avançaram no

sentido de modernizar o Estado prussiano – o que logo resultou em uma ampla aderência a

esses princípios na maioria dos outros governos alemães. Ao mesmo tempo em que um esforço

foi empreendido na tentativa de redimensionar a relação do poder estatal com os direitos

individuais dos cidadãos, foi necessário assegurar à sociedade que tais mudanças eram

possíveis através da reconstrução da identidade e da unidade há muito tempo perdidas nas

guerras internas e externas. Foram Karl Freiherr vom und zum Stein e, em menor medida e 2 HUMBOLDT, W. von, “Mémoir préparatoire pour les conférences des cabinets alliés sur les Affaires de l’Allemagne” in Gesammelte Schriften, Bd. XI, pp. 204-205.3 Cf. HOLBORN, op. cit., pp. 386-395.

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com menor envolvimento com o cícrulo cultural alemão, Karl August von Hardenberg que,

apesar dos conflitos com Frederico Guilherme III, operaram, enquanto ministros da Prússia na

primeira década do século XIX, importantes reformas na burocracia do Estado, acreditando que

a identidade a que se almejava só seria possível segundo uma modernização da cultura e das

instituições que a representavam.4 O critério que eles haviam aplicado à reorganização das

comunidades urbanas, o da auto-regulamentação e da relativa independência legislativa do

governo central, deveria servir, também, de princípio de reformulação das universidades e

estabelecimentos de ensino a partir de então. Sob essa atmosfera, a fundação da Universidade

de Berlim surgiu como o modelo objeto do novo Estado – e Humboldt, como o criador desse

modelo. É certamente um equívoco considerar que as mudanças administrativas foram capazes

de superar as dificuldades políticas que colocavam em disputa os direitos individuais e a

burocracia estatal – e a afirmação do historiador Heinrich von Treitschke, contemporâneo de

Nietzsche, que “príncipe e povo se uniram como uma grande família” 5, revela menos sobre a

realidade dos fatos que sobre a mitificação que seus escritos empreendem. Se acreditarmos em

alguns historiadores, “nos territórios de língua alemã, a realização da sociedade civil parecia

ainda um projeto utópico por volta de 1830”.6 Mas, de todo modo, rupturas profundas

certamente tiveram lugar nesse sentido, e, ainda mais relevantes no que se refere ao ensino de

nível médio. Podemos dizer, sem muito medo de errar, que, se o modelo universitário alemão

criado por Humboldt assumiu, na Europa do século XIX e XX, uma predominância

institucional incomparável, o modelo de ensino do Gymansium encontrou um destino bem mais

amplo, na medida em que influenciou reformas nas escolas de nível médio não apenas na

Europa, mas nos Estados Unidos e, por vias diversas e mais tardias, mesmo no Brasil. O

modelo ginasial, pensado por Humboldt, articula, de modo inequívoco, a idéia de humanismo,

que pretende recuperar a legitimidade da diferença no interior dos processos de aprendizagem,

às premissas de um contundente liberalismo político, que procura limitar o poder do Estado no

interior da esfera acadêmica e científica.

Em 1792, Humboldt escreveu um de seus mais radicais textos sobre os limites do poder

governamental, as Idéias para uma tentativa de determinar os limites da ação do Estado

[Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen] – que

propunha a tal ponto o estreitamento do raio de ação desse poder que só veio a ser publicado

postumamente, em 1851.7 É verdade que o livro, logo após essa data, tornou-se “parte do

4 Idem, pp. 395-408. Cf. também a análise, nem sempre tào precisa e nada imparcial, de Heirich von Treitschke (TREITSCHKE, H. von, History of Germany in the nineteenth century, pp. 31-58).5 TREITSCHKE, H. von, op. cit., p. 32.6 DAUM, A. W., loc. cit., p. 108. 7 O próprio Humboldt parece indicar, sutilmente, no texto a dificuldade inerente da implementação de suas propostas: “Existem também idéias que o sábio não deveria procurar realizar [auszuführen]. De fato, a realidade

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cânone do pensamento liberal alemão”8, como afirma Paul R. Sweet. Fundamentalmente, o

texto inverte o fundamento do poder estatal, o equilíbrio entre liberdade pessoal e

desenvolvimento social, tal como aparecia nas teorias contratualistas clássicas de tipo

hobbesiano. Essa inversão colocava as potencialidades individuais como critério decisório das

práticas governamentais, o que constituía uma importante ruptura com um modelo filosófico

que havia se consolidado de modo particularmente eficiente na teoria política alemã do final do

século XVIII, inspirada, sobretudo, pelo pensamento pedagógico de Rousseau.

O modelo de liberdade neo-humanista com o qual Humboldt pretendeu fornercer as

bases ideológicas do Gymnasium é o oposto do modelo contratualista clássico: para ele,

somente a positividade da liberdade individual pode fornecer os critérios para a ação do

Estado. Este, por sua vez, não é externo ao homem porque duplica artificialmente sua natureza,

mas, antes, é externo e artificial porque é uma construção paliativa a partir da necessidade de

se corrigir uma anomalia da natureza humana. Contra Hobbes, Humboldt define a natureza

social do homem a partir de sua tendência gregária.9 O Leviatã apresentava a guerra silenciosa

à espreita na alma dos homens: “os homens não têm nenhum prazer (mas, pelo contrário, uma

grande parte de desgosto [grief]) em manter companhia”.10 As Idéias de Humboldt, quase um

século e meio depois, acusam a falsidade dessa tese: “os homens se unem uns aos outros não

por causa de uma idiossincrasia [ou uma característica especial, Eigenthümlichkeit], mas para

apagar o isolamento excludente; a união [Verbindung] não deve transformar um ser [Wesen]

em outro, mas como que abrir o caminho de um a outro”.11 Purgando o homem de seus males,

o Estado realiza seu único propósito, o de favorecer, para cada indivíduo, o desenvolvimento

pleno de suas disposições espirituais, uma dinâmica que definia a própria noção de Bildung

humboldtiana. Se houve uma regra em seu pensamento político, independente de ter logrado ou

não efetivamente, ela se encontra formulada nos primeiros capítulos de seu ensaio sobre os

não está nunca, em nenhum tempo, madura [rief] o suficiente para o mais belo e amadurecido fruto do espírito” (HUMBOLDT, W. von, “Ideen zu einen Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen” in Gesammelte Werke, Bd. 7, p. 177).8 SWEET. P. R. “Young Wilhelm Von Humboldt's Writings (1789-93) Reconsidered” in Journal of the History of Ideas, Vol. 34, No. 3, p. 470. 9 Peter Hanns Reill argumenta que o pensamento de Humboldt, ao invés de se caracterizar como uma tomada de posição contra a Aufklärung, derivou de um tipo particular de teoria desenvolvido entre os filósofos esclarecidos a que Reill denomina “Enlightenment vitalism” (REILL, P. H., loc. cit., p. 345). Esse tipo de desenvolvimento, no entanto, parece ter tido pouca penetração no círculo que se autodefiniu como esclarecido, e o que Reill chama de Esclarecimento tardio pode ser interpretado tembém como pré-romantismo. A assim chamada tese vitalista só pôde encontrar seu lugar, me parece, como contra-proposta para o mecanicismo newtoniano a que aderiram filósofos como Kant. É a ele que Humboldt se dirige, implicita ou explicitamente, é a ele que deve responder sua teoria política. Nietzsche, observando o neo-humanismo em seus escritos mais tardios, denunciou sua secreta filiação à Aufklärung, mas exatamente porque aquele surgiu, para as gerações que lhe seguiram, como uma rejeição das teses esclarecidas.10 HOBBES, Th., op. cit., p. 88.11 HUMBOLDT, W. von, “Ideen zu einen Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen”, p. 27.

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limites do poder estatal, na medida em que reconduz esse poder às exigências de seu conceito

de Bildung:

“A verdadeira razão [die wahre Vernunft] não pode desejar para o homem nenhuma outra condição [Zustand] senão aquela em que não somente todo indivíduo usufrui da liberdade mais individual [ungebundensten Freiheit] para desenvolver, por si mesmo, sua particularidade [Eigenthümlichkeit], mas, antes, em que também a natureza física não receba nenhuma outra forma [Gestalt] forjada pelo homem [Menschenhänden], em que todo indivíduo desse a si mesmo e voluntariamente as medidas de suas necessidades e de sua inclinação [den Maasse seines Bedürfinisses und seiner Neigung], restrito apenas pelos limites de sua força e de seu direito”.12

Humboldt havia identificado, portanto, a que ponto a interferência positiva do Estado

na formação cultural de um indivíduo e na cultura em geral do povo acabaria por falsificar a

natureza do homem. Mas é preciso ter em mente que o jacobinismo de Humboldt é de tipo

muito particular: longe de ser revolucionário, em termos efetivos encontrou sua possibilidade

nos limites da perspectiva em que foi formulado, ou seja, a do próprio Estado. Sua ligação com

o poder governamental foi, desde o começo, intensa e incontornável, e pelo número de seus

escritos destinados ao diálogo com esse poder, não seria grande exagero afirmar que “sua

relação com o Estado foi, definitivamente, uma ligação erótica”.13 Ainda que sua teoria política

dependesse de uma definição até certo ponto estética da harmonia da natureza humana,14

Humboldt compreendeu sua tarefa como fundamentalmente política. Nesse âmbito, o

correspondente à unidade espiritual a que visava a formação cultural, sua tradução

administrativa, deveria ser a unidade de uma Constituição. Ainda que posterior à unidade do

espírito na ordem das razões, a unidade do Estado ocupou para Humboldt o primeiro lugar na

ordem dos fatos.

12 HUMBOLDT, W. von, “Ideen zu einen Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen”, pp. 14-15.13 BERGLAR, P. op. cit., p. 79. Ao longo do texto, Peter Berglar caracteriza constantemente Humboldt como um “servidor do Estado [Diener des Staates]”. 14 Humboldt definiu uma teoria das idéias que visava reconstruir a unidade da natureza do homem – individualmente ou como objeto de sua Kultur específica – a partir de uma dialética reconciliatória entre matéria e forma, mediada por um terceiro termo, a Idéia, compreendida não como elemento intelectual, mas como algo viveciável enquanto força (sobre a Ideenlehre de Humboldt, ver REILL, P. H., loc. cit., pp. 361-366). Essa compreensão funciona ao fundo das teses políticas do texto de 1792 e as sustenta; e mesmo em algumas passagens se manifesta brevemente: ali se afirma, por exemplo, que, no homem, “tudo se reduz a forma e matéria [Form und Materie]”, mas “a forma, por outro lado, como que se torna matéria, uma forma ainda mais bela” (HUMBOLDT, W. von, “Ideen zu einen Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen”, p. 12).

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Ora, o modelo institucional do Gymnasium parecia se alimentar, justamente, destas

tensões A liberdade que os alunos encontravam ali, comparativamente muito maior em relação

à rígida disciplina das escolas secundárias em geral, tinha como contrapartida um

comprometimento interno de cada um deles com sua formação cultural, uma vez que o objetivo

do estabelecimento era o de “preparar os estudantes que haviam saído dos seis anos do

Gymnasium para freqüentar a universidade”.15 Vindos de classes sociais tradicionalmente

ligadas à cultura e a religião – filhos de professores, de funcionários do Estado, de pastores

protestasntes, em especial – esses jovens se preparavam para ingressar em um nível importante

em sua vida: o Pädagogium funciona, desse modo, como um aprofundamento do ensino

básico, mas um aprofundamento de tipo especial, que permite aos que conseguirem freqüenta-

lo, circular por um grupo de intelectuais que, mais que aqueles que freqüentavam as escolas

técnicas, eram capazes de desenvolver livremente seus interesses teóricos e sua autonomia

cultural. O Gymnasium é, portanto, por excelência, a escola que prepara para a autonomia

política dos indivíduos. A idéia de que os alunos devem aprender a refletir sobre sua espessura

política e cultural deriva diretamente deste modelo. Antes dele, o liceu de origem francesa –

que penetrou mais profundamente, e por longo tempo, na estrutura educacional brasileira –

procurava formar apenas cidadãos úteis. O Gymnsium humboldtiano se preocupou em formar

homens autônomos.

A origem de seu Gymnasium remonta às reformas neo-humanistas que, no limiar do

século XIX, procuraram aumentar o nível de profissionalização científica das disciplinas

acadêmicas, adotando dispositivos de comprovação e regulamentação oficiais capazes de

legitimar a posição social do Professor e do Schuler. Em geral, ele tinha a função de

intermediar “a Volksbildung [cultura popular] e a Bildung científica [wissenschaftlicher]”.16

Nesse contexto, o Gymnasium pôde conciliar essas duas perspectivas formadoras.

Do ponto de vista sociológico, as reformas neo-humanistas procuraram responder à

violenta crítica da função social do erudito que teve lugar nos últimos anos do século XVIII e

que visava reconduzir o lugar de conhecimento para fora dos espaços sancionados pela

tradição. Essa crítica assumiu um vulto efetivamente ameaçador para toda a casta de

professores acadêmicos que dependia da legitimidade estrita desses espaços como única forma

de prestígio social e chegou, muitas vezes, a um tom radicalmente agressivo, como o

representou, por exemplo, Joachim Heinrich Campe, pedagogo com fortes tendências

15 TRAUGOTT, S., “Erinnerungn an den Gymnasiallehrer Friedrich Nietzsche”, citado in GILMAN, S. L., Begegnungen mit Nietzsche, p. 126. 16 JEISMANN, K.-E., “Das preussische Gymnasium in sozialgeschichtlicher Perspektive” in KAUFHOLD, H. K. & SÖSEMANN, B., Wirtschaft, Wissenschaft und Bildung in Preussen, p. 139.

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classicistas, ao defender, em 1792, o completo fim das universidades, que haviam se mostrado

incompetentes e moralmente desviantes quanto à Bildung, e sua incorporação ao Gymnasium e

às Hochschulen.17 Afim de responder ao risco de desaparecimento ou dissolução desse

allgemaines Gelehrtentum, organizou-se uma série de medidas institucionais, associadas

livremente – mas definitivamente – à idéia geral de um neo-humanismo, que reinscreveriam o

erudito em uma função socialmente justificada. Tais medidas foram adotadas a princípio, e

como experimento, naquele campo em que o erudito surgia como a figura ambígua de um

intelectual encerrado no gabinete empoeirado e isolado da socieddade, preocupado apenas com

o preciosismo de temas a tal ponto especializados que haviam se desconectado da realidade

imediata e das exigências mais primárias da cultura. Foi nas humanidades, e especialmente nas

letras alemãs que a crítica encontrou a oportunidade de fazer surgir essa figura, e foi, portanto,

nesse mesmo domínio que o neo-humanismo originalmente veio se instaurar.

Institucionalmente, isso se deu em dois níveis, e segundo duas direções, basicamente.

Por um lado, essas mudanças procuraram reaproximar a figura do erudito da de seu povo,

substituindo a intangibilidade do discurso e das atividades exclusivamente universitárias por

uma estética e uma literatura que, apesar de não serem exatamente populares, estavam

nitidamente preocupadas com o estilo, a fluência e a elaboração de um vocabulário mais

amplo. Em termos políticos, o humanismo implicava o estabelecimento de uma aristocracia

esclarecida que, ainda que resguardasse os limites pragmáticos da elite intelectual, aproximava,

em teoria, ou idealmente, a experiência da vida acadêmica da sociedade como um todo:

“O humanismo implicava que verdade e sabedoria eram ensináveis; bom caráter nào era, portanto, uma questão de berço, mas pertencia a qualquer um que tivesse a oportunidade, e o intelecto, para receber a educação humanística: o humanismo foi, assim, ao menos em teoria, um projeto democrático”.18

Essa dimensão foi a tal ponto bem-sucedida que termos como Bildung, Humanität e

Selbsttätigkeit estabeleceram entre o Professor e Volk uma ligação tão íntima que tornou-se

fundamental para a elaboração intelectual da idéia de revolução social durante as tentativas de

unificação da Alemanha ao longo do século XIX.19 Em outro sentido – não contrário, mas

complementar – afim de salvaguardar o espaço da instituição de ensino como lugar próprio do

conhecimento, procedimentos burocráticos foram criados em torno da idéia de oficialização do 17 Cf. TURNER, R. S., loc. cit., p. 454. Wilhelm von Humboldt, por sua vez, defendeu firmemente a importância do Gymnasium como modelo pedagógico e propôs o fim das escolas secundárias afim de que somente esse modelo pudesse centralizar o ensino médio alemão – cf. ALBISETTI, J. C., Secondary school reform in imperial Germany, p. 19.18 LEVINE, P., Nietzsche and the modern Crisis of Humanities, p. 5.19 TURNER, R. S., loc. cit., p. 459.

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estatuto profissional e científico do corpo docente. Com isso, toda uma rede de protocolos

reguladores foi instaurada nas universidades e nas vias de acesso a elas: exames de

competência como o Abitur, a Habilitation e outros atestados de expertise profissional, além do

estebelecimento de um currículo mínimo obrigatório, se somaram a uma crescente exigência

de documentação para a contratação de professores, transferência e admissão de alunos etc.20

As reformas liberais neo-humanistas, representadas emblematicamente no pensamento

político-institucional de Wilhelm von Humboldt, pretendia substituir, ao menos

axiomaticamente, a autoridade absolutamente externa do controle estatal por uma auto-

regulamentação da ciência, e colocar o cientista no lugar do Príncipe: “ “O diretor <das

delegações regulamentadores das escolas> deve ter sempre uma formação científica [Der

Director muss immer wissenschaftlich gebildert seyn] (...)”.21 A topografia ginasial vem se

enraizar, assim, pela força da lei, no centro da topografia social da Kultur.

Esses dois procedimentos tiveram conseqüências importantes na história da pedagogia

alemã – e, em seguida, européia – alcançando um sucesso que logo se estendeu a todas as

faculdades universitárias, ultrapassando o limite das humanidades. Na medida em que as

universidades, através das mudanças ocorridas nesse contexto, ganharam contornos mais

firmes e “se tornou mais nitidamente distinta dos Gymnasien em seu nível de instrução”, 22 a

estrutura ginasial se apresentou como o elo entre uma educação geral, a allgemeine Bildung

humanista, após a qual muitos jovens, que seguiriam carreira comercial ou independente de

formação especializada, terminariam seus estudos e uma educação que lhe garantiria o estatuto

de Professor em uma área específica. Seus alunos, entre 15 e 18 anos e divididos em três

turmas.23 Durante três anos freqüentavam aulas de caráter preparatório, onde o contato com as

línguas antigas, notadamente latim e grego – totalizando 14 horas semanais, contra 4 de

matemática e 3 de alemão – era comum a todos que ali procuravam reforçar sua Bildung,

independentemente da faculdade que viriam a cursar em seguida. Trabalhos científicos,

traduções dos clássicos e conferências em classe eram os métodos de avaliação mais comuns.

20 Cf. ALBISETTI, J. C., op. cit., pp. 21-24. A implementação do Abitur não efetivou de forma complete uma meritocracia regulamentada em meio acadêmico. Muitas universidades, resistindo à exclusão de alunos aristocratas que não obtivessem a comprovação oficial de sua proficiência, ofereciam, ao menos até 1830, entradas alternativas à instituição.21 HUMBOLDT, W. Von, “Humboldts Votum zu dem von Süvern entworfenen Plan von städtsichen Schuldeputationen” in Gesammelte Schriften, Bd. X, p. 117. É claro que, efetivamente, essa proposta encontrou certos limites que garantiram ao Estado um poder legislador ao qual todas as instituições deveriam se reportar em última instância. 22 TURNER, R. S., loc. cit., p. 462.23 As informações que se seguem foram coletadas basicamente em três fontes: na correspondência de Nietzsche, em TRAUGOTT, S., loc. cit., pp. 127-138 e em GUTZWILLER, H., Friedrich Nietzsches Lehrtätigkeit am Basler Pädagogium, 1869-1876, passim.

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Mas o mais importante, e o que garantiu o sucesso do Gymnasium como referência

institucional parece ter sido, sobretudo, a criação de valores novos com os quais ele investia a

figura do professor. Ao promover a valorização do professor como intelectual no interior

mesmo de uma instituição – algo que surpreenderia, certamente, aqueles que, ainda muito

frequentemente no final do século XVIII, seguiam de perto as propostas educacionais de

Montaigne ou de Rousseau – o neo-humanismo humboldteano, justamente através do

Gymnasium, garantiu a este professor uma espessura social particularmente relevante.

Há aqui um duplo enraizamento do ginásio como modelo concreto de estrutura-matriz

da formação cultural. De um lado, ele sintetiza ideologicamente a cultura nacional, e isso

precisamente no momento da formação dos jovens em que há uma transição dos estudos

básicos primários para os estudos avançados da universidade. Ou seja, o ginásio se situa no

intervalo que é, ao mesmo tempo, a transição para a aquisição de uma cultura que eleva os

alunos à qualidade de cidadãos prussianos. Este aspecto nacionalizante da cultura,

insistentemente reforçado pelo projeto pedagógico liberal neo-humanista, aos poucos se firmou

como um dos aspectos mais essenciais da ideologia do Gymnasium, em função de um contexto

histórico onde a Alemanha, há muito tempo fragmentada politicamente, e, ainda, submetida,

desde 1806, ao domínio napoleônico, procurou construir para si a imagem de uma cultura

capaz de reunificar, em um nível ideal, os elementos de uma identidade nacional pulverizados

na realidade (cf. Daum, 2002; Grey, 1986; Simon, 1954). O ginásio surge, assim, como

mecanismo de nacionalização da cultura

Este mecanismo, contudo, teve um outro desdobramento simbólico que, ainda que

tenha tido origem no contexto político-econômico específico dos territórios germânicos, logo

foi incorporado ao horizonte das modernas pedagogias européias. Pois, além de reconfigurar o

espaço da cultura e do ensino como um espaço nacional, as reformas neo-humanistas deram

lugar a um profundo redimensionamento da relação do professor com o corpo social.

Inicialmente, esta mudança visa responder a um problema local. Tanto a Prússia quanto os

outros Estados germânicos não experimentaram um desenvolvimento industrial significativo –

ao contrário de outras potências européias, como a Inglaterra e a França. Este atraso no

processo de desenvolvimento econômico forçou a Alemanha a estabelecer critérios de

distinção social que não eram exclusivamente financeiros, e o vínculo institucionalizado com o

Gymnasium, que passou a sustentar a topologia de toda a cultura, assumiu a função

gradualmente mais incisiva de signo de distinção social. Desde então, a figura do professor

como guardião da cultura ou como mestre da nação – cuidadosamente estruturada nas

decisões administrativas do ginásio, que regulamentaram originalmente os protocolos cada vez

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mais ritualizados e complexos de hierarquização da relação entre professores e alunos, e

mesmo, em geral, entre a sociedade e os membros privilegiados de uma classe acadêmica –

passou a habitar o horizonte ideológico dos países europeus (cf. Sheehan, 1977; Sorkin, 1983;

Turner, 1983).

Essa dupla raiz conceitual-institucional do ginásio mostra sua fundamental importância

na história da profissão docente, especialmente se procurarmos empreender uma pesquisa de

viés comparativo. Não podemos deixar de pensar que, ao ser incorporada literalmente na

estrutura de ensino público no Brasil na década de 1930 no Brasil, a palavra ginásio, que

passava a rivalizar, então, com o já há longo tempo estabelecido liceu, carregava consigo a

herança desta tradição neo-humanista germânica, tanto quanto a modificava e a traduzia para a

configuração específica da política educacional brasileira. A conjunção entre a exigência de

uma cultura nacional definida em termos institucionais e a posição social do professor como

mestre é um dos traços mais fundamentais desta herança – e não podemos avaliar o destino que

estas idéias tiveram no contexto da historia da educação no Brasil sem identificar,

precisamente, sua pré-história germânica.

Bibliografia:

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