Artigos produzidos especialmente para Programa de Bolsas ... · quanto pessoas e ser a elas...

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& estudos no campo da comunicação Artigos produzidos especialmente para Programa de Bolsas para Trabalhos de Conclusão de Curso - Agosto de 2009 a Janeiro de 2010

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  • &estudos no campo da comunicaoArtigos produzidos especialmente para Programa de Bolsas para Trabalhos de Concluso de Curso - Agosto de 2009 a Janeiro de 2010

  • Infncia & Consumo:estudos no campo da comunicao

    Braslia, 2010

    Agncia de Notcias dos Direitos da Infncia (ANDI)

    Projeto Criana e Consumo do Instituto Alana

  • ANDI Agncia de Notciasdos Direitos da InfnciaPresidente:Oscar Vilhena VieiraVice-Presidente:Geraldinho VieiraSecretrio Executivo:Veet Vivarta

    SDS Ed. Boulevard Center, Bloco A , Sala 101Cep: 70.391-900Braslia - DFTelefone: (61) 2102-6508Fax: (61) 2102-6550E-mail: [email protected]: www.andi.org.br

    Projeto Criana e ConsumoInstituto AlanaPresidente:Ana Lucia de Mattos Barretto VillelaCoordenadora Geral:Isabella HenriquesCoordenadora de Educao e Pesquisa:Lais Fontenelle Pereira

    Rua Sanso Alves dos Santos 102 / 4 andarCep: 04571-090So Paulo - SPTelefone: (11) 3472-1631E-mail: [email protected]: www.criancaeconsumo.org.br

    O uso de um idioma que no discrimine e nem marque diferenas entre homens e mulheres ou meninos e meninas uma das preocupaes da ANDI e do Instituto Alana. Porm, no h acordo entre os lingistas sobre a maneira de como faz-lo. Dessa forma, com o propsito de evitar a so-brecarga grfica para marcar a existncia de ambos os sexos em lngua portuguesa, na presente obra optou-se por usar o masculino genrico clssico na maioria dos casos, ficando subentendido que todas as menes em tal gnero representam homens e mulheres.

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    ApresentaoO conceito de infncia no natural e sim construdo scio-historicamente. Ou seja, cada poca e cultura tendem a proferir um discurso sobre a infncia que apresenta caracters-ticas prprias, contribuindo assim para moldar e estabelecer o lugar social das crianas. Atualmente, cabe lembrar, cada vez mais predominante a presena das mdias no cotidia-no de crianas e jovens, ditando padres de socializao, transmitindo valores, circulando informaes e, tambm, estimulando o consumo.

    inegvel que uma outra pedagogia se instalou na vida das crianas brasileiras, as quais esto, por exemplo, entre as campes mundiais no que se refere ao tempo dirio passado em frente s telas da televiso quase 5 horas, segundo dados do Ibope. Assim, no pode-mos mais relegar a segundo plano a existncia deste mecanismo educacional informal. Da mesma forma torna-se que alcana este estrato da sociedade por meio dos mais diversos canais de comunicao e informao. Conseqentemente, nota-se imprescindvel articular polticas pblicas que promovam a produo de qualidade dirigida a meninos e meninas. Ao mesmo tempo, devemos implementar medidas para proteg-los de contedos inade-quados a seu desenvolvimento integral.

    nesse cenrio que se situa a presente publicao, iniciativa da Agncia de Notcias dos Di-reitos da Infncia - ANDI e do Projeto Criana e Consumo do Instituto Alana. Reunindo 7 artigos redigidos por alunos de graduao da rea de Cincias Humanas de todo o pas, em parceria ou com apoio de seus orientadores. As pginas a seguir perpassam trs grandes temticas que mobilizam tanto a academia quanto os formuladores de polticas pblicas: Criana, Consumo e Mdia; Representaes da Infncia na Mdia; e Educomunicao e Consumo.

    Os artigos apresentam alguns dos resultados obtidos nos Trabalhos de Concluso de Curso (TCCs) produzidos pelos autores, todos eles bolsistas da 4 edio do InFormao - Programa de Cooperao para Qualificao de Estudantes de Jornalismo, mantido pela ANDI com apoio do FNPJ - Frum Nacional de Professores de Jornalismo. As monografias foram defendidas em universidades pblicas ou privadas de ensino superior, no final do ano de 2009.

    Ao conceder essas bolsas de estudo, o objetivo das duas organizaes estimular a pro-duo de trabalhos sobre alguns dos temas considerados mais urgentes para agenda pblica quando esto em foco os direitos da infncia e da adolescncia. Acreditamos, tambm, que os artigos aqui presentes registram os passos iniciais de um processo maior de aprendizagem que se abre para estes futuros profissionais.

    Esperamos que os textos possam contribuir para a ampliao e fortalecimento do de-bate acadmico acerca da relao da criana com a mdia na atualidade, alm de iluminar a responsabilidade a ser compartilhada por diferentes atores para construo de uma so-ciedade que honre a infncia como prioridade absoluta, garantindo o exerccio pleno dos direitos de crianas e adolescentes.

    Boa leitura!

    Veet VivartaSecretrio Executivo

    ANDI - Agncia de Noticias dos Direitos da Infncia

    Isabella HenriquesCoordenadora geral

    Projeto Criana e Consumo do Instituto Alana

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    SUMRIO

    O controle da publicidade de alimentos no saudveis dirigidos s crianas: autocontrole ou sistema misto?

    (Aline Vasconcelos) | pg 6

    Criana de papel:representaes das crianas nos jornais pernambucanos.

    (Andra Maciel Aquino e Isaltina Maria de Azeredo Mello Gomes) | pg 22

    As representaes de infncia na publicidade pelapercepo de crianas de cinco a seis anos.

    (Clarissa Borges Muller) | pg 35

    H educomunicao na televiso brasileira?

    (Flvia Vasconcelos Paravidino) | pg 45

    Consumo cultural na web:as prticas de crianas e adolescentes de escolas pblicas de Gravata / RS.

    (Simone Luz Ferreira e Nilda Jacks) | pg 61

    A criana adultizada na publicidade televisiva:Uma anlise da recepo infantil.

    (Tarcsio de Souza Filho) | pg 73

    Blog, cincia e educao:construindo o conhecimento nas crianas.

    (Tierri Rafael Ribeiro Angeluci e Zeneida Alves de Assumpo) | pg 86

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    O controle da publicidade de alimentos no saudveis dirigidos s crianas: autocontrole ou sistema misto?1

    [Aline Vasconcelos]2

    IntroduoO assunto deste artigo representa uma das vrias nuances da discusso que h muito se trava no meio jurdico acerca da publicidade abusiva des-tinada criana. Trata-se da ineficcia da auto-regulamentao publici-tria como nica sada para a resoluo do problema da publicidade abu-siva de alimentos no-saudveis, tendo em vista a observncia de uma duplicidade de comportamento por parte de algumas multinacionais com relao s suas prprias normas em diferentes pases. Por essa razo, o tema sobre o qual se discorre versa sobre a necessidade de instituio de um sistema misto de controle, que alm da auto-regulamentao conte com a regulamentao estatal expressa.

    A referida pesquisa que atestou a diversidade de comportamento por parte das empresas multinacionais foi realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pelo Projeto Criana e Consumo e, em breve sntese, constatou que, embora algumas multinacionais instaladas no Brasil tenham assumido, atravs da auto-regulamentao, compromis-sos com outros pases mais desenvolvidos de restringir ou at mesmo de abster-se de realizar a publicidade de alimentos nocivos sade dirigidos a crianas, no Brasil o mesmo no ocorre, afinal, neste pas, essas mes-mas empresas utilizam-se de padres publicitrios diferentes dos que fo-ram estabelecidos nos compromissos.3

    Insta salientar que este trabalho foi apoiado pela ANDI Agncia de Notcias dos Direitos da Infncia, no mbito do Programa InFormao (Programa de Cooperao para a Qualificao de Estudantes de Jorna-lismo) e do Instituto Alana no mbito do Programa Criana e Consumo, ambas desenvolvendo suas atividades voltadas para a temtica abor-dada de forma primorosa. Registre-se, desde j, o agradecimento pelo apoio que, inclusive, deixou transparecer a importncia do tema que se passa a apresentar.

    1 O presente artigo foi apoiado pela ANDI Agncia de Notcias dos Direitos da Infncia, no mbito do Programa InFormao Programa de Cooperao para a Qualificao de Estudantes de Jornalismo e do Instituto Alana no mbito do Projeto Criana e Consumo. Os contedos, reflexes e opinies constantes deste trabalho, bem como do Projeto que a ele deu origem, no representam, necessariamente, as opinies das instituies apoiadoras.

    2 Graduanda em direito pela Faculdade de Direito de Vitria.3 INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Publicidade infantil: multinacionais no aplicam

    padres internacionais no Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 13 nov. 2009.

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    1. O Contexto em que o tema se situaPrimeiramente, a fim de delimitar o problema ora exposto, cabe aduzir que o presente trabalho se especifica na questo da criana. Tal limitao ne-cessria para que se possa detalhar ainda mais a pesquisa, levando-se em considerao as caractersticas peculiares do pblico infantil.

    No Brasil, o legislador definiu como criana aquele indivduo de at 12 (doze) anos de idade incompletos, conforme estabelecido pelo art. 2 do Es-tatuto da Criana e do Adolescente (ECRIAD).

    A criana, justamente por ser um ser em formao fsica, psicolgica, emo-cional e social, pode ser considerada vulnervel em sua essncia e, por isso, re-quer uma ateno diferenciada em seu tratamento, razo pela qual os ditames constitucionais e infraconstitucionais tendem para a chamada tutela jurisdicio-nal diferenciada, que aquela que atenta para a necessidade de uma proteo a mais para este indivduo, alm daquela conferida a todos os outros cidados, at mesmo por ser a criana considerada absolutamente incapaz (art. 3, I, do Cdigo Civil), ou seja, realmente necessitada de uma tutela especfica, pelo que a tutela jurisdicional diferenciada se configura a prpria expresso do princpio da igualdade, que se traduz no tratamento igualitrio aos iguais e diferenciado na medida das diferenas existentes entre os indivduos.4

    Justamente pelo fato das crianas serem pessoas em desenvolvimen-to, a norma pice do ordenamento jurdico brasileiro dedicou a elas espe-cial ateno em um captulo permeado de normas que visam a proteg--las, estabelecendo, especialmente no art. 227 que dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com ab-soluta prioridade os direitos bsicos conferidos a todos os cidados, a j instituindo o princpio da prioridade, cuja idia a de que os direitos das crianas esto em um escalo elevado no que diz respeito a outros direitos, inclusive em relao ao direito de realizar a publicidade, ainda mais quando esta se configura abusiva.

    No bastasse a criana por si s j ser considerada vulnervel, sua con-dio enquanto consumidora torna essa vulnerabilidade ainda mais intensa. Alis, frise-se que consumidor no apenas aquele indivduo que celebra um contrato de consumo, sendo que na tnica apresentada no trabalho, con-sumidor aquele que o simplesmente por estar exposto publicidade, tendo em vista que esta atividade puramente comercial e busca a adeso das pessoas ao produto ou servio que est sendo oferecido. Assim, de con-cluir-se que a criana duplamente vulnervel: primeiro por ser criana, segundo por ser consumidora.

    A publicidade abusiva no tema que se apresenta aquela que segundo o art. 37 2 do CDC se vale da deficincia de julgamento e experincia da criana. Uma interessante conceituao, que servir de norte ao leitor, merece ser citada:5

    4 HENRIQUES, Isabella Vieira Machado. Publicidade abusiva dirigida criana. So Paulo: Juru, 2008. p. 137.5 BENJAMIN, Antnio Herman V.; MARQUES, Cludia Lima; MIRAGEM, Bruno. Comentrios ao Cdigo de Defesa

    do Consumidor. 1.ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 482.

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    A publicidade abusiva , em resumo, a publicidade antitica, que fere a vulnerabilidade do consumidor, que fere valores sociais bsicos, que fere a prpria sociedade como um todo.

    A publicidade abusiva direcionada criana permite que os direitos li-berdade, dignidade e ao respeito criana no sejam observados, devendo haver um espao para a livre formao do pensamento das crianas en-quanto pessoas e ser a elas possibilitada a experincia de criar valores e conceitos sadios a partir da sua prpria perspectiva de mundo e no da pers-pectiva da publicidade abusiva que preconiza mais o ter do que o ser.

    Entrando no cerne da temtica, cabe aduzir que quando se fala em ali-mentos no-saudveis a questo passa a ser muito mais complexa porque a exposio a esse tipo de publicidade, que instiga o consumo de alimentos nocivos, traz danos sade e vida da criana.

    De ver-se que o debate acerca desses prejuzos indispensvel eis que no se atm apenas a uma mera discusso sobre o poder publicitrio e sua influ-ncia no consumo da sociedade, mas tambm a uma abordagem que reflete na sade pblica, tema notadamente relevante eis que, comprovadamente, as crianas e adolescentes, em mbito nacional e at mesmo mundial, tm adquirido muitas doenas decorrentes dos maus hbitos alimentares.6

    Nesta questo, insta esclarecer que, embora a publicidade no seja a ni-ca causa, ela, definitiva e comprovadamente, contribui para a evoluo da epidemia de obesidade no Brasil. Os nmeros da obesidade no pas so alar-mantes. De acordo com Ana Beatriz Vasconcelos, na regio Norte constatou--se que 5,2% delas estavam acima do peso; no Nordeste 6,0%; no Sudeste, 6,7%; no Centro-Oeste, 7,0%; e, por fim, 8,8% na regio Sul.7

    Indiscutivelmente, esses dados preocupam. E por isso que se faz ne-cessria a instituio de uma regulamentao expressa acerca da publici-dade de alimentos no-saudveis voltados para o pblico infantil, que atue em harmonia com a auto-regulamentao, tendo em vista a ausncia de normas no ordenamento jurdico estatal sobre o tema e a patente inefic-cia da utilizao da auto-regulamentao como nico conjunto de normas a tutelar a publicidade de alimentos nocivos criana, conforme pode-se verificar no tpico a seguir.

    2. O problema apresentado: a ineficcia da auto-regulamentao na publicidade destinada a crianas Abstraindo toda a situao at ento exposta, deve-se, a princpio, reconhe-cer o importante papel da auto-regulamentao, sendo certo que a mobili-zao da prpria classe publicitria para coibio de abusos em sua ativida-de uma iniciativa louvvel e que merece destaque.6 CRESCE o ndice de obesidade infantil no pas. Jornal Ponto Final. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.7 VASCONCELOS, Ana Beatriz. Regulamentao da Publicidade de Alimentos: A Viso da Sade Publica. In: MESA

    REDONDA SOBRE Publicidade de alimentos dirigida ao pblico infantil, 2009, So Paulo. Disponvel em: . Acesso em: 27 ago.2009.

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    Neste pormenor, no se deve deixar de falar sobre o Cdigo de Auto--Regulamentao Publicitria, fruto da integrao entre veculos de co-municao, agncias publicitrias e anunciantes, e que constitui o norte de toda a atividade do Conar, encarregado de dar efetividade s disposi-es ali constantes.8

    Esclarecida a importncia do Conar e do Cdigo de Auto-Regulamentao Publicitria, cabe, neste momento, aduzir o que dispem as novas propostas de auto-regulamentao estabelecidas no ano de 2009 firmadas perante a ABIA (Associao Brasileira das Indstrias da Alimentao) e ABA (Associa-o Brasileira de Anunciantes) acerca da restrio da publicidade de alimen-tos e bebidas para crianas no Brasil.

    O acordo foi firmado por vinte e quatro empresas, sendo que tanto a ABIA quanto a ABA pretendem ampliar o nmero de empresas que adotaro os parmetros do acordo, que observar, inclusive, as normas previstas no C-digo Brasileiro de Auto-Regulamentao.9

    Em um primeiro momento, as disposies deste acordo podem parecer interessantes, porm, no difcil haver quem reconhea que as previses so um tanto quanto restritivas e dependentes de aes das prprias in-dstrias que iro, inclusive, estabelecer suas prprias polticas individuais e critrios nutricionais. Veja-se:10

    1. No fazer, para crianas abaixo de 12 anos, publicidade de alimentos ou bebidas; com exceo de produtos cujo perfil nutricional atenda a critrios especficos baseados em evi-dncias cientficas.1.1. Os critrios mencionados sero adotados especfica e indi-

    vidualmente pelas empresas signatrias.1.2. Para efeito desse compromisso, as limitaes so para in-

    seres publicitrias em televiso, rdio, mdia impressa ou internet que tenham 50% ou mais de audincia constitu-da por crianas de menos de 12 anos.

    2. Nas escolas, no realizar, para crianas com menos de 12 anos, qualquer tipo de promoo com carter comercial relacionada a alimentos ou bebidas que no atendam aos critrios descritos anteriormente, exceto quando acordado ou solicitado pela admi-nistrao da escola para propsitos educacionais ou esportivos.

    3. Promover no contexto de seu material publicitrio e promo-cional, quando aplicvel, prticas e hbitos saudveis, tais como a adoo de alimentao balanceada e/ou a realizao de atividades fsicas.

    8 CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAO PUBLICITRIA. Uma breve histria do CONAR. Disponvel em:. Acesso em: 14 nov. 2009.

    9 INDSTRIAS de alimentos assumem compromisso espontneo sobre publicidade dirigida s crianas. Disponvel em: . Acesso em 10 out. 2009.

    10 INDSTRIAS de alimentos assumem compromisso espontneo sobre publicidade dirigida s crianas. Disponvel em: . Acesso em 10 out. 2009.

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    Desta feita, embora, a princpio, a iniciativa seja boa, parece que a mes-ma tende para o rumo que tem tomado a auto-regulamentao da publici-dade de alimentos no-saudveis voltados para crianas at o momento: normas ineficazes e mortas, o que se pode afirmar com base nas muitas restries impostas no pacto.

    Nesse sentido, a ttulo de exemplo, ficou estabelecido que se um ali-mento ou bebida estivesse em conformidade com critrios nutricionais especficos estabelecidos to-somente pelas empresas signatrias, a publicidade desses produtos poderia ser direcionada crianas menores de doze anos. Embora haja uma ressalva de que devem esses critrios basear-se em evidncias cientficas, de ver-se que, conforme conclu-ses extradas pela indigitada pesquisa realizada pelo Projeto Criana e Consumo e pelo IDEC, resta cristalino que os padres nutricionais das empresas no so claros11, fato que obviamente ser causa de confuso entre os consumidores que no tero um referencial no qual se pautar. Assim, continuar o consumidor sem saber se est consumindo um ali-mento saudvel ou no.

    No se deve olvidar tambm que a mesma pesquisa salientou que os padres nutricionais estabelecidos pelas empresas tm se demonstrado um tanto quanto flexveis, atendendo, por bvio, aos interesses das in-dstrias12, razo pela qual pode-se afirmar mais uma vez que, embora seja uma boa iniciativa, a proposta possui inmeras brechas que mais representam uma falcia, sendo essa apenas uma das muitas crticas que podem ser feitas a esse acordo.

    Ainda frise-se que as normas presentes no ordenamento jurdico as quais versam sobre a publicidade que fere os direitos fundamentais inerentes s crianas no so muitas e, ainda assim, as que existem so pouco espec-ficas, fazendo-se necessria, a partir da, uma regulamentao expressa e especfica sob o assunto em anlise.

    Alis, como so especficas sobre o tema interao entre publicidade e consumidores, as normas de auto-regulamentao tm sido amplamente utilizadas, muitas vezes at mais do que essas normas estatais. Neste por-menor, frise-se que a proposta da auto-regulamentao realmente boa e eficaz em diversos setores da economia, entretanto, a realidade tem se mostrado diferente quando a abordagem refere-se publicidade de alimen-tos no-saudveis destinados ao pblico infantil.

    que conforme frisou-se at o momento, a auto-regulamentao, nesse setor em especfico, no tem cumprido efetivamente seu papel. Os com-promissos realizados por multinacionais ferem de forma patente a ques-to isonmica ao pautar-se em duplo padro de conduta, em outros ter-11 HENRIQUES, Isabella; TRETTEL, Daniela. Publicidade de Alimentos Dirigida ao Pblico Infantil. In: MESA

    REDONDA SOBRE PUBLICIDADE DE ALIMENTOS DIRIGIDA AO PBLICO INFANTIL, 2009, So Paulo. Disponvel em: Acesso em: 07 set.2009.

    12 Ibid.

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    mos, essas empresas assumiram compromissos globais de restringir ou at mesmo de eliminar a publicidade dirigida crianas menores de doze anos, cumprindo-os somente em pases desenvolvidos como os Estados Unidos e mantendo inobservncia no que diz respeito ao Brasil.13

    Grandiosos compromissos, como o realizado junto Organizao Mundial da Sade (OMS) em 2008 prevem a reformulao da composio nutricional dos produtos comercializados pelas empresas, o estmulo aos hbitos sau-dveis s crianas, a restrio da publicidade para crianas de at doze anos de idade, dentre outras disposies importantes.14

    Tomando como parmetro esses compromissos, o Projeto Criana e Con-sumo do Instituto Alana e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, realizaram uma pesquisa observando o comportamento de doze empresas que atuam tanto nesses pases desenvolvidos quanto no Brasil e que assu-miram esses compromissos internacionais.15

    Para a realizao da pesquisa, foram analisadas a publicidade na televi-so, nas prprias embalagens dos produtos, inclusive analisando sua com-posio nutricional tendo como base a proposta de regulamento tcnica da ANVISA, e na internet, mais especificamente no site das empresas que co-mercializam os alimentos no-saudveis destinados ao pblico infantil.16

    O resultado foi desanimador para aqueles que acreditam na eficcia da auto-regulamentao no que diz respeito publicidade desses alimentos no Brasil: no pas, dez das doze empresas analisadas realizaram a publi-cidade infantil no perodo em que foram observadas. A pesquisa ainda res-salva que as outras duas apenas no realizaram esse tipo de publicidade durante o perodo de anlise, o que no impede que tenham feito ou que faam em outros momentos.17

    De ver-se ainda que as doze empresas analisadas valeram-se de alguma tcnica que chamasse a ateno das crianas e as incitasse ao consumo, tais como personagens, cores e figuras, em total desconformidade com a proposta elaborada pela ANVISA18 (vide item 3, abaixo), restando evidente que aqueles acordos realizados internacionalmente por essas empresas nem de longe esto sendo aplicados no Brasil.

    Na mesa redonda onde a pesquisa foi apresentada concluiu-se com a an-lise que necessria a atuao do Poder Pblico a fim de uniformizar as condutas que sero aceitveis ou no com relao publicidade direcionada s crianas brasileiras o que, certamente, facilitaria a sua proteo.1913 INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Publicidade infantil: multinacionais no aplicam

    padres internacionais no Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 13 nov. 2009.

    14 HENRIQUES, Isabella; TRETTEL, Daniela. Publicidade de Alimentos Dirigida ao Pblico Infantil. In: MESA REDONDA SOBRE Publicidade de alimentos dirigida ao pblico infantil, 2009, So Paulo. Disponvel em: Acesso em: 07 set.2009.

    15 Ibid.16 Ibid.17 Ibid.18 Ibid.19 Ibid.

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    O fato que a sociedade est, de forma incontroversa, exposta publici-dade abusiva, independentemente de a auto-regulamentao estar agindo ou no, pelo que se faz necessrio urgentemente que o Poder Pblico se valha de suas prerrogativas para impor normas que verdadeiramente res-guardem e efetivem os direitos constitucionalmente postos uma vez que a auto-regulamentao, sozinha, no eficiente nesse sentido, razo pela qual deve o Estado elaborar normas que, juntamente com a auto-regula-mentao, cumpram esse papel.

    3. A soluo proposta o sistema misto de controle Conforme j se percebeu, o tema ora abordado se volta para a ineficcia da auto-regulamentao publicitria como nica sada para a resoluo do problema da publicidade abusiva de alimentos no-saudveis dirigida s crianas, tendo em vista a observncia de uma duplicidade de comporta-mento por parte de algumas multinacionais com relao s suas prprias normas em diferentes pases.

    nesse ponto que repousa o elemento eficcia da proposta. Reconhece--se a importncia da auto-regulamentao, entretanto, ante a anlise des-sa diversidade de comportamento por parte das empresas no Brasil, resta evidente a necessidade de uma soluo efetiva para o problema, qual seja, a integrao, auto-regulamentao, da regulamentao expressa por parte do Estado nesse tema, de forma a resguardar os interesses das crianas atravs de instrumentos legtimos e democrticos. Trata-se do chamado sistema misto de controle da publicidade.

    Frise-se que a questo a ser defendida no o monoplio estatal na re-gulamentao da problemtica e sim a harmonizao entre as normas de auto-regulamentao e as estatais, pelo que defende-se esse sistema ao admitir que ele permite tanto a participao de organismos auto-regula-mentares quanto do prprio Estado, enquanto instituio legitimada para atuao nesse sentido.

    Destarte, para que haja real cumprimento de quaisquer normas referen-tes publicidade de alimentos no-saudveis destinados ao pblico infantil, necessria a atuao estatal, at mesmo para que as normas sejam mais abrangentes e efetivamente cumpridas.

    Em virtude de uma possvel reduo de lucros por parte das indstrias em razo das restries publicidade, as medidas por elas mesmo ado-tadas podem perder sua eficcia para atender aos interesses mercado-lgicos. Certamente as normas impostas pelo Estado, com suas carac-tersticas peculiares universais, dotadas de coercibilidade, abstratas, pblicas e anteriores aos fatos que, em ocorrendo, ensejaro sua aplica-o confeririam sociedade uma maior estabilidade, e, por conseqn-cia, mais segurana jurdica.

    Observe-se a partir da que a regulamentao estatal da publicidade, mui-to embora aos olhos daqueles que so eminentemente contra a sua imposi-

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    o possa parecer censura e privao de direitos, na realidade, um instru-mento que proporciona aos mais diversos sujeitos sociais, dentre os quais as crianas, a possibilidade de definir livremente suas escolhas de acordo com o que necessitam e no com o que a publicidade impe ser necessrio, resguardando assim, direitos fundamentais como sade, liberdade e vida, conforme j citado neste trabalho.

    Alis, cumpre salientar que os prprios organismos publicitrios, como o CONAR, podem atuar para que o prprio Estado, no exerccio da regulamen-tao, siga os limites e os princpios basilares da democracia, requerendo a quem compete as providncias cabveis caso o Estado eventualmente se exceda ao impor suas normas.

    Observe-se que a necessidade de regulamentao expressa no s uma questo social mas tambm de eficcia jurdica das normas dispostas na Constituio Federal de 1988, que lanou as bases para que o Estado agisse na imposio de normas restritivas (ou at mesmo impeditivas) da publici-dade abusiva de alimentos dirigida crianas, pelo que resta evidente que, uma vez no havendo a efetiva regulamentao expressa acerca da publi-cidade de alimentos no-saudveis voltados para o pblico infantil, essas disposies constitucionais mostram-se incuas.

    Assim, de ver-se que a prpria Constituio j prev a possibilidade de regulamentao expressa da publicidade, pelo que se faz interessante evi-denciar as seguintes disposies constitucionais:

    Art. 5 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer na-tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pas a inviolabilidade do direito vida, liberdade, igualdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes:

    XXXII - o Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor;

    Art. 220. A manifestao do pensamento, a criao, a expresso e a informao, sob qualquer forma, processo ou veculo no sofrero qualquer restrio, observado o disposto nesta Constituio.

    [...]

    3 - Compete lei federal:

    II - estabelecer os meios legais que garantam pessoa e famlia a possibilidade de se defenderem de programas ou programaes de rdio e televiso que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, prticas e servios que possam ser no-civos sade e ao meio ambiente.

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    4 - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcolicas, agro-txicos, medicamentos e terapias estar sujeita a restries legais, nos termos do inciso II do pargrafo anterior, e conter, sempre que necessrio, advertncia sobre os malefcios decorrentes de seu uso.

    Destarte, pela simples leitura do artigo 5 evidencia-se que o fato de o Estado agir, atravs de lei, para que o consumidor seja protegido direito fundamental conferido a todos. Assim, se se parte do postulado segundo o qual, sem regulamentao expressa no h eficcia da proteo da criana contra a publicidade abusiva de alimentos no-saudveis, necessria ur-gentemente a atuao estatal nesse sentido, sob pena de estar-se tornando inteis normas constitucionais basilares.

    Tambm no tocante ao art. 220, pargrafo 3, fica clarividente que as dis-posies constitucionais so no sentido de haver a regulamentao expressa da publicidade de produtos nocivos sade, como os alimentos no-saud-veis direcionados s crianas, sendo certo que a disposio do pargrafo 3 complementada acertadamente pelo pargrafo 4 que, embora no preve-ja de forma expressa a publicidade de alimentos no-saudveis em seu rol, a mesma pode ser facilmente encaixada ali: a uma, porque o rol meramente exemplificativo, admitindo elementos to ou mais passveis de causar danos dos que os expressamente previstos; a duas, porque, de fato, os alimentos no-saudveis so eminentemente perigosos e tm, de forma indiscutvel, ceifado a sade e a vida de crianas.

    Para Antnio Herman de Vasconcellos e Benjamin, o legislador deve es-tabelecer normas especficas acerca da publicidade e complementares ao Cdigo de Defesa do Consumidor, entendendo-se a expresso legislao complementar como mais rigorosa que a do CDC por ser este diploma legal evidentemente um tanto quanto geral, especialmente no que diz respeito publicidade. Para o ilustre jurista, o sistema do CDC caracteriza-se por ser um verdadeiro piso mnimo de tutela do consumidor.20 (grifos do autor)

    Atento a eminente necessidade de interveno na atividade publicitria que se vale da vulnerabilidade e da hipossuficincia das crianas para atin-gir lucros cada vez mais exorbitantes, o Estado Brasileiro comeou a tomar algumas iniciativas nesse sentido para resguardar os direitos infantis.

    No obstante as iniciativas estatais, de ver-se que elas chegam tarde tendo em vista que at mesmo o debate acerca da publicidade abusiva diri-gida a crianas demorou a chegar no Brasil, sendo esse um tema um tanto quanto recente no Pas. Mesmo tarde, sempre oportuna a discusso da problemtica e a conseqente proposio de iniciativas que possam resol-ver a situao em tela.

    A primeira proposta que se apresenta de iniciativa do Executivo, qual seja, o Regulamento Tcnico advindo da Consulta Pblica n 71/2006 re-alizada pela ANVISA. 20 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Cdigo de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto.

    9.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2007. p. 359.

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    A proposta, que versa sobre a publicidade de alimentos no-saudveis, foi publicada no dia 10 de novembro de 2006 e, durante um perodo de 140 (cento e quarenta) dias recebeu contribuies e consideraes dos mais diversos setores da sociedade. A partir da j se pode observar o elemento democrtico do regulamento tcnico, que no foi simplesmen-te imposto, mas ouviu e recebeu inmeras contribuies e, inclusive, teve sua minuta original alterada.21

    Seguidamente, a proposta vlida e j alterada foi submetida Audincia Pblica em 20 de agosto de 2009 onde puderam se manifestar diversos seto-res da sociedade, tanto contra como a favor das disposies do regulamento.

    Tal regulamento tcnico fora aprovado estabelecendo condies, dentre outros, para a publicidade cujo objetivo seja a divulgao e a promoo co-mercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de acar, de gordura saturada, de gordura trans, de sdio, e de bebidas com baixo teor nutricional (art. 1), estabelecendo ainda o objetivo de proteo sade e infncia, contribuindo para a promoo da alimentao saudvel da popu-lao, em especial das crianas (art. 2).

    Em princpio, importante observar que o regulamento tcnico j se mos-trava interessante por um aspecto essencial e at ento no observado por nenhuma regulamentao: em seu artigo 4 foram especificados os termos empregados durante a sua redao, o que, por certo, tornou sua aplicao faci-litada e gerou maior segurana jurdica tanto para publicitrios e comerciantes, quanto para o prprio consumidor. Assim, exemplificativamente, o regulamen-to definiu com preciso o que alimento com quantidade elevada de acar (inciso IV), o que consumo excessivo (inciso XVI) e o que propaganda/publi-cidade/promoo comercial de alimentos destinada s crianas (inciso XXXII).

    Nesse nterim, interessante consignar ainda que a proposta de regula-mento tcnico vedou de forma evidente a publicidade clandestina ou no--identificvel, na medida em que estabeleceu que toda publicidade, fosse ela oral ou impressa, deveria estar claramente destacada no meio de todo o contexto em que se inseria (art. 5 em seus incisos e alneas).

    Da mesma forma que o art. 220, pargrafo 4 da Constituio Federal o qual, rememore-se, dispe que sempre que produtos como tabaco, bebidas alcolicas, medicamentos e terapias forem objeto de pea publicitria deve haver uma advertncia sobre possveis malefcios que possam os mesmos causar ao consumidor, o regulamento tcnico trouxe inmeras frases de ad-vertncia que deveriam ser veiculadas junto com a propaganda de alimentos no-saudveis consumidos em excesso, justamente para cientificar de for-ma clara o consumidor sobre o perigo desses produtos (art. 6, III).

    Em captulo especialmente direcionado crianas, a proposta de regula-mento tcnico da ANVISA restringiu as propagandas, as publicidades ou as promoes especificamente referentes a alimentos potencialmente nocivos

    21 AGNCIA NACIONAL DE VIGILNCIA SANITRIA. Propaganda de produtos sujeitos vigilncia sanitria: detalhes da consulta pblica n. 71/2006. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

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    ao pblico infantil e vedou expressamente a utilizao de figuras, dese-nhos, personalidades e personagens que sejam cativos ou admirados por esse pblico alvo (art. 8).

    O regulamento restringiu a veiculao publicitria em rdio e televiso das vinte e uma s seis horas (art. 9). Tambm nos ambientes educacionais ou que prestam cuidados a crianas foi vedada a realizao da publicidade de alimentos no-saudveis (art. 10). Ainda o regulamento tcnico vedou a aluso ou incluso desses alimentos em materiais educativos (art. 13).

    Na mesma esteira seguia o artigo 12 que vedou qualquer tipo de propa-ganda, publicidade ou promoo comercial, inclusive merchandising, dire-cionada s crianas, de alimentos com quantidades elevadas de acar, de gordura saturada, de gordura trans, de sdio e de bebidas com baixo teor nutricional em brinquedos, filmes, jogos eletrnicos, pginas de internet, veculo ou mdia. Seguidamente, o regulamento proibiu que instituies de ensino de qualquer natureza ou outras entidades pblicas ou privadas desti-nadas a fornecer cuidados s crianas recebessem incentivos financeiros ou materiais quando da aquisio de alimentos (art. 17).

    Pois bem. Este regulamento tcnico, que mostrou-se to democrtico e que, por fim, buscou proteger de alguma forma as crianas contra a publici-dade nociva sua sade, fora submetido nova audincia pblica realizada em 20 de novembro de 2009 a fim de que se discutissem os ltimos detalhes do texto j consolidado.

    Ocorre que no ano de 2010 o regulamento sofreu um imensurvel retro-cesso ao suprimir do texto consolidado os ttulos II (Requisitos para propa-ganda, publicidade ou promoo destinada s crianas) e III (Requisitos para distribuio de amostras grtis, cupons de desconto, patrocnio e ou-tras atividades promocionais), reduzindo em muito os ganhos obtidos na proteo ao pblico infantil.

    Assim sendo, vrias disposies acima descritas foram alteradas (como, a ttulo de exemplo, os arts. 2 e 5), muitas outras excludas e, quanto s disposies especialmente voltadas para o pblico infantil tem-se que no novo regulamento tais disposies se resumiram ao captulo III, o qual pos-sui apenas um artigo, cujo teor se restringe a obrigar a veiculao do alerta referente aos perigos que os alimentos no-saudveis podem ocasionar sade das crianas.

    A impresso que se tem a de que, quanto a situao em voga, houve real desperdcio de esforos e de oportunidade eis que tal modificao trans-formou possveis avanos na regulao da publicidade de alimentos no--saudveis voltados para o pblico infantil em meras disposies que pouca capacidade possuem de coibir efetivamente as prticas publicitrias ilegais.

    Ainda cabe salientar a iniciativa primorosa por parte do Legislativo, o projeto de lei n 5.921/2001, que contou com diversas modificaes desde a apresentao de seu texto original elaborado pelo Deputado Luiz Carlos Hauly, tendo o seu resultado atual desvirtuado em partes a idia original.

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    O projeto original previa a criao de um pargrafo 2-A em complemen-to ao artigo 37 do Cdigo de Defesa do Consumidor, que veda a publicida-de abusiva que se aproveite da deficincia de julgamento e experincia da criana. A proposta proibia a publicidade que promova a venda de produtos voltados apenas para o pblico infantil.22 Vrios substitutivos seguiram, che-gando ao atual.

    Este substitutivo, de autoria do Deputado Osrio Adriano, relator na CDEIC, contempla no uma lei especfica sobre a publicidade dirigida criana, mas sim um acrscimo ao pargrafo 2 do artigo 37 do Cdigo de Defesa do Con-sumidor. Atravs dessa proposta, inclui-se como abusiva a publicidade que seja capaz de induzir a criana a desrespeitar os valores ticos e sociais da pessoa e da famlia e que estimule o consumo excessivo.23

    Algumas manifestaes surgiram contra a aprovao desse substituti-vo, tendo sido proposta at mesmo uma composio por parte do Deputa-do Jos Guimares que, em curta sntese, proibia todo e qualquer tipo de publicidade para crianas, inclusive de alimentos no-saudveis, porquanto uma vez abusiva, vedada est a publicidade, com as ressalvas referente a campanhas de utilidade pblica referentes a informaes sobre boa alimen-tao, segurana, educao, sade, entre outros itens relativos ao melhor desenvolvimento da criana no meio social.24

    O que ocorre que, uma vez na CDEIC, fora aprovado o substitutivo de autoria do Deputado Osrio Adriano, exatamente aquele mais conveniente para a indstria e para a publicidade. Curiosamente, o relator da CDEIC empresrio de um grupo econmico franqueado a grandes marcas mun-diais, dentre as quais est a Coca-Cola.25

    Por fim, o substitutivo do projeto de lei aprovado passar por outras duas Comisses na Cmara dos Deputados, quais sejam, a Comisso de Cincia e Tecnologia, Comunicao e Informtica (CCTCI) e pela Comisso de Consti-tuio, Justia e Cidadania (CCJC) para que, ento, seja votada em plenrio.26

    Finalmente, tendo por base tudo o que at agora foi falado, no h dvidas de que a publicidade de alimentos no-saudveis dirigida crianas deve ser regulamentada por intermdio de lei especfica para que, em detrimento das ganncias do mercado na busca do poder econmico e do lucro, sejam os direitos fundamentais desses seres to vulnerveis resguardados, afinal, 22 BRASIL. Projeto de lei, n 5.921, de 12 de dezembro de 2001. Acrescenta pargrafo ao art. 37, da Lei n 8078,

    de 11 de setembro de 1990, que Dispe sobre a proteo do consumidor e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

    23 BRASIL. Substitutivo ao Projeto de lei, n 5.921, de 12 de dezembro de 2001. Acrescenta pargrafo ao art. 37 da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990, que dispe sobre a proteo do consumidor e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

    24 PUBLICIDADE infantil: proibio. Disponvel em: . Acesso em: 15 nov. 2009.

    25 HISTRIA da Brasal: de mos dadas com a histria. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

    26 INSTITUTO ALANA. Projeto de Lei n: 5921/01: probe a publicidade dirigida criana e regulamenta publicidade dirigida a adolescentes. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

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    a sua exposio publicidade abusiva no os afeta to-somente mas tam-bm toda sociedade, razo pela qual a proteo dos direitos de poucos, na realidade, ser de todos.

    Consideraes FinaisA publicidade de alimentos no-saudveis voltados especialmente para o

    pblico infantil, de forma incontroversa, pode-se considerar um problema do mundo moderno. Tal afirmativa s possvel quando se perpassa pela anlise do comportamento infantil frente a esse tipo de atividade comercial: a criana vulnervel aos apelos da propaganda, projetando seus anseios sobre o que a ela demonstrado, sem saber diferenciar o que bom ou ruim e at mesmo sem saber que est exposta publicidade, tendo em vista que crianas muito pequenas possuem dificuldades de identific-la.

    a partir da que pode-se afirmar que a publicidade voltada para crianas torna-se um problema, especialmente aquela referente a alimentos no--saudveis: a criana se alimenta de um produto que, muitas vezes, anun-ciado como algo inofensivo sade ou at mesmo como fonte de importan-tes nutrientes e, por fim, acaba se sujeitando a inmeras mazelas como a obesidade ou at mesmo doenas coronarianas.

    Nesse aspecto, no obstante a vida e a sade restem prejudicadas, tambm os direitos fundamentais liberdade, dignidade e ao respeito so violados porquanto a publicidade busca influenciar negativamente a criana ao se valer de sua inexperincia e de sua imaturidade para vender um produto que, po-tencialmente, a far mal. Da poder-se afirmar que dita publicidade abusiva.

    Certo que as normas de auto-regulamentao publicitria possuem um importante papel na coibio desses abusos, entretanto, por si s, esse instrumentos no so capazes de barrar de forma definitiva a propaganda abusiva de alimentos no-saudveis destinados crianas, especialmente no Brasil, local onde comprovadamente as grandes multinacionais no pa-recem estar muito interessadas em seguir padres ticos na publicidade de alimentos que comercializam. Mesmo os acordos que tm sido realizados com a finalidade de exterminar a publicidade abusiva e de estabelecer maior segurana para o consumidor acerca do que se est ingerindo atravs de uma propaganda verdadeira, genuna, na verdade no passam de falcias.

    Assim, entra em cena a necessidade de regulamentao expressa, ou seja, aquela realizada pelo Estado, a fim de dar efetividade s normas constitucionais e infra-legais que visam a proteo da criana contra a publicidade abusiva.

    Frise-se que o que se prope no uma legislao arbitrria que vede todo e qualquer tipo de publicidade dirigida criana, mas sim uma norma legtima, que atente para os princpios democrticos, que seja especfica so-bre o tema em evidncia e que vede de forma efetiva os abusos cometidos na publicidade de alimentos no-saudveis dirigidos crianas.

    Imperioso se faz salientar que o Poder Pblico j tem se movimentado nesse sentido, como pode-se inferir pela proposta de regulamento tcnico

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    lanada pela ANVISA e pelo Projeto de Lei n. 5.921/2001, todos referentes publicidade voltada para o pblico infantil, muito embora sobre a temtica alimentos no-saudveis a proposta da ANVISA se mostre mais pertinente por possuir um nvel de especificidade maior.

    Finalmente, a concluso a que se pode chegar a de que no pretende--se com a regulamentao expressa exterminar a publicidade por comple-to, mas sim evitar que abusos se configurem nela, at porque reconhece--se a importncia da publicidade para o desenvolvimento, seja ele social ou econmico-financeiro. A idia a harmonizao entre auto-regulamentao e regulamentao expressa, de forma que juntos esses dois instrumentos normativos, consubstanciados no chamado sistema misto de controle, pos-sam proteger de forma eficaz os direitos fundamentais da criana, seres to vulnerveis e dependentes da proteo do Estado, da famlia e da sociedade.

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    Referncias bibliogrficas

    AGNCIA NACIONAL DE VIGILNCIA SANITRIA. Propaganda de produtos sujeitos vigilncia sanitria: detalhes da consulta p-blica n. 71/2006. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

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    BRASIL. Substitutivo ao Projeto de lei, n 5.921, de 12 de dezembro de 2001. Acrescenta pargrafo ao art. 37 da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990, que dispe sobre a proteo do consumidor e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

    CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAO PUBLICIT-RIA. Uma breve histria do CONAR. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2009.

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    INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Publi-cidade infantil: multinacionais no aplicam padres internacio-nais no Brasil. Disponvel em: . Acesso em: 13 nov. 2009.

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    VASCONCELOS, Ana Beatriz. Regulamentao da Publicidade de Alimentos: A Viso da Sade Publica. In: MESA REDONDA SO-BRE PUBLICIDADE DE ALIMENTOS DIRIGIDA AO PBLICO IN-FANTIL, 2009, So Paulo. Disponvel em: . Acesso em: 27 ago.2009.

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    Criana de papel: representaes das crianas nos jornais pernambucanos1

    [Andra Maciel Aquino]2[Isaltina Maria de Azevedo Mello Gomes]3

    Em um mundo exaustivamente dito fragmentado e mltiplo parece haver um lugar estvel, sempre igual para todos: a infncia. De fato, todos os ho-mens e mulheres nascem pequeninos e, aos poucos, podem ganhar altura e peso at que param de crescer. Por esse ngulo, a infncia seria um trao comum, um tipo de comunidade que une a toda a humanidade em algum momento. E, alm disso, ainda teria o atributo (mgico em tempos de mu-danas aceleradas) de ser a nica comunidade eterna afinal, ainda que seus membros mudem, enquanto houver novas vidas, haver infncia.

    Essa impresso de imutabilidade enganosa. Pertencer a uma mesma fai-xa etria no suficiente para garantir unidade. Para notar isso basta olhar os meninos e meninas nas esquinas dos semforos, para quem chicletes so fontes de renda, e no apenas objetos de desejo. Talvez eles nunca tenham provado a infncia-doce que outros experimentam. Mas no so apenas eles que mostram o avesso da ideia de infncia comum. Menores, meninos de rua, estudantes, aprendizes, anjos, pequenos - o amplo vocabulrio testemunha contra a pretensa identidade nica e imutvel da infncia. Em suma, no se pode definir o que ser criana tendo em vista apenas trans-formaes biolgicas da chamada fase de crescimento isso seria tornar natural uma categoria que histrica e social. Categoria essa que, como as demais percepes de mundo, se faz presente nos textos jornalsticos.

    Mdia e construo social da realidade Nas sociedades contemporneas, a mdia mediadora entre o ser huma-no e o seu amplo mundo (MEDITSCH, 1992). As informaes circulam, em grande medida, atravs dos meios de comunicao massivos, criando uma viso ampliada do presente social, que no fica restrita ao universo ime-diato, como a famlia, a vizinhana e o ambiente de trabalho (VILCHES apud PEREIRA JNIOR, 2006).

    Ao ampliar a viso e concepo de mundo, o jornalismo atua como um construtor social da realidade. Essa construo se d ainda pelo fato de o jornalismo recortar os acontecimentos de seus contextos e hierarquiz-los,

    1 O presente artigo foi apoiado pela ANDI Agncia de Notcias dos Direitos da Infncia, no mbito do Programa InFormao Programa de Cooperao para a Qualificao de Estudantes de Jornalismo e do Instituto Alana no mbito do Projeto Criana e Consumo. Os contedos, reflexes e opinies constantes deste trabalho, bem como do Projeto que a ele deu origem, no representam, necessariamente, as opinies das instituies apoiadoras.

    2 Graduada em Comunicao Social com habilitao em Jornalismo, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente trabalha como assessora de comunicao do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Pernambuco-IFPE.

    3 Professora do Departamento de Comunicao Social e do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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    indicando o que deve ser considerado atual e relevante. Alm disso, os textos jornalsticos pautam a sociedade gerando conhecimento, dando respostas aos problemas do dia-a-dia e agendando debates que podem proporcio-nar pontos de vista e intervenes sobre o mundo. As matrias em jornais no so meros reflexos da realidade e podem influenciar na forma como as sociedades e seus participantes se configuram. As notcias participam da realidade social em que se inserem, constituindo referentes coletivos, modificando e construindo tal realidade (SOUSA, 2002). E, portanto, tambm moldam as ideias que se tem da infncia.

    Essas definies e observaes sobre o jornalismo e seu papel de cons-trutor dialtico da realidade so as que a Anlise de Discurso Crtica (ADC) estende aos discursos com um todo. Como afirma Fairclough, os discursos no apenas refletem ou representam entidades e relaes sociais, eles a constroem ou as constituem (2001, p.22). O discurso uma prtica, no apenas de representao do mundo, mas de significao do mundo, cons-tituindo e construindo o mundo em significado (Ibidem, p.91). Em outras palavras, o discurso contribui para a construo dos tipos de eu e das iden-tidades sociais, das relaes sociais entre as pessoas e dos sistemas de conhecimento e crena. Dessa forma, ele se constitui como prtica tanto poltica quanto ideolgica. Enquanto prtica poltica, o discurso estabelece, mantm e transforma as relaes de poder e os grupos entre os quais essas relaes de estabelecem; como prtica ideolgica, age sobre os significa-dos do mundo de posies diversas nas relaes de poder, constituindo-os, naturalizando-os, mantendo-os e transformando-os (FAIRCLOUGH, 2001). O que est em jogo nesses processos o poder de grupos, estabelecido em forma de hegemonia, ou seja, em constante negociao, no sentido de um modo de dominao que se baseia em alianas, na incorporao de grupos subordinados e na gerao de consentimento (ibidem, p. 28). Tais acordos so temporrios, sempre passveis de renegociao e redefinio.

    Para a presente anlise, dois pontos so de essencial interesse: o esta-belecimento de sensos comuns (os acordos hegemnicos) em relao infncia e as mudanas pelas quais eles passam historicamente. Para Fair-clough, baseado em Gramsci, no senso comum as ideologias se tornam naturalizadas ou automatizadas (p. 123). A essa viso, consideramos im-portante acrescentar a de senso comum como representao social, termo usado no mbito da Psicologia Social.

    As representaes sociais so smbolos construdos e compartilhados por uma sociedade. S (1996), referindo-se ao conceito usado por Denise Jo-delet, afirma que a representao social uma forma de saber prtico que liga um sujeito a um objeto, este ltimo podendo ser de natureza social, ma-terial ou ideal. Em relao ao objeto, a representao se encontra em uma relao de simbolizao (est no seu lugar) e de interpretao (confere-lhe significados), sendo expresso de um senso comum, de uma naturalizao de ideias, conceitos e prticas, e, como tal, constituinte da vida cotidiana das

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    pessoas (FORGAS apud ALEXANDRE, 2004).Nos textos jornalsticos (sejam notcias, artigos, editoriais, fotografias),

    essas representaes sociais, que do sentido ao cotidiano, so apresenta-das e, por vezes, contestadas na busca da construo de um novo sentido e de um novo senso comum (MORETZSOHN, 2007). Por isso, consideramos o jornalismo lugar privilegiado de observao das representaes sociais da infncia, das formas que elas se relacionam entre si, de duas formas de re-lao de poder, de como elas se modificam e ainda como buscam em outros discursos (cientficos, religiosos, econmicos etc.) argumentos e autoridade para sua legitimao.

    A pesquisaO objetivo da pesquisa foi observar a variabilidade e a mudana histrica nos sensos comuns sobre a infncia. Para tanto, foram analisados os jornais pernambucanos Dirio de Pernambuco e Jornal do Commercio publicados em pocas festivas geralmente relacionadas infncia (o Dia das Crianas e o Natal) entre 1939 e 1999. Todo o material foi coletado no Arquivo Pblico Estadual Jordo Emerenciano (APEJE), exceto parte da Semana da Criana de 1995 do Diario de Pernambuco, em que acessamos a verso online do peridico disponvel na Internet.

    As dcadas escolhidas para compor o corpus marcam pontos importantes para a histria da criana no Brasil. O Dia das Crianas, 12 de outubro, foi institudo nacionalmente alguns anos antes de 1930 (em 1924). Em 1930, foi criado o Ministrio da Educao e Sade Pblica, um dos primeiros atos do governo provisrio de Getlio Vargas. No perodo getulista, o Brasil dava seus primeiros passos no desenvolvimento do capitalismo industrial e as crianas eram vistas como o futuro da nao, a mo de obra que deveria ser educada para promover esse desenvolvimento do pas.

    A preocupao com a infncia se intensificou nas dcadas seguintes. A partir, principalmente, da dcada de 1960 se intensifica a representao da criana ligada no apenas ptria e seus destinos, mas sociedade de consumo. Os produtos tornam-se uma forma de adentrar a vida mo-derna. Os anncios so voltados para os pais, apesar de apontar produtos destinados aos filhos. Com o passar dos anos, a criana foi includa na so-ciedade de consumo no apenas como o filho do consumidor, mas como o prprio consumidor, fenmeno que se intensificou com o surgimento e popularizao da televiso.

    No final da dcada de 1980 e comeo dos anos 1990, ganha fora o movi-mento pela redemocratizao do pas. As agendas sociais brasileiras se fortalecem, entre elas a dos direitos da criana, tendo como pice a priorida-de constitucional dos direitos de crianas e adolescentes e ainda o Estatuto da Criana e do Adolescente, em 1990.

    Representaes sociais das crianas

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    O corpus da pesquisa composto por 894 textos. Dele fazem parte matrias escritas para o pblico adulto e que falam diretamente sobre Natal e Dia das Crianas. O objetivo foi fazer um inventrio das representaes sociais da infncia nesse perodo do sculo XX e ajudar a compreender como os sensos comuns sobre a infncia se configuram e como eles contribuem para legiti-mar ou modificar os papeis das crianas na sociedade.

    Entre os pontos que buscamos identificar nos textos esto: de que crian-a se fala; quem fala; como essa criana includa nas festividades e na sociedade; como a voz das crianas includa (ou no) nos textos; que papis sociais ocupam cada representao de criana. A partir desses cri-trios, delineamos as representaes de criana mais frequentes, as quais explicaremos a seguir.

    Criana pobre a que precisa de ajuda. A criana pobre aparece principalmente nos textos publicados durante o Natal e representada como receptora dos frutos da solidariedade. Os textos comemoram a filantropia promovida por grupos di-versos em cada poca - damas da sociedade at os anos 1960, entidades de assistncia at os anos 1990, governos entre 1970 e 1980 etc. Os filantro-pos distribuem presentes, fazem festas, levam alegria criana pobre, ser indefinido que s existe enquanto massa.

    Nos textos sobre as aes filantrpicas, a definio da criana pobre um processo de violncia simblica: ela sempre representada como carente, dependente do auxlio e da caridade de quem pode ajudar. A incluso de sua voz no texto o humaniza, mas tambm serve para reforar sua dominao, naturalizando-a e incentivando-a. A criana apresentada apenas como o lado passivo e receptor da relao de poder.

    A expresso criana pobre para definir uma massa de seres indistintos entre si e sem voz torna-se mais escassa nos textos a partir de 1970. O adje-tivo pobre substitudo por outros ou, no texto, usado junto a diferentes qualificaes carente, abandonada, de rua. Nos anos 1980 e 1990, as matrias sobre as entidades beneficentes, ainda que citem as festas em si e os filantropos, do maior nfase descrio das atividades das instituies. O jornal usado como espao de visibilidade e legitimao das organiza-es: cabe ao peridico usar sua credibilidade para apontar exemplos de boas aes, aquelas que merecem aplausos e, principalmente, doaes ou apoio pblico para se manterem.

    Menor delinqenteNo Natal dos anos 1950, a criana pobre ganha mais duas alcunhas:

    menor delinquente e menor abandonado. Os novos rtulos se configuram como olhares institucionalizados da criana baseados, principalmente nos discursos Policial e Jurdico4. A representao social da criana delinquente 4 O Cdigo de Menores de 1979, substituto do de 1927, eliminava as rotulaes abandonado, delinquente,

    transviado, infrator, exposto etc. Os casos de competncia do juiz de Menores passaram a ser os denominados de situao irregular.

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    , desde o princpio, um processo disciplinar: o menor apresentado como algum que precisa ser recuperado para trabalhar e ser til sociedade.

    Em um pas que buscava o progresso, a modernizao econmica, defendia--se uma moral baseada na produtividade e na negao do cio, como vemos num trecho de texto de 23 de dezembro de 1959, publicado no DP, referente ampliao de um reformatrio, numa rea afastada do centro do Recife:

    [...] Agora, os menores criminosos que proliferam, de preferncia, no centro comercial, sero levados para o Reformatrio de Pacas, onde as autoridades acreditam que se recuperaro. [...]

    reportagem do DIARIO adiantou o delegado Moazyr Sampaio que a limpeza na cidade no ser realizada, como at agora vem sen-do, apenas pelo pessoal da Delegacia de Investigaes e Capturas. Investigadores de menores e os prprios componentes da Polcia Especial de Menores j tm ordens para deter todo menor que for encontrado perambulando pela cidade. Os desocupados sero le-vados para o Juizado. Caso seus genitores se mostrem alheios ou indiferentes situao, ento o pequeno ser encaminhado para o Reformatrio de Pacas, onde aprender a ganhar a vida honesta-mente. [grifos nossos]

    Os meninos que perambulavam pelo centro comercial eram a sujeira que se queria eliminar do espao urbano. Seu atributo principal estarem deslocados, fora do lugar, como prprio da sujeira. Eles so consumi-dores falhos (BAUMAN, 1998), os que, no templo do consumo, no podem ou no querem consumir. So enfim, um obstculo para a pureza, para a ordenao do ambiente.

    Nos anos 1970 e 1980, h tanto textos exaltando o papel dos reformatrios quanto os que questionam a recluso. No havia, portanto, unanimidade so-bre o que se deveria fazer com essas crianas - o nico ponto de acordo que se deveria fazer algo. O destino dos infratores torna-se questo bastante discutida na dcada de 19905. O jornal se configura, ento, como um lugar em que diferentes pontos de vista se encontram e confrontam em busca de visibilidade e legitimao. Na discusso, os leitores participam atravs de cartas, personalidades so entrevistadas e o jornal tambm se posicionava em editoriais. A disputa do tratamento da infncia passa a ser claramente discursiva, feita atravs dos jornais, independente do lado o qual se escolha.

    Criana vtimaPobreza, abandono da famlia, violncia. A partir de 1979, Ano Internacional da Criana, problemas sociais da infncia surgem no espao discursivo do

    5 Entre os fatores que parecem ter contribudo para que questes relacionadas infncia e criminalidade entrassem em pauta esto o advento do Estatuto da Criana e do Adolescente (1991), a ao de grupos de extermnio de crianas (1991) e rebelies nos reformatrios (1995).

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    jornal. A criana representada como um ser que precisa ser protegido de males que passam a ser encarados como chaga da sociedade: trabalho in-fantil, prostituio, problemas na educao, altas taxas de mortalidade.

    A primeira criana vtima o menor abandonado. Em um editorial do DP publicado 24 de dezembro de 1959, os nomes abandonado e delinquen-te so usados como sinnimos. Mas esse no o principal sentido que a expresso menor abandonado assume. S a partir de 1979 os menores abandonados passam a ser representados explicitamente como vtimas: so os que no tm residncia, nem assistncia (pblica, privada ou da famlia). O menor abandonado era o que circulava sozinho ou em bando pelas ruas da cidade cometendo pequenos crimes. Mas mesmo quando representado como delinquente, os textos apelam para sua condio de vtima.

    A questo dos menores/crianas abandonados apresentada no tex-to por um enunciador que pretende causar indignao e cobra solues. Quando o texto no tem a voz de crianas especficas (identificadas, por exemplo, pelo nome), a representao do menor abandonado limita-se a estatsticas, generalizaes e juzos de valor publicados, principalmente, em colunas a artigos de opinio.

    Quando a voz e a identificao da criana so includas no texto, a criana deixa de ser estatstica e humanizada, mas ainda vista dentro da catego-ria englobante: ao mesmo tempo em que a criana-personagem desse tipo de matria aparea com suas caractersticas individuais, ela metonmia, parte de um todo a massa dos abandonados.

    Alm da criana abandonada, vtima de problemas diversos, h tambm as vtimas especficas, representadas como sofredoras de males particu-lares, como a prostituio e o trabalho infantil. Tal representao da crian-a, filha do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), surge nos anos 1990 e localiza a resoluo dos problemas na esfera das polticas pblicas nacionais, com participao dos governos e da sociedade. Nessa represen-tao, o espao miditico esfera fundamental, parte da prpria poltica de defesa: o Dia das Crianas usado como gancho jornalstico para que as representaes aflorem.

    Criana vencedoraNa dcada de 1960, surge a representao de um tipo de infncia que nasce no seio do crescimento da importncia comercial do Dia da Criana e da po-pularizao da TV como lazer infantil. Se, antes, a ddiva (a alegria, a bonda-de, os presentes etc.) era representada como algo comum a toda e qualquer criana, a infncia da emergncia da sociedade de consumo aquela da diferena, que se destaca, seja por sorteio ou outro critrio.

    a criana vencedora seja a que comprou uma boneca de marca (Con-curso Estrela Premiou 3 Felizardos: Edilene E Seu Pai Viajaram Ontem A So Paulo - DP, 13 de outubro de 1963) ou a que tira boas notas (Boa aluna re-cebe distino - JC, 12 de outubro de 1967). Essa representao fortemente

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    ligada a promoes de grandes empresas, mas tambm a atividades em es-colas. O que h em comum a todos os textos dessa categoria que os presen-tes so prmios s crianas com mrito, e no ddivas a qualquer criana.

    Criana da TVAs representaes de crianas como telespectadoras se dividem em dois momentos. O primeiro deles da chamada poca de ouro da televiso per-nambucana, nos anos 1960. O segundo nas dcadas de 1980/90, com o boom dos programas infantis produzidos por redes do eixo Rio-So Paulo. Entre esse dois momentos, h um intervalo, a dcada de 1970, quando tanto o DP e quanto o JC ficaram mudos em relao ao tema da criana telespec-tadora. Esse perodo coincidiu com o perodo de crise das emissoras locais de TV, TV Rdio Clube e TV Jornal.

    Nos anos 60, os programas televisivos eram extremamente ligados aos seus patrocinadores, que promoviam tambm concursos dentro da progra-mao, o que nos permite identificar que a representao da criana que assiste TV, desde os primeiros anos da telinha, j estava relacionada ao consumo. A mistura de contedo e propaganda que marca as produes au-diovisuais infantis se estende aos textos jornalsticos sobre a programao. Os textos, que citam diversas empresas, tm um duplo carter: notcia com cara de publicidade, ou vice-versa. As crianas aparecem como pblico e atrao do programa de auditrio, mas no tm rosto ou voz. O programa mostrado, principalmente, como um espao ldico para que elas e o pais se divirtam. No texto no h qualquer referncia a contedo educativo.6

    Nos anos 1980, quando as crianas voltam a ser representadas como te-lespectadoras, as notcias se voltam para programas transmitidos para todo o Brasil e produzidos nas chamadas cabeas de rede, emissoras do Rio de Janeiro e de So Paulo. As notcias sobre os programas especiais (como os transmitidos no Natal) citam pontos que podem gerar interesse no es-pectador sem, contudo, explic-los detalhadamente - indicam, por exem-plo, locaes do programa, convidados especiais, sinopse do roteiro. J as reportagens sobre a programao cotidiana so estruturadas tanto como apresentao quanto como crtica/comentrio do que exibido. Nesses ca-sos, os textos impem-se como o do especialista em televiso e educao, que aponta aos pais o que h de bom no programa infantil. A tendncia, po-rm, criminalizar os pais ausentes (e no as emissoras) pelos problemas que a TV pode causar s crianas. A culpa dos danos seria dos pais que no tm tempo nem nimo para controlar seus filhos.

    Criana do consumoAntes dos anos 1960, as crianas dos textos dos jornais no eram relacio-nadas ao consumo. A relao criana, produto e notcia inaugurada com textos sobre programas de televiso, citando o nome dos patrocinadores do 6 Em 1999, como especial do Dia das Crianas, a TV Jornal fez um programa ao vivo do antigo auditrio da Rdio

    Jornal, num claro resgate do formato que marcou os tempos ureos da emissora.

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    espetculo. Mas o tema s surge com fora nos anos 1980. O movimento do comrcio, os presentes mais procurados, a angstia dos pais na hora das compras emolduram a representao de uma criana que feliz por ter pre-sentes e que amolam os pais para t-los.

    Nos textos, os pais aparecem como vtimas de filhos insensveis, influen-ciados pelas propagandas de TV, crianas que esperneiam para ter os brin-quedos que desejam. Os pais, tios, avs cedem ou no aos pedidos por presentes especficos, mas no cedem ao ato de comprar os presentes. Ho-menagear as crianas dar presentes. Essa relao quase obrigatria no nova j existe, por exemplo, no texto do DP publicado em 25 de dezem-bro de 1959 e nas distribuies de brindes a crianas pobres. A partir dos anos 1980, porm, as crianas no aparecem como pacficas receptoras dos presentes: elas no mediam esforos para conseguir o brinquedo favorito (JC, 11 de outubro de 1987), brinquedo que tambm no um annimo qual-quer: a boneca da Xuxa, a Barbie, a bicicleta da Gatina. O consumo a ordem do Dia das Crianas. E tambm do Natal, ainda que seja menos recorrente nos textos do perodo natalino a ligao direta entre criana e consumo no perodo.

    A sugesto de presentes marcante em diversas matrias publicadas. Diferente da publicidade, que busca seduzir para o consumo, os textos jor-nalsticos tentam convencer que os pais estaro comprando o melhor para seus filhos e seus bolsos. Nessa ponte comercial entre a data e os peque-nos homenageados, os textos, em menor proporo, tambm representam os pais que no podem dar presentes e as crianas que apenas sonham com brinquedos. Geralmente, aparecem ao lado de informaes sobre compras no perodo festivo e, dessa forma, reforam a ideia de um pas e de uma ci-dade de contrastes, em que o desejo igual para todos (igualmente estimu-lados pela TV), mas o consumo (e a alegria) no para todo mundo.

    Nos anos 1990, surge um hbrido do discurso comercial e o do Estatuto da Criana e do Adolescente: a criana, sujeito de direito... ao consumo. Os ttulos das matrias sobre produtos e eventos so quase palavras de ordem: Crianas tm direito a brinquedos e shows no Centro Esportivo (JC, 12 de outubro de 1991), Criana tem direito a conforto nos ps (DP, 13 de outubro de 1991), So-nhar com Papai-Noel um direito (JC, 24 de dezembro de 1995). Tambm nos anos 1990, os protagonistas dos textos passam a ser as crianas, representadas como independentes, com vontades prprias de consumo e que quase sempre conseguem o que querem: brinquedo, celular, biscoito, vdeo-game...

    Criana no espao pblicoLugar de criana era em casa ou na instituio de ensino - consequente-mente, as notcias sobre festas das crianas, o Natal e o Dia das Crianas, relatavam eventos nesses respectivos espaos. Mas isso s se deu at o final dos anos 1960, quando encontramos as primeiras matrias sobre a ocupa-o infantil do espao pblico.

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    Controle, planejamento e nenhum contratempo so as caractersticas dos primeiros registros dos jornais de uma presena aceita (e pontual) da criana nos espaos pblicos7. As programaes so em locais isolados ou fechados temporariamente s para as crianas. Entre os temas recorrentes esto os passeios de trem ou metr, voltados principalmente para grupos escolares previamente inscritos.

    A partir do final dcada de 1980, a criana representada como provo-cando um alegre descontrole nos espaos pblicos. Os eventos de que par-ticipam (no Dia das Crianas) so em praas e parques abertos a qualquer participante. So comuns os usos de verbos e expresses como invadiram, tomaram conta e termos afins. Nos textos, o Dia das Crianas apresentado como perodo em que se pode ser criana idilicamente - ao ar livre, brincan-do, sem hora marcada, sem regras, sem tantos cuidados e controles. Tudo o que no ocorreria nos demais dias do ano. A data apresentada como um momento ocasional de liberdade infantil.

    Criana encantada e criana antenadaNos textos natalinos de 1959 surge um arqutipo de criana angelical, a que chamaremos de criana encantada. A criana representada como sinal de paz, concrdia e bondade. Seja de qualquer classe social, ela est alienada de toda preocupao. Essa paz infantil ressaltada nos textos em oposio desordem e aos problemas do mundo. H uma idealizao da infncia que serve de instrumento para criticar a sociedade de ento. A criana vista como professora do homem e da mulher, e no o contr-rio: ser como criana, mesmo quando se adulto, seria uma soluo para construo de um mundo melhor.

    H outro tipo da criana, que lembra a encantada por ser usada para criticar o mundo e seus problemas, mas a essa chamaremos criana ante-nada. Ela est longe da alienao: com voz e rosto, ela fala dos problemas da atualidade e aponta solues. A criana antenada representada como a dona de um saber escondido na inocncia e tambm como uma criana mais adulta. O argumento dos textos que o mundo das crianas de suas pocas j no era tanto da fantasia: elas refletiriam sobre o mundo e seus problemas. Na introduo de cada discurso relatado infantil, geralmente o enunciador-jornalista interpreta o que foi dito pela criana, complexifi-cando o sentido da fala. Os discursos relatos das crianas so utilizados no texto para embasar uma crtica ao contexto poltico, econmico e social. A voz da criana usada, no Dia da Criana, como a de uma autoridade, mas o enredo e a crtica (e a tendncia de sentido crtico) so moldados pelas intervenes do enunciador-jornalista.

    Criana na polticaComo o Carnaval o perodo do reinado de Momo, o Dia da Criana tambm tem (ou teve) os seus governantes: os polticos-mirins. Eles so os pri-7 Em contraponto presena que no era desejada: a da criana de rua e do menor delinquente.

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    meiros personagens de um envolvimento (ainda que de brincadeira) das crianas com o mundo poltico. Mas no so os nicos. H ainda reporta-gens sobre os pequenos-cidados, as crianas questionam polticos sobre os destinos da cidade e do pas.

    Nomeados por sorteio ou eleitos, a partir de 1971, os polticos-mirins passaram a ser assunto de uma inusitada cobertura jornalstica que, em alguns momentos, pendeu para a propaganda oficial e, em outros, para a crtica s polticas pblicas. Cada passo do mini-poltico era no-ticiado. Sua trajetria, porm, no era mostrada como algo de sua es-colha. A criana aparece como passiva, levada ao bel prazer dos adultos e polticos de fato.

    A saga dos polticos-mirins s aparece nos jornais da dcada de 1970. Mas a poltica no deixou de ser assunto de criana, ainda que s nos dias prximos ao 12 de outubro. A voz da criana convocada para questionar governantes sobre polticas pblicas para a infncia e tambm questes mais abrangentes, como desemprego, meio ambiente e violncia. Os tex-tos costumavam ser publicados em formato de entrevista, em sucesses de perguntas e respostas, o que cria um efeito de autenticidade.

    As crianas so representadas como francas, naturais, alegres, capazes de eliminar os protocolos mesmo em situaes que seriam formais, como encontrar o presidente da Repblica no Palcio do Planalto e, justamen-te por essa espontaneidade, capazes tambm de fazer perguntas difceis de forma simples e despreocupada. Nos casos em que os encontros entre crianas e polticos foram promovidos pelos meios de comunicao, a es-pontaneidade foi substituda por seriedade e regulao a partir das regras do meio. A criana vira reprter, entrevistador, e assim apresentada, portando-se seriamente como um profissional.

    ConclusoInfncia, etimologicamente, deriva do latim infans, incapaz de falar vi. esse exatamente o principal papel que coube a tantas representaes de crianas nos textos publicados no DP e no JC8: a criana terceira pessoa, aquilo sobre o que se fala, sem ser pontuada por qualquer marca de fala seja em discurso direto ou indireto. Os textos se configuraram como espaos feitos por um eu adulto que fala sobre crianas genricas sejam as delinquentes, vtimas, encantadas...

    Se se pode falar em alguma revoluo na representao da infncia nos textos jornalsticos do sculo XX, essa foi, de certo, a entrada da voz da crian-a nos enunciados. At a dcada de 1960, as crianas eram representadas como grupo, nunca individualizadas. A partir de 1963, encontramos textos em que a criana tem nome, e sua opinio, em discurso direto ou indire-to, compe a polifonia do texto. Essa mudana, porm, ocorreu dentro das representaes sociais da infncia: as vozes passaram a ser exemplos dos grupos de crianas. O paradoxo que quando se escapa da mudez infantil, 8 Latin Dictionary and Grammar Aid (University of Notre-Dame). Disponvel em: . Acesso em: 26 out. 2009.

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    as vozes das crianas aparecem como argumento de um sentido costurado para alm da prpria criana, reforando, por vezes, relaes de poder ou pontos de vista dos enunciadores adultos.

    Os lugares impostos s crianas so to mltiplos quanto as suas represen-taes. As crianas que perambulam pelas ruas so abandonadas ou delin-quentes. As que ocupam o espao pblico nas comemoraes de 12 de outubro so apenas crianas. As pobres j foram definidas como a dos morros, crregos e alagados e depois se tornaram as que frequentam instituies beneficentes. Em todas as representaes, porm, h uma preocupao de se enquadrar as crianas no tempo e no espao contra o cio, em alguns momentos; a favor da livre brincadeira em outros; por vezes apoiando a ocupao do espao pblico, mas tambm criminalizando a livre circulao pelo centro comercial.

    As crianas so representadas majoritariamente como moldveis, edu-cveis, modificveis, como argila nas mos de oleiros (adultos). As diversas representaes convergem para a ideia de uma criana como ser em cons-truo. O momento presente das crianas, ento, deveria ser controlado em favor de um futuro que pode ser o da Nao ou o do adulto.

    Por causa da correlao constante entre controle e utilidade, conside-ramos que as representaes da criana inscrevem-se como parte de um processo disciplinar. As disciplinas, de acordo com Foucault (1987), so m-todos que permitem o controle minucioso das operaes dos corpos, sujei-tando suas foras e impondo-lhes uma relao de docilidade-utilidade.

    A criana passiva, enquadrada ou enquadrvel no texto e na sociedade, torna-se ativa quando representada como consumidora. com a ascenso do mercado em fase de crescimento que as crianas passam a surgir nos textos com vontades prprias, s vezes opostas dos pais e responsveis. As crianas amolam os pais na hora das compras, tm suas marcas favo-ritas e so o centro de todo um universo de opes de consumo que vai de biscoitos a celulares, de programas de TV a parques temticos. Esse tipo de representao est diretamente relacionado ao crescimento da publicidade e do marketing voltado ao pblico infantil.

    A publicidade pode usar, como estratgia de vendas, a necessidade das crianas de sentir-se no controle. A criana estimulada autonomia, ain-da que apenas em relao ao consumo. Isso pode aumentar a tenso que marca a transio da total dependncia da infncia independncia da vida adulta, provocando conflitos familiares.

    A criana, de fato, mais vulnervel aos apelos da publicidade por no en-tenderem seus reais objetivos: estimular vendas e fidelizar clientes. Crian-as em idade pr-escolar no sabem a diferena entre comerciais e progra-mas de TV. As um pouco mais velhas entendem a diferena, mas tendem a acreditar na publicidade de produtos infantis. At os oito anos, as crianas no conseguem entender que a publicidade tenta persuadir. Quando so mais velhas, j so cientes disso, mas ainda assim esse conhecimento no parece afetar a vontade de comprar o que vm nos anncios (LINN, 2006).

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    Contudo, no podemos pensar o consumo como uma relao de manipu-lao de audincias passivas, seja essa platia formada por crianas ou adultos. O consumo o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriao e o uso dos produtos (CANCLINI, 2008, p. 60). No consumo se constri parte da racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade (Ibidem, p. 63).

    Ns, seres humanos, intercambiamos objetos para satisfazer ne-cessidades que fixamos culturalmente, para integrarmo-nos com outros e para nos distinguirmos de longe, para realizar desejos e para pensar nossa situao no mundo, para controlar o fluxo err-tico dos desejos e dar-lhe constncia ou segurana em instituies ou rituais. [...] Podemos atuar como consumidores nos situando so-mente em um dos processos de interao o que o mercado regula e tambm podemos exercer como cidados uma reflexo e uma experimentao mais ampla que leve em conta as mltiplas poten-cialidades dos objetos, que aproveite seu virtuosismo semitico nos variados contextos em que as coisas nos permitem encontrar com as pessoas. (Ibidem, p. 71)

    Pensar o consumo tambm rever as formas de comunicao e relao social. Atravs dele, as crianas puderam se inscrever ativamente no mundo e expor seus desejos, que em outros mbitos no so levados em conside-rao. Esse papel ativo pode permitir que as crianas sejam vistas pelos adultos no s como sujeitos de direitos, mas tambm como atores com direitos, com vozes que devem ser respeitadas e levadas em conta seja na construo de polticas para sua proteo seja na incluso de sua fala nas matrias dos jornais.

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    Referncias Bibliogrficas

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    As representaes de infncia na publicidade pela percepo de crianas de cinco a seis anos.1

    [Clarissa Borges Mller]2

    IntroduoO objetivo desse artigo apresentar os principais resultados de uma pesquisa terica e emprica, embasada na Teoria das Representaes Sociais (MOSCO-VICI, 1961), realizada com o propsito de investigar as percepes de crianas de cinco a seis anos sobre as representaes de infncia presentes em trs publicidades. A pesquisa emprica contou com duas entrevistas semi-estrutu-radas aplicadas individualmente com seis crianas (trs meninos e trs me-ninas). Busquei, assim, colocar as crianas no papel de sujeitos da pesquisa.

    A primeira vez que tive contato com a questo da infncia na publicida-de foi em uma reportagem que discutia sobre o projeto de lei 5291/01 que probe a publicidade dirigida ao pblico infantil3. Essa reportagem sobre o projeto de lei me fez questionar sobre a real percepo que as crianas tm sobre as publicidades dirigidas a elas. Passei dias me perguntando se no seria interessante pesquisar como as crianas se relacionam com aquelas representaes de infncia apresentadas na publicidade. Ou seja, pesquisar se as crianas percebem os elementos simblicos que caracterizam as re-presentaes; se as atividades que os personagens executam na publicidade fazem parte do cotidiano das crianas de verdade.

    Nesse artigo sero apresentados os resultados obtidos atravs da anli-se e interpretao das falas das crianas colhidas na pesquisa emprica que deu origem ao Trabalho de Concluso apresentado Universidade Federal de Santa Maria sob o ttulo de: Agora eu j entendi tudo: a percepo de crian-as de cinco a seis anos sobre as representaes de infncia na publicidade.

    MetodologiaEssa pesquisa classifica-se no nvel exploratrio e a abordagem que se d ao tema qualitativa. O local de onde foram selecionadas as crianas para participar desse estudo foi o Ncleo de Desenvolvimento Infantil Ip Amarelo. A justificativa para realizao da pesquisa emprica nesse local a escolha por convenincia. O Ncleo est localizado no campus da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atende aproximadamente 170 crianas, filhos de servidores e alunos da UFSM. 1 Os contedos, reflexes e opinies constantes deste trabalho, bem como do Projeto que a ele deu origem, no

    representam, necessariamente, as opinies da ANDI Agncia de Notcias dos Direitos da Infncia e do Instituto Alana.2 Publicitria, graduada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).3 O projeto de lei considera publicidade dirigida ao pblico infantil aquela que utiliza atributos como linguagem

    infantil, efeitos especiais e excesso de cores, representao de criana, personagens ou apresentadores infantis, desenho animado ou animao, bonecos e similares, entre outros.

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    A amostra de sujeitos de pesquisa se constitui nos trs meninos e nas trs meninas mais velhos da turma do pr-manh do Ncleo de Desenvolvimen-to Infantil Ip Amarelo, selecionados tambm por convenincia. A escolha por esse nmero de sujeitos de pesquisa se deu pelo fato de que seriam realizadas duas entrevistas com cada criana e, mesmo levando em con-siderao que elas poderiam falar pouco, seria uma grande quantidade de material para ser transcrito e analisado.

    As tcnicas para coleta de dados utilizadas foram duas entrevistas semi--estruturadas individuais e um teste projetivo inserido dentro da primeira entrevista. Na primeira entrevista busquei atender os objetivos de conhecer como as crianas percebem a si mesmas e de investigar se existe relao entre o cotidiano das crianas entrevistadas e as atividades apresentadas nas publicidades em estudo. Na segunda entrevista eu exibi (em um compu-tador) as publicidades s crianas e fiz questionamentos que me permitiram atender ao objetivo de investigar como as crianas entrevistadas percebem os elementos simblicos que caracterizam as representaes de infncia presentes nas publicidades.

    Representaes Sociais

    A definio que Serge Moscovici d a uma representao social :

    Um sistema de valores, idias e prticas, com uma dupla funo: primeiro, estabelecer uma ordem que possibilitar s pessoas orientar-se em seu mundo material e social e control-lo; e em segundo lugar, possibilitar que a comunicao seja possvel entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um cdigo para nomear e classificar, sem ambigidade, os vrios aspectos de seu mundo e da sua histria individual e social (MOSCOVICI apud DUVE-EN, 2007: p. 21).

    O autor defende que as representaes sociais so geradas a partir de dois processos: a ancoragem e a objetivao. A ancoragem um mecanismo que tenta ancorar ideias estranhas, reduzi-las a categorias e imagens comuns, coloc-las em um contexto familiar (MOSCOVICI, 2007: p. 60-61). Assim, pode-se dizer que no processo de ancoragem um objeto estranho ao sujei-to se torna familiar, isso acontece por duas vias que se combinam. Durante a ancoragem o sujeito classifica e categoriza o objeto. Classificar significa estabelecer caractersticas a um determinado objeto, utilizando nossa capa-cidade de nome-lo, avali-lo e comunic-lo a outros indivduos, determinan-do nossa capacidade de representao dele, ou seja, quando classificamos escolhemos um conjunto de comportamentos e regras que definem como o objeto. J categorizar, significa escolher um dos paradigmas estocados em nossa memria e estabelecer uma relao positiva ou negativa com ele

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    (MOSCOVICI, 2007: p. 63). a comparao com objetos j existentes em nos-sa memria, que ir proporcionar categorizao do que novo.

    Estudando o processo de ancoragem percebo que a teoria das represen-taes sociais traz duas consequncias: a primeira que no existe pensa-mento ou percepo sem ancoragem e a segunda que o objetivo principal de um sistema de classificao e nomeao facilitar a interpretao de caractersticas, a compreenso de intenes e motivos subjacentes s aes das pessoas, na realidade, formar opinies (MOSCOVICI, 2007: p. 70).

    A objetivao faz com que o objeto familiar (assim considerado, pois j passou pela ancoragem) tenha um sentido na realidade. Ou seja, o sujeito reconhece o objeto para si, mas precisa, tambm, encontrar nos sentidos e valores sociais uma forma de torn-lo real e, para isso, precisa definir uma imagem ou palavra para representar esse objeto.

    Resumindo os processos de construo da representao social tm-se: A ancoragem no nvel da percepo, o que o sujeito consegue captar; a ob-jetivao no nvel da concepo, o que o sujeito capaz de conceber a partir do objeto que percebeu; o pice desse processo se d com a assimilao de uma imagem que substitui o objeto, ou seja, com a representao, que social porque foi construda com elementos retirados da realidade social.

    Publicidade atravs, tambm, da publicidade que os significados so compartilhados em determinada sociedade. A publicidade promove a regulao das identidades atravs das representaes de raa, de gnero, e assim por diante, que expe nas revistas, na televiso e nos outros canais em que est presente. Atra-vs da linguagem publicitria, que utiliza formas especficas de falar com o pblico-alvo dos seus produtos, a publicidade permite a identificao entre as representaes que expe e as pessoas que a assistem