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Artigos São Paulo / JULHO 2003 1 Texto para “Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT” - Belo Horizonte, ano 1, n. 04, Jul/Ago 2003, p. 9-34. Autor: Ricardo Mariz de Oliveira A DISPONIBILIDADE ECONÔMICA OU JURÍDICA DE RENDAS E PROVENTOS AUFERIDOS NO EXTERIOR SUMÁRIO: I - O parágrafo 2º do art. 43 do CTN e o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35. II - As pessoas jurídicas envolvidas têm personalidades jurídicas distintas, e separação dos respectivos patrimônios - Complexo de direitos e obrigações de natureza jurídica formadores do patrimônio – Relações jurídicas regidas por lei estrangeira, segundo o art. da Lei de Introdução ao Código Civil - O fato gerador importa em direitos disponíveis - Disponibilidade jurídica: direito à renda e disponibilidade da renda – A lei aplicável pode permitir a retenção de lucros no patrimônio da coligada ou controlada. III - Distinção de personalidades jurídicas e separação de patrimônios, ainda que se trate de controlada ou de subsidiária integral. IV – O método da equivalência patrimonial não interfere nem pode interferir com a questão. V - Tratamento necessariamente diferente para as filiais e sucursais. VI - Indevida desconsideração das personalidades jurídicas das coligadas e controladas. VII - Nada se altera quanto às

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Texto para “Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT” - Belo Horizonte, ano 1, n. 04, Jul/Ago 2003, p. 9-34.

Autor: Ricardo Mariz de Oliveira A DISPONIBILIDADE ECONÔMICA OU JURÍDICA DE RENDAS E PROVENTOS AUFERIDOS NO EXTERIOR

SUMÁRIO: I - O parágrafo 2º do art. 43 do CTN e o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35. II - As pessoas jurídicas envolvidas têm personalidades jurídicas distintas, e há separação dos respectivos patrimônios - Complexo de direitos e obrigações de natureza jurídica formadores do patrimônio – Relações jurídicas regidas por lei estrangeira, segundo o art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil - O fato gerador importa em direitos disponíveis - Disponibilidade jurídica: direito à renda e disponibilidade da renda – A lei aplicável pode permitir a retenção de lucros no patrimônio da coligada ou controlada. III - Distinção de personalidades jurídicas e separação de patrimônios, ainda que se trate de controlada ou de subsidiária integral. IV – O método da equivalência patrimonial não interfere nem pode interferir com a questão. V - Tratamento necessariamente diferente para as filiais e sucursais. VI - Indevida desconsideração das personalidades jurídicas das coligadas e controladas. VII - Nada se altera quanto às

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coligadas e controladas em paraísos fiscais. VIII - O tratamento diverso para lucros e para prejuízos contraria o princípio da razoabilidade. IX - Violação do princípio da universalidade e contrariedade com a totalidade do ordenamento jurídico - Descabida extensão da incidência territorial da lei brasileira e tributação por ficção - Impossibilidade da tributação de lucros jamais distribuídos, ou depois absorvidos por prejuízos. X - Violação do princípio da capacidade contributiva. XI - Abuso do poder de legislar e desvio no seu exercício. XII - Conclusão. *********************** ***********************

I - O parágrafo 2º do art. 43 do CTN e o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35. O objetivo deste breve estudo é analisar o alcance do parágrafo 2º

do art. 43 do Código Tributário Nacional - CTN, e, juntamente com ele, analisar o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35, de 24.8.2001, verificando, assim, se este último encontra fundamento de validade naquele.

Este objetivo necessariamente tem que ser alcançado mediante a

análise do campo de incidência do imposto de renda da pessoa jurídica - IRPJ 1, à luz da competência constitucional da União Federal para tributar a renda e os proventos de qualquer natureza (art. 153, inciso III).

Preambularmente, e para maior clareza, convém registrar os

seguintes elementos:

1 Diga-se desde logo que as observações e conclusões a que se chegar poderão ser estendidas à contribuição social sobre o lucro.

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- o parágrafo 2º do art. 43 do CTN, instituído pela Lei Complementar n. 104, de 10.1.2001, estabelece que a lei determinará o momento e as condições em que se dará a disponibilidade de receitas e rendimentos oriundos do exterior;

- o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 estabelece que as

pessoas jurídicas sediadas no Brasil devem considerar disponibilizados a elas, em 31 de dezembro do ano em que forem apurados, os lucros das suas coligadas e controladas no exterior. 2

Essa última disposição reflete a pretensão de tributar os lucros das

coligadas ou controladas no exterior ainda que não tenham sido efetivamente distribuídos às pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil, isto é, ainda que não tenham sido tornado efetivamente disponíveis para estas por qualquer dos meios reais de disponibilização que estão arrolados no art. 1º da Lei n. 9532, de 10.12.1997.

Este assunto foi tema de outro estudo de minha autoria, publicado

no livro de coletânea “Grandes Questões Atuais do Direito Tributário - 6o Volume”, Editora Dialética, 2002, p. 391 e seg., cujo estudo fundamenta-se nas disposições constitucionais formadoras do Sistema Tributário Nacional e, também, por consequência, nas disposições do CTN.

Dele extraio as seguintes conclusões: - o parágrafo 2º do art. 43 do CTN é válido constitucionalmente nos

limites em que ele se coloca, isto é, mediante a compreensão de que a sua norma determina que a lei ordinária estabeleça critérios para a constatação e comprovação da ocorrência da disponibilidade de rendas e proventos obtidos no exterior; uma tal norma específica para as rendas e proventos advindos do exterior, em complemento à norma geral do “caput” do mesmo art. 43, justifica-

2 O art. 74 reza: “Art. 74 - Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSSL, nos termos do art. 25 da Lei n. 9249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.”

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se pela complexidade de comprovação e pelas dificuldades de se aferir a ocorrência desses eventos fora dos nossos limites territoriais;

- o parágrafo 2º deve ser compreendido, interpretado e aplicado

dentro do próprio contexto do art. 43, isto é, como complemento da norma do “caput”, uma vez que os parágrafos de um dispositivo legal não têm existência autônoma, sempre se correlacionando à cabeça do artigo, para estabelecer normas complementares ou exceções à norma do “caput”; tal função dos parágrafos sempre se constituiu em diretriz de hermenêutica proclamada pela doutrina e pela jurisprudência, e hoje é norma expressa para o processo legislativo, graças ao disposto na Lei Complementar n. 95, de 26.2.1998, art. 11, inciso III, alínea “c”;

- no caso, o parágrafo 2º do art. 43 não se apresenta como exceção

ao disposto no “caput”, sendo mero complemento deste, com cuja interpretação deve se harmonizar;

- tendo em vista estas premissas, verifica-se que o art. 74 da Medida

Provisória n. 2158-35 extravasou a previsão do art. 43, parágrafo 2º, pois contraria não apenas esse parágrafo, mas todo o art. 43, especialmente o disposto no seu “caput”, o que significa ter o referido art. 74 também extravasado a própria competência constitucional da União Federal para tributar a renda e os proventos de qualquer natureza, tal como explicitada no art. 43;

- tais excessos da medida provisória situam-se no simples fato de

que somente pode haver disponibilidade de um direito que já exista, ao passo que os lucros não distribuídos pelas coligadas ou controladas, isto é, os lucros legalmente retidos nos seus patrimônios, pertencem a elas e não representam direitos dos seus sócios ou acionistas;

- logo, sequer existindo direito, não se pode afirmar, quer jurídica

quer logicamente, haver disponibilidade de direito, porque a disponibilidade é relacionada a um objeto determinado, do qual é atributo, de tal modo que, não havendo o objeto, há impropriedade e impossibilidade de se cogitar de disponibilidade do objeto inexistente.

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Naquele mesmo trabalho de 2002, foi vista a identidade de efeitos entre os gerados pelo art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 e os previstos no art. 35 da Lei n. 7713, de 22.12.1988, que estabelecera o chamado “imposto sobre o lucro líquido - ILL”, pois ambos prescreveram a incidência do imposto de renda sobre lucros não distribuídos pelas pessoas jurídicas que os geraram, e, pois, não colocados na disponibilidade dos seus sócios ou acionistas.

Ora, o Supremo Tribunal Federal - Pleno, em decisão unânime,

declarou inconstitucional o ILL 3, por fundamentos perfeitamente aplicáveis ao imposto previsto no art. 74, notando-se que, embora o ILL fosse anterior ao parágrafo 2º do art. 43 e aplicável às pessoas jurídicas sediadas no Brasil, em nada ficaram prejudicados os fundamentos da anterior decisão da Suprema Corte e a sua aplicabilidade ao art. 74.

Ainda no mesmo estudo foi feita particular referência à inexistência

de distinção possível para o tratamento devido às coligadas e às controladas, distinção esta que também não foi feita pelo Supremo Tribunal no julgamento sobre o ILL, no qual apenas as empresas individuais foram distinguidas em virtude da identidade pessoal do contribuinte, sendo o ILL considerado válido quanto a elas. No tocante à sociedades por quotas, a Corte Suprema subordinou a constitucionalidade do ILL à existência, nos respectivos contratos sociais, de previsão de automática distribuição dos lucros.

Naquele estudo, afirmei que “não será possível a tributação quando

não houver efetiva distribuição dos lucros e nem a lei local e o estatuto social previrem a automaticidade da distribuição”, e fiz constar nota de rodapé com os seguintes dizeres:

“Vale notar que nem mesmo a situação de controladora e controlada exclui esta conclusão, eis que o poder de decisão detido pela controladora não determina o tratamento que o Supremo Tribunal deu para as empresas individuais, que são equiparadas à pessoas jurídicas exclusivamente para fins do imposto de renda e outros tributos, mas que, pela identidade física e pelo mando unilateral e pessoal do seu titular, justificou a despersonalização das mesmas para fins do ILL. No caso de uma sociedade, mesmo

3 Recurso extraordinário n. 172058-1-SC, julgado em 30.6.1995.

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sob controle absoluto, tais pressupostos não existem, não apenas pela inexistência de identidade pessoal como também pela distinção de personalidades jurídicas para todos os fins de direito, e é a lei do local ou o estatuto social que determinará se há ou não o direito aos lucros, independentemente de deliberação. Aliás, naquela ocasião também não foi julgado que o ILL poderia incidir no caso de sociedade sujeita à controle. De resto, mesmo que o direito ao lucro da controlada dependa apenas do poder de decisão da controladora, quando muito para esta trata-se tão somente de direito futuro deferido, isto é, de direito cuja aquisição ainda não acabou de se operar, segundo o disposto no art. 74 do Código Civil, aspecto este que adiante será mais explicitado. Vide, inclusive, as notas (8) e (12).”

Observo que Código Civil de 2002 não contém um dispositivo

equivalente ao mencionado art. 74 do anterior código, o que poderia parecer representar uma modificação substancial na ordem das coisas, exposta naquela ocasião. Todavia, não houve qualquer alteração de substância, uma vez que o art. 74 simplesmente categorizava e denominava as várias situações de direitos futuros e direitos adquiridos, emitindo conceitos genéricos sem disciplinar especificamente quando e como, em cada caso, o direito estaria adquirido. Por isso, no código de 2002, tanto quanto no de 1916, é necessário procurar constatar a aquisição de direito em outros dispositivos esparsos e variáveis de situação para situação.

Por isso, na nota (8), referida na nota acima, constou o seguinte:

“No caso de sociedade controladora, como apontado na nota (2), dependendo do grau de controle e das normas legais e estatutárias que regem a sociedade controlada, é até possível pensar em direito futuro deferido, mas, mesmo assim, trata-se de direito ainda não adquirido pela controladora.”

E na nota (12), também referida na primeira nota, tendo em vista

que o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 estabeleceu uma ficção de disponibilidade de direito, foi mencionado o seguinte:

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“Sobre doutrina e jurisprudência a respeito da inconstitucionalidade da declaração de existência do fato gerador por ficção legal ou presunção absoluta, vale recordar a sempre referida lição contida no voto do Ministro Otávio Trigueiro no recurso extraordinário n. 71758-GB, também mencionado no recurso extraordinário n. 89791-RJ (‘Revista Trimestral de Jurisprudência’ n. 66, p. 140), e citar os seguintes precedentes: Tribunal Federal de Recursos, 6a Turma, remessa ‘ex officio’ n. 116893-SC, em 29.3.1989; Tribunal Regional Federal, 3ª Região, 3ª Turma, apelação cível n. 15596-SP, em 15.2.1995. Veja-se, em doutrina, Hugo de Brito Machado, em ‘A Supremacia Constitucional e o Imposto de Renda’, capítulo do livro ‘Estudos sobre o Imposto de Renda - Em Memória de Henry Tilbery’, Ed. Resenha Tributária, 1994 (p. 47, 55 e 56), Marco Aurélio Greco, in ‘Revista Dialética de Direito Tributário’ n. 50, p.145, e os trabalhos de diversos autores publicados no ‘Caderno de Pesquisas Tributárias - Presunções no Direito Tributário - Volume n. 9’, co-edição do Centro de Estudos de Extensão Universitária e da Editora Resenha Tributária.”

Em suma, a conclusão do citado trabalho foi no sentido de que, pelas

razões acima resumidas, o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 é ilegal, por contrariar o art. 43 do CTN, e é inconstitucional, por prescrever incidência em situação não contida no campo de incidência do imposto de renda previsto no art. 153, inciso III, da Constituição.

II - As pessoas jurídicas envolvidas têm personalidades jurídicas distintas, e há separação dos respectivos patrimônios – Complexo de direitos e obrigações de natureza jurídica formadores do patrimônio – Relações jurídicas regidas por lei estrangeira, segundo o art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil - O fato gerador importa em aumento de direitos disponíveis – Disponibilidade jurídica: direito à renda e disponibilidade da renda – A lei aplicável pode permitir a retenção de lucros no patrimônio da coligada ou controlada. Toda a problemática suscitada pelo art. 74 está centrada na

distinção de personalidades jurídicas entre as sociedades e seus sócios ou

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acionistas, cuja distinção tem como consequência a separação dos respectivos patrimônios.

Destas premissas surge uma primeira e elementar, embora

fundamental, consequência, que é a de ser absolutamente impossível que um bem - direito sobre um bem - pertença ao patrimônio da sociedade e também pertença, ou seja considerado pertencente para qualquer fim, ao patrimônio dos seus sócios ou acionistas.

Além disso, quando o bem ou direito não pertence ao patrimônio do

sócio ou acionista, muito menos pode estar na disponibilidade deste. A partir desta consequência, de natureza jurídica mas de fundo

absolutamente lógico, verifica-se que o estar no patrimônio da pessoa jurídica ou no patrimônio dos seus sócios ou acionistas depende exclusivamente da lei aplicável às relações jurídicas entre essas pessoas.

Em outras palavras, a disciplina jurídica a que esteja submetida uma

coligada ou controlada no exterior, de pessoa jurídica sediada no Brasil que participa do seu capital - isto é, a lei do país a que esteja jurisdicionada a coligada ou controlada, e o respectivo estatuto social -, pode permitir a retenção de lucros por ela apurados, e é essa disciplina que determina quando ocorre o nascimento do direito dos sócios ou acionistas aos lucros da sociedade.

Somente quando nasce esse direito, segundo tal disciplina jurídica, é

que passa a haver direito integrado ao patrimônio do sócio ou acionista, e a respectiva disponibilidade jurídica.

Isto é assim porque, antes, não há título jurídico que outorgue

pretensão aos sócios. Ao contrário, quando, ainda segundo a mesma disciplina jurídica

que rege cada coligada ou controlada no exterior, os seus lucros puderem ficar retidos nela, como parte do seu patrimônio líquido, não podem eles ser considerados direitos dos respectivos sócios ou acionistas, e muito menos direitos disponíveis para estes.

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Aliás, é isto o que ocorre no Brasil com as sociedades anônimas e com as demais sociedades submetidas à regência da lei brasileira, exatamente como foi decidido no recurso extraordinário n. 172058-1-SC.

O direito brasileiro, assim como o de outros países, admite a

retenção de lucros na sociedade que os tenha gerado, cuja contabilidade os registrará em “conta de lucros acumulados” ou em “reservas de lucros”, que são contas integrantes do patrimônio líquido da pessoa jurídica, exatamente porque fazem parte dos seus haveres, distintos dos haveres dos seus sócios. Observe-se que tais procedimentos contábeis não são meros mecanismos formais, pois encontram substância jurídica na Lei n. 6404,de 15.12.1976, art. 178, parágrafo 2º, alínea “d”.

Ademais, não se pode deixar de notar que, segundo as normas da Lei

n. 6404 quanto ao balanço patrimonial (art. 178 e seguintes), o patrimônio líquido resulta da diferença entre todos os direitos e todas as obrigações da pessoa jurídica, o que está em sintonia com o disposto na lei civil sobre o conceito de patrimônio.

Realmente, segundo o art. 57 do Código Civil de 1916, o patrimônio

é coisa universal – “universitas juris” –, tendo a doutrina civilista demonstrado com uniformidade que tal universalidade é constituída apenas por direitos com conteúdo econômico. 4

Esta noção foi encampada pelo Código Civil de 2002, o qual confirma

de maneira explícita no art. 91 que a universalidade patrimonial é “o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”.

Destarte, segundo a lei brasileira, o patrimônio de uma sociedade

aqui sediada - portanto, sujeita ao seu império - é o complexo de todas as suas relações jurídicas de natureza pessoal ou real, perante terceiros individualizados 4 Silvio Rodrigues, in “Direito Civil – Parte Geral”, Editora Max Limonad, 2ª ed., vol. 1, p. 121; Washington de Barros Monteiro, in “Curso de Direito Civil – Parte Geral”, Editora Saraiva, 25ª ed., p. 147; Caio Mário da Silva Pereira, in “Instituições de Direito Civil”, Editora Forense, vol. I, 9ª ed., p. 295. No âmbito tributário, consulte-se Brandão Machado, citando Pontes de Miranda, in “Estudos sobre Imposto de Renda (Em Homenagem a Henry Tilbery)”, Editora Resenha Tributária, 1994, p. 114.

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ou “erga omnes”, sejam tais relações jurídicas as que outorgam a essa pessoa direitos (ativos) ou obrigações (passivos).

Ora, o fato gerador do imposto de renda sempre e necessariamente

consiste em aumento do patrimônio do contribuinte, afirmação esta que hoje em dia é pacífica na doutrina e na jurisprudência, para o que muito contribuiu a decisão do Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário n. 89781-RJ, julgado em 3.10.1978, no qual se lê:

“Na verdade, por mais variado que seja o conceito de renda, todos os economistas, financistas e juristas se unem em um ponto: renda é sempre um ganho ou acréscimo do patrimônio”. (“Revista Trimestral de Jurisprudência” n. 96, p. 781)

Sendo assim, e a partir de que o patrimônio é formado apenas por

direitos e obrigações com conteúdo econômico, a obrigação tributária relativa ao imposto de renda depende necessariamente da ocorrência da aquisição de novos direitos ou da diminuição das suas obrigações, ou seja, sempre e necessariamente da ocorrência de fatos regulados pelo direito.

Destarte, os lucros das controladas e coligadas no exterior somente

podem ser tributados no Brasil quando as pessoas jurídicas participantes nos capitais das mesmas adquirirem direito a eles, porque somente através disso passarão a ter acréscimo em seus patrimônios.

Ora, a aquisição de tal direito depende única e exclusivamente da lei

do país da controlada ou coligada e do seu estatuto social, e sobre a respectiva relação jurídica a lei do Brasil não tem qualquer influência, por não deter jurisdição além das suas fronteiras.

Acontece, ademais, que a própria lei brasileira preceitua

expressamente a ausência da sua competência nessa matéria, pois o art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil diz textualmente que “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”.

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Em suma, é a própria lei nacional do Brasil que reconhece a inaplicabilidade e a ineficácia do nosso ordenamento jurídico para reger obrigações constituídas fora do território do País.

É exatamente o que ocorre com a relação jurídica de sociedade entre

uma pessoa jurídica no Brasil e outras pessoas em relação a uma outra pessoa jurídica sediada no exterior, assim como quanto à relação jurídica relativa aos lucros da pessoa jurídica no exterior, à época da sua apuração, à possibilidade e às condições da sua manutenção no patrimônio dessa pessoa, às modalidades da sua distribuição aos seus sócios ou acionistas, à época e condições para isto, etc.

Outrossim, somente é possível haver disponibilidade da renda

derivada da participação nos lucros dessa pessoa jurídica sediada no exterior após haver a existência do direito a ela, segundo a lei local e os estatutos da pessoa jurídica.

E nenhuma alteração nestes conceitos existe se a pessoa jurídica no

exterior for inteiramente independente da pessoa sediada no Brasil, ou for coligada ou controlada desta.

Quanto à disponibilidade desses lucros, ou seja, do direito a esses

lucros, há mais a dizer. Realmente, tendo em vista a distinção entre renda e proventos de

qualquer natureza, estabelecida pelos incisos do “caput” do art. 43 do CTN, o direito aos lucros da coligada ou controlada é direito que se apresenta como produto do capital investido na coligada ou controlada, de modo que se trata de renda - definida pelo inciso I do art. 43 como sendo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos -, e a disponibilidade do mesmo somente pode ocorrer após o nascimento do direito.

Como dito anteriormente, sem o objeto - direito -, não pode haver

disponibilidade do objeto inexistente, isto é, do direito ainda não adquirido. Ademais, impõe-se considerar a distinção feita por José Luiz Bulhões

Pedreira entre direito à renda e disponibilidade da renda, distinção esta

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manifestada no seu “Imposto sobre a Renda - Pessoa Jurídica”, vol. I, Adcoas-Justec, 120-1 e seguintes, “in verbis”:

“A expressão ‘disponibilidade jurídica’ surgiu na nossa legislação do imposto para consignar essa modalidade de ‘percepção’ do rendimento construída pela jurisprudência administrativa, que não se caracterizava pela posse efetiva do rendimento que o colocava à disposição do beneficiário: se este tinha o poder de adquirir a posse do rendimento havia a disponibilidade jurídica. Essa orientação não era, aliás, novidade na legislação do imposto. O RIR de 1924, no § 2o. do art. 21 já considerava percebidos os juros creditados ao prestamista ou correntista, mas esse dispositivo não fora reproduzido nos RIR de 1926 e 1932. A designação dessa modalidade de disponibilidade como ‘jurídica’ - embora possa ser justificada com o argumento de que é disponibilidade presumida, ou por força de lei - não é feliz, porque contribui para difundir a idéia errada de que se trata de ‘disponibilidade de direito’ e não de renda; ou seja, que requer apenas a aquisição do ‘direito de receber’ a renda sem aquisição do ‘poder de dispor da renda’ ..... A renda pessoal resulta da repartição da renda social. Pressupõe, portanto, atos dos agentes de repartição. E como o ordenamento jurídico não admite a execução privada das obrigações, a aquisição da disponibilidade de renda pressupõe ato da fonte pagadora do rendimento (ou da autoridade judiciária, suprindo sua omissão) que torne o rendimento disponível para o beneficiário. Daí a noção, construída pela jurisprudência administrativa, de que ocorre disponibilidade jurídica quando a fonte pagadora coloca a renda à disposição do beneficiário. A partir desse momento a renda está disponível porque o beneficiário, além de ser titular de direito de recebê-la, tem o poder de adquirir a disponibilidade econômica.” (os grifos são meus)

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Abordando este tema, vale relembrar o seguinte trecho de Gilberto de Ulhôa Canto, o qual, tendo em vista o aspecto temporal do fato gerador do imposto de renda, referiu-se àquelas observações de Bulhões Pedreira e acrescentou (in “Estudos sobre Imposto de Renda - Em Memória de Henry Tilbery”, Editora Resenha Tributária, 1994, p. 37 e seg.):

“Em realidade, há algumas nuances que mudam a inteligência do verdadeiro sentido da expressão ‘aquisição de disponibilidade jurídica’, no CTN, sendo certo que nenhuma dúvida existe sobre a noção de “aquisição de disponibilidade econômica”. Um primeiro aspecto tem a ver com a juridicidade da própria atividade produtora da renda ou provento; a este respeito, é claro que certos rendimentos ou proventos não comportam, jamais, aquisição de disponibilidade jurídica, como é o caso dos oriundos de práticas ilícitas (CTN, art. 118, I). Sob o aspecto da configuração temporal do fato gerador, máxime no caso de pessoas jurídicas, a legislação, aderindo ao princípio do ‘unconditional right of receipt’, firma-se no sentido de considerar aquisição de disponibilidade jurídica o aperfeiçoamento de todas as obrigações contratuais da empresa, como a entrega da coisa vendida ou a prestação do serviço ajustado.” (grifos aposto por mim)

Disso tudo se conclui que a tributação pressupõe a existência de um

direito à renda e que esse direito esteja disponível para o titular, de modo a poder ser utilizado por todas as formas atribuídas ao direito de propriedade, aplicando-se este conceito em quaisquer situações, inclusive nas de participação nos lucros de pessoas jurídicas de cujo capital o contribuinte participe, seja em participações mais incipientes, seja nas circunstâncias definidas pela lei como de coligação ou controle.

Em particular, deve-se notar que não existe uma disponibilidade de

renda para a pessoa jurídica participante no capital de outra como controladora, que seja diferente da participação como coligada, sendo que em qualquer caso o nascimento do direito e a consequente disponibilidade da renda que ele representa dependem da lei do local da controlada ou coligada e do respectivo estatuto social.

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III - Distinção de personalidades jurídicas e separação de patrimônios, ainda que se trate de controlada ou de subsidiária integral. Este aspecto da distinção de personalidades jurídicas e separação

patrimonial requer mais algumas observações. Realmente, no direito brasileiro - assim como no direito comparado

- há regramento jurídico para a situação definida como de controle societário, indo tal situação até o nível de existir uma subsidiária integral, ou seja, quando a totalidade do capital de uma companhia pertença a uma outra pessoa jurídica brasileira (Lei n. 6404, art. 243, 251 e outros).

Entretanto, mesmo nesses casos de maior ou única participação da

pessoa jurídica no capital da outra, a lei conserva a individualidade das duas pessoas jurídicas e a separação dos seus patrimônios.

Assim é que a Lei n. 6404 expressamente prevê a obrigatoriedade da

controladora reparar os danos que causar à controlada (art. 246), exige que os bens com os quais a sociedade subscrever capital de subsidiária integral sejam objeto de laudo de avaliação nos mesmos moldes das demais conferências de bens (parágrafo 1º do art. 251), e contém outras disposições derivadas e confirmatórias da distinção de personalidades jurídicas e de patrimônios.

Mesmo no tocante às demonstrações financeiras das sociedades,

que refletem a identificação dos patrimônios das sociedades coligadas, controladoras e controladas, a lei é inequívoca quanto à distinção entre eles, como, por exemplo, quando determina que notas explicativas indiquem os créditos e as obrigações entre a companhia e suas coligadas e controladas, e o montante de receitas e despesas em suas operações recíprocas (art. 247, incisos IV e V).

Assim também ocorre com vistas à informação do mercado, pois a

lei obriga ao levantamento de demonstrações financeiras consolidadas (art. 249), e prescreve que o valor da participação da investidora nas controladas, que exceder o custo dos investimentos – isto é, o excedente que decorrer exatamente da participação potencial nos lucros gerados pelas controladas -

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deve ser destacado em conta de “resultados de exercícios futuros até que fique comprovada a existência de ganho efetivo” (art. 250, parágrafo 3º). Quer dizer, com os termos do art. 43 do CTN, até que fique comprovada a disponibilidade do ganho.

Em síntese, o ordenamento jurídico brasileiro conserva a monolítica

distinção de existências entre as pessoas jurídicas, mesmo coligadas ou controladas, e a separação dos respectivos patrimônios, inclusive para fins do imposto de renda.

Mais adiante, no capítulo IX, serão vistas outras situações em que o

direito brasileiro se apega a estas distinções. Nada justifica, portanto, uma exceção assistemática e não embasada

no CTN para que possam ser confundidos os patrimônios de coligadas e controladas, de modo a que os lucros destas, mantidos em seus patrimônios de acordo com as leis dos seus países e os seus estatutos sociais, sejam considerados como adquiridos pelas pessoas jurídicas no Brasil que participem dos seus capitais, para o fim exclusivo de incidência do imposto de renda sobre renda inexistente e não disponível.

IV – O método da equivalência patrimonial não interfere nem pode

interferir com a questão. Há um outro aspecto que merece consideração, especialmente face

ao disposto na Instrução Normativa SRF n. 213, de 7.10.2002, cujo art. 7º determina que os lucros das coligadas e controladas no exterior, tributáveis no Brasil, sejam os apurados pelo método da equivalência patrimonial.

Essa disposição fazendária contraria frontalmente a lei, por

inúmeras razões, das quais a primeira é que a própria Lei n. 9249, de 26.11.1995, que rege a tributação dos resultados obtidos no exterior, expressamente determina o reconhecimento contábil dos lucros e prejuízos de investimentos relevantes em coligadas e controladas através do método da equivalência patrimonial, mas prescreve a sua não influência sobre o lucro tributável (art. 25, parágrafo 6º).

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Além disso, a pretensão fazendária estende-se até mesmo além do que o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 prescreve, pois este refere-se apenas aos lucros das coligadas e das controladas, ao passo que na equivalência patrimonial vêm embutidos os lucros ou prejuízos e também outros fatores de avaliação absolutamente distintos dos lucros ou prejuízos, como as variações porcentuais de participações no capital social, as variações cambiais de contas de abertura e outras.

Neste aspecto, basta lembrar que, ao tratar da equivalência

patrimonial, o art. 248 da Lei n. 6404, nas suas nas três alíneas, prevê expressamente os elementos de avaliação contábil contidos na equivalência patrimonial, e dentre eles os lucros ou prejuízos da coligada ou controlada estão referidos na alínea “b”. Destarte, a avaliação contábil por equivalência patrimonial atinge uma gama de fatores muito maior do que os lucros pretendidos como tributáveis pelo art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35.

Acresce que a instrução do fisco incorre em erro de conceito

irrecuperável e invalidante da sua prescrição, ainda que não houvessem as falhas já apontadas.

Realmente, esse método é aplicável para avaliação contábil dos

investimentos relevantes em sociedades controladas ou coligadas, exigindo ele que, ao se encerrar o exercício social da investidora, ela contabilize a sua eventual participação proporcional nos lucros ou prejuízos das controladas ou coligadas, acrescendo-a ao custo do investimento na respectiva conta de ativo ou diminuindo-a do mesmo (art. 248 da Lei n. 6404).

Mas o método da equivalência patrimonial não é, evidentemente,

atributivo de direito à investidora sobre os lucros da coligada ou controlada, como também não obriga a investidora a suportar os prejuízos da coligada ou controlada, embora lucros e prejuízos apareçam nessa avaliação.

Pelo contrário, e com efeito, esse método não passa de um

mecanismo ou critério contábil para avaliação do direito de participação societária na coligada ou controlada, incorporando ao valor do investimento a potencial participação nos lucros desta, ou a possível diminuição do seu valor em virtude de prejuízos da mesma.

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Principalmente, para a presente análise, é importante realçar que o

referido método, ou o resultado da sua aplicação, não traz, não acarreta nem significa a aquisição automática de direito sobre os lucros da coligada ou controlada, ou a assunção de obrigação sobre os seus prejuízos.

Como já foi visto sobejamente, tais consequências não podem advir

das disposições legais relativas ao método da equivalência patrimonial e dos outros elementos das demonstrações financeiras, principalmente porque estas apenas refletem os direitos e as obrigações que a sociedade possuir segundo os respectivos títulos jurídicos, sem os criar, e também porque o direito aos lucros das coligadas ou controladas depende única e essencialmente da disciplina jurídica (lei e estatutos sociais) que rege cada coligada ou controlada, a qual varia de uma para outra.

Contudo, qualquer que seja a variação dessa disciplina jurídica, o

método da equivalência patrimonial aplica-se por igual, exatamente porque ele não atribui direitos ou obrigações, mas representa mero sistema contábil de avaliação.

Exatamente por se tratar de simples técnica de avaliação contábil do

investimento na coligada ou controlada em função dos resultados desta e da potencial participação da investidora neles, a lei define tal participação como “lucros a realizar” (Lei n. 6404, art. 197, parágrafo único, alínea “b”), ou, na dicção do art. 43 do CTN, lucros cuja disponibilidade ainda não foi adquirida.

Isto evidencia, acima de qualquer dúvida, que a investidora não tem

direito ao lucro da coligada ou controlada, pois o valor da equivalência patrimonial representa lucro ainda não recebido, até porque não se trata de lucro efetivo, mas apenas potencial, mera expectativa de direito ou, nas palavras do art. 43 do CTN, renda cuja disponibilidade ainda não foi adquirida.

Igualmente, quando há prejuízo na coligada ou controlada, ele se

reflete na investidora por equivalência patrimonial, o que não significa que esta tenha que responder pelas dívidas da coligada ou controlada perante os seus credores, matéria esta também dependente da lei e dos estatutos sociais

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disciplinadores da coligada ou controlada, e independe do método da equivalência patrimonial.

Isto também demostra inequivocamente que tal método representa

mero critério contábil de avaliação do investimento. Aliás, há um erro conceitual na tomada do método da equivalência

patrimonial como base para a tributação dos lucros das coligadas ou controladas.

Trata-se de que, enquanto não distribuídos os lucros pela coligada

ou controlada aos seus sócios ou acionistas, estes têm mera expectativa de direito sobre os dividendos que poderão advir daqueles lucros.

Por ser assim, e somente por ser assim, o método da equivalência

patrimonial reflete apenas os lucros da coligada ou controlada enquanto eles não tiverem sido distribuídos e colocados à disposição da investidora.

Ao contrário, quando os lucros são distribuídos e colocados à

disposição dos sócios ou acionistas, isto é, quando eles deixam de pertencer ao patrimônio da coligada ou controlada e passam a pertencer ao patrimônio dos sócios ou acionistas, na conta do investimento avaliado por equivalência patrimonial deixam de ser refletidos os correspondentes valores, os quais passam a figurar em contas do ativo para as quais eles vieram efetivamente, ou seja, para contas de caixa, banco ou valores a receber. E na contabilidade da coligada ou controlada, deixam de constar do montante do seu patrimônio líquido para passar a figurar em conta do passivo circulante.

Vê-se, pois, haver uma contradição em termos na pretensão de fazer

incidir o imposto de renda sobre os lucros não distribuídos mas refletidos contabilmente por equivalência patrimonial, os quais, exatamente por não terem sido distribuídos, e somente em virtude disso, podem aparecer graficamente através desse método.

Não é a toa, portanto, que desde 1977, com o Decreto-lei n. 1598, os

reflexos contábeis da equivalência patrimonial são neutros fiscalmente!

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De mais a mais, em se tratando de coligadas ou controladas no exterior, mais absurda é a disposição da Instrução Normativa SRF n. 213/02, que parte do pressuposto de que a lei brasileira, mediante o método da equivalência patrimonial, teria poderes para atribuir direito aos lucros não distribuídos por aquelas pessoas jurídicas, pois essa relação jurídica, como vimos, está fora da competência territorial da lei brasileira.

A ilegalidade da instrução normativa, entretanto, também põe à

calva a injuridicidade e o açodamento da Medida Provisória n. 2158-35 quanto à incidência do imposto de renda sobre renda que ainda não existente e talvez jamais venha a existir, pois poderá ocorrer de os lucros jamais virem a ser distribuídos, ou eles poderão vir a ser consumidos por prejuízos posteriores, ou ainda poderá haver a alienação do investimento antes que haja a distribuição de dividendos.

Enfim, a instrução fazendária, trazendo à baila o método da

equivalência patrimonial, acabou por contribuir para se confirmar a dependência da tributação ao que estiver prescrito na lei do país onde a respectiva relação jurídica se constituir e no estatuto social da pessoa jurídica no exterior.

A discussão suscitada pela instrução do fisco também revela a

inversão da ordem natural das coisas, quando se pretende falar em disponibilidade antes de haver renda tributável.

E, finalmente, ela permite constatar e confirmar que a lei a que alude

o parágrafo 2º do art. 43 do CTN somente pode ter por objeto identificar e comprovar quando ocorre a aquisição da disponibilidade de rendas e proventos obtidos fora do Brasil, perante as complexidades das relações jurídicas internacionais.

V - Tratamento necessariamente diferente para as filiais e sucursais. Se justapusermos as coligadas e controladas de um lado, e as filiais e

sucursais de outro, veremos que elas necessariamente requerem tratamentos diferentes.

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Realmente, a Lei n. 9532 prescreve corretamente a incidência

tributária sobre a matriz no Brasil, no próprio ano em que as filiais e sucursais apurarem lucros, isto é, o mesmo tratamento que o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 passou a prever para as coligadas e controladas.

Acontece que as duas situações são inconfundíveis e, por serem

radicalmente distintas, não podem receber o mesmo tratamento. Com efeito, o que justifica plenamente a tributação imediata dos

lucros das filiais e sucursais é que elas são estabelecimentos da mesma pessoa jurídica capitaneada pela matriz, o que significa que os lucros gerados no exterior pelas filiais e sucursais integram automaticamente o patrimônio não da matriz, mas da única e integral pessoa jurídica da qual aqueles estabelecimentos são partes internas.

Já não se pode dar o mesmo tratamento para os lucros das

controladas e coligadas, exatamente pela distinção das suas personalidades jurídicas e dos seus patrimônios em relação às pessoas jurídicas que delas participam.

VI - Indevida desconsideração das personalidades jurídicas das coligadas e controladas. Um outro aspecto de grave importância tem a ver com a

desconsideração das personalidades jurídicas, que está verdadeiramente subjacente à pretensão de tributar os lucros das coligadas e controladas ainda não distribuídos.

Este aspecto manifesta-se muito especialmente na situação de

controle, quando se diz, em defesa da referida tributação, que a controladora detém o poder de determinar a distribuição ou não dos lucros gerados na sua controlada.

Primeiramente, esta é uma afirmação genérica destituída de base

sólida, pois mesmo na hipótese de controle integral há necessidade de verificar em cada caso como a lei do país da controlada rege a distribuição dos seus lucros.

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Ademais, a controlada, mesmo integral, mantém sua personalidade

jurídica autônoma e a separação do seu patrimônio em relação ao da sua controladora, a qual não pode ser coagida a votar pela distribuição dos lucros para que tenha que pagar o imposto no Brasil.

No fundo, o que se nota nessa indigitada tributação é a

desconsideração das personalidades jurídicas das controladas e coligadas. O Código Civil de 2002 mantém todos os preceitos do código de

1916 que são relevantes para esta questão, como também reitera a distinção de personalidades entre as sociedades e seus sócios e a separação dos seus patrimônios.

Neste particular aspecto, é muito significativa a norma do art. 50,

segundo a qual a desconsideração da personalidade jurídica das pessoas jurídicas somente cabe nas situações excepcionais de abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Ora, em situações normais de participações societárias em coligadas

e controladas no exterior não há qualquer das razões em que o art. 50 autoriza a desconsideração, o que significa dizer que a manutenção da tributação prescrita pelo art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 representa uma violência àquela disposição da lei civil.

De mais a mais, o art. 50 apenas incorporou ao direito positivo

aquilo que já era construção pretoriana e doutrinária, de sorte que o art. 74 vai contra o que sempre se entendeu no Brasil como motivo para aplicação da “disregard doctrine”.

VII - Nada se altera quanto às coligadas e controladas em paraísos fiscais. Nesta matéria ouve-se constantemente que o tratamento previsto

no art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 justificar-se-ia para combater a “evasão fiscal” praticada através de coligadas e controladas situadas em paraísos fiscais.

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Inicialmente, deve-se observar que esta não é a situação de todo e qualquer investimento no exterior, pois há inúmeras participações em coligadas e controladas que não se situam em paraísos fiscais.

Por isso, é incabível argumentar a validade do art. 74 da Medida

Provisória n. 2158-35 com base no que deveria ser feito nas hipóteses de pessoas jurídicas localizadas naquelas regiões privilegiadas.

Aliás, generalizar o tratamento a partir daquele que supostamente

devesse ser atribuído aos investimentos em paraísos fiscais representaria uma grande injustiça às participações em pessoas jurídicas sediadas em países que tributam normalmente a renda, e que, ademais, efetivamente operam em transações industriais, comerciais ou de outros ramos econômicos.

Sob o ponto-de-vista estritamente jurídico, estaria ainda ocorrendo

a atribuição de tratamento igual à situações desiguais, violentando o princípio da isonomia previsto na Constituição do Brasil para a tributação aqui devida (art. 150, inciso II).

Além disso, a aplicação da lei sob a ingerência da idéia de que seria

melhor esse tratamento por alcançar os investimentos em paraísos fiscais, representaria estar o intérprete da lei distinguindo onde ela não distinguiu, cuja impossibilidade dispensa comentários.

Realmente, nenhum dispositivo legal aplicável ao caso estabelece

qualquer distinção de tratamento, ou qualquer reserva de tratamento, em decorrência da localização da coligada ou controlada no exterior. Pelo contrário, a Lei n. 9249, a Lei n. 9532 e até a Medida Provisória n. 2158-35 prescrevem tratamento igual para todas as participações em coligadas e controladas no exterior, quaisquer que sejam as respectivas localizações.

Mais ainda, tal justificativa para validar o art. 74 da Medida

Provisória n. 2158-35 ignoraria por completo que a lei brasileira já dispõe de um conjunto de normas que expressamente visam assegurar a arrecadação fiscal sobre os resultados auferidos em negócios com pessoas domiciliadas em países que não tributem a renda ou a tributem mais favorecidamente.

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Ora, tal conjunto de normas, que consta dos art. 18 a 25 da Lei n. 9430, de 27.12.1996, não faz qualquer alusão à tributação dos lucros de participações societárias, de tal sorte que trazer para o debate em torno do art. 74 a alegação de haver investimentos em paraísos fiscais é estender indevidamente os mecanismos legais reguladores dos investimentos nessas áreas.

Finalmente, não se pode olvidar que também as participações

societárias nos paraísos fiscais, quando legítimas, não infringem o art. 50 do Código Civil e em nada interferem com a discussão sobre a validade ou invalidade jurídica do art. 74.

VIII - O tratamento diverso para lucros e para prejuízos contraria o princípio da razoabilidade. Mais um aspecto deve ser referido a propósito do art. 74 da Medida

Provisória n. 2158-35. Trata-se de que ele fere frontalmente o princípio da razoabilidade, o qual deve estar presente na elaboração e na promulgação das leis. 5

5 Sobre o princípio da razoabilidade, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou inúmeras vezes, como na ação direta de inconstitucionalidade n. 1753-2-DF, julgada em 16.4.1998, relator o Ministro Sepúlveda Pertence, quando afirmou: “A igualdade das partes é imanente ao ‘procedural due process of law’; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vetustez, tem sido reputados não arbitrários por visarem a compensar dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se, ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo.” (“Revista Dialética de Direito Tributário” n. 35, p. 145). Nas ações diretas de inconstitucionalidade n. 1922-9-DF e 1976-7-DF, decididas em 6.10.1999, Ministro Moreira Alves: “No tocante ao ‘caput’ do já referido artigo 33 da mesma Medida Provisória e reedições sucessivas, basta, para considerar relevante a fundamentação jurídica do pedido, a alegação de ofensa ao princípio constitucional do devido processo legal em sentido material (art. 5º, LIV, da Constituição) por violação da razoabilidade e da proporcionalidade em que se traduz esse princípio constitucional.” (“Revista Dialética de Direito Tributário” n. 65, p. 182).

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A quebra da razoabilidade manifesta-se porque o referido

dispositivo pretende considerar como parte dos lucros da investidora sediada no Brasil o montante dos lucros das suas controladas ou coligadas no exterior, como se estas fossem uma mesma pessoa em relação à investidora brasileira.

Todavia, já não é este o tratamento que a lei outorga quando a

coligada ou controlada incorra em prejuízos, pois nesta situação o parágrafo 5º do art. 25 da Lei n. 9249 proíbe expressamente que tais prejuízos sejam compensados com os lucros das investidoras brasileiras, aqui produzidos.

Portanto, para os prejuízos a lei conserva e respeita a diferenciação

de identidades pessoais e a separação de patrimônios, mas para os lucros pretende adotar critério diverso.

Ora, tal disparidade de critérios para a formulação do lucro

tributável no Brasil afronta o princípio da razoabilidade aplicado especificamente aos dispositivos legais que cuidam da tributação dos lucros auferidos no exterior, além de ser irrazoável frente aos demais pontos anteriormente expostos, e também perante outros princípios previstos na Magna Carta para o imposto de renda, que veremos adiante.

IX - Violação do princípio da universalidade e contrariedade com a totalidade do ordenamento jurídico - Descabida extensão da incidência territorial da lei brasileira e tributação por ficção - Impossibilidade da tributação de lucros jamais distribuídos, ou depois absorvidos por prejuízos.

O que se segue neste capítulo é uma continuidade do enfoque da

falta de razoabilidade do art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35, aspecto este encetado no capítulo precedente.

Acontece que o art. 74 também colide com o princípio da

universalidade da tributação da renda, previsto no inciso I do parágrafo 2º do art. 153 da Constituição Federal como critério obrigatório para o imposto de renda.

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Esse princípio apresenta-se em conjunto com dois outros exigidos no mesmo dispositivo constitucional, quais sejam, o da generalidade (tributação por igual de todas as rendas e proventos, ou seja, excluído o critério da seletividade) e o da progressividade (alíquotas maiores na razão do crescimento da base de cálculo), sendo que o princípio da universalidade requer a consideração da totalidade e inteireza do acréscimo patrimonial (substrato fático da hipótese de incidência).

Esta é uma exigência do próprio fato, já analisado atrás, de que o

imposto de renda em sua essência grava os acréscimos a uma determinada universalidade patrimonial, de modo que a definição legal do fato gerador e da base de cálculo desse imposto não pode deixar de considerar a universalidade de fatores positivos e negativos que afetam a universalidade patrimonial no período legal de apuração.

Neste diapasão, em virtude da separação patrimonial existente

entre a pessoa jurídica no Brasil e suas coligadas e controladas no exterior, não há imposição para que os prejuízos destas devam ser obrigatoriamente considerados na base de cálculo do imposto devido por aquela. Ou seja, nada há a criticar quanto à validade do parágrafo 5º do art. 25 da Lei n. 9249.

Entretanto, a partir do momento em que a lei passou a determinar

que os lucros das coligadas e controladas no exterior integrem a base de cálculo do imposto devido no Brasil pelas pessoas jurídicas que participam dos seus capitais, se tal pretensão fosse juridicamente válida, necessariamente deveria também determinar a computação dos prejuízos.

Ao contrário, havendo a consideração apenas dos lucros, a

respectiva disposição legal, além da sua invalidade pelos outros fundamentos já expostos, padece do vício da irrazoabilidade, inclusive ao quebrar o princípio da universalidade de forma duplamente errônea:

- primeiramente, por tomar na base de cálculo valores que não

pertencem à universalidade patrimonial do contribuinte; - em segundo lugar, por tomar na base de cálculo apenas parte dos

elementos que formam a universalidade patrimonial da coligada ou controlada.

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A disposição do art. 74 também malfere o princípio da razoabilidade

numa visão geral e sistemática da legislação brasileira, dado que esta, na sua totalidade, consagra a distinção de personalidades jurídicas e a separação de patrimônios.

Principalmente quanto ao imposto de renda, a lei sempre

estabeleceu, e ainda o faz, uma categórica e absoluta separação entre as pessoas jurídicas, mesmo quando elas estejam associadas por algum tipo de vínculo.

Realmente, os prejuízos de uma pessoa jurídica absorvida por outra

em decorrência de fusão, incorporação ou cisão não podem ser compensados pela sucessora, exatamente face à absoluta separação patrimonial existente antes desses eventos, isto é, ao tempo em que os prejuízos foram gerados (art. 33 do Decreto-lei n. 2341, de 29.6.1987).

Outro exemplo foi dado pelo Decreto-lei n. 1598, de 26.12.1977, art.

2º a 4º, e pelo Decreto-lei n. 1648, de 18.12.1978, art. 5º. Aquele primeiro diploma havia instituído a possibilidade da opção pela tributação em conjunto de pessoas jurídicas participantes de um grupo de empresas constituído nos termos da Lei n. 6404, ou de controladora e controlada quando no mínimo oitenta por cento do capital desta com direito a voto fosse detido por aquela, mas o segundo diploma revogou essa possibilidade antes mesmo de entrar em vigor, mantendo a rigorosa separação das pessoas jurídicas envolvidas.

São inúmeros os dispositivos do nosso ordenamento jurídico que,

sistemática e consistentemente, consagram e respeitam as distinções de personalidades jurídicas e a separação de patrimônios das pessoas jurídicas, seja no aspecto geral, seja em relação aos seus sócios ou acionistas.

Sendo assim, não é razoável que uma norma isolada que contraria o

Sistema Tributário Nacional constante da Constituição Federal, e que inclusive contraria a própria competência tributária constitucional, venha impor tratamento contraditório com tal ordenamento, tão-somente para a tributação dos lucros das coligadas ou controladas no exterior, que pertencem a ela e não à pessoa jurídica contribuinte no Brasil.

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Neste aspecto, em última análise o que o art. 74 acarreta é a extensão da incidência da lei tributária brasileira para além dos nossos limites territoriais, de modo a tributar os lucros auferidos e mantidos por pessoas jurídicas sediadas no exterior - portanto, fora da jurisdição brasileira - através do artifício da tributação de pessoas jurídicas situadas sob a jurisdição brasileira, como se estas fictamente fossem titulares dos lucros daquelas.

Ora, isto também não mantém um mínimo senso de razoabilidade

dentro do sistema legal em vigor. Igualmente não é razoável que, contra todo o ordenamento jurídico

brasileiro, uma única norma se distinga das demais para, em situações normais e não incidentes na sanção do art. 50 do Código Civil de 2002, desconhecer a diferenciação de personalidades jurídicas e a separação de patrimônios, no intuito único de tributar renda onde renda não existe.

Finalmente, não é razoável o resultado fiscal perseguido por essa

disposição legal, ao pretender tributar lucros ainda não distribuídos, pois é possível que os lucros produzidos pela coligada ou controlada jamais venham a ser distribuídos por ela, ou que venham a ser absorvidos por prejuízos apurados em exercícios posteriores, assim como pode ocorrer de a investidora no Brasil alienar a participação societária antes da distribuição de dividendos.

Em qualquer destes casos, o imposto de renda já teria sido pago

sobre um lucro recebido fictamente, mas jamais materializado efetivamente, e o art. 74, assim como qualquer outro dispositivo em vigor, não provê a solução para tamanho absurdo. Acresce que nem caberia repetição do indébito, porque o imposto teria sido devidamente recolhido pela aplicação do art. 74, caso este fosse considerado válido.

Nestes casos, portanto, haveria incidência de imposto de renda sem

ter havido acréscimo patrimonial em qualquer momento. X - Violação do princípio da capacidade contributiva. Há mais um princípio constitucional ferido de morte pelo art. 74 da

Medida Provisória n. 2158-35.

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Trata-se do princípio da capacidade contributiva, que é ínsito a todo

fato gerador de obrigação tributária, e que está aludido no parágrafo 1º do art. 145 da Constituição Federal.

O ferimento desse princípio ocorre quando a medida provisória

manda tributar renda não disponível e sequer adquirida, o que importa em retirar do patrimônio do contribuinte, e não de acréscimo a ele – em cujo acréscimo deveria estar contida a capacidade contributiva -, os recursos para quitar a espúria obrigação tributária.

Realmente, a capacidade contributiva do contribuinte é revelada

pela ocorrência do fato gerador, e é do respectivo conteúdo econômico que se subtrai a parcela devida ao erário público.

Portanto, se o imposto é devido sem haver o fato gerador previsto

constitucionalmente - acréscimo patrimonial -, é devido onde não há capacidade contributiva, sendo indevidamente onerado o patrimônio da pessoa chamada a pagar imposto sem ter manifestado a respectiva capacidade para contribuir.

Neste aspecto, a doutrina de Luciano da Silva Amaro vem muito a

propósito, quando ele, referindo-se ao princípio da capacidade contributiva, observa com acuidade que “onde não houver riqueza é inútil instituir imposto, do mesmo modo que em terra seca não adianta abrir poço de água” (“Direito Tributário Brasileiro”, Ed. Saraiva, 7ª ed., p 136).

É exatamente o que ocorre com o art. 74, quer quanto à coligadas,

quer quanto à controladas. Klaus Tipke, a propósito do universal princípio da capacidade

contributiva, sustenta que dele decorre uma noção de justiça no direito tributário, de modo que leis fiscais injustas não fundamentam o direito tributário, acrescentando que elas criam uma “coisa tributária” e produzem um “tumulto tributário” (in “Justiça Fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva”, Malheiros Editores, 2002, p. 28, tradução do Douglas Yamashita).

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Também é o que ocorre com o art. 74, tanto na sua aplicação à coligadas quanto na sua aplicação à controladas.

XI - Abuso do poder de legislar e desvio no seu exercício. Tanta mácula no art. 74, ao fim único de gerar uma tributação iníqua

e inconstitucional, decorre de que a sua expedição foi ato do legislador solitário, impulsionado pela ânsia arrecadatória, e praticante de verdadeiro abuso do poder de legislar e de desvio no seu exercício.

Com razão, esse dispositivo fez parte das constantes ações

destinadas a satisfazer a voracidade fiscal da administração fazendária da época, sempre sequiosa de sucessivos recordes de arrecadação, características estas que foram a marca da SRF ao tempo em que aquela medida provisória foi por inspirada para ser editada pelo Presidente da República.

Neste quadro, não se tratou de um simples extravasamento dos

limites do campo de competência tributária que deveria ter dado guarida ao art. 74 e que por ele deveria ter sido respeitado, pois na verdade o legislador autoritário adentrou os umbrais do abuso do poder de legislar, tal como visto por Miguel Reale (“Revista de Direito Público” n. 39-40, p. 76):

“Alegar-se-á que a lei pode tudo, até mesmo converter o vermelho em verde, para eliminar proibições e permitir a passagem de benesses, mas há erro grave nesse raciocínio. As vedações constitucionais, quando ladeadas em virtude de processos oblíquos, caracterizam desvio de poder e, como tais, são nulas de pleno direito. Não se creia que só haja desvio de poder por parte do Executivo. Na estrutura do Estado Federal, quando há normas vigentes estabelecendo um ‘código superior de deveres’, o ato legislativo local não escapa da mesma increpação se a lei configurar o emprego malicioso de processos tendentes a camuflar a realidade, usando-se dos poderes inerentes ao ‘processo legislativo’ para

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atingir objetivos que não se compadecem com a ordem constitucional.” 6

A mesma conclusão pode ser haurida da visão do Supremo Tribunal

Federal, nas palavras do Ministro Celso de Mello, quando da ação direta de inconstitucionalidade 1158-8-DF (“Repertório IOB de Jurisprudência” n. 12/2000, p. 298):

“Todos sabemos que a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só no aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do ‘substantive due process of law’ reside na necessidade de proteger os direitos e liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio do poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.”

Recorde-se também do que disse a Suprema Corte na ação direta de

inconstitucionalidade n. 1407-2-DF, ainda com o Ministro Celso de Mello (DJU de 24.11.2000): 6 Parece que estas palavras de Reale foram escritas especificamente a propósito do art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35, que foi urdido em gabinete fazendário num único golpe, mas apresentado ao mundo subdividido em duas etapas aparentemente distintas. Assim, num primeiro momento passou pelo Congresso Nacional a Lei Complementar n. 104, contendo o parágrafo 2º do art. 43, o qual era aceitável para o parlamento tendo em vista a sua correlação com o ordenamento jurídico. Somente depois, ao pretenso abrigo daquele parágrafo, na solidão da expedição e reexpedição de medidas provisórias jamais apreciadas pelo Poder Legislativo, veio à lume a disposição desejada desde o início pelo seu mentor, ou seja, o art. 74, o qual por processos oblíquos ladeia tudo quanto deveria estar contido em lei complementar que fosse condizente com o ordenamento jurídico.

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“Vedação de Coligações Partidárias apenas nas Eleições Proporcionais – Proibição Legal que não se revela Arbitrária ou Irrazoável – Respeito à Cláusula do ‘Substantive due Process of Law’. O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do ‘substantive due process of law’ – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, sujeitando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’(CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais do abuso do poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador.”

Cite-se ainda o Ministro Gilmar Mendes, que escreveu doutrinariamente sobre o tema no “Repertório IOB de Jurisprudência” n. 14/2000, p. 372 e seg., onde mencionou farta jurisprudência, fez interessante abordagem dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, cuja desconsideração pode chegar ao desvio do poder de legislar.

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XII – CONCLUSÃO. Em síntese de tudo, o art. 74 da Medida Provisória n. 2158-35 não

encontra qualquer espaço no ordenamento jurídico brasileiro, sendo, em sua inteireza, ilegal por contrariar o CTN, e inconstitucional por extravasar o campo de incidência do imposto de renda previsto na Constituição Federal, além de conter outros vícios contra o Sistema Tributário Nacional.

Pior ainda é o art. 7º da Instrução Normativa SRF n. 213/02, que não

encontra espaço sequer no já inválido art. 74. Quanto à lei a que alude o parágrafo 2º do art. 43 do CTN, o seu

objeto deve ser a especificação, face às complexidades das relações jurídicas internacionais, dos elementos de identificação e de comprovação da aquisição da disponibilidade de rendas e proventos obtidos fora dos limites territoriais do Brasil.

São Paulo, 15 de julho de 2003.