Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960 · compreensão do tema da relação entre cultura e...

30
Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960 Marcelo Ridenti Isso é que é, na verdade, a Revolução Brasileira. [...] ela ganha carne, densidade, penetra fundo na alma dos homens. O rio que vinha avolumando suas águas e aprofundando seu leito, até março de 1964, desapareceu de nossas vistas. Mas um rio não acaba assim. Ele continua seu curso, subterra- neamente, e quem tem bom ouvido pode escutar-lhe o rumor debaixo da terra. FERREIRA GULLAR (1967, p. 253). Nota introdutória Este artigo retoma a reflexão do livro Em busca do povo brasileiro (cf. Ri- denti, 2000). Além da análise de novos casos, recorre-se à noção de “estru- tura de sentimento”, formulada por Raymond Williams, e secundariamente às noções de “campo” em Bourdieu, de declínio da intelectualidade em Jacoby e de outras não usadas naquele livro. Busca-se, assim, avançar na compreensão do tema da relação entre cultura e política nos anos de 1960 e 1970, em particular na análise sociológica da vasta e diferenciada produ- ção artística brasileira. Estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária nos anos de 1960 Partir das reflexões de Raymond Williams sobre as “estruturas de senti- mento” constitui uma possibilidade de aproximação teórica para tratar, es- pecialmente no que se refere às artes, do tema do surgimento de um imagi-

Transcript of Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960 · compreensão do tema da relação entre cultura e...

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960

Marcelo Ridenti

Isso é que é, na verdade, a Revolução Brasileira. [...] ela ganha carne, densidade, penetra fundo naalma dos homens. O rio que vinha avolumando suas águas e aprofundando seu leito, até março de1964, desapareceu de nossas vistas. Mas um rio não acaba assim. Ele continua seu curso, subterra-

neamente, e quem tem bom ouvido pode escutar-lhe o rumor debaixo da terra.FERREIRA GULLAR (1967, p. 253).

Nota introdutória

Este artigo retoma a reflexão do livro Em busca do povo brasileiro (cf. Ri-denti, 2000). Além da análise de novos casos, recorre-se à noção de “estru-tura de sentimento”, formulada por Raymond Williams, e secundariamenteàs noções de “campo” em Bourdieu, de declínio da intelectualidade emJacoby e de outras não usadas naquele livro. Busca-se, assim, avançar nacompreensão do tema da relação entre cultura e política nos anos de 1960e 1970, em particular na análise sociológica da vasta e diferenciada produ-ção artística brasileira.

Estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária nos anos de 1960

Partir das reflexões de Raymond Williams sobre as “estruturas de senti-mento” constitui uma possibilidade de aproximação teórica para tratar, es-pecialmente no que se refere às artes, do tema do surgimento de um imagi-

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 182

nário crítico nos meios artísticos e intelectuais brasileiros na década de1960 e depois sua transformação e (re)inserção institucional a partir dosanos de 19701. Talvez se possa falar na criação de uma “estrutura de senti-mento” compartilhada por amplos setores de artistas e intelectuais brasilei-ros a partir do final dos anos de 1950, e de como ela se transformou aolongo do tempo. Williams reconhece que “o termo é difícil, mas ‘senti-mento’ é escolhido para ressaltar uma distinção dos conceitos mais formaisde ‘visão de mundo’ ou ‘ideologia’”, os quais se referem a crenças mantidasde maneira formal e sistemática, ao passo que uma estrutura de sentimentodaria conta de “significados e valores tal como são sentidos e vividos ativa-mente”. A estrutura de sentimento não se contrapõe a pensamento, masprocura dar conta “do pensamento tal como sentido e do sentimento talcomo pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa continui-dade viva e inter-relacionada”, sendo por isso uma hipótese cultural de rele-vância especial para a arte e a literatura (Williams, 1979, pp. 134-135).

Segundo Maria Elisa Cevasco, o termo foi cunhado por Williams para“descrever como nossas práticas sociais e hábitos mentais se coordenamcom as formas de produção e de organização socioeconômica que asestruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivi-do” (Cevasco, 2001, p. 97). Para essa autora

[...] trata-se de descrever a presença de elementos comuns a várias obras de arte do

mesmo período histórico que não podem ser descritos apenas formalmente, ou

parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a estrutura de sentimento é a arti-

culação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social (Idem, p.

153).

O caráter de experiência viva que o conceito de estrutura de sentimen-to tenta apreender faz com que essa estrutura nem sempre seja perceptívelpara os artistas no momento em que a constituem. Torna-se clara, noentanto, com a passagem do tempo que a consolida – e também ultrapas-sa, transforma e supera. Nas palavras de Williams,

[...] quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são as conexões, as

correspondências, e até mesmo as semelhanças de época, que mais saltam à vista.

O que era então uma estrutura vivida, é agora uma estrutura registrada, que pode

ser examinada, identificada e até generalizada (1987, pp. 18-19).

1.Há outro aspecto fas-cinante, que não seráexplorado aqui, que im-plicaria fazer o caminhoinverso: em vez de par-tir dos anos de 1960para a atualidade, tomá-los em referência ao seupassado. Isso envolveriarefletir mais demorada-mente sobre o fato deque a utopia da brasili-dade revolucionária temraízes também na ideo-logia das representaçõesda mistura do branco,do negro e do índio naconstituição da brasilida-de, tão caras, por exem-plo, ao pensamento con-servador de GilbertoFreyre. Na década de1960, formulavam-senovas versões para essasrepresentações, não maisno sentido de justificara ordem social existen-te, mas de questioná-la:o Brasil não seria aindao país da integraçãoentre as raças, da har-monia e da felicidade dopovo, impedido pelopoder do latifúndio, doimperialismo e, no limi-te, do capital. Mas po-deria vir a sê-lo comoconseqüência da “revo-lução brasileira”, peloque se chegava a pen-sar numa “civilizaçãobrasileira”, retomando à

83junho 2005

Marcelo Ridenti

Nesse sentido, hoje se pode identificar com clareza uma estrutura desentimento que perpassou boa parte das obras de arte a partir do fim dadécada de 1950. Ela poderia ser chamada de diferentes modos – necessa-riamente limitadores, pois uma denominação sintética dificilmente seriacapaz de dar conta da complexidade e da diversidade do fenômeno. Pode-se propor, sem excluir outras possibilidades, que seja chamada de estruturade sentimento da brasilidade (romântico-) revolucionária.

Essa expressão leva a um outro conceito, útil para compreender a estru-tura de sentimento da brasilidade revolucionária: o de “romantismo”, talcomo formulado por Löwy e Sayre (1995). Para esses autores, o romantis-mo não seria apenas uma corrente artística nascida na Europa na época darevolução francesa e que não passou do século XIX. Muito mais que isso,seria uma visão de mundo ampla, “uma resposta a essa transformação maislenta e profunda – de ordem econômica e social – que é o advento docapitalismo”, e que se desenvolve em todas as partes do mundo até nossosdias (Löwy e Sayre, pp. 33-36).

A crítica a partir de uma visão de mundo romântica incidiria sobre amodernidade como totalidade complexa, que envolveria as relações deprodução (centradas no valor de troca e no dinheiro, sob o capitalismo), osmeios de produção e o Estado. Seria uma “autocrítica da modernidade”,uma reação formulada de dentro dela própria, não do exterior, “caracteri-zada pela convicção dolorosa e melancólica de que o presente carece decertos valores humanos essenciais que foram alienados” no passado e queseria preciso recuperar (Idem, pp. 38-40).

O romantismo seria então um fenômeno vasto, com diversas expres-sões artísticas e também políticas, o que permitiria constituir uma tipolo-gia, “indo grosso modo da direita para a esquerda”: romantismorestitucionista, conservador, fascista, resignado, reformador e revolucioná-rio ou utópico. Este último visaria a

[...] instaurar um futuro novo, no qual a humanidade encontraria uma parte das qua-

lidades e valores que tinha perdido com a modernidade: comunidade, gratuidade, doa-

ção, harmonia com a natureza, trabalho como arte, encantamento da vida. No entanto,

tal situação implica o questionamento radical do sistema econômico baseado no valor

de troca, lucro e mecanismo cego do mercado: o capitalismo (Idem, p. 325).

Nesse caso, “a lembrança do passado serve como arma para lutar pelo futu-ro” (Idem, p. 44).

esquerda a utopia doperíodo Vargas.

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 184

A hipótese proposta em meu livro Em busca do povo brasileiro (cf. Ri-denti, 2000) é a de que o florescimento cultural e político dos anos de 1960e início dos de 1970 na sociedade brasileira pode ser caracterizado comoromântico-revolucionário. Valorizava-se acima de tudo a vontade de trans-formação, a ação para mudar a História e para construir o homem novo,como propunha Che Guevara, recuperando o jovem Marx. Mas o modelopara esse homem novo estava, paradoxalmente, no passado, na idealizaçãode um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do “cora-ção do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade urbanacapitalista.

Vislumbrava-se uma alternativa de modernização que não implicasse asubmissão ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, gerador da desuma-nização. A questão da identidade nacional e política do povo brasileiroestava recolocada, buscava-se ao mesmo tempo recuperar suas raízes e rom-per com o subdesenvolvimento, o que não deixa de ser um desdobramen-to à esquerda da chamada era Vargas, propositora do desenvolvimentonacional com base na intervenção do Estado.

É polêmico caracterizar como romântico-revolucionárias a cultura e apolítica de parte significativa das esquerdas nos anos de 1960, já que ro-mantismo costuma ser associado à reação, não à revolução (cf. Romano,1981). Mas o conceito não deixa de ser interessante justamente pela suaambigüidade – que possivelmente tem paralelo com a do objeto em estu-do. No contexto social, econômico, político e cultural brasileiro a partirdo final dos anos de 1950, recuperar o passado na contramão da moderni-dade era indissociável das utopias de construção do futuro, que vislumbra-vam o horizonte do socialismo. Por isso devem ser relativizadas algumasanálises, como a de Sérgio Paulo Rouanet, para quem o povo das esquer-das “dos anos 60 tinha muitas vezes uma semelhança inconfortável com ovolk do romantismo alemão [...]: a nação como individualidade única,representada pelo povo, como singularidade irredutível” (1988, p. D.3).Ora, a semelhança não geraria desconforto, pois não se tratava da mesmacoisa, embora ambos fossem parecidos em alguns aspectos, ao resgatar asidéias de povo e nação para posicionar-se na contramão do capitalismo.Naquele contexto brasileiro, a valorização do povo não significava criarutopias anticapitalistas passadistas, mas progressistas; implicava o parado-xo de buscar no passado (as raízes populares nacionais) as bases para cons-truir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao final doprocesso, poderia romper as fronteiras do capitalismo2.

2.Outro aspecto inte-ressante do uso dessaacepção do romantismorevolucionário é que elepermite compreenderas afinidades ao longodo tempo com outrasestruturas de sentimen-to românticas, por ve-zes conservadoras. Abre-se uma pista para com-preender a trajetóriaaparentemente contra-ditória de artistas comoGlauber Rocha, queforam integralistas namocidade.

85junho 2005

Marcelo Ridenti

Aqueles que compartilhavam da estrutura de sentimento da brasilidaderevolucionária tinham relação ambígua com a ordem estabelecida no pré-1964, principalmente com o governo Goulart, que contava com o apoio devários artistas e intelectuais. Difundia-se na época o dualismo que apontavaa sobreposição de um Brasil moderno a outro atrasado. A “razão dualista” –para usar o termo de Francisco de Oliveira (1972) – era disseminada pelosteóricos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), pela Comis-são Econômica para a América Latina (Cepal), organismo das Nações Uni-das, e pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja teoria das duas etapasda revolução brasileira era incorporada difusa e diversamente pelos artistasque compartilhavam daquela estrutura de sentimento. Na versão do PCBdo dualismo, haveria resquícios feudais ou semifeudais no campo, a seremremovidos por uma revolução burguesa, nacional e democrática que uniriatodas as forças interessadas no progresso da nação e na ruptura com o sub-desenvolvimento (a burguesia, o proletariado, os setores das camadas mé-dias e também os camponeses), contra as forças interessadas em manter osubdesenvolvimento brasileiro, a saber, o imperialismo e seus aliados inter-nos, os latifundiários e os setores das camadas médias próximos dos interes-ses multinacionais. A revolução socialista viria numa segunda etapa – bempróxima ou ainda muito distante, dependendo da corrente partidária (cf.Prado Jr., 1966).

Nesse sentido, a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionárianão nasceu do combate à ditadura, mas vinha de antes, forjada no períododemocrático entre 1946 e 1964, especialmente no governo Goulart, quan-do diversos artistas e intelectuais acreditavam estar na crista da onda darevolução brasileira em curso. A quebra de expectativa com o golpe de1964 – ainda mais sem resistência – foi avassaladora também nos meiosartísticos e intelectualizados, como atestam o artigo clássico de RobertoSchwarz, publicado pela primeira vez em 1970 na França, e o depoimentode Chico Buarque em 1999:

Nos anos 50 havia mesmo um projeto coletivo, ainda que difuso, de um Brasil

possível, antes mesmo de haver a radicalização de esquerda dos anos 60. O Jusce-

lino, que de esquerda não tinha nada, chamou o Oscar Niemeyer, que por acaso

era comunista, e continua sendo, para construir Brasília. Isso é uma coisa fenome-

nal. [...] Ela foi construída sustentada numa idéia daquele Brasil que era visível

para todos nós, que estávamos fazendo música, teatro etc. Aquele Brasil foi cortado

evidentemente em 64. Além da tortura, de todos os horrores de que eu poderia

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 186

falar, houve um emburrecimento do país. A perspectiva do país foi dissipada pelo

golpe (Buarque, 1999, p. 4.8)3.

São exemplos expressivos da estrutura de sentimento romântica e revo-lucionária – para amalgamar num único termo as propostas de Williams,Löwy e Sayre – desenvolvida no Brasil no início dos anos de 1960: a) atrilogia clássica do início do Cinema Novo, todos filmes rodados em 1963e exibidos já depois do golpe – Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos;Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha; e Os fuzis, de Ruy Guerra–; b) a dramaturgia do Teatro de Arena de São Paulo (de autores comoGianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Francisco de Assis e OduvaldoVianna Filho, o Vianinha), e também de autores como Dias Gomes; c) acanção engajada de Carlos Lyra e Sérgio Ricardo; d) o agitprop dos CentrosPopulares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes, especial-mente em teatro, música, cinema e literatura – como os três livros da cole-ção Violão de rua (Felix, 1962; 1963), com o subtítulo revelador de poemaspara a liberdade, cujo poeta mais destacado foi Ferreira Gullar, ou ainda ofilme Cinco vezes favela, dirigido por jovens cineastas, entre eles CarlosDiegues, Leon Hirzman e Joaquim Pedro de Andrade.

Depois do golpe de 1964, essa estrutura de sentimento da brasilidade(romântico-) revolucionária pode ser encontrada nas canções de Edu Lobo,Geraldo Vandré e outros; nos desdobramentos da dramaturgia do Teatro deArena – como a peça Arena conta Zumbi e sua celebração da comunidadenegra revoltosa; e especialmente no romance Quarup, de Antonio Callado(1967), que exaltava a comunidade indígena e terminava apontando a viada revolução social4, e que foi chamado por Ferreira Gullar de “ensaio dedeseducação para brasileiro virar gente”. Gullar observa que,

[...] enquanto lia o romance, não podia deixar de pensar nos índios de Gonçalves

Dias, em Iracema de Alencar, em Macunaíma de Mário de Andrade, em Cobra

Norato, mesmo nos Sertões, de Euclides, em Guimarães Rosa. Pensava na abertura

da Belém–Brasília, no Brasil, nesta vasta nebulosa de misto e verdade, de artesana-

to e eletrônica, de selva e cidade, que se elabora, que se indaga, que se vai definindo

(Gullar, 1967)5.

Essas palavras – e o conjunto da resenha em que se insere – resumem bema estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária.

3.Essas palavras trazemo eco da referida inter-pretação de Schwarz,para quem o país esta-va “irreconhecivelmen-te inteligente” no pré-1964 (cf. Schwarz,1978).

4.Callado, na época emque escreveu o livro, es-tava organicamente vin-culado à guerrilha co-mandada por LeonelBrizola, conforme ad-mite expressamente emlonga entrevista a mimconcedida sobre o temae publicada quase na ín-tegra em “A guerrilhade Antonio Callado”(apud Kushnir, 2002,pp. 23-53).

5.Os próprios autoresque compartilhavam daestrutura de sentimen-to da brasilidade revo-lucionária que amadu-recera no pré-1964 co-meçaram a problemati-zá-la após o golpe. Tantoque, no tão almejadocentro do Brasil que seprocurava em Quarup,o que se encontrou foium grande formiguei-ro (cf. Callado, 1967).

87junho 2005

Marcelo Ridenti

As obras citadas buscam no passado uma cultura popular autêntica paraconstruir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e desalienada. Dei-xam transparecer certa evocação da liberdade no sentido da utopia român-tica do povo-nação, regenerador e redentor da humanidade (cf. Saliba,1991, pp. 53-67). Revelam a emoção e a solidariedade dos autores com osofrimento do próximo, a denúncia das condições de vida subumanas nasgrandes cidades e, sobretudo, no campo. Enfoca-se especialmente o dramados retirantes nordestinos. A questão do latifúndio e da reforma agrária érecorrente, em geral associada à conclamação ao povo brasileiro para reali-zar sua revolução, em sintonia com as lutas de povos pobres da AméricaLatina e do Terceiro Mundo.

Os artistas engajados das classes médias urbanas identificavam-se comos deserdados da terra, ainda no campo ou migrantes nas cidades, comoprincipal personificação do caráter do povo brasileiro, a quem seria precisoensinar a lutar politicamente. Propunha-se uma arte nacional-popular quecolaborasse com a desalienação das consciências. Recusava-se a ordem so-cial instituída por latifundiários, imperialistas e – no limite, em algunscasos – pelo capitalismo. Compartilhava-se certo mal-estar pela supostaperda da humanidade, acompanhado da nostalgia melancólica de uma co-munidade mítica já não existente, mas esse sentimento não se dissociavada empolgação com a busca do que estava perdido, por intermédio darevolução brasileira. Pode-se mesmo dizer que predominava a empolgaçãocom o “novo”, com a possibilidade de construir naquele momento o “paísdo futuro”, mesmo remetendo a tradições do passado.

Sem dúvida, essa estrutura de sentimento era portadora de uma ideali-zação do homem do povo, especialmente do campo, pelas classes médiasurbanas. Mas ela se ancorava numa base real: a insurgência dos movimen-tos de trabalhadores rurais no período. Era o tempo das Ligas Camponesas,celebradas em obras como João Boa-Morte (cabra marcado para morrer), deFerreira Gullar, ou no filme de Eduardo Coutinho, inacabado à época, quetomou emprestado o subtítulo do poema de Gullar6. Ademais, vivia-se oimpacto de revoluções camponesas no exterior, especialmente em Cuba eno Vietnã. Também é preciso lembrar que a sociedade brasileira ainda erapredominantemente agrária pelo menos até 1960; estava em andamentoum dos processos de urbanização mais rápidos da história mundial: de1950 a 1970, a sociedade brasileira passou de majoritariamente rural paraeminentemente urbana, com todos os problemas sociais e culturais de umatransformação tão acelerada.

6.Os operários tam-bém eram tematizados,como na peça pioneirade Guarnieri Eles nãousam black-tie, encena-da pelo Teatro de Are-na em 1958, mas commenor intensidade queos trabalhadores rurais.Mas era a categoria depovo que, acima dasclasses, tendia a predo-minar nessa estrutura desentimento: os pobres,seres humanos miserá-veis, desumanizados, de-serdados da terra.

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 188

Pode-se ver que a experiência viva da estrutura de sentimento da brasi-lidade revolucionária tem uma história peculiar ao devir das artes e dacultura no Brasil, ao mesmo tempo em que está sintonizada com o cenáriocultural e político internacional. Pólos contraditórios conviviam em dife-rentes intensidades e arrumações internas em diversos movimentos e obrasde artistas específicos: brasilidade e internacionalização; passado e futuro;raízes culturais e modernidade.

Brasilidade-mundo

É esclarecedora a constatação de Carlos Diegues numa entrevista: “aminha geração foi a última safra de uma série de redescobridores do Brasil.O Brasil começa a se conhecer, sobretudo com o romantismo [...] aqueledesejo de uma identidade [...]. Minha geração, do Cinema Novo, do tropi-calismo, é a última representação desse esforço secular”7. A tradição cultu-ral de busca da identidade nacional atravessou todo o século XX. Não é à toaque dois destacados artistas dos anos de 1960 – o cineasta Carlos Diegues e ocompositor Chico Buarque – são filhos respectivamente de dois pensadoresda brasilidade: Manoel Diegues Jr. e Sérgio Buarque de Hollanda. Tam-pouco é acaso que Chico Buarque tenha feito a letra da canção Bye, bye,Brasil para o filme homônimo de Carlos Diegues, constatando o esvazia-mento da estrutura de sentimento em que foram criados e que ajudaram aforjar – e que continua a pairar como um fantasma sobre suas obras8.

O modernismo nas artes brasileiras desenvolveu-se ao longo do séculopassado, indissociável do processo de instauração e consolidação da racio-nalidade capitalista moderna no Brasil – que autores como Florestan Fer-nandes (1976) chamariam de “revolução burguesa”. As ondas modernistasdesde 1922 podem ser caracterizadas contraditória e simultaneamente comoromânticas e modernas, passadistas e futuristas. Tomar as supostas tradi-ções da nação e do povo brasileiro (que são “inventadas” e construídasseletivamente por autores ou movimentos específicos) como base de sus-tentação da modernidade foi característica dos mais diferentes movimen-tos estéticos a partir da Semana de Arte Moderna de 1922: verde-amarelismoe Escola da Anta (1926 e 1929, aproximados na política do integralismode Plínio Salgado), seus adversários Pau-Brasil e Antropofagia (1926 e1928, comandados por Oswald de Andrade), a incorporação do folcloreproposta por Mário de Andrade ou por Villa-Lobos. A crítica da realidadebrasileira, associada à celebração do caráter nacional do homem simples do

7.Entrevista a ZuleikaBueno.

8.Procurei desenvolveressa idéia, no tocante aChico Buarque, no tex-to “Visões do paraísoperdido” (cf. Ridenti,2000, pp. 225-264).

89junho 2005

Marcelo Ridenti

povo, viria nos anos de 1930 e 1940, por exemplo na pintura de Portinarie nos romances regionalistas, até desaguar nas manifestações da década de1960, herdeiras da brasilidade, agora indissociável da idéia de revoluçãosocial – fosse ela nacional e democrática ou já socialista, contando com opovo como agente, não mero portador de um projeto político9.

A brasilidade voluntarista consolidada nos anos de 1960 como estrutura desentimento não pode ser dissociada do cenário internacional. Até mesmo aafirmação da nacionalidade no período tem um componente internacional sig-nificativo. No contexto da Guerra Fria, surgiam esforços dos países “não ali-nhados” para organizar autonomamente o que então ficou conhecido comoTerceiro Mundo, para além do Primeiro Mundo alinhado aos norte-america-nos e do Segundo Mundo, na órbita soviética. Todo o globo vivia o clima do“terceiro-mundismo”, da libertação nacional diante do colonialismo e doimperialismo, da solidariedade internacional com os povos subdesenvolvi-dos que se libertavam em Cuba, no Vietnã, na Argélia e em outros países.

Talvez o adepto mais representativo desse terceiro-mundismo na cultu-ra brasileira tenha sido Glauber Rocha, que o tornaria explícito em seuconhecido manifesto “Estética da fome”, de 1965 (apud Pierre, 1996, pp.123-131) – típico do que aqui se chama de estrutura de sentimento dabrasilidade (romântico-) revolucionária. O documento foi influenciadopelo pensamento de Frantz Fanon, o médico negro das Antilhas que lutouna Argélia contra o colonialismo francês, autor em 1961 de Os condenadosda terra (1979). Diz Glauber no texto, sem fazer citação explícita, mascom referência evidente a Fanon: “uma estética da violência antes de serprimitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizadorcompreenda a existência do colonizado: [...] foi preciso um primeiro poli-cial morto para que o francês percebesse um argelino” (Idem, p. 129). Estátambém em clara afinidade com as propostas de outro ícone do terceiro-mundismo, o argentino que lutou em Cuba e na África, e morreu na Bo-lívia, Che Guevara – talvez a referência internacional mais significativa doromantismo revolucionário do período.

Nesse sentido, acertadamente, Daniel Pécaut observou que se deve “evitarcaricaturar o passado” – e também desmistificá-lo, pode-se acrescentar. ParaPécaut, o suposto “delírio nacional-popular” organizado em torno do Estado

Não foi absolutamente apanágio de uma minoria ávida de transformar seu “saber”

em “poder”; apoiava-se, como frisou Michel Debrun, num sentimento difundido

em muitos setores sociais. O privilégio concedido à “libertação nacional” não ti-

9.Nas palavras de Gu-llar, referindo-se ao ro-mance Quarup, “a rea-lização pessoal deságuano coletivo. Não se tra-ta de apagar-se na mas-sa, mas de entender queseu destino está ligado aela” (1967, p. 256). Nostermos de Glauber Ro-cha, em sua “estética dafome”, o “miserabilismo”na literatura e nas artesem geral no Brasil atéos anos de 1960 era “es-crito como denúncia so-cial, hoje passou a serdiscutido como proble-ma político” (apud Pier-re, 1996, p. 127).

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 190

nha, então, valor algum de álibi visando a evitar a luta de classes; muito simples-

mente, o Brasil vivia a hora do advento do Terceiro Mundo (1990, p. 180).

Outros componentes internacionais constituintes dessa estrutura de sen-timento foram as sucessivas revoluções socialistas do século XX, notada-mente a soviética e depois a chinesa, a cubana e outras. Elas teriam reper-cussão no Brasil, especialmente entre artistas e intelectuais, muitos do quaisforam militantes de esquerda. Ademais, a estrutura de sentimento da bra-silidade revolucionária não se dissociava de traços do romantismo revolu-cionário em escala internacional nos anos de 1960: a fusão entre vida pú-blica e privada, a ânsia de viver o momento, a liberação sexual, a fruição davida boêmia, o desejo de renovação, a aposta na ação em detrimento dateoria, os padrões irregulares de trabalho e a relativa pobreza de jovensartistas e intelectuais.

Portanto, não seria exagerado dizer que a experiência viva da estruturade sentimento da brasilidade revolucionária foi uma variante nacional deum fenômeno que se espalhou mundo afora. Além das especificidadeslocais – no caso brasileiro, as lutas pelas reformas de base no pré-1964 econtra a ditadura após essa data –, o florescimento cultural e político nadécada de 1960 ligava-se a uma série de condições materiais comuns adiversas sociedades em todo o mundo: aumento quantitativo das classesmédias, acesso crescente ao ensino superior, peso significativo dos jovensna composição etária da população, num cenário de crescente urbanizaçãoe consolidação de modos de vida cultural típicos das metrópoles, numtempo de recusa às guerras coloniais e imperialistas, sem contar a incapaci-dade do poder constituído para representar sociedades que se renovavam eavançavam também em termos tecnológicos, por exemplo com o acessocada vez maior a um modo de vida que incorporava ao cotidiano o uso deeletrodomésticos, especialmente a televisão. Essas condições materiais porsi sós não explicam as ondas de rebeldia e revolução, nem as estruturas desentimento que as acompanharam por toda parte. Mas foi em resposta àsmudanças na organização social na época que se construíram certas estru-turas de sentimento, como aquela da brasilidade revolucionária.

Atração e afastamento da brasilidade revolucionária

Evidentemente, nem todos os artistas e intelectuais compartilharam daestrutura de sentimento da brasilidade revolucionária nos anos de 1960.

91junho 2005

Marcelo Ridenti

Para tomar um exemplo significativo, o músico da bossa nova RobertoMenescal conta um caso pitoresco que merece ser reproduzido:

Confesso que nós realmente éramos alienados totais. Eu sabia o que acontecia da

avenida Atlântica para o mar; passando da Barata Ribeiro já não sabia mais nada!

[...] Teve um dia nessa época em que eu fui gravar no Campo de Santana [na

gravadora CBS]. [...] ia gravar com a orquestra, eram uns arranjos do Luisinho

Eça, e quando nós chegamos no estúdio não tinha ninguém. [...] Ninguém chega-

va, e o técnico falou: “Vamos passando a guitarra e o baixo”. E passamos, gravamos

a música do Tom e Aloysio de Oliveira chamada “Inútil paisagem”. Depois de um

tempo começamos a falar: “Bom, a orquestra não vem, será que a gente errou o dia?”

[...] Aí deu umas 11hs da manhã e resolvemos ir embora. Pegamos o carro e saí-

mos. Quando fui passando ali em frente à Cinelândia, passaram uns soldados a

cavalo e eu pensei: “O que está havendo, que coisa estranha...”. Quando chegamos

ali perto da UNE, estava um rolo danado. Vimos que havia acontecido alguma

coisa a mais. Era simplesmente o dia da revolução [1º de abril de 1964] e a gente

estava gravando “Inútil paisagem”. A gente até brincou que “Inútil paisagem” era o

“melô” da revolução. Mas isso é para mostrar que a alienação era total! A gente

gostava era de música e pescaria, o resto a gente não sabia (2003, pp. 60-61).

O caso ilustra como um contingente significativo de artistas estava des-ligado dos acontecimentos políticos. Para ficar no campo da canção popu-lar depois de 1964, todo o pessoal da Jovem Guarda nada teve a ver com aestrutura de sentimento da brasilidade revolucionária. Vale notar que odepoimento de Menescal de um lado incorpora o vocabulário de esquerda(“a alienação era total”), mas de outro refere-se ao golpe de 1964 como“revolução”, expressão adotada e difundida pela direita.

Em contraste, vários bossa-novistas viriam a compartilhar de algummodo da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária, alguns demodo mais explícito e militante, como os pioneiros Carlos Lyra e SérgioRicardo, e logo em seguida Nara Leão; outros de modo mais distanciado,como Vinícius de Moraes, autor de poemas engajados no pré-1964 – pu-blicados no Violão de rua do CPC (cf. Felix, 1962; 1963) –, bem como daletra do Hino da UNE, em 1962, com música de Carlos Lyra, e ainda de Omorro não tem vez, com Tom Jobim, em 1963, que dizia bem no espíritoda época: “quando derem vez ao morro toda cidade vai cantar”. Viníciustambém compôs, com Edu Lobo, a canção vencedora do I Festival da TVExcelsior, em 1965. Trata-se de Arrastão, que exalta a comunidade popu-

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 192

lar de pescadores e seu trabalho. Também foi parceiro de Edu Lobo emcanções como Zumbi, que celebra o líder negro revoltoso.

Mais tarde, Vinícius fez a maior parte da letra de Gente humilde, deGaroto, com a colaboração de Chico Buarque, que a gravou em 1970.Nessa canção, fica clara a idealização dos habitantes dos arrabaldes porparte de quem os vê pela janela do trem. Versos como “tem certos dias/ emque eu penso em minha gente/ e sinto assim/ todo meu peito se apertar”são típicos da estrutura de sentimento aqui referida, que envolve a identi-ficação dos artistas com o “homem simples” (cf. Ianni, 1968). Mas essacanção em particular afasta-se do romantismo revolucionário, está muitomais para o romantismo resignado a que se referem Löwy e Sayre (1995,pp. 107-110). A resignação é evidente nos versos finais: “e aí me dá umatristeza/ no meu peito/ feito um despeito/ de eu não ter como lutar/ e euque não creio/ peço a Deus por minha gente/ é gente humilde/ que vonta-de de chorar”10.

A força da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária tam-bém se revela na assimilação, voluntária ou não, por seus críticos. Por exem-plo, a poesia concreta dos irmãos Campos – que fazia um contraponto aonacional-popular, valorizando a forma, e era crítica de qualquer apelo àssupostas raízes autenticamente brasileiras, isto é, às origens pré-capitalistas –não passou incólume ao apelo à ação política: propôs em 1961 o “saltoparticipante” em sua poesia, pelo qual se procurava afinação com os movi-mentos populares insurgentes, porém com uma linguagem também revo-lucionária (cf. Hollanda, 1981, p. 41).

Outro exemplo, agora no âmbito da canção popular: com a letra de Aresposta – gravada em 1965 no LP de Marcos Valle, O compositor e o cantor –, Marcos e Paulo Sérgio Valle deram o troco aos que os acusavam de aliena-dos, ironizando os adeptos da canção engajada, isto é, aqueles que compar-tilhavam da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária:

Se alguém disser que teu samba não tem mais valor/ porque ele é feito somente de

paz e de amor/ não ligue não que essa gente não sabe o que diz/ não pode entender

quando o samba é feliz/ o samba pode ser feito de céu e de mar/ o samba bom é

aquele que o povo cantar/ de fome basta o que o povo na vida já tem/ por que fazê-

lo cantar isso também?// Mas é que é tempo de ser diferente/ e essa gente não quer

mais saber de amor/ falar de terra na areia do Arpoador/ quem pelo pobre na vida

não faz nem favor/ falar de morro morando de frente pro mar/ não vai fazer nin-

guém melhorar.

10.Entretanto, nessemesmo LP, ChicoBuarque gravou suacanção utópica, Rosa dosventos, que nada tinhade resignação; ao con-trário, previa uma explo-são revolucionária:“Numa festa amazôni-ca/ numa explosão atlân-tica/ e a multidão ven-do em pânico/ e a mul-tidão vendo atônita/ ain-da que tarde/ o seu des-pertar”.

93junho 2005

Marcelo Ridenti

A letra explicita a resistência dos autores ao engajamento político, bemcomo critica uma elite de esquerda que fala em “povo” e “morro”, quandoem seu cotidiano não teria nenhuma relação com isso11. O negócio dosautores era fazer um samba feliz, “feito de céu e de mar” para “o povocantar”, expressando uma vivência na Zona Sul carioca próxima daquelarelatada por Roberto Menescal no trecho citado anteriormente. Contudo,parece surpreendente – e atesta a força da estrutura de sentimento da bra-silidade revolucionária – que pouco tempo depois, em 1968, os irmãosValle, cujas canções já freqüentavam assiduamente as paradas de sucesso,não resistissem aos ventos daquele ano emblemático: quase todas as letrasdo LP Viola enluarada expressam “preocupação social”, nas palavras deMarcos Valle (2004, p. 4). A canção que dá título ao LP tornou-se umclássico da canção engajada, chegando a conclamar à revolução social pelaidentidade entre os artistas e o povo:

A mão que toca um violão/ se for preciso faz a guerra/ mata o mundo, fere a terra/

a voz que canta uma canção/ se for preciso canta um hino – louvo a morte/ viola

em noite enluarada/ no sertão é como espada/ esperança de vingança/ O mesmo pé

que dança um samba/ se preciso vai à luta/ capoeira/ quem tem de noite a compa-

nheira/ sabe que paz é passageira/ pra defendê-la se levanta e grita: eu vou/ Mão,

violão, canção, espada/ e viola enluarada/ pelo campo e cidade/ porta-bandeira,

capoeira/ desfilando vão cantando/ Liberdade!

Era “esperança de vingança” daqueles que sabem que “a paz é passagei-ra” e iam desfilando e cantando em passeatas contra a ditadura, exigindoliberdade. Se preciso, o artista usaria “a mão que toca o violão” para fazer aguerra. A sonoridade da canção afasta-se da herança da bossa nova (marcados irmãos Valle) e incorpora a tradicional viola do interior, sem contar asreferências na letra ao sertão, à viola, à capoeira e à porta-bandeira – todossímbolos das raízes da cultura popular brasileira, evocadas pelos composi-tores responsáveis pela canção engajada de enorme sucesso na época, comoGeraldo Vandré, Theo de Barros, Edu Lobo e outros cuja origem socialassemelhava-se à dos Valle. Nada mais expressivo que essa canção da estru-tura de sentimento da brasilidade revolucionária. Entretanto, pouco tem-po depois, acompanhando as exigências do mercado, as composições dosirmãos Valle voltariam ao seu leito habitual, muitas delas tornando-se su-cessos em telenovelas da Rede Globo, fato que dá margem a uma breveobservação.

11.Como a já mencio-nada O morro não temvez e também O morro,de Edu Lobo e Guar-nieri, gravada por NaraLeão em 1964: “feionão é bonito/ o morroexiste mas pede pra seacabar/.../ ama, o mor-ro ama/ o amor aflito,o amor bonito quepede outra história”.

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 194

Especialmente depois de 1964, com a consolidação da indústria cultu-ral no Brasil, surgiu um segmento de mercado ávido por produtos culturaisde contestação à ditadura: livros, canções, peças de teatro, revistas, jornais,filmes etc. De modo que a estrutura de sentimento da brasilidade revolu-cionária, antimercantil e questionadora da reificação, encontrava contradi-toriamente grande aceitação no mercado – como atesta por exemplo o su-cesso da Revista Civilização Brasileira, publicação de esquerda em forma delivro que chegava a tirar mais de 20 mil exemplares entre 1965 e 1968.Numa escala muito mais ampla, havia o enorme sucesso de canções engaja-das, por exemplo nos festivais musicais na televisão (cf. Napolitano, 2001).Eram sinais de mudanças na organização social brasileira sob a ditadura,que viriam a alterar a estrutura de sentimento constituída no pré-1964 eanunciar o seu declínio e superação, como será exposto mais adiante.

Para retomar o exemplo dos irmãos Valle, eles já diziam na canção cita-da de 1965 que “o samba bom é aquele que o povo cantar”. Predispunham-se assim a estar em sintonia com os sinais do mercado, sensíveis ao que opovo queria ouvir e cantar. Ora, no auge do período dos festivais televisivosde música popular brasileira, de 1965 a 1968, que davam índices de au-diência impressionantes, o “povo” cantava as canções engajadas, que ven-diam muito. Daí não ser tão surpreendente, como poderia parecer à pri-meira vista, que Marcos Valle tenha gravado o disco politicamenteengajado Viola enluarada, nem que depois ele acompanhasse o que povocantava nas telenovelas da Globo. Seguia a direção do público (ou do mer-cado?), mesmo que não o fizesse de caso pensado.

Divergências e rivalidades numa estrutura de sentimento

O fato de vários artistas do período terem compartilhado da estruturade sentimento da brasilidade revolucionária não significa que havia totalidentidade entre eles, que por vezes eram mesmo rivais, nem que suas obrasdeixassem de ser diferenciadas, ainda que de algum modo expressassemessa estrutura de sentimento no sentido de “articulação de uma resposta amudanças determinadas na organização social” (Cevasco, 2001, p. 153).

Nesse aspecto, talvez valha a pena incorporar ensinamentos de PierreBourdieu (1996; 2001), desde que a estrutura de sentimento da brasilida-de revolucionária não seja reduzida a uma espécie de doença infantil doscampos artísticos e intelectuais ainda em processo de formação12. Eles po-dem servir como instrumento para afinar a análise das especificidades dos

12.O recurso à obra deBourdieu pode ser útil,mas não é indispensá-vel, nem necessaria-mente suficiente. Porexemplo, o próprio Wi-lliams dá conta commuita propriedade dogrupo de Bloomsburysem usar a noção decampo (cf. Williams,1982).

95junho 2005

Marcelo Ridenti

diferentes campos artísticos, incluindo artistas que compartilham de certaestrutura de sentimento. Um exemplo: vistos hoje, fica claro pertencerem auma mesma estrutura de sentimento filmes como O grande momento, diri-gido por Roberto Santos em 1957, Assalto ao trem pagador, de RobertoFaria, em 1962, O pagador de promessas, filme de Anselmo Duarte baseadona peça homônima de Dias Gomes, premiado em Cannes em 1963, e ain-da outros, como A hora e a vez de Augusto Matraga, dirigido em 1965 porRoberto Santos, com base no conto de Guimarães Rosa. Todos eles valori-zam a brasilidade arraigada no homem simples do povo (no campo ou habi-tante da periferia das grandes cidades), denunciam as desigualdades sociais,buscam desvendar “a realidade do Brasil”13, entre outras características quelhes dá pertencimento à mesma estrutura de sentimento dos filmes do Cine-ma Novo, criados por cineastas tão unidos mas ao mesmo tempo tão dife-rentes entre si como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, JoaquimPedro de Andrade, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Ruy Guerra, ZelitoViana, Walter Lima Jr., Gustavo Dahl, Luiz Carlos Barreto, David Neves,Paulo César Saraceni, Eduardo Coutinho e Arnaldo Jabor. Entretanto,aqueles filmes não eram reconhecidos pelo grupo cinema-novista, que osacusava de seguir a estética holywoodiana, de ser herdeiros da Vera Cruz,de apego à narrativa clássica, enfim, de ser representantes do velho cinemaque se queria combater (cf. Bernardet e Galvão, 1983, p. 156). Também oscineastas radicados em São Paulo – como João Batista de Andrade, RenatoTapajós, Francisco Ramalho, Maurice Capovilla e Luiz Sérgio Person –,embora plenamente identificados com as propostas cinema-novistas, nãoeram reconhecidos por eles. Nas palavras de Renato Tapajós:

[...] embora a gente estivesse aqui em São Paulo sob o total impacto do Cinema

Novo – e todo mundo via o Cinema Novo como a redenção do cinema brasileiro –

, na verdade São Paulo nunca esteve envolvido no Cinema Novo, quer dizer, de-

pois comentava-se que o Cinema Novo era composto por aqueles que o Glauber

achava que faziam parte do Cinema Novo. E como ele nunca achou que os paulis-

tas fizessem parte do Cinema Novo, a gente corria um pouco à margem disso daí,

embora fizesse todas as discussões e tentasse acompanhar todas as propostas” (en-

trevista ao autor, Caxambu, 21 de outubro de 1997).

As divergências não são perceptíveis só pelo recurso à noção de estrutu-ra de sentimento, afinal ela era na essência, guardadas as distinções e pecu-liaridades de cada obra e autor, a mesma para todos esses cineastas. Talvez

13.Nelson Pereira dosSantos afirma: “Quantoao conteúdo, meus fil-mes não diferem muito,[...] é o reconhecimen-to da realidade do Bra-sil” (Salem, 1987, p.274). E ainda: “Amo opovo e não renuncio aessa paixão” (Idem, p.326). Esse apego à “rea-lidade brasileira” e a “pai-xão pelo povo” forammarcantes da estruturade sentimento da brasi-lidade revolucionária.

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 196

as divergências possam ser mais bem compreendidas ao se adentrar pelalógica da constituição do campo do cinema brasileiro, no qual o grupo doCinema Novo buscava ganhar poder e prestígio, desbancando outros agru-pamentos e evitando rivais.

Outro exemplo: o pessoal do Teatro Oficina teve, desde o início dosanos de 1960, uma sólida ligação com o Teatro de Arena, particularmentecom Augusto Boal. Todos compartilhavam da mesma estrutura de senti-mento, no caso do Oficina com uma influência forte também da drama-turgia e da filosofia existencialista de Sartre – que na época esteve no Brasile, entre outras coisas, ajudou a difundir a simpatia pela revolução cubana,que incendiava o imaginário do pessoal do Oficina, como conta RenatoBorghi em sua peça autobiográfica exibida em São Paulo em 2004, intitu-lada Borghi em revista. No livro Oficina: do teatro ao te-ato, Armando Sérgioda Silva observa que, em 1964, a encenação da peça do revolucionário rus-so Máximo Gorki, “Pequenos burgueses, bem como o golpe de Estado nopaís, foram um marco decisivo na história do Teatro Oficina. A partir deentão a balança que oscilava entre o existencial e o social começou a penderpara esse último” (1981, p. 132). Mas seria em 1967, com a encenação dapeça de Oswald de Andrade, O rei da vela, que o Oficina viria a distinguir-se claramente da tradição do Teatro de Arena e provocar impacto artístico epolítico nacionalmente no campo teatral, propondo uma “revolução ideo-lógica e formal” que os aproximaria do nascente tropicalismo – o que reme-te a um último exemplo.

Parece que o tropicalismo musical também é constituinte – talvez o der-radeiro – dessa estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária, aomesmo tempo que anuncia seu esgotamento e sua superação, quem sabeantevendo uma nova estrutura de sentimento14. Mas ele tinha suas peculia-ridades, tais como, de um lado, o acento na sintonia internacional e, deoutro, a valorização e a recuperação de tradições populares do “Brasil pro-fundo”, esquecidas pela então dominante canção engajada, acusada de ba-ratear as linguagens e de adular os desvalidos, nos termos do livro de memó-rias de Caetano Veloso15. Isso levaria os tropicalistas – cuja denominaçãofazia referência à utopia de uma civilização livre nos trópicos – a brigar emfamília com a brasilidade nacional-popular no campo da MPB. Essas pecu-liaridades e lutas de indivíduos e grupos que compartem ou não uma mes-ma estrutura de sentimento podem ser compreendidas lançando mão daidéia de campo para Bourdieu, como espaço de concorrência entre agentesem busca de legitimidade, prestígio e poder – ou seja, de capital social.

14.Tratei do tema numcapítulo sobre CaetanoVeloso (Ridenti, 2000,pp. 265-315), emboranão tivesse recorrido en-tão ao conceito de es-trutura de sentimento,nem ao de campo.

15.Caetano propõe a“sensibilidade popular”,diferenciada do “popu-lismo, substituidor daaventura estética pelaadulação dos desvalidose barateador das lingua-gens” (Veloso, 1997, p.504).

97junho 2005

Marcelo Ridenti

Os tropicalistas baianos vinham de fora do eixo dominante cultural-mente, por exemplo, nunca privaram da intimidade do círculo de expoen-tes da bossa nova, como Tom Jobim e Vinícius de Moraes16. Sob a luz daformulação de “campo”, é possível interpretar de modo inesperado umverso de Miserere nobis, parceria de Gilberto Gil e Capinam em 1968. Elesadvertiam na canção que “já não somos como na chegada/ calados e ma-gros, esperando o jantar” – como no tempo em que chegaram a São Pauloe fizeram o espetáculo engajado e de notoriedade secundária, intituladoArena canta Bahia, sob direção de Augusto Boal, em 1965. Dois anosdepois, eles já não se contentavam em ocupar posição subalterna no cam-po da música popular. Não mais esperariam as sobras na porta: os tropica-listas arrombaram-na para avançar sobre o banquete na sala de jantar. Masisso vinha junto com o mesmo espírito socializante da estrutura de senti-mento da brasilidade revolucionária, por exemplo, nos versos da mesmacanção a evocar que “um dia seja/ para todos e sempre a mesma cerveja/tomara que um dia de um dia não/ para todos e sempre metade do pão”.

Declínio e esgotamento de uma estrutura de sentimento

Tenho usado uma interpretação de Perry Anderson (1986) sobre mo-dernismo e modernidade para compreender o florescimento cultural e po-lítico nos anos de 1960 (cf. Ridenti, 1993; 2000). A estrutura de sentimen-to da brasilidade revolucionária construiu-se com base em coordenadashistóricas que podem ser observadas nas sociedades que ingressam em defini-tivo na modernidade urbana capitalista: a “intersecção de uma ordem domi-nante semi-aristocrática, uma economia capitalista semi-industrializada eum movimento operário semi-insurgente”. Vale dizer, historicamente, omodernismo caracteriza-se: 1) pela resistência ao academicismo nas artes, in-timamente ligado a aspectos pré-capitalistas na cultura e na política, nas quaisas classes aristocráticas e latifundiárias dariam o tom; 2) pelas invenções in-dustriais de impacto na vida cotidiana, geradoras de esperanças libertárias noavanço tecnológico; e 3) pela “proximidade imaginativa da revolução social”,fosse ela mais “genuína e radicalmente capitalista” ou socialista (Anderson,1986, pp. 18-19). Essas coordenadas teriam desaparecido na Europa depoisda Segunda Guerra Mundial, segundo o autor, mas ainda estariam presentesno Terceiro Mundo, que entretanto também tenderia a superá-las.

Parece que as coordenadas históricas do modernismo propostas porAnderson estavam presentes na sociedade brasileira do final dos anos de

16.Tom Jobim e Viní-cius de Moraes eram ín-timos e parceiros do jo-vem Chico Buarque,atacado pelos tropicalis-tas a ponto de respon-der com o artigo “Nemtoda loucura é genial,nem toda lucidez é ve-lha” (Buarque, 1968).

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 198

1950 até 1968: era significativa a luta contra o poder remanescente dasoligarquias rurais e suas manifestações políticas e culturais, havia um oti-mismo modernizador com o salto na industrialização a partir do governoKubitschek, sem contar o imaginário da revolução brasileira – fosse elademocrático-burguesa (de libertação nacional) ou socialista –, impulsio-nado pelos movimentos sociais de então.

O quadro mudaria após o fechamento político com a promulgação doAto Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, seguido daderrota das esquerdas brasileiras, esmagadas pela ditadura – que, paralela-mente à repressão, realizava o “milagre econômico” que consolidaria a mo-dernização conservadora –, sem contar os rumos pouco favoráveis para osrevolucionários dos eventos políticos internacionais na dédada de 1970,especialmente em sua segunda metade. Com isso, desapareciam na socie-dade brasileira as coordenadas históricas apontadas por Anderson: afasta-va-se a proximidade imaginativa da revolução, enquanto a sociedade semodernizava e urbanizava, permitindo constatar que a industrialização eas novas tecnologias não levaram à libertação mas, ao contrário, conviviambem com uma ditadura. Assim, dissolviam-se as bases históricas que de-ram vida ao florescimento cultural e político animado pela estrutura desentimento da brasilidade revolucionária.

A ditadura, entretanto, tinha ambigüidades: com a mão direita puniaduramente os opositores que julgava mais ameaçadores – até mesmo artis-tas e intelectuais –, e com a outra atribuía um lugar dentro da ordem nãosó aos que docilmente se dispunham a colaborar, mas também a intelec-tuais e artistas de oposição. Concomitante à censura e à repressão política,ficaria evidente na década de 1970 a existência de um projeto modernizadorem comunicação e cultura, atuando diretamente por meio do Estado ouincentivando o desenvolvimento capitalista privado. A partir do governoGeisel (1975-1979), com a abertura política, especialmente por intermé-dio do Ministério da Educação e Cultura, que tinha à frente Ney Braga, oregime buscaria incorporar à ordem artistas de oposição.

Nesse período, instituições governamentais de incentivo à cultura ga-nharam vulto, caso da Embrafilme, do Serviço Nacional de Teatro, daFunarte, do Instituto Nacional do Livro e do Conselho Federal de Cultu-ra. A criação do Ministério das Comunicações, da Embratel e outros in-vestimentos governamentais em telecomunicações buscavam a integraçãoe segurança do território brasileiro, estimulando a criação de grandes redesde televisão nacionais, em especial a Globo, que nasceu, floresceu e se

99junho 2005

Marcelo Ridenti

tornou uma potência na área à sombra da ditadura, que ajudava a legiti-mar em sua programação, especialmente nos telejornais. A Globo empre-gava também artistas que compartilhavam da estrutura de sentimento dabrasilidade revolucionária, como Vianinha e Dias Gomes17.

Intelectuais como Sérgio Paulo Rouanet e Renato Ortiz já salientaramque a indústria cultural brasileira dos anos de 1980, a Rede Globo à frente,seria uma herança caricatural mas reveladora das propostas nacionais epopulares da década de 1960. Rouanet admite que o “nacional-popular dopassado era crítico e mobilizador, o da indústria cultural é conformista eapolítico”, mas seria um “espelho deformante” daquele, do qual tirou

[...] a idéia de autenticidade que a mídia interpreta como defesa do mercado brasi-

leiro contra os enlatados americanos e a preocupação com a identidade cultural,

que a televisão procura resgatar, reservando um espaço para programações regio-

nais, intercaladas entre programas de âmbito nacional. É dele, enfim, que vem seu

traço mais típico, o antielitismo, concebido como repúdio à cultura “erudita” [...]

(Rouanet, 1988, p. D.3).

Assim, haveria “afinidades estruturais importantes entre a autolegitimaçãonacionalista e populista da indústria cultural brasileira [atual] e as antigasbandeiras nacionalistas e populares” (Idem, p. D.3).

Já Renato Ortiz, em A moderna tradição brasileira (1988), ressalta areabsorção despolitizante pelos meios de comunicação de massa de uma cul-tura nacional e popular que se pretendia revolucionária em sua origem. Se-gundo ele – lançando mão da distinção entre ideologia e utopia nos termosde Karl Mannheim (1950) –, a utopia nacional-popular das décadas de1940, 1950 e 1960 transformou-se na ideologia da indústria cultural brasi-leira dos anos de 1970 e 1980, isto é, uma visão de mundo crítica foi trans-formada numa justificativa da ordem. Para usar um vocabulário inspiradoem Raymond Williams, pode-se falar no declínio da estrutura de sentimentoda brasilidade revolucionária, que deixa de ser revolucionária, mas conservaaspectos de defesa da brasilidade que marcarão a indústria cultural brasileira.

Sergio Miceli (1994) chegou a levantar a hipótese de que o sucesso debens culturais brasileiros em âmbito nacional e também no mercado interna-cional – como no caso das telenovelas da Rede Globo – seria indissociável do

[...] recrutamento de toda uma geração de técnicos, escritores e artistas compro-

metidos com a ética e a estética de esquerda e, por essa razão, habilitados artesanal

17.Até o final da vida,apesar de ter-se torna-do um ícone da ideo-logia nacional-popularde mercado da Globocom suas telenovelas,Dias Gomes identifica-va-se com a brasilida-de revolucionária, tan-to que deu a suas me-mórias o título Apenasum subversivo (1998).

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1100

e ideologicamente à fabricação de bens culturais condizentes com as expectativas

axiológicas e com os padrões estéticos de gosto dos públicos consumidores nos

países metropolitanos (Miceli, 1994, p. 60).

Com apoio estatal, durante a ditadura, foi criada uma indústria cultu-ral merecedora desse nome, não apenas televisiva, mas também editorial –que publicava livros e especialmente jornais, revistas, fascículos e outrosprodutos –, fonográfica, de agências de publicidade e assim por diante.Freqüentemente, empregavam-se artistas e intelectuais nas agências depublicidade, cujo crescimento vertiginoso acompanhou a modernizaçãoconservadora promovida pelo Estado, que se tornou ainda um anunciantefundamental para os meios de comunicação de massa (cf. Arruda, 1985).

Os herdeiros do Cinema Novo constituem exemplo significativo dorearranjo pragmático dos artistas de esquerda com a ordem estabelecida nadécada de 1970. Como bem aponta José Mário Ortiz Ramos, referindo-seao início do Cinema Novo, “o conceito de alienação se entrecruzava com onacionalismo, costurando o tecido que sustentava, e de alguma forma uni-ficava, a diversidade da produção cultural da época” (1983, p. 75). OCinema Novo em seus primórdios buscava um “enigmático homem brasi-leiro”, em sua “ânsia de apreender a realidade brasileira” (Idem, p. 13).Pode-se dizer que essas palavras de Ramos expressam bem a estrutura desentimento da brasilidade (romântico-) revolucionária, que dava respostaa certas transformações na organização social até 1964. Mas essa organiza-ção mudaria muito sob a ditadura, especialmente depois de 1968, e por-tanto a estrutura de sentimento correspondente não poderia passar incólu-me. Nesse sentido, Ramos observa com perspicácia a permanência para osherdeiros do Cinema Novo – e, pode-se acrescentar, para os herdeiros emgeral da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária – da ques-tão nacional, da identidade do cinema, da cultura e do homem brasileiro,mas mostra como essa questão vai ganhando novos contornos ao longo dotempo: “A preocupação com o ‘homem brasileiro’ é uma constante noCinema Novo, mas o importante é acompanhar as transformações quesofre conforme as injunções políticas” (Idem, p. 78).

Essas injunções políticas tendiam a afastar a proximidade imaginativa darevolução social. Após as derrotas de 1964 e de 1968, a busca romântica daidentidade nacional do homem brasileiro permaneceria, porém mudavamas características desse romantismo, que foi deixando de ser revolucionáriopara encontrar um lugar na nova ordem. Nos primeiros anos da ditadura, os

101junho 2005

Marcelo Ridenti

herdeiros do Cinema Novo posicionaram-se claramente na oposição, masisso em parte mudou com a abertura política do presidente Geisel e a reor-ganização da Embrafilme, com a qual vários cineastas passaram a colaborar,especialmente na gestão do cineasta Roberto Farias, entre 1974 e 1979 (cf.Soler Jorge, 2002; Ramos, 1983). A posição do governo continuava ambí-gua: filmes financiados pela Embrafilme por vezes eram censurados, dife-rentes órgãos do Estado incentivavam e puniam uma dada produção.

Essa ambigüidade – em parte responsável pela longevidade da ditadura –marcaria todas as esferas artísticas e também intelectuais, como a própria uni-versidade: o governo reprimia professores e estudantes considerados subversi-vos, mas o projeto de desenvolvimento exigia investimentos significativos emciência e tecnologia, portanto, também na universidade. Ora, os debates e acrítica próprios da atividade acadêmica acabaram por gerar questionamentoscrescentes à ditadura, que não deixava de oferecer uma alternativa de acomo-dação institucional a setores acadêmicos de oposição, como a criação de umsólido sistema nacional de pós-graduação e de apoio à pesquisa que perduraaté hoje. A atuação educacional do regime implicou também a massificação doensino público de primeiro e segundo graus, ainda que qualitativamente de-gradados, o incentivo ao ensino médio e superior privado e assim por diante.Buscava atender à sua maneira, dentro da nova ordem, às reivindicações demodernização que haviam levado os estudantes às ruas na década de 1960.

A sociedade brasileira foi ganhando nova feição, artistas e intelectuaisque compartilharam da estrutura de sentimento da brasilidade revolucio-nária aos poucos iam-se adaptando à ordem sob a ditadura. Chegaram aconstituir um segmento de produção e consumo de mercadorias culturaisconsideradas críticas ao regime, que censurava seletivamente alguns dessesprodutos. O mercado oferecia ótimas oportunidades a profissionais quali-ficados – até mesmo aos artistas de esquerda, representantes da culturaviva do período anterior, que se esgotara em 1968. Eles não tinham muitadificuldade para encontrar bons empregos em redes de rádio e televisão,produtoras de teatro e cinema, empresas de jornalismo, agências de publi-cidade, universidades, fossem órgãos públicos ou privados – ainda quehouvesse “listas negras” elaboradas pelo Serviço Nacional de Informações.

Herança de uma estrutura de sentimento

A partir de 1985, a redemocratização da sociedade brasileira levaria umaparcela significativa de artistas e intelectuais de oposição a comprometer-se

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1102

com a Nova República. Eram as “aves de arribação”, a deixar a esfera de umaoposição mais consistente à ordem estabelecida, nos termos de um artigo daépoca de Francisco de Oliveira (1985). Já restava pouco da velha estrutura desentimento da brasilidade revolucionária, que entretanto – adaptada à novaorganização social a que procurava responder – encontraria uma sobrevidaem alguns setores, como os que viriam a constituir o Partido dos Trabalhado-res (PT), que desde o início contou com a simpatia de vários artistas e intelec-tuais. Tanto que Mário Pedrosa, Antonio Candido e Lélia Abramo encabe-çam as assinaturas do Manifesto de Lançamento do PT, em 10 de fevereirode 1980, em ato público realizado no Colégio Sion, em São Paulo. Contudo,sintomaticamente, esses três sempre tiveram uma convivência problemáticae contraditória com a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária,a que entretanto não eram alheios. Politicamente, Mário e Lélia tinham for-mação trotskista e Candido integrava o Partido Socialista, todos adversáriosdo trabalhismo, bem como do nacionalismo dos comunistas18.

Em 1980, as condições eram outras: a sociedade havia se modernizadoe urbanizado, o nacionalismo terceiro-mundista era coisa do passado, oculto ao povo cedia lugar no imaginário do PT à constituição da classetrabalhadora, assim como se esgotava a noção de partido de vanguardainformada pelo marxismo-leninismo. Não havia como a estrutura de sen-timento da brasilidade revolucionária expressa nas obras artísticas dos anosde 1960 permanecer. Contudo, os movimentos sociais insurgentes, o novosindicalismo, as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja informadas pelaTeologia da Libertação, a luta contra a ditadura nos seus estertores, o surtoda imprensa alternativa, o fim do AI-5 e da censura, a Anistia, a vitória darevolução na Nicarágua em 1979 e outros fatores criavam em setores artís-ticos e intelectuais – identificados ou não com os primórdios do PT – asensação de continuidade em relação à antiga estrutura de sentimento.Tanto que, por exemplo, no final da década de 1970, a editora CivilizaçãoBrasileira tentou reeditar o sucesso da Revista Civilização Brasileira ao lan-çar Encontros com a Civilização Brasileira (que chegou a ter mais númerosque a antiga, mas seu impacto não foi nem sombra do da outra), a tambémtradicional editora Brasiliense viveria tempos de glória após o sucesso daColeção Primeiros Passos, que atualizava a proposta de livros paradidáticosde bolso dos Cadernos do povo brasileiro, editados no início dos anos de1960 pela Civilização Brasileira19, e até a pequena editora Kairós, dirigidapor trotskistas, lançou a prestigiosa Arte em Revista, que republicou partesignificativa dos debates político-estéticos da década de 1960.

18. Não obstante, comono caso de Pedrosa, o im-pacto da estrutura de sen-timento da brasilidaderevolucionária no con-texto da ditadura é per-ceptível em seu pensa-mento no período. Veja-se, por exemplo, o elo-gio do crítico – adeptoda arte abstrata e impul-sionador do concretis-mo nas artes plásticasbrasileiras – ao engaja-mento da exposiçãoOpinião 65, inspiradano show Opinião, um“teatro popular tão pró-ximo, por sua próprianatureza, ao clima social,à atmosfera política daépoca”. Para ele, a can-ção Carcará, de João doVale, seria um “verda-deiro hino da revoluçãocamponesa nordestina[...] como a Caramagno-le foi da plebe urbana edos sans-culottes na Re-volução Francesa, du-rante o Terror”. Carca-rá e o filme Deus e o di-abo na terra do sol, deGlauber Rocha, teriamdado “para o Brasil osigno de uma espécie decriatividade coletiva”(apud Arantes, 1995,pp. 204-205).

19.A Brasiliense tam-bém editou na época acoleção O nacional e opopular na cultura bra-sileira, planejada por

103junho 2005

Marcelo Ridenti

No decorrer dos anos de 1980, as lutas sindicais no Brasil, a campanhapelas diretas-já, o fim da ditadura no início de 1985, a convocação da As-sembléia Nacional Constituinte, a legalização dos partidos comunistas, ocrescimento do PT e outros fatores ainda mobilizaram certo imaginário darevolta e da revolução, mesmo que já distinto daquele dos anos de 1960:destacavam-se correntes de esquerda que buscavam contato com a realida-de imediata das vidas cotidianas e com as lutas dos movimentos sociais pordireitos de cidadania, contra a visão doutrinária fechada de certas vertentesdo marxismo20. Por outro lado, o cenário internacional desfavorável, com oavanço do neoliberalismo, o domínio conservador simbolizado na duplaReagan-Thatcher e no pontificado de João Paulo II, a crise da revoluçãonicaragüense, a glasnost e a Perestroika na União Soviética, que culminari-am com o fim do socialismo no Leste Europeu, e internamente a derrotados candidatos de esquerda Brizola e Lula, nas eleições de 1989, parecemter selado a sorte da velha estrutura de sentimento.

De sapos revolucionários a príncipes pós-modernos

Esse processo evidentemente é longo e intrincado, não seria possíveldar conta dele satisfatoriamente em poucas linhas. Por isso, aqui se propõeapenas um comentário sobre um filme recente que não foi propriamenteum sucesso de público nem de crítica, mas que expressa bem o desloca-mento e o estranhamento em nossos dias do artista/intelectual formado naestrutura de sentimento da brasilidade revolucionária – e assim serve depretexto para tratar do envelhecimento dessa estrutura. Trata-se de O prín-cipe, lançado em 2002, escrito e dirigido por Ugo Giorgetti – um cineastanascido em 1942, diretor-roteirista de cinema publicitário desde 1966,também documentarista, que só se destacaria nos longas a partir de mea-dos dos anos de 1980. O personagem central de O príncipe é Gustavo, umintelectual que deixou São Paulo no início dos anos de 1980 e só volta aoBrasil vinte anos depois, quando reencontra os amigos e a cidade muitomodificados, sentindo-se absolutamente deslocado.

Aqui é preciso dar um desconto à verossimilhança, afinal, em primeirolugar, o homem que retorna não havia vivido em outro planeta, mas emParis, ainda que trabalhando sem regularidade e recorrendo constantemen-te à ajuda da seguridade social, pelo seu ideal de estar à margem do sistema.Em segundo lugar, o personagem central seria mais plausível se pertencesseà geração do diretor, universitária nos anos de 1960, plenamente identifi-

Adauto Novaes (1983),que não deixava de serum balanço crítico daestrutura de sentimen-to da brasilidade revo-lucionária.

20.Trato de aspectosdesse problema em Ri-denti (1998), sobre oimpacto no Brasil do li-vro de Marshall Berman(1986).

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1104

cada com a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária – masGustavo é mais jovem, formado na década de 1970, deveria estar mais afi-nado com os ecos dos novos movimentos sociais que surgiram na época emSão Paulo (cf. Sader, 1988). Há uma breve menção a eles, durante uma falaque remete ao tempo da “Vila Euclides” – estádio de futebol onde se reali-zavam manifestações dos metalúrgicos do ABC do fim dos anos de 1970 aoinício dos de 1980 –, ao passo que abundam as referências à década de1960, por exemplo uma tomada na rua Maria Antônia, passando em frenteà antiga Faculdade de Filosofia.

Após vinte anos de exílio voluntário, ao retornar de táxi do aeroporto àcasa materna na Vila Madalena – que na sua juventude era um bairro paca-to e simples, onde viviam jovens estudantes e intelectuais, muitos dos quaisfreqüentavam o campus vizinho da Universidade de São Paulo –, Gustavomal reconhece o bairro, agitado, cheio de bares, movimento de pessoas eautomóveis, sujeito à criminalidade e à banalidade da violência cotidiana dametrópole. Os antigos amigos de esquerda em geral estão bem situados den-tro da ordem, com a qual convivem com graus variados de (des)conforto.Um deles tornou-se jornalista de prestígio – o “velho” do jornal que teria umprofissional para agradar a cada segmento do mercado. Ele, paraplégico emrazão de um acidente, vive bêbado e a tudo ironiza. Numa cena marcante,recita versos da Divina comédia no célebre trecho em que o poeta está àsportas do inferno. A cena tem lugar de madrugada, em meio a uma infini-dade de mendigos nas proximidades da outrora fulgurante Galeria Metró-pole, atrás da decadente Biblioteca Municipal, diante da estátua de Dantena praça Dom José Gaspar, onde ficava o Paribar, também evocado explici-tamente numa tomada (detalhe: todas essas referências remetem à São Pau-lo florescente dos anos de 1950/1960, tempo da juventude do autor dofilme, e não do personagem da Vila Madalena na década de 1970).

Outro amigo prosperou com marketing gerencial e cultural; sabendodo bom domínio de Gustavo da obra de Maquiavel, propõe ao velho com-panheiro empresariar seu futuro sucesso: palestras e um livro adaptando aobra O príncipe para auto-ajuda de interessados em triunfar rapidamentenos negócios21. Daí o título do filme, que se refere também à autodesignaçãode Gustavo como “o príncipe da Náusea”, em referência ao romance deSartre – que, de novo o deslocamento temporal, empolgou muito mais ageração do diretor do filme que a de seu personagem. A bela ex-namoradatornou-se executiva bem-sucedida de uma grande empresa que investe emeventos artísticos e culturais, mas se confessa infeliz. Outros personagens

21.É significativa a lon-ga fala, quase um mo-nólogo, desse persona-gem cínico e arrivista,numa cena de cerca decinco minutos que sepassa numa academia deginástica da moda, emque se recorre a outrossímbolos dos novos-ri-cos, como telefone ce-lular, terno e carro im-portado. Eis alguns tre-chos: “finalmente, cul-tura e erudição estãodando dinheiro. A mo-dernidade inclui a cul-tura e os culturati. Amodernidade necessitade charme. E quem éque pode fornecer essamatéria-prima tão rara?Nós! Finalmente nósestamos na moda. Há fe-nômenos acontecendo,mega-livrarias sendoinauguradas, feiras delivros, o diabo. Não seise alguém lê, mas com-pram, e isso é o que in-teressa para nós. [...] Osintelectuais cansaram deser pobres. Eles acaba-ram aprendendo com ospublicitários que ideia-zinhas valem dinheiro.E, apesar de tudo, hámuito dinheiro circulan-do por aí. Todos os nos-sos amigos estão coloca-dos. [...] e todos estão nascolunas sociais. A genteacaba fazendo parte dagrande fraternidade ar-

105junho 2005

Marcelo Ridenti

aparecem brevemente, como a moça que fotografa mortos na violência damadrugada, um psicanalista da moda que será homenageado no desfile deuma escola de samba e um maestro que vira pop star (papel de JúlioMedaglia, que ironicamente interpreta um maestro engolfado no sistema).

Só dois personagens parecem manter a dignidade. O primeiro é umamigo de Gustavo que ajuda os pobres, trabalhando de graça no alberguedo Bom Retiro; leva uma vida modesta e recebe Gustavo para conversarnuma pequena fábrica abandonada que herdou do pai. Esse personagem –mais que o niilista Gustavo – é o que melhor encarna o que restou da brasi-lidade revolucionária. Ele diz, numa cena: “existe um Brasil secreto, subter-râneo, escuro, enorme, é difícil chegar perto. E ao mesmo tempo ele estápraticamente por toda parte”. O segundo é o sobrinho do protagonista, umprofessor de História que está em tratamento mental numa clínica apóssurtos sucessivos que não poupavam sequer suas aulas no colégio particularem que lecionava. Constatando a falta de expressão da História do Brasil,ele ensinava aos alunos uma História grandiosa que inventava, por exemploatribuindo aos militares brasileiros a libertação de Berlim no fim da Segun-da Guerra Mundial. Ao final do filme, o professor não suportou a doençaque chamara de “desabamento central da alma”, constatou que “a luz destacidade está se apagando” e jogou-se do alto do viaduto sobre a avenidaSumaré, enquanto o protagonista sai para o exterior, fugindo novamente(das ruínas) de São Paulo e do Brasil.

O filme permite um paralelo com o livro de Jacoby (1990) sobre odeclínio do intelectual atuante na vida pública da sociedade norte-america-na ainda nos anos de 1950. Jacoby aponta o desaparecimento do espaçourbano barato e agradável que podia nutrir uma intelligentsia boêmia emodelar uma geração de intelectuais, com a eliminação das moradias, res-taurantes, cafés e livrarias modestos, somada à comercialização acelerada dacultura e à restrição da vida intelectual aos limites dos campi universitários,situados nos subúrbios. Nesse ambiente, “a literatura e a crítica se tornamcarreiras, não vocações”, com autores independentes dando lugar à profis-sionalização da vida cultural. A institucionalização de intelectuais e artistasneutralizaria a liberdade de que em teoria dispõem, de modo que um even-tual sonho com a revolução conviveria com o investimento na profissão, noqual prevaleceria a realidade cotidiana da burocratização e do emprego.

Como expressa bem a trajetória dos personagens do filme de Giorgetti,há tempos entrou em declínio o padrão de intelectual ou artista de esquer-da dos anos de 1960, engajado, em busca da ligação com o “povo” – hoje

tístico-empresarial – e ga-nha dinheiro, porra!”.

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1106

considerado talvez como epifenômeno do “populismo”, manipulador dosanseios populares, expressão de uma minoria em busca de transformar seusaber em poder, ou, na melhor das hipóteses, como protótipo do intelec-tual quixotesco. Aos poucos, foi-se estabelecendo o modelo do artista e doscholar contemporâneos, profissionais amadurecidos, desvinculados de com-promissos ideológicos e sociais, livres das utopias voluntaristas dos anos de1960, que só teriam sido revolucionárias na aparência. Ou de artistas eintelectuais que mantêm uma fachada de engajamento e ligação com o pas-sado para legitimar sua acomodação com a ordem no presente.

Não seria o caso de aprofundar aqui a análise do filme, que interessapor ilustrar o estranhamento de alguém formado na estrutura de senti-mento da brasilidade revolucionária em relação à realidade de hoje, emque a hegemonia burguesa é tão difusa e consolidada que se torna difícilpensar numa alternativa a ela. Não há dúvida de que hoje predomina o“senso de realidade experimentada”22 que supõe a reprodução eterna dasociabilidade capitalista.

A antiga estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária por cer-to tem herdeiros, mas há muito deixou de ser predominante, em várioscasos transformou-se numa ideologia legitimadora da indústria culturalbrasileira. Pode-se arriscar a hipótese – seria melhor dizer intuição, pois elaé difícil de comprovar, uma vez que ainda não há o devido distanciamentono tempo – de que o lugar principal é agora ocupado pela estrutura desentimento da individualidade pós-moderna, esboçada naqueles mesmosanos de 1960, caracterizada pela valorização exacerbada do “eu”, pela cren-ça no fim das visões de mundo totalizantes, dado o caráter completamentefragmentado e ilógico da realidade, pela sobreposição eclética de estilos ereferências artísticas e culturais de todos os tempos, pela valorização dosmeios de comunicação de massa e do mercado, pela inviabilidade de qual-quer utopia.

O profissional competente e competitivo no mercado, concentrado nacarreira e no próprio bem-estar, veio substituir o antigo modelo de artista/intelectual indignado, dilacerado pelas contradições da sociedade capita-lista periférica e subdesenvolvida, que compartilhava da estrutura de senti-mento da brasilidade revolucionária. Contudo, a utopia revolucionária nãodesaparece nem mesmo na produção cultural reificada da sociedade denossos dias (cf. Jameson, 1994). Mas isso já seria tema para outro artigo.

22.Ao tratar do concei-to de hegemonia, basea-do em Gramsci, Ray-mond Williams obser-va que ele envolve “umconjunto de práticas eexpectativas, sobre a to-talidade da vida: nossossentidos e distribuiçãode energia, nossa percep-ção de nós mesmos enosso mundo. É um sis-tema vivido de signifi-cados e valores – cons-titutivo e constituidor –que, ao serem experi-mentados como práti-cas, parecem confirmar-se reciprocamente.Constitui assim um sen-so da realidade para amaioria das pessoas nasociedade, um senso derealidade absoluta, por-que experimentada, ealém da qual é muitodifícil para a maioria dosmembros da sociedademovimentar-se, na maio-ria das áreas de sua vida”(Williams, 1979, p. 113).

107junho 2005

Marcelo Ridenti

Referências Bibliográficas

ANDERSON, Perry. (1986), “Modernidade e revolução”. Novos Estudos Cebrap, São

Paulo, 14: 2-15.

ARANTES, Otília (org.). (1995), Política das artes – Mário Pedrosa. Textos escolhidos.

São Paulo, Edusp.

ARRUDA, Maria Arminda Nascimento. (1985), A embalagem do sistema: a publicidade

no capitalismo brasileiro. São Paulo, Duas Cidades.

BERMAN, Marshall. (1986), Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Cia. das Letras.

BERNARDET, Jean-Claude & GALVÃO, Maria Rita. (1983), O nacional e o popular na

cultura brasileira – cinema. São Paulo, Brasiliense.

BOURDIEU, Pierre. (1996), As regras da arte. São Paulo, Cia. das Letras.

______. (2001), “Campo de poder, campo intelectual e ‘habitus’ de classe”. In: ______.

A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva.

BUARQUE, Chico. (1968), “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”.

Última Hora, São Paulo, 9 dez.

______. (1999), Entrevista a Marcos Augusto Gonçalves e Fernando de Barros e Sil-

va. Folha de São Paulo, Caderno 4, 18 mar., p. 8.

CALLADO, Antonio. (1967), Quarup. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

CEVASCO, Maria Elisa. (2001), Para ler Raymond Williams. São Paulo, Paz e Terra.

FANON, Frantz. (1979), Os condenados da terra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

FAVARETTO, Celso. (1996), Tropicália alegoria alegria. São Paulo, Ateliê Editorial.

FELIX, Moacyr (org.). (1962), Violão de rua: poemas para a liberdade. Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira, vols. I, II.

______ (org.). (1963), Violão de rua: poemas para a liberdade. Rio de Janeiro, Civili-

zação Brasileira, vol. III.

FERNANDES, Florestan. (1976), A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar.

GOMES, Dias. (1998), Apenas um subversivo: autobiografia. Rio de Janeiro, Bertrand

Brasil.

GULLAR, Ferreira. (1967), “Quarup ou ensaio de deseducação para brasileiro virar

gente”. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 15: 251-258, set.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (1981), Impressões de viagem: CPC, vanguarda e

desbunde: 1960/70. São Paulo, Brasiliense.

IANNI, Octavio. (1968), “A mentalidade do ‘homem simples’ ”. Revista Civilização

Brasileira, Rio de Janeiro, ano III, 18: 113-117, mar./abr.

JACOBY, Russell. (1990), Os últimos intelectuais. São Paulo, Edusp/Trajetória Cultural.

JAMESON, F. (1994), “Reificação e utopia na cultura de massa”. Crítica Marxista, São

Paulo, 1 (1): 1-25.

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1108

KUSHNIR, Beatriz (org.). (2002), Perfis cruzados: trajetórias e militância política no

Brasil. Rio de Janeiro, Imago.

LÖWY, Michael & SAYRE, Robert. (1995), Revolta e melancolia: o romantismo na con-

tramão da modernidade. Petrópolis, Vozes.

MANNHEIM, Karl. (1950), Ideologia e utopia. Porto Alegre, Globo.

MENESCAL, Roberto. (2003), “A renovação estética da Bossa Nova”. In: DUARTE, Pau-

lo Sérgio & NAVES, Santuza Cambraia (orgs.). Do samba-canção à tropicália. Rio

de Janeiro, Relume Dumará.

MICELI, Sergio. (1994), “O papel político dos meios de comunicação de massa”. In:

SOSNOWSKI, Saul & SCHWARZ, Jorge (orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São

Paulo, Edusp.

NAPOLITANO, Marcos. (2001), Seguindo a canção: engajamento político e indústria cul-

tural na MPB (1959-1969). São Paulo, Annablume/Fapesp.

NOVAES, Adauto. (1983), Prefácios aos volumes da coleção O nacional e o popular na

cultura brasileira. São Paulo, Brasiliense.

OLIVEIRA, Francisco de. (1972), “Economia brasileira: crítica à razão dualista”. Estu-

dos Cebrap, São Paulo, 2.

______. (1985), “Aves de arribação: a migração dos intelectuais”. Lua Nova, São Pau-

lo, 2 (3): 20-6, out./dez.

ORTIZ, Renato. (1988), A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria

cultural. São Paulo, Brasiliense.

PÉCAUT, Daniel. (1990), Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo, Ática.

PIERRE, Sylvie. (1996), Glauber Rocha. Campinas, Papirus.

PRADO JR., Caio. (1966), A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense.

RAMOS, José Mário Ortiz. (1983), Cinema, Estado e lutas culturais (anos 50/60/70).

Rio de Janeiro, Paz e Terra.

RIDENTI, Marcelo. (1993), O fantasma da revolução brasileira. São Paulo, Editora da Unesp.

______. (1998), “O sucesso no Brasil da leitura do Manifesto Comunista feita por

Marshall Berman”. In: REIS Filho, Daniel Aarão (org.). O Manifesto Comunista

150 anos depois. Rio de Janeiro/São Paulo, Contraponto/Fundação Perseu Abramo.

______. (2000), Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV.

Rio de Janeiro, Record.

ROMANO, Roberto. (1981), Conservadorismo romântico: origem do totalitarismo. São

Paulo, Brasiliense.

ROUANET, Sérgio Paulo. (1988), “Nacionalismo, populismo e historismo”. Folha de

São Paulo, Caderno D, 12 mar., p. 3.

SADER, Eder. (1988), Quando novos personagens entram em cena. Rio de Janeiro, Paz e

Terra.

109junho 2005

Marcelo Ridenti

SALEM, Helena. (1987), Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro.

Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

SALIBA, Elias Thomé. (1991), As utopias românticas. São Paulo, Brasiliense.

SCHWARZ, Roberto. (1978), “Cultura e política, 1964-1969”. In: ______. O pai de

família e outros estudos. Rio de Janeiro, Paz e Terra.

SILVA, Armando Sérgio da. (1981), Oficina: do teatro ao te-ato. São Paulo, Perspectiva.

SOLER JORGE, Marina. (2002), Cinema Novo e Embrafilme: cineastas e Estado pela con-

solidação da indústria cinematográfica brasileira. Dissertação de Mestrado, Campi-

nas, IFCH, Unicamp.

VALLE, Marcos. (2004), Depoimento para o encarte do CD Antologia, compilado por

Charles Gavin.

VELOSO, Caetano. (1997), Verdade tropical. São Paulo, Cia. das Letras.

WILLIAMS, Raymond. (1979), Marxismo e literatura. Rio de Janeiro, Zahar.

______. (1982), “The Bloomsbury fraction”. In: ______. Problems in materialism and

culture. Londres, Verso.

______. (1987), Drama from Ibsen to Brecht. Londres, The Hogarth Press.

Resumo

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960

O artigo trata da trajetória de intelectuais brasileiros considerados de esquerda, espe-

cialmente os artistas, a partir dos anos de 1960. Desenvolve-se a hipótese da existência

de uma “estrutura de sentimento” da brasilidade revolucionária, forte até 1968, em

resposta a mudanças na organização social, e de como ela tendeu a desestruturar-se

quando a sociedade seguiu em outra direção. As obras dos artistas que compartilha-

vam dessa estrutura de sentimento eram diferenciadas e não havia total identidade

entre eles, às vezes rivais entre si. O processo de modernização conservadora da socie-

dade viria a institucionalizar profissionalmente o meio artístico e intelectual, afastan-

do-o do compromisso com as causas críticas da ordem. Esgotaram-se as coordenadas

históricas em que frutificou certa estrutura de sentimento que, não raro, converteu-se

em ideologia legitimadora da indústria cultural brasileira.

Palavras-chave: Cultura e política; Intelectualidade brasileira; Rebeldia e revolução;

Estrutura de sentimento; Romantismo revolucionário.

Abstract

Artists and intellectuals in post-1960 Brazil

This article is about the progress of Brazilian left wing intellectuals, especially the

artists, after the 1960’s. In it, we develop the hypothesis of the existence of a structure

of feelings of revolutionary Brazilianism, strong until 1968, as an answer to changes in

Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960, pp. 81-110

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1110

social organization, and how it tended to become de-structured when the whole of

society went in another direction. The works by the artists who shared this structure

of feelings shared something familiar but there was no total identity among them; at

times, they were rivals. The process of conservative modernization of society would

professionally institutionalize the artistic and intellectual milieu, keeping it apart from

the commitment with critical causes of order. The historical constraints in which

certain structures of feelings bore fruit dried up, and, many times, those feelings were

transformed into an ideology that legitimized the Brazilian cultural industry.

Keywords: Culture and politics; Brazilian intellectuals; Rebellion and revolution; Struc-

ture of feelings; Revolutionary romanticism.

Texto recebido em 29/9/2004 e aprovado em16/11/2004.

Marcelo Ridenti é pro-fessor do Departamen-to de Sociologia do Ins-tituto de Filosofia e Ciên-cias Humanas da Uni-versidade Estadual deCampinas (Unicamp) epesquisador do CNPq.E-mail: [email protected]